MENEZES, V. H. S. As moedas como documentos para os estudos de História e Arqueologia (2012)

July 5, 2017 | Autor: V. Menezes | Categoria: Ancient History, Arqueología, Coins
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Laboratório Virtual de Arqueologia Pública Blog do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp)

As moedas como documentos para os estudos de História e Arqueologia Victor Henrique S. Menezes1

Moedas! Você já parou para pensar quais são os significados desse objeto metálico de uso cotidiano? Já parou para refletir que essa materialidade não é algo exclusivo de nosso tempo, mas sim um objeto que vem sendo utilizado há centenas de anos? E já percebeu que em muitas moedas, como no Real que usamos, há imagens e representações que podem nos dizer alguma coisa? Esse tipo de materialidade está tão fortemente inserido em nosso cotidiano que, na maioria das vezes, nem paramos para refletir quando surgiu a ideia de ter um objeto metálico como forma de troca, ou mesmo como um símbolo de representação ou propaganda política. Propaganda política? Sim! Em determinados momentos do passado, quando ainda não existia a televisão, revistas e o Facebook, a moeda também foi utilizada como um dos meios de propaganda por parte dos governantes ou daqueles que circulavam a orla do poder. Interessante, não é? Mas como será que um simples artefato metálico seria um meio de propaganda? Como funcionaria a moeda como um objeto não exclusivamente de troca? Pois bem, vamos por partes. A moeda, como outros artefatos que estão ao nosso redor, tem história. Porém, a sua história varia de uma civilização para outra, já que ela não é uma materialidade que esteve presente em todas as grandes civilizações. Os incas, maias e astecas, por exemplo, que formaram grandes impérios riquíssimos em cultura e comércio, não utilizaram a moeda em seus momentos de apogeu, e vieram a conhecê-la só a partir do contato com o homem europeu. Já outras civilizações, como a dos antigos romanos, possuíam moedas antes mesmo da época de Cristo, há mais de dois mil anos. Ou seja, a moeda nasceu em determinados contextos históricos, nem sempre esteve ligada às trocas comerciais, e, a partir do estudo de seu uso, pela História e Arqueologia, pode-se inferir diversos aspectos de sociedades passadas. Podem-se propor, a partir de certo número de moedas cunhadas

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Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e estagiário do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp). Contato: [email protected].

1 Novembro de 2012

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em determinado período, interpretações tanto das relações econômicas, quanto das relações de poder e sócio-culturais que permeavam um povo. E é partindo dessa ideia que os historiadores e arqueólogos Cláudio Umpierre Carlan (professor na Universidade Federal de Alfenas, MG) e Pedro Paulo Abreu Funari (professor na Universidade Estadual de Campinas, SP) publicaram recentemente o livro Moedas: a Numismática e o estudo da História, por meio da Coleção História e Arqueologia em Movimento, da Editora Annablume. Tendo por objetivo explorar os aspectos históricos das moedas como fonte importante para o conhecimento da história, e também, introduzir o leitor nesse rico universo da moeda, Carlan e Funari produziram um livro encantador acerca de como e porque surgiram os usos de moedas, e como estas podem ser utilizadas atualmente em pesquisas de História e Arqueologia. Tendo por objetivo aproximar o leitor aos estudos da moeda, os autores têm, já no início da obra, a preocupação em explicar o conceito de Numismática, presente no título do livro, e que constituí um termo forjado no século XIX, derivando da palavra latina nummus, “moeda”, para significar “o estudo das moedas cunhadas”. E este estudo, a Numismática, não se foca apenas na história econômica e financeira, mas também nos significados simbólicos desse material, uma vez que a moeda pode ser considerada um dos definidores, em termos ideológicos, de uma civilização do passado a que pertencera, ou mesmo de um povo, em nosso tempo. Esclarecido isso, surge uma nova questão, simples, da qual ainda não tratamos: o que podemos chamar ou classificar de “moeda”? Ainda segundo estes autores, a definição de moeda mais aceita seria a de “uma peça de metal de peso e valor definido, com uma impressão oficial estampada” (CARLAN & FUNARI, 2012:23), que constitui parte de uma emissão de numerosos exemplares, tem imagens que seguem modelos, e que é por fim, garantida por uma autoridade política (CARLAN & FUNARI, 2012:27). É então, uma materialidade usada há séculos como um meio de pagamento, e também propaganda política, como ressaltado anteriormente, e que pode servir como um documento de estudo para a História e Arqueologia. Ok! Isso já ficou claro! Mas de que modo podemos utilizar a moeda como um documento de estudo dessas disciplinas?

