Menin@s nas tramas da cultura visual 1

May 28, 2017 | Autor: S. Rangel Vieira ... | Categoria: Gender Studies, Visual Studies, Educational Research, Children and Media
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Menin@s nas tramas da cultura visual1 Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha 1

Publicado no livro. Infâncias em Passagens. (Org. Denise Bussoletti e Mirela Meira) 1 ed. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária da UFPel,

2010, v. 1, p. 55-78.

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Resumo Este artigo discute uma das temáticas de uma investigação mais ampla em torno de como a infância está sendo vista a si mesma, entre seus pares e pelos outros, através dos diferentes artefatos visuais. Aqui será enfocada a etapa inicial de uma investigação desenvolvida durante 24 meses com crianças de 04 a 06 anos de uma escola infantil. Nosso objetivo foi entender como as crianças investigadas estão constituindo seus posicionamentos sobre gênero, mediados, principalmente, pela cultura visual contemporânea, presente dentro e fora do espaço escolar. Procuramos perceber como a cultura visual produz pontos de vista sobre o “ser menina, ser menino”. Sobre esta perspectiva teórica, entendemos que a cultura visual formula conhecimentos, visões sobre o mundo, sobre as pessoas, modos de ser e de agir. Os instrumentos da pesquisa foram situações lúdicas-expressivas acompanhadas de conversas durante e após as atividades, bem como observações nos espaços escolares. Os materiais analisados foram produções gráfico-plásticas das crianças, gravações, fotografias e anotações do diário de campo. Nossa abordagem de análise foi descritiva interpretativa, onde buscamos entender as percepções das crianças em seu contexto

Palavras chaves: pesquisa com crianças, cultura visual, relações de gênero, expressão visual, educação infantil

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Companheiros/as de jornada Philippe Áries em A História Social da Criança e da Família (1973) se atém aos aspectos da imagem em si e como elas produziram nossos modos de entender a infância. Através dessas fontes imagéticas, Áries nos mostra às relações entre adultos e crianças, o sentido de maternidade e paternidade, os brinquedos e brincadeiras, a sexualidade, as festas e comemorações, entre outros aspectos do cotidiano da infância. A partir da cultura visual de determinadas épocas, Ariès examina e desconstrói o conceito de infância como um fenômeno natural da vida e vai demonstrando como a concepção de infância é uma construção histórica e cultural, “fabricada” na modernidade. Os estudos de Áries me deram, nos anos 90, inspiração para compreender o quanto as imagens do mundo contemporâneo modulam nossos modos de ver a infância, posteriormente, busquei referências nos Estudos da Cultura Visual, pois entendia que este campo transdisciplinar poderia me responder sobre as questões específicas do universo visual e os modos como são produzidos nossos olhares sobre o mundo através das representações imagéticas. Na perspectiva dos Estudos da Cultura Visual, o modo como construímos nossos modos de ver, a visualidade, é formado pelos diferentes regimes escópicos. Autores como Chris Jenks (1995), Nicholas Mirzoeff (1999), Fernando Hernandéz (2000, 2007), Gillian Rose (2001), John Walker e Sarah Chaplin (2002), distinguem a visão, como as possibilidades fisiológicas dos olhos enxergarem, e a visualidade como a construção cultural do nosso olhar. Estes autores postulam que os significados sobre o mundo social também são criados e negociados através das imagens visuais veiculadas pelos diferentes tipos de

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tecnologias visuais que abarcam desde as produções artísticas, artesanais, dos meios de comunicação e eletrônicos, aos espetáculos cênicos e musicais à arquitetura. Entretanto, havia a necessidade de situar os Estudos da Cultura Visual no contexto da educação. Nesse sentido, os trabalhos de Fernando Hernandéz (2000) me possibilitaram vincular a os Estudos da Cultura Visual, Educação e Infância. Segundo o autor: (...) um primeiro objetivo de uma educação para a compreensão da cultura visual, que, além disso, estaria presente em todas as áreas do currículo, seria explorar as representações que os indivíduos, segundo suas características sociais, culturais e históricas, constroem da realidade. Trata-se de compreender o que se representa para compreender as próprias representações. (HERNANDEZ, 2000, p.52)

Hoje são produzidos infinidades de artefatos culturais – imagens, objetos, livros, filmes, cromatismos, vestuário, entre outros objetos que demarcam as infâncias e ao mesmo tempo constroem narrativas em torno de como e o que estas infâncias são para nós e para as próprias crianças. Tais artefatos, por exemplo, nos dizem como a infância atinge a felicidade usando uma roupa da griffe Barbie, ou indicam como as crianças devem constituir as relações entre seus pares através das histórias da Turma da Mônica, ou como as meninas devem exercer sua sensualidade com sapatos e sandálias de salto alto. As infâncias podem ser compreendidas a partir de seus modos de ser e de seus códigos simbólicos que permeiam e constituem os grupos dando-lhes visibilidade. Ao utilizarem seus códigos, os grupos estão demarcando seus “territórios”, dizendo a si próprios e aos outros o que são. Lucia Rabello Castro (1998, p.192) afirma que “A infância-presença que está aí no nosso cotidiano, ao alcance do nosso olhar, aparece modelizada pelo mundo de bens materiais e simbólicos destinados a ela pela cultura de consumo. Na maioria das vezes, acreditamos que os artefatos direcionados para as crianças estejam sob o manto da “inocência”; entretanto, a cada dia, as infâncias, as crianças, estão participando e vendo, através de programas televisivos, sites,

