MENEZES, Victor H. S.; MORALEZ, Gabriel. Resenha de HINGLEY, R. O imperialismo romano - novas perspectivas a partir da Bretanha (2012)

July 25, 2017 | Autor: V. Menezes | Categoria: Roman Empire, Richard Hingley
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HINGLEY, Richard.

O imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha.

Trad. Luciano César Garcia Pinto. Org. Renata Senna Garraffoni, Pedro Paulo A. Funari e Renato Pinto.

São Paulo: Annablume, 2010. 115 p. Victor Henrique S. Menezes1; Gabriel Moralez2 Há mais de 1500 anos após seu declínio, o mundo romano, mais especificamente, o período o qual historiadores denominam de Império, ainda hoje, exerce um inegável fascínio entre os estudiosos e pensadores do mundo antigo, assim como de algumas facções políticas que em determinados momentos se utilizam de sua imagem e história como forma de legitimar algo, ou mesmo, como estrutura de governo a ser almejada. A história do século XX, com um maior destaque, observa de perto o surgimento de algumas das ideologias políticas que reivindicavam a memória e faziam usos de determinados aspectos desse passado romano, considerado “glorioso”, como ocorreu na Alemanha nazista, na Itália fascista, na França de Vichy e na Espanha franquista, por exemplo. Fenômeno este não característico apenas da modernidade, os usos e reivindicações do passado romano podem ser considerados como fatores que 1 Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador e estagiário do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP) – NEPAM/Unicamp. Email: henrique. [email protected]. 2 Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), colaborador do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP) – NEPAM/ Unicamp. Email: [email protected].

acompanham a história da humanidade desde a época medieval, transformando o Império Romano, ao longo dos últimos séculos, em um símbolo de “poder”, “união” e “paz” para aqueles que almejavam transformar sua nação em um império e que se utilizaram da imagem de Roma como um emblema de poder e/ou estrutura de governo a ser seguido. Como escreveu Glaydson José da Silva (2007, p.36), o Império Romano, [...] justificador dos impérios modernos, ajudou a construir os pertencimentos, as identidades, as nacionalidades, em universo de empréstimos simbólicos, sentidos construídos e interpretações falseadas em muitas tentativas das nações européias de estabelecer passados apropriados.

Ainda utilizando o citado autor, é possível afirmar que “Roma foi imaginada e construída, de diferentes maneiras, nos mais distintos lugares e épocas, legitimando ou desautorizando grupos, práticas e políticas” (SILVA, 2007, p. 35), e que entre todos os seus legados, talvez o que mais tenha marcado o Ocidente, tenha sido a ideia de império perfeito e sua perenidade. Dessa forma, ao longo da história, além de se colocarem como descendentes desse antigo império – ora a partir de reivindicações culturais, ora de reivindicações consanguíneas, como no caso da Itália de Mussolini -, diferentes povos e nações passaram a produzir estudos e interpretações do período baseadas em sua própria história e visão de mundo. Por sua vez, isso acabou por construir diferentes mundos romanos, ou melhor, diferentes leituras do mundo romano, reconstruindo assim a história de Roma segunda as próprias necessidades político-sociais vigentes em determinados períodos. Essas diferentes construções/leituras que vieram a se acentuar na segunda metade do século XIX e início do XX – época marcada pela ascensão do império britânico, pelas questões neocolonialistas e as constru-

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ções das identidades nacionais, como bem definiu Silva na obra citada acima – acabou por criar e de certa forma legitimar uma visão de Roma como um império poderoso, forte e unido. Um império capaz de expandir pelos mais diferentes territórios – que segundo o discurso da época ora assimilavam pacificamente, ora sofriam com a força das armas quando necessário – sua língua, costumes e crenças. Um império que aqui pode ser entendido como capaz de expandir com sucesso aquilo que era considerado “o melhor” – e entende-se aqui por superior – aos povos considerados em situações inferiores a dos romanos, chamados de bárbaros, e que serviria de modelo para os impérios e potências que naquele momento se formavam, e que viam, por sua vez, o imperialismo romano como algo positivo. Pois como escreveu o historiador David Mattingly (2007, p.6), o Império Romano, [...] geralmente citado como o maior que o mundo já conheceu em termos de extensão, população, civilização e longevidade foi certamente uma régua com a qual as forças imperiais do século XIX mediram suas conquistas e do qual emprestaram livremente imagística, títulos e estilo.

