Menos governo e mais governança? Repensando a lógica da ação estatal

June 20, 2017 | Autor: A. Cláudia Niedha... | Categoria: Administração Pública, Governança Pública
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Menos governo e mais governança? Repensando a lógica da ação estatal Ana Cláudia Niedhardt Capella (UNESP)

6º Encontro da ABCP – 29 de julho a 01 de agosto de 2008 UNICAMP – Campinas/SP Área Temática: Estado e Políticas Públicas

Introdução Nos últimos quinze anos, a idéia de governança (governance) tem ocupado lugar de destaque tanto nos estudos sobre Estado e políticas públicas, quanto na agenda dos governos. No entanto, não há consenso sobre o significado do termo, utilizado em diferentes contextos com significados distintos. O presente estudo tem como objetivo rever e analisar a emergência da noção de governança na literatura especializada, procurando compreender o processo de argumentação sobre Estado e políticas públicas que se estabelece a partir da utilização desse instrumental analítico. Para tanto, faremos uma breve exploração das aplicações da idéia de governança em algumas subáreas da ciência política, destacando as diferentes interpretações conceituais nos estudos de administração pública e políticas públicas. Num segundo momento, analisaremos a forma como a noção de governança passa a balizar o processo de produção de políticas públicas, tomando como exemplo a operacionalização do conceito nas políticas de gestão pública dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula. Por fim, a idéia de governança será analisada como categoria simbólica, representada estrategicamente para veicular distintos significados e atuar como facilitadora de legitimação das idéias mais gerais a ela associada. Os diferentes significados do termo “governança” na literatura A idéia de governança (governance) está presente em diferentes áreas das ciências sociais: nos estudos de relações internacionais, nas análises de política comparada, nos estudos sobre a comunidade européia, nos estudos de administração pública e políticas públicas. Nesses diferentes contextos, o termo assume distintas significações. Nos estudos sobre relações internacionais, a preocupação com a governança

emerge

como

resultado

da

globalização,

da

crescente

interdependência das instituições e das crescentes necessidades de regulação no plano global. Com o surgimento de novas instituições internacionais, e com 2

as mudanças no papel das instituições já existentes, outros atores, além dos Estados nacionais, assumiram um papel importante no estabelecimento de normas e regras em escala global. Nos estudos sobre relações internacionais, a preocupação central repousa no estabelecimento de regras para instituições internacionais. Diversas abordagens competem sobre a idéia de governança, desde perspectivas baseadas na hipótese de que os Estados nacionais são os atores mais importantes no cenário internacional, até abordagens nas quais se questiona o papel dos Estados no estabelecimento das normas e regras na dinâmica política global. Os estudos sobre a Comunidade Européia, que já vinham sendo desenvolvido

pelos

analistas

de

relações

internacionais,

mudam

significativamente de escopo com a inserção da idéia de governança. De uma discussão focada na integração, apenas como uma questão supra-nacional ou intergovernamental, a adoção da idéia de governança ampliou o debate para o estudo das questões relativas à política européia. Desta forma, as análises de governança focalizam a eficiência do processo de formulação de políticas européias. Nas análises de política comparada, governança relaciona-se a dois importantes debates. O primeiro focaliza a questão do papel do Estado no desenvolvimento econômico e, neste caso governança refere-se a maneira pela qual as instituições encarregadas pela formulação e implementação de políticas econômicas são estabelecidas e suas conseqüências sobre o desenvolvimento. O segundo debate destaca a questão da democratização. A idéia de governança, neste sentido, está relacionada ao estabelecimento de regras que orientam o processo decisório. Assim, nos estudos de política comparada, o emprego do termo “governança” varia de acordo com o foco de análise: enquanto as teorias sobre o papel do Estado no desenvolvimento destacam a criação de uma base institucional para a formulação de políticas econômicas, as teorias sobre democratização enfatizam o estabelecimento de uma base institucional para o regime político. Importante ressaltar também o papel do Banco Mundial, que contribuiu significativamente para disseminar a noção de governança no início dos anos 1990. O Banco Mundial, já no final do anos 1980, relacionou a idéia de 3

governança diretamente às crises econômicas que atingiam os países do terceiro mundo e passou a orientar a ação desses países, que dependiam dos recursos do Banco, no sentido da adoção de práticas de “boa governança” (good governance). No entanto, mesmo nos documentos oficiais emitidos pelo Banco Mundial, a definição de governança encontra diferentes sentidos e assume distintos significados: “The World Bank does not operate with one single definition of governance. Rather, the usage varies according to the particular report at hand. For example, in 1989 report, governance is defined as ‘the manner in which power is exercised in the management of a country’s economical and social resources for development’. (…). In a latter report, ‘governance is the institutional capability of public organizations to provide the public and other goods demanded by a country’s citizens or their representatives in an effective, transparent, impartial, and accountable manner, subject to resource constraints’” (Kjaer, 2004, 173).