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brinquedos, músicas ou filmes um mundo que há muito não é mais inofensivo. Se na década de 50/60 tínhamos apenas bonecas em forma de bebês, revólveres, estrelas de xerife e autoramas, hoje temos bonecas similares a mulheres jovens, com seios e cinturas finas, esguias, louras e jogos eletrônicos que simulam guerras, assassinatos, vandalismos, violências. Atualmente encontramos, por exemplo, soutien e calcinha, uma combinação de roupa íntima, para meninas de 18 meses, propagandas de roupas infantis em outdoors com meninas em poses sensuais com os dizeres “Use e se lambuze” e propagandas de produtos para o cabelo com bebês travestidos de Marilyn Monroe. Inúmeros artefatos têm mostrado a infância como algo a ser desejado sexualmente, transformando as crianças, principalmente as meninas, em pequenas mulheres sedutoras. Diante disso, hoje me pergunto: O que isso produz em nossos modos de ver e conseqüentemente de agir em relação à infância? A respeito de como os artefatos operam, produzindo determinadas práticas, Felipe (2000; 2003; 2006) nos fala sobre o conceito de pedofilização, referindo-se a ele como uma prática social contemporânea. A autora aponta contradições nas sociedades contemporâneas que, ao mesmo tempo em que constroem mecanismos de combate à exploração sexual de crianças e jovens, disseminam “uma espécie de ‘pedofilia’ consentida, amplamente aceita e difundida principalmente pelos veículos de comunicação de massa, posicionando os corpos infantis, em especial os corpos femininos, como objetos de desejo e de consumo” (FELIPE, 2006, p.216). Conforme Louro (1999, p.14-15) “Os corpos são significados pela cultura e são continuamente, por ela alternados. (...) De acordo com as diversas imposições culturais, nós nos construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais dos grupos a que pertencemos”. Muito mais do que assinalar as oposições binárias entre os territórios do masculino como sendo associados à força e energia, e o feminino relacionados à fragilidade e suavidade, os objetos, roupas, cores e formas demarcam as relações entre as crianças e os posicionamentos generificados que elas assumem entre si, bem

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como fixam papéis de gênero2. No campo da infância existe uma infinidade de representações advindas da cultura visual que nos remete aos universos femininos e masculinos, estas representações, em sua maioria, estabelecem analogias entre personagens e papéis de gênero, como: Homem Aranha/meninos, Barbie/meninas, Cinderela/meninas, Batman/meninos, Meninas Super-Poderosas/meninas. Na maioria das vezes, essas imagens homogeneízam modos de ser, definem o que as pessoas e as coisas devem ser e ao defini-las dentro de determinados padrões, as diferenças não são contempladas, ao contrário, são excluídas. Neste sentido, as imagens de Cinderela, Homem Aranha, Meninas Super Poderosas, por exemplo, falam às crianças, meninos e meninas, sobre determinados valores atribuídos ao feminino e masculino e como salienta Hernandéz (2007, p.31) “as representações visuais contribuem, assim como espelhos, para a constituição de maneiras e modos de ser.” Anterior a pesquisa, notava que nas produções visuais das crianças se evidenciavam convenções do que é o feminino e/ou masculino, e de muitos modos, os desenhos, colagens, pinturas, apresentavam “um modo de representação de meninas e outro de meninos”, com marcadores visuais semelhantes aos encontrados nas produções culturais endereçadas às crianças, como por exemplo: meninos expressavam movimentos nas figuras e utilizavam cores escuras, vibrantes e marcantes, ao passo que as meninas traziam repertórios de figuras estáticas, borboletas flores e arabescos nas cores claras e com predominância das tonalidades da cor rosa, o clichê da fragilidade e feminilidade propagada em diferentes produtos. Ou seja, há uma estética infantil generificada, presente tanto nos objetos pessoais das crianças, quanto nas ambiências escolares e nas produções expressivas das crianças. 2

Papel de gênero é um conjunto de comportamentos associados com masculinidade e feminilidade, considerados apropriados nos contextos culturais, sociais nos quais foram produzidos Funciona como uma “norma comportamental”..