No final da primeira metade do século XX, com o trauma causado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, mudanças em relação à maneira de interpretar Roma e o seu imperialismo passaram a ocorrer. Movimentos anticolonialistas, a título de exemplo, o liderado por Gandhi, passaram a contestar a legitimidade do domínio estrangeiro, uma vez que a liberdade e soberania dos povos europeus foram defendidas pelos aliados contra a política expansionista de Hitler. Sendo amplamente criticados, os conceitos imperialistas começaram a ser revistos, e os estudos acadêmicos acerca da temática do imperialismo, do mundo romano, assim como da Antiguidade em geral, passaram por amplas renovações a partir da década de 1970,

em que, influenciados tanto pela renovação historiográfica surgida a partir da Escola dos Annales, quanto pelos textos acadêmicos que abordavam novas maneiras de entender o mundo antigo, começou-se a surgir abordagens antiimperialistas e contrárias aos estudos realizados anteriormente. Entre esses novos estudos, há certo destaque para os de Edward Said3, que como escreveram os

organizadores de O imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha, abriram “a possibilidade de se pensar criticamente os discursos produzidos no meio acadêmico, seus conceitos e intenções” (GARRAFFONI et al., 2010, p. 10). Esses novos estudos buscaram compreender o referido período com um olhar diferente daquele produzido até então, procurando, assim, reconstruir os estudos sobre o Império Romano. Começou-se a partir de então, uma maior aproximação entre as análises por meio de cultura material e documentos escritos, propiciando o surgimento de pesquisas que não focavam apenas a elite, mas também as populações marginalizadas que habitavam os limites do império, e que, por sua vez, deram grande contribuição ao entendimento da questão sobre quais seriam realmente as influências de Roma sobre os povos e regiões dominadas. Conceitos como romanização4, barbárie, assimilação e 3 É importante destacar que Said, em seus trabalhos, escreveu justamente para desmitificar a ideia de Roma enquanto império autônomo em ideias e práticas tipicamente européias, focando seus estudos, por sua vez, no oriente próximo e na influência dos povos orientais na Europa. Outros historiadores que renovaram os estudos da Antiguidade e que não podem deixar de serem citados é o francês Paul Veyne (historiador do mundo romano) e de Matin Bernal (estudioso do mundo grego). 4 Romanização: na introdução do livro, os organizadores a definem como um termo que é tradicionalmente usado para denominar a expansão territorial e cultural romana que se deu, principalmente, entre o fim da República e o primeiro século do período imperial, que hoje é mais entendida como um processo de adoção cultural, e não imposição (GARRAFFONI et al., 2010, p. 18).

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aculturação5 passaram a ser revistos quando utilizados dentro dos estudos do mundo antigo, iniciando assim, um movimento que atualmente é crescente e mesmo predominante, que se constitui em repensar a forma como se escreveu a História Antiga e como os conceitos empregados para interpretá-la estão atravessados por noções coloniais e imperialistas da virada do século XIX para o XX. Assim, os estudos sobre o mundo antigo, em particular, aqueles que estão em volta do mundo romano, passaram e, pode-se dizer que ainda passam, por um momento de renovação nas academias internacionais, conhecendo hoje, como bem definiu Silva (2007), uma espécie de agitação teórica, que o liga a problemáticas da teoria da história contemporânea que são marcadamente inovadoras. Esse movimento, que também surgiu em vários países do cone sul, não passou despercebido na academia brasileira, como demonstra a vasta produção de historiadores como Pedro Paulo de Abreu Funari e o citado Glaydson José da Silva, entre outros. É também perceptível o aumento na publicação de artigos internacionais em livros e periódicos brasileiros, como é o caso da obra em questão que é composta por artigos do historiador e arqueólogo Richard Hingley, professor do Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham, na Inglaterra. Sendo reflexo deste novo movimento nos estudos do mundo clássico e projetada a partir de um curso ministrado pelo autor em 2008 na Unicamp com o apoio concedido pela Escola de Altos Estudos da CAPES, é composta por artigos escritos em diferentes momentos de sua carreira e traduzidos pela primeira vez ao português. 5 Como bem definiu Funari em sua obra A temática indígena na escola: subsídios para os professores (FUNARI, 2011, p. 22), o conceito de assimilação consiste no apagamento das características próprias e sua substituição pelas do grupo dominante, que devem ser considerados superiores, enquanto aculturação seria a passagem de uma cultura inferior à outra superior. Tais conceitos estão envolto em muitas polêmicas e é importante que sejam constantemente questionados no momento de seus usos.