Desta forma, as distintas utilizações da idéia de governança em diferentes áreas apontam para a ausência de um consenso sobre o conceito. A idéia de governança assume contornos ainda mais difusos nos estudos sobre administração pública e políticas públicas, como veremos a seguir. Governança na literatura de Administração Pública e Políticas Públicas A partir do início dos anos 1990, o termo governança tem sido utilizado de maneira cada vez mais freqüente na área de administração pública. Nestes estudos, a noção de governança também não se desenvolve em torno de um conceito central. As distintas aplicações do termo capturam diferentes conceitos, idéias e teorias, como veremos adiante. Analisando a literatura mais recente, alguns autores têm apontado não apenas a crescente utilização da idéia de governança, mas o emprego do termo como um sinônimo para a própria área de administração pública. Segundo Frederickson e Smith (2003, 209), “the term governance is increasingly a surrogate or proxy for public administration or public 4

management in the discipline’s leading literature”1. Neste sentido, o termo “administração pública” seria utilizado para designar as abordagens teóricas mais ortodoxas, ligadas ao modelo weberiano. A administração pública tradicional pode ser caracterizada por algumas características básicas: (a) neutralidade técnica do serviço público (dicotomia política x administração); (b) hierarquia rígida e administração voltada ao cumprimento de regras; (c) permanência e estabilidade das organizações governamentais, incluindo a estabilidade do corpo de servidores públicos; (d) regulação interna, por meio da submissão do serviço público às diretivas políticas; (e) aplicação das normas para garantia de condições de igualdade na prestação de serviços públicos (Peters, 2001, 04-13). Embora o sistema tradicional de administração pública tenha obtido sucesso por décadas, a decepção crescente com o desempenho governamental nos anos de 1980-1990, decorrente de mudanças na economia global, fatores demográficos, crescimento excessivo do setor público, entre outras características, teriam levado ao esgotamento das idéias presentes no modelo tradicional. “Governança” por outro lado, representaria a abordagem decorrente do questionamento deste modelo de administração pública, uma nova teoria da administração pública, focada em mercados e competição; administração participativa; flexibilidade e desregulamentação. (Peters, 2001, 16-22). Para outro grupo de estudiosos, a idéia de governança ultrapassa os limites do conhecimento produzido no campo da administração pública. No plano teórico, a idéia de governança permitiria formar a base para uma abordagem capaz de unificar as áreas de administração pública e políticas públicas por meio do estabelecimento de uma agenda de pesquisa comum e de modelos explanatórios baseados no desenvolvimento sistemático do estudo da governança (Heinrich e Lynn, 2000). Uma “teoria da governança” seria um corpo teórico capaz de ajudar na compreensão das formas pelas quais as leis, normas e práticas administrativas restringem, prescrevem ou estimulam a produção e a oferta de bens e serviços públicos. Outros autores vêem com desconfiança a idéia de que a governança represente um projeto desenvolvido para unificar uma ampla literatura 1

Grifo do original.

5

multidisciplinar voltada para os estudos do setor público e mesmo das atividades públicas considerando também os setores privado e de atividades não lucrativas. A noção de governança é interpretada por alguns autores como um modismo do campo acadêmico: “The concept of governance is fashionable, the favourite of academic taste-makers, the flavour not only of the month but also of the year and the decade (…). Much of the governance literature is a rehash of old academic debates under a new and jazzier name – a sort of intellectual mutton dressed up as lamb – so that pushy new professors (…) can have the same old arguments as their elders but can flatter themselves that they are breaking new ground by using new jargon” (Frederickson, 2007, 289).

Outras perspectivas sobre a governança relacionam o termo não especificamente a perspectivas teóricas ou áreas de conhecimento, mas à prática contemporânea da gestão pública. Neste sentido, alguns autores relacionam governança aos valores e idéias da “nova administração pública”, ou “administração pública gerencial”, um conjunto heterogêneo de diretrizes que fixaram os parâmetros para as reformas administrativas desenvolvidas por diversos países nas últimas décadas. Existem diversas visões sobre o conteúdo proposto pela nova administração pública2, mas de forma geral podemos destacar os seguintes tópicos, comuns a diversas experiências de reforma: (a) mudança no foco de gestão, abandonando a ênfase em processos para a ênfase em resultados; (b) amplo destaque para medições de desempenho, indicadores de eficiência e estabelecimento de padrões quantitativos para os serviços públicos; (c) busca de formatos organizacionais menos hierarquizados; (d) aplicação de mecanismos de mercado no provimento

de

serviços

públicos

(incluindo

privatização,

terceirização,

desenvolvimento de mercados internos via contratos de gestão, entre outros 2

Para uma análise sobre as idéias presentes nas reformas administrativas baseadas na “nova administração pública”, ver Hood, C. (1991). “A Public Management for All Seasons?” Public Administration, 69 (1), pp. 3-19; Pollitt, C. e Bouckaert, G. (2001). Public Management Reform: a comparative analysis. Oxford, Oxford University Press. Abrucio, Fernando Luiz. “Os avanços e os dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da administração pública à luz da experiência internacional recente”. In Pereira, Luiz Carlos Bresser e Spink, Peter (orgs.). Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: FGV, 1998 (p. 173-199).