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Desenhos meninas – 5/6 anos Imagens do arquivo da pesquisa

Desenhos de meninos – 5/6 anos Imagens do arquivo da pesquisa

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Assim, com parceiros dos Estudos da Cultura Visual, Relações de Gênero, Mídia e Infância formulei e desenvolvi com Camila Bettim Borges3 e Ana Cristina Crossetti 4 Vidal, bolsistas de Iniciação Científica, a presente pesquisa, partindo do pressuposto que os artefatos visuais produzidos para infância atuam de forma pedagógica desenvolvendo pedagogias da visualidade. Estas formas de ensinar são visíveis em suas materialidades ostensivamente exposta (Meninas Super Poderosas, Hot Wheels, por exemplo) e oculta aquilo que elas ensinam no (in)visível: significados, valores, inclusões e exclusões, desigualdades sociais e relações de poder. Acreditamos que as pedagogias da visualidade formulam conhecimentos e saberes que não são ensinados e aprendidos explicitamente, mas que existem, circulam, são aceitos e produzem efeitos de sentido sobre as pessoas. Nesta perspectiva, os diferentes artefatos visuais contribuem para que crianças e adultos constituam seus modos de ver e de ser, de ler e elaborar imagens, de pensar e de imaginar. Tendo como pano de fundo minhas vivências pessoais, profissionais e considerações teóricas, brevemente discutidas aqui, elaboramos uma pesquisa participativa, cujos sujeitos foram crianças de 4 a 6 anos de uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) de uma capital brasileira. Nesta pesquisa, junto com bolsistas de Iniciação Científica e professoras dos grupos de crianças envolvidas, procuramos entender como as crianças constroem as suas representações de gênero sobre si e sobre os outros através dos diálogos com os artefatos culturais/visuais. Neste artigo será enfocada a primeira etapa da pesquisa.

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Bolsista PROPESQ/UFRGS 2007 e FAPERGS 2008-09 Bolsista PROPESQ/UFRGS 2008-2010

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A pesquisa, um plano geral Muitos pesquisadores/as, nacionais e internacionais, que têm como foco de estudo as infâncias, como Steinberg (1997), Buckingham (2002), Ferreira (2004), Jacinto (2000), Rabello de Castro (1997), Faria (2002), Quinteiro (2002), Felipe (2004), Dornelles (2002), Bujes (2000), entre outro/as, reivindicam mais ênfase nas pesquisas sobre a infância e, especialmente, sobre as crianças e seus modos de compreensão sobre o mundo. Steinberg (2001, p.12), diz: “Infelizmente, a puericultura goza tradicionalmente de pouco status no mundo acadêmico. Por enquanto, pelo menos, a área dos estudos culturais tem reproduzido esta dinâmica poder/status em sua negligência pelos estudos da infância.” Essa posição é compartilhada pela pesquisadora brasileira Jucirema Quinteiro (2002, p.41) que sublima o estado da pesquisa no campo da infância: “com exceção da psicologia do desenvolvimento que mantém tradição e regularidade nos estudos sobre a criança, raras são as áreas de conhecimento que a priorizam em suas investigações. Mais raras ainda são as pesquisas que buscam articular a relação infância e escola.” Como pesquisadora no campo da infância e da cultura visual, reivindico o papel das crianças como protagonistas das pesquisas e reflexões, no sentido de procurar decifrar os territórios infantis a partir das suas falas, pensamentos, ações e representações. Assim, creio que é fundamental desenvolver pesquisas no campo da cultura visual tendo como sujeitos das pesquisas as crianças, procurando entender seus pontos de vista, suas relações com as representações imagéticas, suas produções gráfico-plásticas. De antemão, anuncio que não é uma tarefa fácil! Porém, é gratificante, pois há uma distancia entre o que supomos sobre o que as crianças pensam, agem e o que as crianças dizem sobre suas relações com o mundo, no

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caso, o mundo da cultura visual. Também é estimulante perceber como as crianças apreendem, transgridem, questionam o mundo, ao mesmo tempo criando possibilidades imaginárias e reformulando suas apreensões. Entretanto, são os pontos de vista do pesquisador que farão os recortes, as ênfases e exclusões na pesquisa. E como assinala Buckingham (2002, p. 47) em relação aos discursos acadêmicos sobre a infância: “Estas imagens e estes textos não são somente a encarnação das idéias sobre a infância, são também sobre a própria infância de seus autores: os sentimentos de medo, a angústia, a nostalgia, o prazer e o desejo. Como tais, nos dizem muito mais sobre os adultos do que sobre as crianças.” (tradução da autora) Faria (2002, p. 8 ) levanta uma série de questionamentos sobre as possibilidades e dificuldades da pesquisa com crianças, entre elas, a autora nos desafia com a seguinte pergunta: “o que as crianças têm feito ao longo da história, continuamente e até mesmo repetitivamente, que os adultos ainda não conseguem entender?” A partir de várias situações de pesquisa com crianças, acrescento outras perguntas: Por que temos dificuldades em decifrar os territórios infantis a partir das falas, ações e produções expressivas das crianças? Será que muitas vezes, nossas investigações já, de antemão, supõem determinadas respostas sobre os infantis? Podemos entender as infâncias que vivem a pós-modernidade, sendo que muitas vezes o ideário de infância que temos é o da modernidade? De um modo geral, estudos empíricos sobre a Cultura Visual nas escolas, junto às crianças pequenas, são recentes no contexto acadêmico brasileiro. A respeito das pesquisas da cultura visual e as análises no campo educacional, Fernando Hernández (2003, p. 4) alerta que: Ainda não está claro como se podem abordar os temas relacionados com o visual por meio de estudos empíricos nas escolas. Mesmo havendo produção sobre as questões visuais, não há quase indicações sobre métodos de interpretações e de como usar estes métodos.