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Tendo por título O imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha, a obra organizada pela Prof. Dra. Renata Senna Garraffoni (UFPR), pelo Prof. Dr. Pedro Paulo de Abreu Funari (Unicamp) e pelo Prof. Dr. Renato Pinto (atualmente pós-doc na USP), e lançada em 2010 pela Editora Annablume, tem como tema o título do livro, o imperialismo romano na Bretanha. Contando com a participação de Hingley na escolha dos artigos que a compõem e elaborada numa perspectiva pós-moderna, é uma crítica às abordagens imperialistas utilizadas nos estudos que envolveram temas sobre a expansão do mundo romano. Trabalhando assim, com o questionamento da ideia e do conceito de romanização, tem como principal objetivo atualizar o leitor acerca dos debates sobre os estudos do mundo clássico. Além disso, composta por artigos com objetivos claros, é profundamente marcada pelas pesquisas e teorias do autor que “[…] enfatizam a importância em contrapor a cultura material aos textos para proporcionar novas abordagens sobre as relações estabelecidas entre os nativos e romanos durante o principado” (GARRAFFONI et al., 2010, p.16), e um melhor entendimento do processo de colonização feito pelos romanos na Bretanha. Logo, girando em torno da temática sobre “[…] como populações nativas foram incorporadas ao Império Romano, além das mudanças culturais e sociais ocorridas durante esse processo” (GARRAFFONI et al., 2010, p. 17), nas palavras dos organizadores, a base de sua crítica […] se constitui, a partir da ruptura com modelos interpretativos eurocêntricos, na tentativa de construir interpretações mais flexíveis acerca do Império Romano, oferecendo ao leitor a possibilidade de buscar caminhos alternativos para pensar a relação entre culturas, tornando-se uma referência importante para aqueles que se interessam pelo mundo antigo em geral e o romano em particular (GARRAFFONI, 2010, p. 17).

A obra, além de conter quatro artigos da autoria de Hingley escritos entre 1991 e 2008 que como dito, circundam em torno do “imperialismo romano” – O ‘Legado’ de Roma: ascensão, declínio e queda da teoria da romanização, O Campo na Bretanha Romana: o significado das formas de Assentamento Rural, Diversidade e Unidade Culturais: Império e Roma e O Muro de Adriano em teoria: uma nova agenda –, é composta também, por um prefácio escrito por Norma Musco Mendes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e um texto introdutório de autoria dos organizadores intitulado O estudo da antiguidade no Brasil: as contribuições das discussões teóricas recentes. Esta introdução constitui uma parte essencial do livro, pois é nela que os organizadores apresentam as mudanças ocorridas nos últimos anos nos estudos do mundo clássico e apresentam ao leitor os dois principais autores que influenciaram as teorias de Hingley, Edward Said e Martin Bernal, que foram os pioneiros no movimento de repensar a forma de como se escreveu a História Antiga. O texto também se preocupa em fazer um breve relato acerca do desenvolvimento dos estudos da antiguidade clássica no nosso país, ressaltando que “[…] apesar de os Estudos Clássicos no Brasil estarem passando por um maior aprofundamento devido aos cursos de línguas clássicas, a arqueologia, fundamental para este campo, tem sido deixada de segundo plano” (GARRAFFONI et al., 2010, p. 16), assim como, uma apresentação geral de quem é Richard Hingley e uma explanação acerca da estrutura do livro, trazendo neste momento um breve resumo dos artigos que irão compor as demais partes do trabalho. O artigo que segue a introdução, O ‘Legado’ de Roma: ascensão, declínio e queda da teoria da romanização, publicado originalmente em 19966, está dividido em três gran6 Publicado em J. Webster; N. Cooper (Org.) Roman Imperialism: Post-Colonial Perspectives. Leicester Archaeological Monographis. n.3. Leicester: p.35-48, 1996.