6

mecanismos); (e) diminuição das fronteiras entre os setores público e privado, caracterizado pelo aumento das parceiras público-privado e proliferação de organizações híbridas; (f) mudança de prioridades, deixando em segundo plano valores como o universalismo e equidade, em direção à eficiência e individualismo. Para Kettl (2000), por exemplo, o debate central em torno da nova administração pública concentra-se na superação de um gap crescente entre os governos (as estruturas e funções das instituições públicas) e governança (a forma de atuação do governo). De acordo com o autor, tradicionalmente, os governos responsabilizavam-se quase que exclusivamente pela prestação dos serviços públicos. No final do século vinte, esses serviços passaram para as mãos de parceiros não-governamentais. Assim, a discussão da governança envolve a reavaliação dos mecanismos de interação entre governo e sociedade: “What should government do? How can it best accomplish these goals? What capacity does it need to do it well? (…) The management reform movement builds on the notion of good governance – a sorting out of mission, role, capacity, and relationships – is a necessary (if insufficient) condition for economic prosperity and social stability” (Kettl, 2000, 05-06).

Governança, neste sentido, é a capacidade de o Estado executar suas funções, sejam estas de prestação direta de serviços públicos, ou de controle de atores não estatais na execução desses serviços, por meio de contatos de gestão, terceirização, entre outros mecanismos. A identificação da idéia de governança com a nova administração pública, no entanto, não é consensual. Peters e Pierre (1998) observam que os debates iniciais sobre a governança ocorreram ao mesmo tempo em que as idéias sobre a nova administração pública foram difundidas nas democracias ocidentais, no início dos anos 1980. No entanto, embora compartilhem algumas idéias fundamentais, governança e nova administração pública são, para os autores, conceitos diferentes. O debate inicial sobre governança, como apontam os autores, concentrou-se no argumento de que as redes passaram a 7

exercer grande influência nos processos de formulação de políticas. Ao invés de instituições formais encarregadas pela formulação de políticas, redes compostas por diferentes atores exerceriam influência crescente sobre as formas e os meios de produção de bens e serviços públicos. Neste contexto, o Estado deixaria de exercer o controle direto sobre os serviços públicos e passaria a exercer influência sobre as redes das quais também faz parte, em conjunto

com

organizações

não

governamentais.

As

redes

também

estimularam parcerias entre os setores público e privado, combinando recursos oriundos de diferentes origens, além de estimular meios alternativos para a implementação de políticas pelo Estado (Peters e Pierre, 1998, 225-227). Em comum com as idéias norteadoras da nova administração pública, as discussões iniciais sobre a governança destacavam o desenvolvimento de novos instrumentos de controle e accountability; redução da distinção entre os setores público e privado, principalmente em termos de mecanismos de gestão; ênfase em mecanismos de competição como meio de elevar a eficiência da ação

estatal;

focalização

em

resultados;

aumento

da

capacidade

governamental em forjar coalizões inter-organizacionais com atores do ambiente externo. No entanto, estas similaridades entre a idéia de governança e a nova administração pública não os tornam sinônimos, como afirmam os autores: “However,

several

significant

differences

also

exist

between

governance and NPM [New Public management]. Indeed, these differences are so fundamental that the two models of public service should be separated. The similarities seem to be primarily at the operative level of administrative reform, whereas the differences are located at a theoretical level.” (Peters e Pierre, 1998, 231).

Governança, para os autores, representa um conceito – a relação entre o governo e a sociedade - que sempre esteve presente na democracia. Governos, por exemplo, sempre estabeleceram parcerias com o setor privado. A questão da nova administração pública é estabelecer uma visão normativa sobre a forma pela qual esta relação deve ser pautada. Uma segunda distinção apontada pelos autores é o foco das análises: a idéia de governança estaria 8

centrada no entendimento dos processos pelos quais as políticas públicas são criadas e implementadas, enquanto a nova administração pública preocupariase fundamentalmente com resultados. Em terceiro lugar, a nova administração pública constitui-se em um programa de reforma administrativa intraorganizacional, enquanto idéia de governança estaria ligada a uma perspectiva inter-organizacional. Além disso, enquanto a nova administração pública oferece subsídios para as reformas administrativas partindo do pressuposto de redução do padrão de intervenção do Estado, as idéias de governança baseiam-se na manutenção dos recursos públicos sob algum grau de controle político, além de focalizarem o desenvolvimento da capacidade de atuação do governo. Assim, argumentam os autores, a idéia de governança distancia-se dos pressupostos ideológicos da nova administração pública. Podemos concluir que são distintas as aplicações da idéia de governança e os conceitos envolvidos nas utilizações do termo. Governança pode ser um projeto intelectual de unificação de uma literatura multidisciplinar em um corpo teórico unificado. Por outro lado, governança pode ser visto como o conjunto de práticas presentes nas reformas orientadas pelas idéias da nova administração pública. Ou, ainda, o termo governança pode ser entendido para além da nova administração pública, envolvendo idéias como relações laterais, relações

inter-institucionais,

diminuição

dos

limites

jurisdicionais

e

estabelecimento de redes de cooperação. Rhodes (2000, 55-60) mapeou diferentes aplicações para a idéia de governança na literatura de administração pública, tendo encontrado as seguintes utilizações: a nova administração pública ou gerencialismo; boa governança, comparada a eficiência, transparência, meritocracia e equidade; interdependência internacional e inter-jurisdicional; sistemas de gestão não governamentais; a nova economia política, incluindo a mudança da provisão estatal de serviços para o Estado regulador; redes de gestão. Em um detalhado levantamento bibliográfico, Frederickson (2007) demonstra diferentes empregos do conceito de governança na literatura. As aplicações desse conceito por distintos autores encontra-se esquematizada no quadro 1.