Enfim, “criar” e desenvolver pesquisas com crianças sob a perspectiva dos Estudos da Cultura Visual ainda é um campo

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experimental, nômade, povoado mais por dúvidas do que certezas, instável, mutante, ou como Hernandéz (2007, p.79-80)) salienta: “ (...) uma perspectiva que não considero pronta, acabada, mas em permanente construção. (...) tal abordagem sobre uma prática crítica não nos diz qual é o método (a maneira de) que devemos dialogar – no duplo sentido de travar e de gerar relações – com as imagens e com os artefatos da cultura visual”. Entretanto, mesmo não tendo “modelos” ou denominações, classificações para nossa pesquisa, as investigações sob a abordagem da cultura visual, devem partir de alguns pontos de referência e das experiências investigativas em outras áreas, como a etnografia, em especial os estudos de Luiz Eduardo Achutti (1997, 2004) sobre Fotoetnografia, os estudos de Mirian Celeste Martins (2008, 2007, 2005, 2003,1997,1998) que envolvem as inter-relações entre sujeitos/imagens e a mediação cultural e as proposições de Fernando Hernandéz (2007) baseadas na compreensão crítica e performativa das representações da cultura visual. Além destas referências de estudos, buscamos referências da pesquisa etnográfica com crianças em Willian Corsaro (2005) e Manoel Jacinto Sarmento. (2000, 2004, 2007) Saliento, que mesmo com “balizas” teóricas, muitas vezes, nossos encaminhamentos, ferramentas de pesquisas se estabeleciam no próprio campo, nas nossas interações com as crianças e nas situações que estavam ocorrendo. A pesquisa desenvolvida durante 2 anos (2007-2009) apresentou traços ora de Pesquisa Participante, ora de Etnografia, tendo em vista nossa presença efetiva tanto na escola, quanto nas interações com as crianças/professoras em vários momentos das rotinas da escola, estendendo-se a momentos de refeições, pátio, biblioteca, brinquedoteca e também momentos de intervenção pedagógica, onde auxiliadas pelas professoras responsáveis pelas turmas, desenvolvíamos atividades lúdico-expressivas com as crianças.

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No primeiro período da pesquisa (2007) freqüentamos a escola infantil no mínimo uma vez por semana e lá permanecíamos em média de duas a três horas em cada grupo pesquisado (Jardim A e B). No período do levantamento de dados, nos relacionamos com a escola de um modo geral e em particular com as crianças e professoras e monitoras dos dois grupos de crianças. Em relação as nossas participações, procuramos trabalhar junto com as duas professoras e monitoras, ora explicitando nossas intenções e elas desenvolvendo as propostas inseridas em seus planejamentos, ora nós, bolsistas e eu, propondo situações às crianças. As crianças, sujeitos da pesquisa, eram em torno de 24 em cada grupo freqüentavam a escola em turno integral, assim, tivemos a oportunidade de capturar vários períodos das rotinas estabelecidas. No início, os materiais e ações pedagógicas foram preparados a partir das observações do cotidiano escolar, posteriormente, estas ações e produção de materiais foram sendo planejados a partir dos encontros e daquilo que percebíamos das crianças e professoras nas ações anteriores. Ou seja, a pesquisa e seus materiais foram sendo reelaborados conforme o seu desenvolvimento. Inicialmente (2007), os instrumentos utilizados foram intervenções pedagógicas de caráter lúdico-expressivas, como atividades de desenho, colagem, brincadeiras acompanhadas de conversas coletivas. Durante este período, a pesquisa estava centrada em observações do cotidiano escolar: nas situações espontâneas, onde as crianças faziam suas escolhas, brincadeiras e desenhos livres, conversas, jogos e em situações lúdico-expressivas provocadas pelas professoras e pesquisadoras, problematizando as questões de gênero. Nesta etapa da pesquisa, para entendermos e problematizarmos os posicionamentos de gênero das crianças, optamos em utilizar imagens e artefatos culturais próximos as criança. Tendo como referência a perspectiva auto-reflexiva (HERNANDÈZ, 2007) que sugere utilizar os próprios artefatos para promover debates e aquisições de outros pontos de vistas e critérios de análise pelos aprendizes, criamos vários materiais, estratégias e ações