de eixos onde se percebe claramente o posicionamento de Hingley perante o seu tema de estudo. O autor inicia explicando que naquele artigo tenciona “[…] examinar alguns dos modos pelos quais os britânicos usaram a imagem da Roma clássica para identificar e fundamentar suas próprias nacionalidade e expansão” (HINGLEY, 2010, p. 28), tornando este o primeiro ponto a ser tratado ao longo do texto, que também enfoca na maneira como a romanização foi estudada nos anos pós-declínio do Império Britânico e aponta os problemas gerados pela ideia positiva de imperialismo trabalhada por alguns estudiosos contemporâneos que acabam por afetar, de certa maneira, os estudos referentes à arqueologia romana. Fazendo breves considerações sobre o trabalho de Francis Haverfield – acadêmico que traçou paralelos entre Grã-Bretanha e Roma no início do século XX –, Hingley faz um breve panorama de como Roma foi usada por políticos desde a Idade Média até a época de expansão do Império Britânico, focando no período eduardino, em que tal era considerado superior ao império romano, ao passo que, se assumia como herdeiro deste e difusor de uma “[…] forma mais desenvolvida da civilização europeia” (HINGLEY, 2010, p. 29). Dialogando com a teoria, a história, a arqueologia e com autores como Millet, criador da perspectiva dominante a respeito de romanização, Hingley explica a ascensão e o declínio da teoria de romanização, que “[…] deixou de ser vista como uma forma de progresso moral e social, mas sim vista à luz do desenvolvimento, ou aculturação, pelo qual a sociedade nativa, de imediato, adotou a cultura romana” (HINGLEY, 2010, p. 34). E é nessa questão que é focada a sua crítica, pois ele questiona se realmente um monumento romano em determinado vilarejo, ou uma cultura romana encontrada em algum assentamento “bárbaro”, é o suficiente para se dizer que todas as pessoas que habitaram aquele local estavam romanizadas. Pauta Áskesis | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 178 – 185 | 181

também as suas críticas na ideia de que havia uma imagem padronizada de “ser romano”, criticando aqui a velha ideologia de um império unido e formado por uma única cultura provinda da península itálica, e de uma população, no caso da Bretanha, que teria reagido da mesma maneira à conquista. O autor conclui por fim, que a teoria da romanização deixa de lado muitos princípios que deveriam ser utilizados nos estudos sobre imperialismo romano, como, por exemplo, entender a interação que tiveram os povos nativos com os romanos e as mudanças que ocorreram em sua cultura material, indicando que os estudiosos do período devem livrar-se “[…] do pressuposto de que a cultura material ‘romana’ era tecnologicamente superior àquela anterior à conquista (da Bretanha)” (HINGLEY, 2010, p. 41). Diferente do primeiro artigo que tem como preocupação primeira discutir temas centrais das pesquisas que envolvem a expansão territorial e “cultural” de Roma, O Campo na Bretanha Romana: o significado das formas de assentamento rural7, artigo que o sucede, é centrado nos modelos interpretativos arqueológicos, em que há um foco nos estudos acerca dos assentamentos rurais romano-britânico. O texto que é composto por diversas descrições de sítios arqueológicos e teorias acerca desses assentamentos rurais difundidas por arqueólogos clássicos, e que em determinado momento acaba tornando-se, de certa forma, um texto denso e que exige um conhecimento prévio do leitor acerca do tema, trabalha com a desconstrução do significado de edificações no estilo de uillae8, construções vigorosas interpretadas como locais erguidos com o excedente e que estavam geralmente ligados à elite. A crítica de Hingley se baseia principalmente no caso 7 Publicado originalmente em R.F.J. Jone (Ed.) Roman Britain: recent Trends. J. R. Collis Publications, Sheffield: 75-80, 1991 (Informação retirada da nota de rodapé número 14, que se encontra na p. 49). 8 Chamadas também de fazendas romanas, era o instrumento pelo qual um citadino rico explorava o campo; eram propriedades rurais de um citadino, frequentemente administradas por um quinteiro e só em alguns casos visitadas pelo proprietário (informação retirada de citações feita por Hingley na p.51)