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QUADRO 1 Conceitos de governança na literatura de Administração Pública e Políticas Públicas

Idéia central Governança é a mudança do Estado burocrático para um Estado mais restrito em suas funções (hollow state), ou para o terceiro setor.

Governança é a aplicação de mecanismos de mercado pelo Estado

Governança é o desenvolvimento de capital social, fortalecimento da sociedade civil, e aumento de participação cidadã

Referência Milward, H.B. e Provan, K. (2000). “Governing the Hollow State”. Journal of Public Administrations Research and Theory (10) (359-379). Salamon, L.M. (org.) (2002). The Tools of Government: A guide for the new governance. Oxford, Oxford University Press. Kettl, D. (1993). Sharing Power: public governance and private markets. Washington, Brookings Institution. Nye, J.S. e Donahue, J.D. (2000). Governance in a globalizing world. Washington, Brookings Institution. Hirst, P. (2000). “Democracy and Governance”. In Pierre, J. (org.) Debatng Governance: Authority, Steering and Democracy. Oxford: Oxford University Press. Kooiman, J. (org.) (2001). Modern Governance. London, Sage.

Governança é o resultado da ação de empreendedores públicos dotados de poder de decisão Governança é a nova administração pública ou gerencialismo Governança representa uma nova geração de reformas administrativas e de Estado Governança é o desempenho do setor público Governança é a cooperação interjurisdicional e gestão de redes Governança é globalização e racionalização

Sorensen, G. (2004). The Transformation of the State: Beyound the Myth of Retreat. London, Palgrave Macmillan. Osborn, D. e Gaebler, T. (1992). Reinventing Government. Reading, Addison-Wesley. Kernaghan, K.; Marson, B. e Borins, S. (2000). The New Public Organization. Toronto, Institute of Public Administration of Canada Bovaird, T. e Loeffler, E. (2003). Public Management and Governance. New York, Routledge, 2003. Heinrich, C.J. e Lynn, L.E. (2000). Governance and Performance: New Perspectives. Washington, Georgetown University Press. Peters. G. e Pierre, J. (1998). ). “Rethinking Public Administration” In Journal of Public Administration Research and Theory (8) 223-243. Pierre, J. (org.) (2000). Debating Governance: Authority, Steering and Democracy. Oxford: Oxford University Press.

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Governança é transparência na gestão e o estabelecimento de padrões de controle

Monks, R.A. e Minow, N. (2004). Corporate Governance. New York, Blackwell. Jensen, M. (2000). A Theory of the Firm: governance, residual claims and organizational forms. Cambridge, Harvard University Press. Blair, M.M. e MacLaury, B.L. (1995). Ownership and Control: rethining corporate governance for the 21st century. Washington, Brookings Institution.

Assim, não há um significado preciso para a idéia de governança. Os diversos conceitos, explorados pela literatura, são imprecisos e ambíguos, podendo fazer referência a um conjunto tão amplo de questões que podem, no limite, assumir qualquer significado. “Governance is now everywhere and appears to mean anything and everything”, conclui Frederickson (2007, 285). A discussão sobre a governança nos estudos brasileiros A idéia de governança desembarca no Brasil no mesmo momento em que a discussão sobre o conceito se espalha no plano internacional. Para alguns autores, que procuravam compreender o conceito sob a perspectiva das Ciências Sociais, a idéia de governança se apresentava como sucedânea das discussões sobre governabilidade. Ao discutir a centralidade da questão da governabilidade no debate político da década de 1980, Melo (1995) chama a atenção para a crescente ênfase da literatura sobre a dimensão da eficiência da atuação estatal e da capacidade governativa. Comentando uma das definições de governança formulada Banco Mundial, o autor estabelece a diferença entre governabilidade e governança: “Enquanto a governabilidade se refere às condições do exercício da autoridade política, governance qualifica o modo de uso dessa autoridade” (Melo, 1995, 30)3. Em sua análise do conceito de governança, Melo destaca aspectos como redes e associações, formato institucional do processo decisório, relação entre os setores público e privado, questões relativas à participação e descentralização, mecanismos de financiamento das políticas e escopo global de programas sociais.

3

Grifo do original.

11

De forma semelhante, Diniz (1997) investiga os conceitos de governabilidade e governança, relacionando-os, porém, com a reforma do Estado. A autora analisa a evolução do conceito de governabilidade e afirma que, em suas versões mais recentes, “viria a confundir-se com o conceito de governance” (Diniz, 1997, 37). A governança, no entanto, apresentaria três dimensões centrais: capacidade de comando e de direção do Estado, capacidade de coordenação do Estado e capacidade de implementação, aspecto destacado pela autora como essencial para uma reforma democrática que buscasse superar a crise do Estado. Recorrendo também a uma das definições do Banco Mundial sobre governança, a autora destaca as diferenças entre os conceitos de governabilidade e governança da seguinte forma: “Cabe manter a referência a governabilidade para caracterizar as condições institucionais e sistêmicas mais gerais sobre as quais se dá o exercício do poder em uma dada sociedade, tais como a forma de governo, as características dos sistemas partidário e eleitoral, entre outras (...). Por outro lado, para analisar questões ligadas à capacidade de ação do Estado, na implementação das políticas públicas e na consecução das metas coletivas, parece-me pertinente utilizar o termo governance, mais apropriado para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade brasileira, que se expandiu de forma considerável a partir dos anos 70” (Diniz, 1997, 39).