2 Novembro de 2012

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Pois bem, os estudos de História e também de Arqueologia, tal como realizados nos dias atuais, constituem-se a partir do estudo e análise de diferentes documentos, que eram definidos “tradicionalmente como um texto escrito à disposição do historiador” (FUNARI, 2003:14). Mas atualmente, a partir das novas concepções de História, assim como das demais ciências humanas, e da ampliação na noção de documento, este pode ser entendido como todo o material produzido com certa intencionalidade e em determinado período pelo homem, e que, a partir de releituras realizadas sob o viés de conceitos e interpretações ligados ao nosso tempo, pode nos proporcionar o entendimento dos diversos aspectos de sociedades e acontecimentos do passado. Estes documentos, por si só, não nos dizem absolutamente nada, pois é preciso que estudiosos lhes façam perguntas e decifrem os códigos que estão por trás desse material e assim, revelem possíveis interpretações sobre o mundo em que foram produzidos. Assim, há inúmeras especificidades de documentos que podem ser objetos de estudo dessas ciências: documentos escritos (podem ser documentos considerados “oficiais”, tais como leis, processos, constituições, jornais, entre outros, ou também os “não oficiais”, como cartas pessoais, diários, etc.); os documentos iconográficos (pinturas, quadros, filmes, fotografias, etc.), as fontes orais (provindos a partir de entrevistas, e diálogos com pessoas que viveram ou presenciaram determinados momentos considerados como eventos históricos), e os documentos materiais, conhecido no mundo da Arqueologia por “cultura material” (que compreende tudo aquilo que foi produzido ou modificado pelo homem no passado e também no presente). Como salienta Funari (2003:27), todos esses tipos de documentos, escritos ou não, são considerados como discursos, e, “enquanto discursos, possuem necessariamente, autoria e público e, como todo discurso, tem estruturas superficiais e profundas”. Com o aumento da interdisciplinaridade entre as Ciências Humanas, esses documentos – apesar de a História se ocupar, maiormente, com os documentos textuais, e a Arqueologia com a cultura material –, passaram a ser utilizados tanto nos estudos de História, quanto nos de Arqueologia, uma vez que “a tendência das ciências humanas tem sido privilegiar a multiplicação de objetos, de abordagens e, consequentemente, de fontes de informação” (FUNARI, 2003:25). É nessa perspectiva que está inserido o uso de moedas como documento histórico e arqueológico.

3 Novembro de 2012

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Sendo uma fonte de estudo de ambas as disciplinas, as moedas podem constituir ao mesmo tempo uma fonte escrita (já que podem possuir inscrições que nos informam a mando de quem foram cunhadas), uma fonte iconográfica (a partir das representações em seus anversos – “cara” – e reversos – “coroa”) e uma fonte material, já que tem uma materialidade produzida em um determinado período que nos pode revelar, além dos aspectos econômicos, diversas particularidades da sociedade que a produziu. Dessa forma, a moeda, que para alguns tem apenas um sentido econômico ou ser um meio de trocas, pode trazer em sua constituição uma série de preceitos e representações que podem ser utilizados para entender a história de sociedades passadas. Os símbolos contidos em seus anversos e reversos não estão ali por acaso e é justamente nessas especificidades que os historiadores, e também arqueólogos, irão deter as suas análises. Por exemplo, um historiador que está realizando uma pesquisa sobre o governo imperial na Roma Antiga, poderia ganhar muito se considerasse em suas análises as moedas produzidas neste período. Pois, no caso do Império Romano, que se estendia por vastos territórios, a moeda era um dos principais meios de difundir a imagem e os feitos dos imperadores, e era assim, além de um material de troca, também um material propagandístico. Naquela época, nem todos tinham a possibilidade de ver de perto o imperador, instalado inicialmente em Roma, e posteriormente em Constantinopla, ou mesmo os monumentos, que eram construídos a seu mando. Além disso, como grande parte da população era analfabeta, o uso da imagem era fundamental na difusão de ideias, e a moeda, com suas representações em seus anversos e reversos, desenvolvia bem este papel. Era então, por meio da cunhagem de moedas que as mais variadas populações agregadas ao Império poderiam ter um maior contato com os monumentos erguidos a mando dos imperadores, e até com a própria imagem do imperador, pois enquanto em seus reversos (coroa) eram esculpidos monumentos, prédios, estátuas, arcos, entre outros; em seus anversos (cara) era esculpida a face do imperador que estava no poder no momento da cunhagem2.