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pedagógicas para interagirmos com as crianças e denominamos esse conjunto de instrumentos de pesquisa de situações lúdico-expressivas. Nossa intenção foi aproveitar a familiaridade das crianças com os artefatos culturais/visuais e provocar discussões com elas sobre as inscrições de gênero portadas neles. As situações lúdico expressivas foram registradas em fotografias, gravações e em nosso diário de campo. Posteriormente (2008-09) substituímos estes instrumentos por observações, fotografias, gravações, assim, a pesquisa teve um caráter mais etnográfico do que da pesquisa participativa, desenvolvida no período anterior. Para Sarmento (2000, p. 247) “a etnografia impõe uma orientação do olhar investigativo para os símbolos, as interpretações, as crenças e valores que integram a vertente cultural (...) das dinâmicas da acção que ocorrem nos contextos pesquisados”. Tendo como referência os estudos sobre pesquisa etnográfica com crianças de Sarmento e Corsaro, optamos por esta mudança no enfoque da metodologia da pesquisa. Assim foi dada especial atenção às conversas estabelecidas com as crianças sobre diversificados assuntos que nos propiciavam contato com alguns aspectos do universo infantil e a compreensão de seus pontos de vista sobre as questões de gênero. Assim, partir de agosto de 2008, centramos nossos olhares sobre o cotidiano, sem intervenções explícitas e planejadas com as crianças, e tendo como objetivo apreender os mundos sociais e culturais das crianças (SARMENTO, 2000) Nossa intenção era entender os modos pelos quais as crianças estão construindo, entre seus pares e nas interações com a escola, seus saberes sobre o “ser menino e o ser menina”. Em agosto de 2008, com a entrada de Ana Cristina Crossetti Vidal, com formação na área de arquitetura, nos direcionamos para as ambiências escolares e os modos como as crianças se relacionavam com estes espaços, pois notamos o quanto as ambientações dos espaços escolares estavam impregnadas de marcadores de gênero, deste modo a pesquisa em curso foi ampliada, no sentido de identificarmos os marcadores de gênero nos espaços da EMEI pesquisada e examinar como

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as crianças constroem suas relações de gênero nestes espaços. Levamos em consideração que esses espaços apresentam-se carregados de aspectos culturais e simbólicos e que de vários modos posicionam as crianças em relação ao gênero, sendo que muitas vezes, a organização dos espaços, seus objetos e imagens, interditam ações entre as crianças. É interessante salientar que a maioria dos objetos, presente em sala de aula, sejam os pessoais das crianças, como: agendas, sapatos, meias, roupas, sejam os da escola, como brinquedos, pastas, cartazes, entre outros; trazem muitos marcadores de gênero, principalmente, cores e os personagens de desenhos animados. A distribuição, organização no espaço destes objetos também indicava binarismos e polarizações de meninos e meninas, evidenciando que a escola “segue”, sem se dar conta, o que culturalmente se convencionou atribuir aos territórios do feminino e do masculino. É comum ouvirmos nas escolas infantis a expressão: ‘isso é coisa de menino’ ou, ‘isso é coisa de menina’, proferida pelas crianças e pelas professoras. Neste sentido, já presenciei interdições realizadas por adultos ou pelas crianças quando, por exemplo, um menino tenta utilizar algo que foi convencionado pertencer ao universo feminino, como utilizar um batom ou colocar uma saia; ou uma menina brincar de luta com uma espada. Quando acontecem estas invasões territoriais, há uma tentativa entre os pares de fazer com que o transgressor volte a sua identidade sexual. Há controle – entre as próprias crianças e também por parte dos adultos - de enquadramento para que as crianças não ultrapassem as convenções pré-estabelecidas. Em 2009 Camila Bettim Borges, que acompanhava a pesquisa desde o início, passou a enfocar as questões relativas à cultura dos pares, buscando entender como as diversas formas de produções culturais se materializavam nos diferentes modos de expressões infantis (brincadeiras, jogo simbólico, expressão corporal, verbal, gráfica, musical, entre outras) e como as trocas entre as crianças fortalecem e /ou excluem determinadas produções culturais. Para isto, objetivamos mapear

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as diversas manifestações culturais presentes no ambiente escolar, compreender a importância da Cultura de Pares nas relações infantis e investigar a influência de alguns marcadores da Cultura Visual na constituição dos imaginários infantis.

Um pouco sobre o cotidiano da primeira etapa pesquisa Por 2 meses visitamos a escola, salas, pátios, brinquedoteca, biblioteca, refeitório, conversamos com crianças, professoras, monitoras, equipe diretiva. Fizemos levantamento de projetos e atividades desenvolvidas pelas professoras e nos debruçamos sobre as produções visuais das crianças elaboradas nas atividades da rotina escolar. Nossa intenção inicial era de não nos restringirmos à linguagem verbal das crianças, mas sim ampliarmos seus modos de expressão não verbais, como o desenho, colagens, brincadeiras. Deste modo precisávamos avaliar as produções visuais das crianças tanto nos aspectos narrativos – o que expressavam – quanto nos aspectos da construção dos significantes: a organização do espaço gráfico, a utilização das cores, a constituição das formas representativas e o uso dos materiais para elaborarmos nossos instrumentos e intervenções. Notamos que as crianças do Jardim A, 4-5 anos, em sua maioria não estava no período representativo, assim nossos instrumentos foram conversas, provocações e brincadeiras com os materiais/objetos de uso pessoal e os materiais da sala, como mochilas, tênis, meias, cadernos, brinquedos. Posteriormente, realizamos propostas com colagens e desenhos. No Jardim B, 5-6 anos, as crianças já produziam em seus desenhos formas representativas. Observamos que as formas eram semelhantes, em grande parte constituída de borboletas, monstros, sóis no canto da folha, flores, nuvens, corações,

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arabescos,entre outras. Ao analisarmos as produções gráfico-plásticas, inferimos que haviam muitas formas estereotipadas, a maioria vinda dos artefatos culturais que as crianças conviviam. Também observamos que em relação a utilização dos materiais (giz de cera, canetinhas, tintas, papéis) não havia variação e exploração dos materiais. Com este grupo, optamos, desde o início, em desenvolver atividades expressivas, acompanhadas de conversas.

