Mendes Corrêa e o Homo afer taganus

August 24, 2017 | Autor: Ana Abrunhosa | Categoria: História da Arqueologia, Concheiros De Muge
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Mendes Corrêa e o Homo afer taganus ANA ABRUNHOSA Universidade de Coimbra e Porto (CEAUCP) Grupo ESTEP Resumo: Os concheiros mesolíticos de Muge (Salvaterra de Magos, Santarém – Portugal) foram descobertos em 1863. Desde então são considerados um dos mais importantes sítios arqueológicos portugueses onde a investigação é continuamente realizadas por várias equipas há quase 150 anos. Na década de 1930, quando se iniciou o regime ditatorial de Salazar, os trabalhos arqueológicos foram dirigidos por Mendes Corrêa (1888-1959). Este investigador estudou os esqueletos humanos de Muge que baptizou Homo afer taganus. Pelas suas características físicas admitiu que essa população tinha origem no Norte de África. A sua teoria levantou questões polémicas num país que possuía grande número de colónias em África e procurava afirmar a sua supremacia e singularidade pela construção da Historia do país e do Império português. Palavras-chave: Concheiros de Muge, Mesolítico, Homo afer taganus, Colonialismo Resumen: Los concheros mesolíticos de Muge (Salvaterra de Magos, Santarém - Portugal) fueron descubiertos en 1863. Desde entonces están considerados como algunos de los sitios arqueológicos más importantes, en los que se ha desarrollado una investigación continua, realizada por varios equipos durante casi 150 años. En la década de 1930, cuando el régimen dictatorial de Salazar comenzó, los trabajos arqueológicos fueron dirigidos por Mendes Corrêa (1888-1959). Este autor reconoció, por las características físicas de los esqueletos humanos encontrados en Muge, que él nombró Homo afer taganus, un origen en el norte de África. Esta teoría planteó cuestiones polémicas en un país que tenía un gran número de colonias en África y trataba de afirmar su supremacía y singularidad a través de la construcción de su historia y de la del imperio portugués. Palabras clave: Concheros de Muge, Mesolítico, Homo afer taganus, Colonialismo Abstract: The Mesolithic shellmiddens of Muge (Salvaterra de Magos, Santarém - Portugal) were discovered in 1863. Since then are considered one of the most important archaeological sites where continuous research is conducted by various teams for nearly 150 years. In the 1930s, when the dictatorial regime of Salazar began, the archaeological works were directed by Mendes Corrêa (1888-1959). This author admitted, by the physical characteristics of the human skeletons found in Muge named by him Homo afer taganus, an North african origin, raising controversial issues in a country that had at the time a large number of colonies in Africa and sought to assert its supremacy and uniqueness through the construction of its history and of the Portuguese Empire. Key-words: Shellmidens of Muge, Mesolithic, Homo afer taganus, colonialism

revelaram uma grande quantidade de material arqueológico, destacando-se as centenas de indivíduos exumados (CARDOSO e ROLÃO, 2002/2003; CARVALHO, 2009; CARDOSO, 2002; CORRÊA, 1951).

1. Descoberta e localização No ano de 1863, Carlos Ribeiro (18131882), geólogo das Comissão Geológica de Portugal, descobriu os primeiros concheiros mesolíticos do Vale do Tejo. Carlos Ribeiro encontrava-se a estudar e classificar os depósitos quaternários “da margem esquerda do Tejo e ribeiras de Muge, [e] Magos” (LEITÃO, 2004: 172) para a realização da Carta Geológica de Portugal. Os concheiros nas margens da ribeira de Muge – Moita do Sebastião, Cabeço da Arruda, Cabeço da Amoreira e Fonte do Padre Pedro – foram os primeiros a ser estudados e escavados. Estes

2. Primeiros estudos Das primeiras escavações arqueológicas no concheiro Cabeço da Arruda, dirigidas por Carlos Ribeiro e F. Paula e Oliveira, resultou o artigo “Da existência do Homem em epochas remotas, no valle do Tejo. Primeiro opusculo: notícia sobre esqueletos humanos descobertos no Cabeço da Arruda” 71