Castro Santos (1997) também estabelece distinção semelhante, caracterizando

governança

como

o

modus

operandi

das

políticas

governamentais, sua eficiência e seus impactos em um contexto de crescente pluralidade e complexidade. A mesma relação de proximidade entre os conceitos de governabilidade e governança reaparece em Fiori (1998). Para o autor, o conceito de governabilidade seria uma “categoria estratégia”, variando conforme o contexto de sua utilização: “nos anos 60 e 70 a idéia/proposta da governabilidade apontou para a eliminação de demandas e de atores sociais e políticos. Já nos anos 80 apontou para a necessidade de privatizar os Estados e desregular economias” (Fiori: 1998, 39). Ainda de acordo com o autor, 12

“É exatamente

essa versão eclética da

governabilidade que

reaparecerá nos anos 90 na agenda do Banco Mundial e de outras instituições multilaterais, já agora na forma de uma preocupação mais limitada ao que chamaram de governance ou good governance. (...) Esta nova definição aumenta apenas o rigor no detalhamento institucional do que seria um governo pequeno, bom, e sobretudo confiável do ponto de vista da comunidade internacional” (Fiori: 1998, 38).

Assim, a discussão sobre a governança na literatura brasileira inicia-se pautada pela relação do conceito com a idéia de governabilidade, destacando como diferencial o enfoque relativo à capacidade governativa, presente no conceito de governança. Nos estudos sobre a reforma do Estado e da administração pública, é precisamente esta idéia que se desenvolve, adquirindo contornos cada vez mais precisos. Como afirma Bresser Pereira, “Governabilidade

e

governança

são

conceitos

mal-definidos,

frequentemente confundidos. Para mim, governabilidade é uma capacidade política de governar derivada da relação de legitimidade do Estado e do seu Governo com a sociedade; governança é a capacidade financeira e administrativa, em sentido amplo, de um governo implementar políticas” (Bresser Pereira, 1998, 33).

Em Bresser-Pereira (1998), portanto, a governança é também definida como capacidade governativa e diferenciada da idéia de governabilidade. No entanto, a capacidade governativa a que se refere o autor é muito mais restrita do que aquela imaginada por Melo (1995), Diniz (1997) e Castro Santos (1998). Capacidade governativa, para Bresser Pereira (1998), representa a capacidade financeira e administrativa de materializar a ação do Estado. Esta representação do conceito de governança esteve presente na concepção do governo FHC, em sua política de reforma da gestão pública.

13

Governança nas políticas recentes de gestão pública A difusão do conceito de governança como idéia chave para políticas desenvolvidas no interior do governo se dá a partir de 1995. Neste ano, com a publicação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Brasil, 1995), a idéia de governança começa a circular nos documentos oficiais ligados, principalmente, à política de gestão pública proposta por Bresser Pereira. Desta forma, no momento em que a idéia de governança ganhava força e se difundia no cenário internacional – no plano acadêmico e nas recomendações do Banco Mundial – verificamos também o aporte do conceito na agenda governamental brasileira. Podemos pontuar três fases distintas na política de gestão pública durante o período compreendido entre 1995 e 2007. Nestas três fases, a idéia de governança é introduzida nas políticas governamentais de gestão apontando para distintos significados, como veremos a seguir. 1ª fase – 1995-1998: O Plano Diretor O Plano Diretor, documento que orientou as ações de reforma durante os anos 1995-1998, destaca a governança em, pelo menos, três sentidos. Em primeiro lugar, governança significa a própria reforma do Estado: “Reformar o aparelho do Estado significa garantir a esse aparelho maior governança, ou seja, maior capacidade de governar, maior condição de implementar as leis e políticas públicas. (Brasil, 1995, 44). Significa também o objetivo central das ações de reforma da administração pública propostas no Plano Diretor, além de figurar como atribuição central do MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado: “A atribuição do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado é estabelecer as condições para que o governo possa aumentar sua governança. Para isso, sua missão específica é a de orientar e instrumentalizar a reforma do aparelho do Estado, nos termos definidos pela Presidência através deste Plano Diretor.” (Brasil, 1995, 11).

14

Em segundo lugar, a idéia de governança assume significado distinto, ao ser associada com a superação do modelo burocrático de gestão em direção às idéias da nova administração pública, também chamada administração gerencial: “Pretende-se reforçar a governança - a capacidade de governo do Estado

- através

da transição

programada de

um

tipo

de

administração pública burocrática, rígida e ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno, para uma administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento do cidadão”. (Brasil, 1995, 13).

Em terceiro lugar, governança, relaciona-se à eficiência e efetividade da ação estatal. “Aumentar a governança do Estado, ou seja, sua capacidade administrativa de governar com efetividade e eficiência, voltando a ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos”. (Brasil, 1995, 45). Ou, como afirma o documento, logo em sua introdução, “a reforma do aparelho do Estado, com vistas a aumentar sua governança, ou seja, sua capacidade de implementar de forma eficiente políticas públicas.” (Brasil, 1995, 11)4. Assim, entre 1995 e 1998, a idéia de governança é associada nos documentos oficiais sobre a política de gestão pública do governo federal, à reforma do Estado e à reforma específica da administração pública, às idéias presentes no movimento da nova administração pública, e à eficiência da ação estatal. São interpretações diferentes do conceito, bastante comuns na literatura especializada das áreas de administração pública e políticas públicas. 2ª fase – 1999-2002: Gestão Pública Empreendedora Ao final do primeiro governo Cardoso, finda também a política de gestão pública orientada pelo Plano Diretor e executada pelo MARE. Com a saída do tema da reforma do Estado e da administração pública da agenda

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Grifo do original.