Desenhos crianças Jardim B Arquivo da pesquisa

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Tendo as produções gráfico-plásticas, anteriores a pesquisa, como referência de como as crianças poderiam se expressar nesta linguagem, planejamos e organizamos algumas situações lúdico expressivas para o dois grupos, muitas delas semelhantes, outras bem diferenciadas. Partimos do pressuposto que os artefatos culturais/visuais proporcionam satisfação às crianças, exercem pedagogias, elaboram nossos modos de ver e nossos posicionamentos sobre as identidades de gênero. Deste modo, buscamos as imagens, que as crianças convivem, que já ensinaram muito a elas, para criarmos vários materiais da pesquisa. Nosso intuito foi problematizá-las e desequilibrar as certezas que estas imagens veiculam. Pensávamos: se as imagens ensinam, então vamos utilizá-las para que as crianças tenham a possibilidade de desconstruir os significados inscritos nelas. Na abordagem crítica e performativa a utilização dos artefatos da cultura visual vai além de uma experiência cognitiva ou da celebração, mas servem como meio para “se organizar uma experiência de aprendizagem que gere novos posicionamentos, novas formas de compreensão e de atuação.” (HERNANDÉZ, 2007, p.70) Nossa primeira situação lúdico expressiva, realizada junto com as professoras dos dois grupos, foi disponibilizar dentro da roda de conversa, alguns materiais de uso pessoal e outros presentes na sala de aula como, uma mochila das Meninas Super Poderosas e outra de super heróis (Hulk.), um urso de pelúcia, uma boneca, uma caneca, um balde, um carrinho de boneca, um dinossauro. A professora convidou as crianças para que elas separassem coisas que poderiam ser de meninos, meninas ou de ambos. A partir destas divisões, ela foi fazendo questionamentos sobre as fronteiras do masculino e feminino, relativizando as visões pré-estabelecidas das crianças. Na situação de conversa, muito explorada pela professoras, foi estabelecido um tipo de discussão com as crianças que “raramente é desencadeada na Educação Infantil, questionando e discutindo o determinismo social dos gêneros” (FELIPE e GUIZZO, 2004, p. 37).

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Notamos que as meninas diziam que usariam as mochilas dos super-heróis masculinos, os meninos, ao contrário, afirmavam que não usariam uma mochila de Barbie ou Meninas Super Poderosas. Os objetos como o urso de pelúcia, balde, dinossauro e balde que não traziam marcadores de gênero, como a cor, as crianças não delimitavam como sendo de meninos ou meninas, ao passo que a boneca e seu carrinho rosa e lilás era visto por meninos e meninas, como sendo de meninas. Ficou evidenciado que as meninas apresentam maior flexibilidade com relação aos marcadores de gênero com os quais convivem dentro e fora da escola, pois elas se permitiram utilizar objetos “específicos” dos meninos, enquanto eles não mostraram essa flexibilidade. Esta situação inicial, onde as meninas flexibilizavam seus pontos de vista e os meninos se fixavam em suas posições, foi recorrente em todo o processo da pesquisa de 2007. No grupo do Jardim B, durante esta atividade, surgiu a palavra gay. Uma menina disse que se um menino usasse a mochila rosa, da Barbie, ele seria diferente, um gay. Entendemos que esta afirmação queria dizer: se um menino usar algo que tenha as marcas do feminino, ele será visto como alguém fora da lógica heterossexual, quase um freak. Em relação as meninas usarem os objetos dos meninos, não houve comentários que elas seriam gays. Ainda que haja comportamentos que tentem fugir a essa norma imposta pela cultura e pela sociedade, há um controle extremo e constante por parte da escola, no sentido de garantir que as posições legitimadas permaneçam como sempre foram, havendo ainda “uma severa vigilância em torno da masculinidade infantil, visto ser ela uma espécie de garantia para a masculinidade adulta, o mesmo não ocorrendo em relação às meninas” (FELIPE e GUIZZO, 2004, p. 34). Um dos materiais preparados foram folhas A3 com partes de corpos de alguns “ídolos” infantis. Nossa intenção era que as crianças completassem as figuras segundo suas percepções sobre a identidade de gênero do personagem. Antes de distribuirmos as folhas, exploramos as imagens e perguntamos se eles identificavam o personagem, se o personagem era