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(OLIVEIRA,1865). Este trabalho constitui “a mais antiga das monografias arqueológicas publicadas em Portugal” (CARDOSO e ROLÃO, 2002/2003: 13-14). Pela quantidade de trabalhos publicados e intensa actividade dos que se dedicavam à arqueologia, esta é considerada a “Idade do Ouro” da Arqueologia portuguesa (CARDOSO, 1999, 1999/2000; FABIÃO, 2011). Das escavações realizadas pelas Comissões Geológicas entre 1863 e 1884 foram exumadas centenas de restos paleoantropológicos que motivaram a realização de vários estudos (CARDOSO, 1999/2000:37). Após 1884 não se realizam trabalhos de campo nos concheiros durante os 46 anos seguintes. As publicações, pontuais, realizadas entre o fim desta fase e o início da próxima que só se daria na década de 1930 do século XX, resultam, sobretudo, de estudos paleoantropológicos de material arquivado nos Serviços Geológicos de Portugal. No início do século XX reinicia-se o interesse pelo estudo dos esqueletos de Muge. Em 1907, António Aurélio da Costa Ferreira (1879-1922) publica dois artigos sobre o material antropológico do Cabeço da Arruda. Nesses artigos, A. da Costa Ferreira destaca as características negróides dos indivíduos estudados e defende a possibilidade da existência de uma raça particular em Muge que denomina de “raça Mugem” (CORRÊA, 1928). Esta designação pretendia distinguir os restos osteológicos de Muge dos exumados de outras estações arqueológicas do tipo concheiro na restante Europa. O interesse por estudos sobre a origem dos Homens que “construíram” estes montículos de conchas aumenta (CARDOSO, 2002). 3. A investigação de Mendes Corrêa e o Homo afer taganus no contexto do Portugal do Estado Novo Em 1917, os trabalhos de A. da Costa Ferreira recebem resposta de Mendes Corrêa (1888-1959) que publica o artigo intitulado

“À propos des caractères inferieures de quelques crânes préhistoriques du Portugal” (CORRÊA, 1917). António Augusto Esteves Mendes Corrêa, natural do Porto, licenciado em Medicina e envolvido fortemente em variadas áreas científicas como a Antropologia, a Criminologia, a Arqueologia e a Política, escreve sobre “a problemática das origens neandertaloides do ´Homem de Muge’” avançada por A. da Costa Ferreira (CARDOSO & ROLÃO, 2002/2003:19). O artigo publicado em 1917 é “a base de toda a argumentação teórica, que iria desenvolver sobre o assunto, nos anos 20 e 30” (CARDOSO & ROLÃO, 2002/2003:19). Poucos anos depois, em 1919, Mendes Corrêa avança com a designação Homo afer taganus para definir os indivíduos estudados e exumados dos concheiros de Muge. Deste modo, é abandonada a antiga designação “Homem de Muge” e rejeita-se a possibilidade de estes indivíduos constituírem as raízes do “português actual” (CORRÊA, 1928, 1929, 1931a, 1931b). Para comprovar a sua teoria, Mendes Corrêa necessitava de novos elementos de estudo. A única forma de os obter seria recomeçar uma nova fase de campanhas arqueológicas nos concheiros de Muge de modo a recolher novos restos paleoantropológicos. Em 1930 Mendes Corrêa inicia a segunda fase de escavações em Muge (CARDOSO e ROLÃO, 2002/2003). Esta fase é dividida em quatro ciclos de escavação. O primeiro ciclo corresponde às campanhas realizadas em 1930 no concheiro do Cabeço da Amoreira. No segundo ciclo, realizado em 1931, continuou-se a escavar no Cabeço da Amoreira. O ciclo seguinte realizou-se em 1933, no Cabeço da Amoreira. O quarto e último ciclo de escavações arqueológicas decorreu em 1937 no Cabeço da Arruda. Mendes Corrêa realizou as escavações com a ajuda, principalmente, de três dos seus melhores discípulos – Rui de Serpa Pinto, Santos Júnior e Alfredo Athayde – pertencentes ao Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do