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governamental5, novas representações sobre a relação Estado e sociedade, sobre o papel do governo, e da burocracia federal são produzidas. Com a dissolução do MARE, a política de gestão pública é transferida, em

janeiro

de

1999,

para

Ministério

Orçamento

e

Gestão6,

mais

especificamente para a SEGES (Secretaria de Gestão). No ano seguinte, a SEGES publica o documento “Gestão Pública Empreendedora” no qual define sua política de gestão pública (SEGES, 2000). É importante observar que este documento não faz nenhuma referência à idéia de governança, nem à crise do modelo burocrático de administração, tão pouco à crise do Estado - idéias fundamentais para a representação sobre o Estado brasileiro no interior Plano Diretor. A idéia de eficiência e da implantação da nova administração pública (ou administração gerencial) também perde centralidade no discurso a respeito da administração pública. De acordo com o documento, as deficiências presentes na administração pública não repousam sobre um modelo específico de administração, mas em sua forma de gestão, nas práticas e métodos administrativos cotidianos. Assim, o documento propõe uma “transformação gerencial”, por meio da atuação pontual e localizada em órgãos da administração federal, questionando a idéia de reforma do Estado. Em termos da operacionalização da política de gestão pública, a SEGES passa a vincular suas ações ao suporte do Plano Plurianual “Avança Brasil”, assessorando os órgãos do governo federal na implantação dos programas previstos no Plano, deslocando o foco das ações anteriormente previstas no Plano Diretor. 3ª fase – 2003-2007: Gestão Pública para um Brasil de Todos Durante o governo Lula, a SEGES foi mantida no interior do MPOG, constituindo sua competência legal a proposição de diretrizes e políticas para a administração pública. O documento de referência da SEGES deste período, intitulado “Gestão Pública para um Brasil de Todos – Plano de Gestão do Governo Lula” (SEGES, 2003), também vincula a política de gestão pública ao

5

Sobre a dinâmica de entrada e saída da política de reforma da agenda governamental, ver Capella, 2004. 6 O Ministério de Orçamento e Gestão (MOG) se transformaria, meses depois, em Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão (MPOG).

16

Plano Plurianual (2004-2007), à semelhança da estratégia da SEGES no período anterior. A idéia de governança volta a ser utilizada no documento orientador das ações no período (SEGES, 2003). De acordo com o documento, o país sofre de um “défict institucional”, entendido como a “ausência do Estado onde este deveria estar atuando” (SEGES, 2003, 08). O “défict institucional” seria o resultado de um processo histórico, marcado pela ausência de mecanismos de Estado na garantia de direitos civis e sociais básicos. O “déficit” se manifesta na incapacidade governamental em cumprir suas funções básicas e na baixa qualidade dos serviços prestados. “A marcante e crescente desigualdade social, a exclusão e a insegurança que assolam a sociedade brasileira” seriam reflexos da falta de governança, ou seja, da incapacidade do Estado em formular e implementar políticas (SEGES, 2003, 09). Assim, o documento defende transformações (ao invés de reformas) na administração pública: “Significativas transformações na gestão pública serão necessárias para que se reduza o déficit institucional e seja ampliada a governança, alcançando-se mais eficiência, transparência, participação e um alto nível ético” (SEGES, 2003, 09)7 A governança seria, portanto, a resposta para o “déficit institucional”, diagnosticado como o maior problema a ser superado pela política de gestão pública. Ainda segundo o documento, a governança é definida da seguinte forma: “Aumentar a governança é promover a capacidade do governo em formular e implementar políticas públicas e em decidir, entre diversas opções, qual a mais adequada” (SEGES, 2003, 09). Portanto, a idéia de governança apresentada vincula-se à capacidade de governo, porém em uma perspectiva diferente daquela apresentada no Plano Diretor. Em lugar de enfatizar eficiência administrativa e financeira, a governança teria como objetivo outros valores adicionais, como transparência, participação e ética. Mas, talvez a mais importante distinção entre as duas perspectivas, é o fato de a governança ser considerada como o produto final da política de gestão (visão do Plano Diretor), ou como condição essencial para o sucesso dessa política (visão da SEGES sob o governo Lula). A ausência de 7

Grifo do original.