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menino ou menino e o que havia ali na imagem que pudesse identificá-lo como menino ou menina. A conversa na roda foi muito rica, pois entre os pares eles questionavam as respostas, por exemplo: a figura baixo, um menino disse que sabia que a figura era de um menino, perguntamos como ele fazia esta identificação, e ele respondeu que a figura estava de botas. Muitas crianças, meninos e meninas, fizeram coro dizendo: “e bota mulher não usa?” A partir deste comentário, entre os pares, eles relativizaram suas certezas em relação aos territórios do gênero. Apesar de termos considerado as discussões entre as crianças produtivas, no sentido que eles pensaram e se expressaram, buscando argumentos sobre o quanto os limites de gênero são móveis, ao escolherem as folhas com os fragmentos das figuras, as meninas escolheram os personagens femininos e os meninos os masculinos. Notamos que para completar as figuras, os elementos (vestido, calça comprida, entre outros) utilizados pelas crianças correspondiam ao gênero das personagens.

Fragmento de personagem. Arquivo da pesquisa

Fragmento com intervenção gráfica de um menino Arquivo da pesquisa

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Inferimos que mesmo havendo mudanças nos posicionamentos, as crianças ao se depararem com personagens que trazem as marcas do masculinos/feminino, voltam aos seus posicionamentos binários sobre gênero. Em outra situação semelhante, onde propusemos fragmentos de figuras para que as crianças remontassem sobre papéis coloridos, apareceram hibridizações. Percebemos que o tipo de atividade – fragmentos a serem colados – possibilitou às crianças criarem outras configurações, misturando, hibridizando seus ídolos. Ao tratarem as imagens com ludicidade, houve um desprendimento de seus posicionamentos. Ao analisarmos o conjunto destas produções, e também comparando com as produções anteriores, observamos que ao descontruírmos fisicamente os personagens, proporcionamos às crianças uma ruptura no significado destes personagens em todos seus aspectos, inclusive de gênero. Ou seja, o corte físico na imagem, gerou uma ruptura nos modos com que as crianças viam seus personagens.

Hibridização de personagens Arquivo da pesquisa

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Notamos que este material suscitou conversas e assim a bolsista de iniciação científica confeccionou posters com composições misturando a cabeça e os corpos de alguns dos personagens que eles gostavam como, Scoby-doo, princesas Disney, Meninas Super-Poderosas, Homem Aranha. Nossa intenção com este material foi continuar problematizando algumas posições das crianças em relação aos marcadores de gênero inscritos nestas imagens.

Poster com personagens híbridos Arquivo da pesquisa

Ao se defrontarem com uma figura híbrida, onde o corpo era de um personagem e a cabeça de outro, a surpresa era imensa. As crianças se questionavam sobre como o Salsicha poderia ser o Homem-Aranha ou se as princesas poderiam ser as Meninas Super Poderosas, pois as princesas são delicadas e as Meninas Super Poderosas são fortes.Esta situação fez com

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que a certeza sobre o sentido fixo dos personagens fosse modificada, bem como se abriram discussões sobre os estereótipos do feminino e masculino. Segundo Felipe e Guizzo (2004, p.33)): “A escola, em geral, não disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo “a” referência.” Este material foi utilizado em muitas outras situações da pesquisa, tendo em vista que as crianças tiveram muita satisfação em “brincar” de modificar personagens. Observamos que ele possibilitou muitas discussões e questionamentos sobre o que é ser menino/a, relativizando os posicionamentos anteriores sobre os papéis e identidades femininas e masculinas Outros materiais, com imagens fotográficas de revistas de homens, mulheres, meninos/as foram preparados para as situações lúdico expressivas da pesquisa, entretanto, não foram tão produtivos quanto aquelas que utilizamos as imagens conhecidas das crianças. Nas situações que as propostas envolviam desenhos, observamos, que pelo estágio de desenho que as crianças se encontravam, não era possível “vermos” seus posicionamentos de gênero nesta linguagem, além disso, elas não se vinculavam as propostas de desenho.Abaixo, trago um material que preparamos, que consistia de recortes de figuras de homens, mulheres, meninos e meninas, retirados de revistas, que oferecíamos já colados as crianças, elas faziam suas escolhas e completavam com desenhos, a partir de nossa sugestão em desenhar coisas que aquela pessoa escolhida gostasse.

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Folha com interferência de figuras femininas e masculinas completadas com desenho. Arquivo da pesquisa

Segundo os registros de Camila em nosso diário de campo: Sentei na roda com as crianças, mostrei todas as folhas e pedi que escolhessem uma para desenhar. As crianças não demonstraram preferências nas escolhas. Quando manifestavam alguma preferência era porque haviam reconhecido a pessoa. Sentaram-se nas mesas em grupos de meninos e meninas e começaram a desenhar. Circulei pelas mesas incentivando a memória e a imaginação deles, perguntando, por exemplo, o que aquele homem de calção gosta de fazer? Onde ele estava com aquela roupa. Será que ele tinha namorada? Minhas sugestões não tiveram muito efeito, cada um foi desenhando aquilo que queria independenteme da solicitação inicial. Sobre este aspecto, noto que tanto este grupo do Jardim B quanto o do Jardim A, eles não se ligam naquilo que propomos em desenho e quando realizam as atividades, eles desenham coisas relacionadas aos projetos em andamento.