do esquecimento, por parte dos estudos arqueológicos, de locais que não se assemelham as uillae e que geralmente são vistos de forma negativa por terem pertencido aos pobres que habitavam a ilha, como, por exemplo, as casas redondas de madeira, que se melhor fossem pesquisadas, originariam em novas abordagens acerca de como se deu o contato entre a cultura bretã, já existente no local, e a cultura romana, vinda do exterior. No terceiro artigo intitulado Diversidade e unidade culturais: Império e Roma 9 Hingley tem por objetivo explicitar o papel político e social dos Estudos Clássicos no momento em que estes despertam o interesse dos acadêmicos. O autor comenta a prática de aproximação entre o mundo romano e o presente, e como isso pode servir para legitimar ações político-econômicas do nosso tempo, procurando combater novamente a ideia de um império romano homogêneo com relação a sua identidade, e demonstrando que este ponto é muito mais complexo do que imaginam a maioria dos pesquisadores. Por fim visa desenvolver a concepção de que a adoção de costumes romanos não significava necessariamente a adoção da identidade romana, e que a cultura material romana não é suficiente para assegurar uma hegemonia. O início do texto trata da questão da aproximação entre passado e presente. O autor começa explicando que já na época clássica formulou-se a teoria de que Roma foi a grande responsável pelo desenvolvimento da civilização ocidental, tendo herdado um legado da Grécia antiga e expandindo-o até um império com pretensões globais (HINGLEY, 2010, p. 69-70). Para fornecer uma justificativa moral à sua expansão, os romanos formularam a noção de humanitas10, 9 Escrito em 2008 e não publicado anteriormente.

10 Humanitas, que se refere a uma série de características que representa noções de civilidade para os romanos, representa inúmeros conceitos e é intraduzível para o português. Como escreveu o autor antigo Aulus Gellius (Noites Áticas, 13. 17), não pode ser entendido como filantropia, pois é mais ou menos o que os gregos chamavam de paideia, sendo por sua vez, uma característica romana. Tal conceito pode ter sido uma criação para diminuir o impacto de inferioridade que os romanos sentiriam em relação aos gregos.

sendo este conceito relacionado à crença de que o domínio romano levaria progresso e civilização aos povos considerados “bárbaros” (HINGLEY, 2010, p. 70). A relação com o mundo moderno ocorre devido à apropriação de tais ideologias por parte das nações imperialistas do século XIX e início do XX. Essas, mesmo possuindo noções de progresso e civilização diferentes dos da Roma Imperial, como explicitado anteriormente, tomaram Roma como exemplo e lançaram projetos para a expansão de seus impérios usando a mesma justificativa dada pelos romanos: levar civilização e progresso aos povos “atrasados” (HINGLEY, 2010, p. 71-72). E esta justificativa, por sua vez, forneceu uma camuflagem para interesses puramente políticos e econômicos. Hingley segue seu texto comentando a questão das identidades dentro do império romano. Ele defende a tese de que este era heterogêneo culturalmente, mas relativamente unificado (HINGLEY, 2010, p. 77). Tratava-se de uma série de grupos locais, distintos entre si, que eram mantidos juntos através da força (HINGLEY, 2010, p. 80). Para corroborar a tese de que os povos subjugados mantinham suas próprias identidades o autor nos demonstra que a adoção de hábitos romanos não se relacionava diretamente ao desejo de se tornar romano; como exemplo cita o caso da expansão da língua latina entre o povo batavo, habitantes do Vale do Baixo Reno. O autor comenta que este uso não estava ligado a um processo de transformação dos batavos em romanos, mas sim estava relacionado às vantagens que a utilização da língua latina traria aquele povo, como por exemplo, a utilização de uma língua comum que permitiria a comunicação entre diversas regiões, pois era muito difundida, e as inovações tecnológicas que foram possíveis graças a ela – principalmente referentes aos mecanismos de escrita (HINGLEY, 2010, p. 89). Ou seja, este povo manteve sua identidade, apenas adotou práticas romanas