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um entendimento claro sobre o conceito e a conseqüente a ambigüidade da idéia de governança permite seu emprego de forma situacional, de acordo com o contexto das idéias mais gerais nas quais se insere. Governança como categoria simbólica na literatura e nas políticas de gestão pública O objetivo deste estudo não consiste na busca por um significado preciso para o conceito de governança na literatura especializada. Da mesma forma, não se propõe a detectar possíveis incongruências em sua utilização nos documentos governamentais. A preocupação central deste trabalho é procurar compreender como a noção de governança é empregada no processo de produção de políticas públicas. Neste caso, estudando a política de gestão pública, as diferentes aplicações da idéia de governança apontam para a ambigüidade do termo. Limites bastante imprecisos estão também presentes em sua definição teórica. Apesar disso, a aplicação da idéia de governança – na bibliografia e nos documentos oficiais – é crescente. Cabe destacar, portanto, a dimensão simbólica do conceito, ou seja, as idéias veiculadas por meio da utilização do termo “governança”. Durante os anos 1990, pesquisadores de políticas públicas destacaram crescentemente os efeitos das idéias sobre os processos de produção de políticas (Majone, 1989, Stone, 2002, Kingdon, 2003). Considerando as idéias como um sistema de crenças que refletem diferentes visões de mundo, as abordagens desenvolvidas por estes pesquisadores consideram que essas visões de mundo produzem a realidade e que a disputa sobre diferentes representações está no centro do processo de produção de políticas. “Ideas are a medium of exchange and a mode of influence even more powerful than money and votes and guns (…). Ideas are at the center of all political conflict. Policymaking, in turn, is a constant struggle over the criteria for classification, the boundaries of categories, and the definition of ideals that guide the way people behave” (Stone, 2002, 11).

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As idéias se apresentam como argumentos em defesa de diferentes visões de mundo. Assim, os autores que destacam o papel das idéias enfatizam a centralidade do discurso, da interpretação, da representação simbólica, entendendo que a produção de políticas se aproxima mais do processo de argumentação do que de técnicas formais de solução de problemas. “As politicians know only too well but social scientists too often forget, public policy is made of language. Whether in written or oral form, argument is central in all stages of the policy process” (Majone, 1989, 01). A crescente utilização da idéia de governança parece derivar precisamente do fato de o conceito não comportar significados e limites muito precisos. O significado do termo governança depende da forma como as pessoas o interpretam, utilizam, ou respondem a ele. A idéia de governança pode assumir mais de um significado ao mesmo tempo, pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes, pode ainda significar coisas distintas em distintos contextos. Neste sentido, governança é um símbolo, coletivamente criado, que molda as percepções como instrumentos políticos de influência e controle. Como descreve Stone (2002, 137), “A symbol is anything that stands for something else. (…) It can be an object, a person, a place, a word, a song, an event, even a logo on a T-shirt. The meaning of a symbol is not intrinsic to it, but is invested in it by the people who use it. In that sense, symbols are collectively created. Any good symbolic device, one that works to capture the imagination, also shapes our perceptions and suspends skepticism, at least temporarily. Those effects are what make symbols political devices. They are means of influence and control, even though it is often hard to tell with symbols exactly who is influencing whom”

A ambigüidade é a característica central dos símbolos. Governança, como categoria simbólica, pode representar duas ou mais coisas ao mesmo tempo: pode significar a mudança de um modelo burocrático de administração para um modelo gerencial de gestão, ou a manutenção do modelo burocrático com maior eficiência. Pode significar a capacidade de implementação ou a capacidade também de formulação das políticas públicas. Pode ser um projeto 19

acadêmico baseado em uma nova abordagem para os campos da administração pública e de políticas públicas ou uma recomendação de agências de financiamento internacionais para o gerenciamento de recursos econômicos e sociais. Pode ser o resultado de uma ampla reforma do Estado visando o ajuste fiscal, reduzindo e remodelando o padrão de intervenção estatal, ou o fortalecimento do papel do Estado na economia e nas políticas sociais.

O

conceito

de

governança

é,

em

suma,

indeterminado

e

indeterminável, precisamente por ser uma categoria simbólica. A ambigüidade é essencial na política na medida em que permite a transformação de intenções e ações individuais em resultados e propósitos coletivos. A exploração da ambigüidade presente nas aplicações do termo governança constitui-se em um recurso estratégico permitindo que, ao mesmo tempo, grupos com interesses contrários possam se unir em torno da mesma idéia; bases amplas de apoio para uma mesma política possam ser estabelecidas; o processo de negociação possa ser facilitado, permitindo que os oponentes defendam uma mesma política a partir de pontos específicos do projeto. Por permitir a transformação de questões individuais, ou de grupos específicos, em questões coletivas, a ambigüidade é considerada a “cola” da política (Stone, 2002, 157). Nas políticas de gestão pública, outros conceitos são também ambíguos. “Eficiência”,

“desempenho”,

“igualdade”,

são

termos

que

representam

diferentes significados para grupos distintos. A ambigüidade desses termos e da própria noção de governança cresce à medida que procuramos detalhar esses conceitos. Quem determina as metas, objetivos e padrões de desempenho do setor público? O que é a capacidade governamental, afinal? Como diferentes padrões de eficiência são recebidos por diferentes grupos de beneficiários de uma política? A exploração da característica de ambigüidade na produção de políticas públicas permite difundir representações de mundo direcionando o discurso a diferentes audiências ao mesmo tempo, abrindo espaço para a obtenção do apoio de grupos distintos. Por sua dimensão simbólica, as interpretações terão múltiplos significados, dependendo do ponto de vista adotado.