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Este episódio, das crianças não “responderem” determinadas propostas, é comum quando desenvolvemos pesquisa com crianças pequenas, tendo em vista que seus interesses são móveis e momentâneos. Assim como se mobilizam com facilidade em torno de algo, direcionam seus interesses para outro foco. Notávamos que quando as crianças estavam envolvidas com os projetos desenvolvidos pelas professoras, nossas intervenções não eram satisfatórias, apesar das crianças sempre demonstrarem grande satisfação com nossa presença. Sobre a nossa presença, como pesquisadoras no ambiente escolar, refletimos que apesar de toda a nossa convivência e intimidade com as crianças e professoras, nós sempre éramos vistas como “estrangeiras” para as crianças e isso fazia com que as crianças mudassem seus modos de ser junto a nós. Percebíamos que nossas propostas sempre eram bem recebidas, havia sempre aceitação e empolgação por parte delas. Entretanto, no desenvolvimento das propostas observávamos que esta receptividade era porque trazíamos “novidades”, tínhamos paciência em explicar, não levantávamos a voz, não chamávamos a atenção com rudeza, tirávamos muitas fotografias, entre outras atitudes que tínhamos em relação a elas. Para nós, parecia que muitas vezes as crianças ao desenvolver as propostas “nos agradeciam” pela forma que interagíamos com elas. Sendo que as vezes, como mostra o relato no diário de campo, elas realizavam as atividades, mas não estavam envolvidas. Nos perguntávamos: Como fazer pesquisa com crianças sem sermos vistas como “estrangeiras”? Será que se a pesquisa fosse realizada pelas professoras, sob nossa orientação, não apresentaria resultados diferentes? Este é um dos questionamentos que continua nos perseguindo na pesquisa com crianças.

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Aprendizagens da pesquisa Optamos por analisar a partir de uma abordagem descritiva interpretativa, isso quer dizer que muito mais do que uma descrição dos acontecimentos ocorridos durante a pesquisa, buscamos entender estes acontecimentos/vivências em seu contexto. Ao iniciarmos a pesquisa, partimos do pressuposto de que as crianças estão construindo suas representações e identidades de gênero sobre si e sobre os outros através das interações com os artefatos culturais/visuais que nos inundam as crianças cotidianamente. Entretanto, quando foram propostas e desenvolvidas as situações lúdico expressivas, notamos que nossas intervenções desestabilizava as certezas sobre o que se convencionou atribuir aos papéis de menina/menino. As crianças, em muitas situações, transformavam, parcialmente, seus modos de entender/ver o feminino e o masculino. Inferimos que ao problematizar as próprias imagens nos artefatos endereçados a elas, onde são explícitos os marcadores de gêneros, elas passavam a perceber o masculino e feminino não como um atributo fixo, normativo, como um papel a ser interpretado dentro de convenções, mas como algo mutável e relativo. Nossa opção em trabalhar com imagens e artefatos culturais do convívio das crianças teve efeitos positivos na pesquisa, pois as crianças se envolveram intensamente nas situações lúdico-expressivas e nas conversas/debates durante e após as atividades. Seus posicionamentos sobre os papéis de gênero se desestabilizavam quando problematizávamos as próprias imagens. Ao hibridizar as figuras, os pontos de vistas iam sendo flexibilizados. Percebíamos as mudanças dos posicionamentos, sem que interferíssemos, e entre os pares eram negociados os pontos de vista.

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Constatamos ainda que seus pontos de vista centram-se na heterossexualidade, e notamos que a maioria das crianças considera que quem está fora dos ‘padrões’ heterossexuais, são ‘freaks’ ou monstros. E que a homossexualidade se restringe ao universo masculino. Outra constatação considerada importante é que as formas de pensar das crianças podem ser transformadas quando propomos situações onde elas possam “brincar” com seus pontos de vistas, portanto situações lúdico-expressivas possibilitam acionar os imaginários infantis, fazendo com que as crianças se descolem, e decolem, um pouco, das aprendizagens efetuadas pela kindercultura. Deste modo, é interessante que as instituições escolares repensem os aspectos pedagógicos dos artefatos visuais/culturais endereçados à infância e direcionem um olhar atento e crítico ao universo visual. A partir desta primeira etapa da pesquisa, passamos a investigar também os espaços escolares e seus artefatos e o quanto eles corroboram para acentuar os papéis de gênero. Além deste enfoque, priorizamos observar como as crianças, entre elas, sem nossas interferências explícitas, se posicionam em relação ao ser menino e menina, e como os meninos veem as meninas e elas veem os meninos. Encerro este artigo com 2 textos visuais, criados por Ana Cristina Crossetti Vidal, que resumem minhas preocupações e reflexões sobre a infância contemporânea.

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