porque estas apresentavam maiores vantagens. O último artigo, intitulado O muro de Adriano em teoria: uma nova agenda11, já em seu título revela o objeto de estudo: a muralha construída na Bretanha, por volta de 120 d.C., pelo imperador romano Adriano. No seu texto Hingley comenta o declínio dos estudos acerca do Muro, outrora alvo de inúmeros trabalhos dos historiadores. Apresenta a provável razão para o desinteresse e por fim apresenta propostas para atrair novamente a atenção dos pesquisadores para o tema. A partir da década de 1850 o muro de Adriano passou a ser extremamente estudado pelos acadêmicos. Porém, na contemporaneidade, a popularidade deste assunto entrou em declínio. Poucas pesquisas têm sido desenvolvidas nas universidades, o número de doutorandos que desenvolvem o tema pode ser contado nos dedos e a comunidade que trabalha o muro está envelhecendo (HINGLEY, 2010, p.105-106). A principal razão para o declínio é a sensação de que já se “sabe tudo sobre o muro”. O autor afirma que as abordagens anteriores de pesquisa passaram a impressão de um conhecimento total sobre o assunto, sendo que então restaria pouca coisa a se estudar (HINGLEY, 2010, p.107). Isso acaba desencorajando os jovens historiadores a se dedicar ao tema, pois seria despendido muito tempo em um assunto praticamente exaurido (HINGLEY, 2010, p.108). Evidentemente Hingley não partilha desta opinião e sustenta que ainda restam muitas pesquisas a serem feitas. Por fim é apresentada uma série de novas áreas a serem desenvolvidas que teriam por objetivo revitalizar os estudos sobre o tema. Primeiramente, se o muro seria um mecanismo para a definição de uma identidade imperial, já que esta poderia estar em crise e necessitasse de um símbolo (HIN11 Originalmente publicado em in P. Bidwell (Ed.) Understanding Hadrian’s Wall. The Arbeia Societ.y. Titus Wilson, Kendal, 2008.

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GLEY, 2010, p.110). Depois, a comparação entre a Bretanha com outras fronteiras (tanto antigas como modernas) e uma reflexão sobre o papel especial que a primeira exercia na sociedade romana (HINGLEY, 2010, p.110-111). Em seguida, como o muro se relacionava com aspectos das sociedades pré-existentes, pois este poderia representar uma resposta às populações que viviam no local anteriormente, e como a construção da muralha influenciou tanto a vida dos nativos como a dos seus construtores (HINGLEY, 2010, p.111-112). Por fim, o que o muro significou para as populações posteriores, desde o século VIII até o presente, passando, por exemplo, pela influência que ele exerceu na formação das identidades inglesa, escocesa e imperial britânica (HINGLEY, 2010, p.112). Tendo levantado os principais pontos dos artigos inseridos na obra, faz-se necessário, neste momento, alguns comentários e reflexões acerca deste importante trabalho. Como explicitado no início, o trabalho de Hingley está inserido em um contexto de renovação e transformação dos estudos sobre a Antiguidade, sendo que ele é influenciado pelas teorias contidas nas obras de Said e Martin Bernal. O primeiro questionara a maneira pela qual o Oriente fora “inventado” pela academia europeia, sendo que esta utilizou de conceitos imperialistas para caracterizá-lo como inferior (HINGLEY, 2010, p.10). Já Bernal focara seus estudos sobre como as interpretações do mundo grego foram fundamentais para a criação de discursos de poder na Europa moderna. Argumentando que o passado oriental da Grécia fora “apagado” nos séculos XIX e XX – para legitimar discursos racistas –, o pesquisador demonstrou como a historiografia não está isenta de parcialidade e interesses políticos (HINGLEY, 2010, p.10-11). Os dois autores receberam grande destaque por serem apontados como responsáveis por um processo de reflexão sobre os estudos referentes à História Antiga. Ambos questionaram modelos e visões Áskesis | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 178 – 185 | 184