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É importante destacar que havia outras formas da população ter contato com a imagem do imperador, como no caso das estátuas erigidas em diferentes localidades do Império. Essas estátuas também tinham um poder fundamental para a propaganda e o culto ao imperador. Como explica Paul Zanker (2004:79) no artigo “O poder das imagens”, “(…) todos os dias do ano um palco arquitetônico permanente, no qual as pessoas representavam sua vida, servia de constante lembrança do imperador. Encontravam-se

4 Novembro de 2012

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Entender então, os ideais que estavam por trás de uma moeda que possuía em seu anverso a imagem de um imperador romano, é entender as ideologias, representações e desejos políticos que marcavam aquele governo. E ainda, o estudo exaustivo dessas moedas pode levar ao descobrimento de “interessantes gradações e ênfases nos louvores dirigidos por esse meio ao imperador” (ZANKER, 2004:79). Como explicam Carlan e Funari (2012:78), “mais do que a língua e a religião, no caso do Império Romano, a moeda era o único instrumento ligado ao poder que permanecia estável”, e que assim, transmitia uma forte carga propagandista do governo central, que se utilizava dessa materialidade como um meio de propaganda política e para realçar e legitimar seu poder nas mais longínquas terras que estavam sob o jugo do Império. E os usos de moedas como documento histórico não devem ficar restritos ao período da Antiguidade, pois também podem ser usados por historiadores medievalistas, uma vez que no período conhecido como Idade Média, também havia a representação dos reis em moedas, como no caso do rei franco Carlos Magno (747 – 814). Também da Idade Moderna pode-se realizar estudos a partir de moedas, como o feito pelo historiador Peter Burke ao estudar as representações do rei Luis XIV em seu livro A fabricação do rei: a construção da imagem publica de Luis XIV, que entre inúmeras fontes, também se utiliza das representações do Rei Sol nas amoedações e medalhas. As moedas podem até mesmo serem utilizadas nos estudos de sociedades contemporâneas, como bem demonstra Carlan e Funari (2012:72) ao tratarem das moedas de real em uso atualmente no Brasil, em que há representações de fatos que ocorreram no nosso país em uma ordem cronológica que corresponde ao valor de cada peça, sendo que os temas apresentados constituem uma releitura do passado do Brasil e sua relação com o presente: “(…) Na moeda de um centavo, no anverso aparece Cabral e uma nau portuguesa; na de 5 centavos, Tiradentes e o triângulo dos inconfidentes mineiros e um pássaro que representa a liberdade; na de 10 centavos, D. Pedro I a cavalo, às margens do Ipiranga; na de 25 centavos, Deodoro da Fonseca, proclamador da República e o brasão; na de 50, o Barão de Rio Branco e um mapa do Brasil, resultado da ação diplomática de garantia das fronteiras do país,

representações pictórias e estátuas dele em toda parte, havendo também, é claro, moedas com sua efígie, cunhadas em quase todas as cidades. Isso constituía em si uma maneira de honrar o dirigente do mundo numa escala sem precedentes”.

5 Novembro de 2012

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Laboratório Virtual de Arqueologia Pública Blog do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp) na de um real, uma mulher, que simboliza a República, e decoração indígena marajoara”. (CARLAN & FUNARI, 2012:72).

Vocês já haviam reparado nisso? Essas moedas, a partir dessas representações, já dizem muito sobre o nosso mundo contemporâneo e podem ser utilizadas mesmo hoje, ou daqui dois, três séculos, como documentos históricos e arqueológicos para se estudar e entender a história de nosso tempo. Em suma, as moedas possuem valor histórico e arqueológico, e é de grande importância, assim como inúmeros outros documentos, para entendermos as relações sociais e culturais de povos e civilizações do passado e também de nosso tempo. Como destacaram Carlan e Funari (2012:78) nos momentos finais de seu livro, a documentação numismática utilizada como fonte é algo relativamente novo aqui no Brasil, já que em nosso país as pesquisas com esse material se iniciaram apenas na década de 1980. Porém, com o aumento no número de graduações e pesquisas em universidades públicas e privadas nas áreas de Arqueologia e História, por certo, essa área de estudos ainda conhecerá muitos expoentes. E essa iniciativa de apresentar para o público um tema relativamente desconhecido, como a idealizada e concretizada pelos professores Carlan e Funari é um bom começo. Sem dúvida, o livro Moedas: a Numismática e o estudo da História é um convite irrecusável à leitura para os amantes da História e da Arqueologia.

Para saber mais: BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem publica de Luis XIV. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: J. Zahar, 2009. CARLAN, Cláudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo A. Moedas: a Numismática e o estudo da História. São Paulo, SP: Annablume, 2012. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Antiguidade clássica: a história e a cultura a partir dos documentos. 2. Ed. Campinas, SP: Unicamp, 2003. ZANKER, P. (1988). “O Poder das Imagens”. In: Horsley (2004). Pp. 77-91. HORSLEY, R. A. Ed. (2004). Paulo e o Império. São Paulo: Paulus.

6 Novembro de 2012

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