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De forma geral, nas políticas de gestão pública, governança é ainda uma idéia sempre ligada a soluções positivas para o Estado e a administração pública, independente do diagnóstico estabelecido. Seja o problema detectado como a crise de um Estado burocrático, ou a “ausência de Estado”, a governança é sempre apresentada como um valor em si próprio. Neste sentido, o termo aproxima-se das chamadas valence issues (Baumgartner e Jones, 1993). Valence issues são questões apresentadas como inquestionavelmente legítimas, de forma que defender o ponto de vista contrário se torna uma tarefa extremamente difícil, senão impossível. Quase todas as questões podem assumir características de valence issues, desde que estrategicamente representadas como tal. Se a governança é associada ao aumento da eficiência, à melhoria da prestação dos serviços públicos, como podemos nos colocar contrariamente a essa idéia? Este tipo de representação reforça os argumentos da política proposta, dificultando a legitimação de soluções contrárias. Posições divergentes tendem a se manifestar apenas no detalhamento das ações a serem desenvolvidas – por exemplo, na forma de obter maior capacidade das ações governamentais. Assim, a idéia de governança é associada a soluções positivas relacionadas a mudanças que promoveriam a modernização do Estado e da gestão pública. Governança, neste sentido, implicaria a incorporação de novas práticas que rompem com as formas tradicionais de administração, em direção a métodos e estilos de gestão mais modernos. Ao mesmo tempo, governança significaria uma mudança – em escala global e inevitável para os estudos e a prática governamental. Ou, ainda, governança representariam mudanças – e mudanças benéficas. Considerações finais Uma das questões mais poderosas na retórica da administração pública contemporânea é a idéia da governança. O uso do termo se difunde a partir dos anos 1990, em grande parte por conta de seu emprego pelos relatórios do Banco Mundial. No entanto, as próprias formulações do Banco Mundial são imprecisas e variam conforme o contexto empregado. 21

No plano teórico, a imprecisão do conceito leva a interpretações bastante distintas. No entanto, é possível perceber uma utilização bastante comum do conceito, presente em diversas abordagens. Esta utilização comum relaciona-se ao entendimento de governança como algo além do governo, envolvendo também suas relações com atores não estatais, unidos em redes de articulação e cooperação. De fato, as rápidas transformações pelas quais passam os Estados e os níveis sub-nacionais de governo têm profundas implicações sobre os estudos em administração pública e políticas públicas. Neste sentido, cabe questionar se a utilização da idéia de governança é realmente útil para as análises na área e se os diversos conceitos de governança – e seus distintos significados – contribuiriam para a ampliação da compreensão sobre esses fenômenos. Por outro lado, algumas abordagens apresentam a governança em substituição ao próprio governo: “What the people want is less government and more governance” (Cleveland apud Frederickson, 2007, 283). Como também observa outra analista: “In public administration and public policy, and to some extent in the governance literature in IR [International Relations], there is a tendency to argue that governance now takes place without government” (Kjaer, 2004, 204)8. A idéia de governança, neste caso, enfatiza o papel das instituições não-governamentais (sejam elas dirigidas ao lucro ou não) e enfatiza os processos de privatização, terceirização e a realização de parcerias público-privadas, defendendo a superioridade do mercado sobre o Estado. Esta perspectiva da governança carrega implicitamente uma teoria política normativa e prescritiva, tendo pouco a contribuir para os estudos sistemáticos na área de administração pública e políticas públicas uma vez que enfraquece a ação governamental e o papel do Estado. No plano da ação governamental, a idéia de governança – aplicada também de forma indeterminada e ambígua - é invocada para explicar e justificar mudanças na administração pública e na relação Estado e sociedade, relacionando estas mudanças, fundamentalmente, a aspectos positivos. Nos documentos oficiais, governança pode ser tanto a base para a idéia de “desconstrução” de um Estado em crise (sem capacidade financeira e 8

Grifo do original.

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administrativa) quanto para a construção de um Estado capaz de garantir direitos civis e sociais básicos. Dissertando

sobre

as

dificuldades

conceituais

do

termo

“governabilidade”, Fiori faz a seguinte afirmação, que poderia ser aplicada à idéia de governança: “Expressões e palavras desprovidas de qualquer significado preciso vão se transformando nas pedras angulares de uma nova sabedoria convencional e dominante (...). Os ensaios acadêmicos e a mídia martelam diariamente e logo todos repetem, como se fossem tópicos ou conceitos indiscutíveis de uma ‘agenda política’ comum e consensual, o que de fato não passa de um amontoado de fórmulas empregadas de forma intencionalmente vaga” (Fiori, 1998, 33-34).

Governança, como “pedra angular” da produção contemporânea nas áreas de administração pública e políticas públicas pode ser um modismo, um conceito vago e impreciso, ou a própria metáfora da incompreensão sobre a lógica contemporânea da ação estatal e sua relação com os mercados e a sociedade. Referências Bibliográficas BAUMGARTNER, Frank R; JONES, Bryan D. (1993) Agendas and Instability in American Politics. Chicago, University of Chicago Press. BRASIL (1995). Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República. (83p.). BRESSER PEREIRA, Luis C. (1998). Reforma do Estado para a Cidadania. São Paulo, Ed.34; Brasília, Enap. CAPELLA, Ana C. N. (2004). “O Processo de Agenda-Setting na Reforma da Administração Pública (1995-2002). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. São Carlos, UFSCar (234 p.). ____________. (2006). "O papel das idéias na formulação de políticas

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