construídas há algum tempo e propuseram novas formas de abordagem. Hingley segue o mesmo caminho. Entendendo império e romanização como conceitos negativos, o autor frequentemente questiona os métodos empregados tanto no estudo destes assuntos específicos como no estudo sobre a Antiguidade em geral. Evitando sempre as interpretações imperialistas – que vêem os romanos e seu império como superiores e os outros povos como simples objetos nas mãos destes – procurou-se propor novas abordagens de pesquisa. Lutou para acabar com a idéia de uma incorporação passiva dos povos dominados – esta se fundamenta na crença de que todos queriam se tornar romanos – e também de uma submissão total à cultura romana – tida como “superior” por muitos. Hingley sustenta a teoria de que embora tenha havido uma dominação político-militar de várias regiões diferentes por parte do império, os povos que habitavam estes locais mantiveram suas identidades originais, pois a adoção de novos costumes não implica, necessariamente, uma mudança de identidade. Assim, pode-se dizer que as obras anteriormente citadas, ao propor uma nova maneira de abordar o mundo antigo, foram responsáveis por trazer grandes inovações aos estudos clássicos. Entre elas podemos citar, por exemplo, uma postura mais crítica dos historiadores com relação ao conhecimento produzido, uma reflexão mais apurada da interação entre presente e passado – como o primeiro influencia a análise do segundo –, maiores possibilidades de entendimento do mundo romano e uma abertura de espaço para o estudo de povos marginalizados ou esquecidos (HINGLEY, 2010, p. 22). Podem-se considerar as contribuições concedidas a estas inovações como o grande legado de Hingley. Por fim, além de esta obra ser importante por conter artigos publicados pela primeira vez em português que tratam de assuntos que renovaram teorias e métodos dos estudos da

antiguidade romana, como escreve os organizadores em seu artigo introdutório, tal publicação permite também que o público brasileiro tenha um maior contato com a trajetória de Hingley, uma vez que contém trabalhos de diferentes momentos de sua carreira e que delineiam seus pensamentos teóricos e políticos (HINGLEY, 2010, p. 16). Além disso, a obra, contendo conceitos fundamentais de teorias pós-modernistas, tem o papel fundamental de trazer a acadêmicos e estudantes brasileiros, as novas abordagens que são dadas no momento a temas canônicos como o mundo romano e seu imperialismo. Temas estes que hoje demonstram que o estudo deste campo feito anteriormente, assim como aquele que está sendo realizado no momento, não se pode negar, estão totalmente ligados à visão de mundo e de tempo que se tem o historiador que produz o seu trabalho, sendo reflexos das relações entre o passado e o presente. Partindo da análise sobre Roma, mais especificamente da romanização, o autor conseguiu problematizar diversas premissas, ajudando dessa forma, a renovar temas que precisavam de um fôlego novo.

buições das discussões teóricas recentes. In: Hingley, R; Funari, PPA, Garraffoni, R. S., Pinto, R. (Org.). O Imperialismo Romano: novas perspectivas a partir da Bretanha. São Paulo: Editora Annablume, 2010. p. 09-25. MATTINGLY, David. In Imperial Possession: Britain in the Roman Empire. Londres: Peguin Books, 2007 (Tradução de Renato Pinto para o mini-curso “Imperialismo Romano” ministrado em outubro de 2011 no XI Colóquio do CPA e II Semana de Estudos Clássicos do CEC, realizado na Universidade Estadual de Campinas). SILVA, Glaydson J. História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Anablume; FAPESP; 2007.

Referências

FUNARI, Pedro Paulo; PIÑON, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Editora Contexto, 2011. GARRAFFONI, R. S., Funari, P.P.A. , Pinto, R. O estudo da Antiguidade no Brasil: as contri-

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