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Porto, por si fundado e da qual era director. Os três contribuíram em grande parte para a execução tanto dos trabalhos de campo como dos estudos de laboratório e das publicações que daí resultaram (CORRÊA, 1932a, 1932b). No total dos quatro ciclos voltaram a ser exumados centenas de indivíduos (CORRÊA, 1934). Devido à dispersão de dados, desconhece-se o número exacto de esqueletos que foram recolhidos nessa década. A definição de Mendes Corrêa para descrever o Homo afer taganus é a seguinte: “(...) não é nem neandertaliano, nem cromagnoniano, nem de raça Chancelade, nem do tipo de Baumes-Chaudes, nem idêntico ao mediterrâneo ou ao tipo médio português actual. É um tipo que tem caracteres negróides (...), alguns australóides (...) e mesmo uma estatura baixa, aproximando-os dos pigmeus africanos. Dos tipos quaternários da Europa, seria o proto-etiópico Homo aurignacensis o que com ele mais semelhanças possuiria (…) “ (CORRÊA, 1928:110). Segundo Mendes Corrêa, as características físicas dos esqueletos dos concheiros de Muge, das quais se destacavam a face prognata e a fossa nasal larga, evidenciavam semelhanças com as populações etíopes, revelando a sua origem no Norte de África (CORRÊA, 1928b, 1936). Ao mesmo tempo que Mendes Corrêa investigava e apoiava projectos de diversas áreas científicas, participava activamente na vida política do país (CARDOSO, 1999; MONTEIRO, 1959). Paralelamente, o ano de 1933 marca o início do Estado Novo, o regime ditatorial que se prolongou até 1974. Este caracterizou-se por ter sido um regime autoritário, corporativista de inspiração fascista, muito conservador, propagandista, nacionalista e marcado por fortes ideias colonialistas. Segundo a ideologia do Estado Novo, Portugal não era apenas o território existente no continente europeu. Era muito mais que isso. Portugal era a totalidade de um conjunto de territórios constituído pela metrópole e pelas respectivas colónias, das

quais se destacavam fortemente as de maior área – Angola e Moçambique – situadas no continente africano. Dos cartazes propagandistas do Estado Novo, destaca-se um mapa que tinha como objectivo demonstrar e incutir desde cedo a ideia de um Império além-fronteiras. Ilustrou-se o país num conhecido mapa que tinha como título “Portugal não é um país pequeno” e era publicado nos livros da escola primária da década de 1960. Nele visualizamse as colónias (a vermelho) sobrepostas aos países do continente europeu. Deste modo, procurava-se afirmar: i) a supremacia de um país sobre as suas colónias, ii) a grandeza do Império português em comparação com uma Europa, iii) a singularidade da História do país e do seu Império que ultrapassava os limites do continente europeu e que se sobrepunha a este em área. Neste contexto, de um regime ditatorial em plena formação e afirmação, o tema das origens dos homens que primeiro habitaram o território português possuía grande importância política. Mendes Corrêa, caracterizado pela forte intervenção pública e pelo importante papel na vida política do país, contribui, com os seus estudos em Arqueologia, para o reforço da afirmação histórica e civilizadora de Portugal. Paralelamente às suas funções de investigador e professor na Universidade do Porto, durante a década de 1930, acumulou importantes cargos políticos. Foi Presidente da Câmara Municipal do Porto e Deputado da Assembleia Nacional. Mendes Corrêa surge como agente creditado e de saber especializado que tem a possibilidade e os conhecimentos para resgatar a ancestralidade do país (GOMES, 2012; FABIÃO, 2011). Conclusão A metrópole (Portugal europeu) pretendia afirmar-se como superior política e culturalmente sobre as colónias. A noção de que os primeiros habitantes no território português tivessem origens em África revelava-se controversa. A teoria de Mendes Corrêa sobre

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a origem africana do Homo afer taganus nem sempre aparece como favorecedora à afirmação da tutela metropolitana sobre as colónias. No entanto, ressalva que o português moderno não apresenta características herdadas do Homo afer taganus, pelo que não está na origem do português moderno. Para a sua teoria se adequar ao regime político e à afirmação de superioridade sobre as colónias, nomeadamente as colónias africanas, Mendes Corrêa admite que os homens que habitaram Muge e “construíram” os concheiros mesolíticos, apesar das suas origens africanas, terão posteriormente migrado ou extinto, não deixando marcas da sua “raça” em território português. A sustentação base da sua teoria sobre a caracterização e a origem do Homo afer taganus, encontrou-se desde o princípio em medições de crânios encontrados nos concheiros de Muge, tanto nas escavações do século XIX como, posteriormente, nas escavações por si dirigidas durante a década de 1930. Sustentou-a com dados científicos e defendeu-a até ao fim dos seus dias.

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Produção do Conhecimento Arqueológico e de Construção da Identidade Nacional Salazarista, Dissertação de Doutoramento, Universidade do Porto. Leitao, V. M. V. S. 2004. Assentar a primeira pedra: As primeiras Comissões Geológicas portuguesas (1848 - 1868), Dissertação de Doutoramento em História e Filosofia das Ciências, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa. Monteiro, E. 1959. Professor A. A. Mendes Corrêa, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Volume de Homenagem ao Prof. Mendes Corrêa, Porto, nº 17, fasc. 1-4, 5-8. Pereira da Costa, F. A. 1865. Da existência do Homem em epochas remotas, no valle do Tejo. Primeiro opusculo: notícia sobre esqueletos humanos descobertos no Cabeço da Arruda.

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