Menstru(lu)ar: uma análise da menstruação como autoconhecimento

May 26, 2017 | Autor: Julia Guadagnucci | Categoria: Feminist Theory, Feminism, Menstruation, Feminismo, Mulher
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Menstru(lu)ar: uma análise da menstruação como autoconhecimento1 Julia Guadagnucci2 Rafael Grohmann3 Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP

Resumo Esse artigo busca analisar a menstruação como um fenômeno biológico com dimensões sociais e culturais que influenciam diretamente a maneira como as mulheres lidam com o seu sangrar, sendo essa relação vinculada à autoestima e ao autoconhecimento das mulheres sobre si mesmas. O material de estudo constitui um vídeo publicado pelo canal DRelacionamentos e uma pesquisa virtual. A análise tem como objetivo entender qual a relação que atualmente as mulheres estabelecem com a menstruação.

Palavras-chave: menstruação, autoconhecimento, corpo, feminismo, mulher. Introdução Neste artigo, discutirei como a saúde, o bem estar e o autoconhecimento das mulheres são prejudicados pelas atitudes negativas em relação ao ciclo menstrual. Para isso, analisarei a menstruação como um fenômeno biológico com dimensões sociais e culturais "cuja forma, consequência e significados são socialmente construídos em qualquer sociedade, da mesma forma que são a maternagem, a paternagem, ou o julgar, governar e conversar com os deuses". (COLLER, Jane Fishburne e YANAGISAKO, Silvia Junko). Sendo assim, o menstruar implica atitudes, condutas ou rituais próprios associados a simbologia desse processo fisiológico que, neste artigo, serão analisados através de uma abordagem antropológica que resgatará a visão de comunidades matrilineares e a perspectiva religiosa. Para compreendermos como esse fenômeno é percebido atualmente, analisarei o vídeo "E se a menstruação fosse uma pessoa?" publicado pelo canal do Youtube "DRelacionamentos" e divulgado na página do Facebook DRelacionamentos e terei como apoio os dados de uma pesquisa virtual respondida por sete mil mulheres que, apesar de não

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Trabalho apresentado na Divisão Temática Jornalismo, da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2

Estudante de Graduação 3º ano do Curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, email: [email protected]

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Orientador do trabalho e docente da Faculdade Cásper Líbero, email: [email protected]

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ter validade estatística, representa uma realidade social que possibilitará um entendimento de como as mulheres lidam com o seu sangrar. É sabido que "a inconsciência dos processos corporais produz limitação da liberdade pessoal pela ação impositiva dos processos fisiológicos" (PENNA, Lucy. P.87). Portanto, analisar como as mulheres lidam com o seu sangrar é também analisar o conhecimento pessoal das mulheres por si mesmas, sendo este um processo decisivo para o desenvolvimento psicológico, social e intelectual. Para Lara Owen, autora de Seu sangue é ouro: resgatando o poder da menstruação o reconhecimento do valor e do prazer de seus ciclos menstruais levou a apreciação do fato de ser mulher, fato retratado pela cultura judaico-cristã (e muitas outras) como algo ruim e inferior. A menstruação no corpo de uma mulher Mês a mês, as mulheres vivenciam movimentos cíclicos- típicos das “coisas da natureza”- que se manifestam em seu corpo no seu sangrar. Esse processo chamado menstruação é um dos momentos do ciclo reprodutivo das mulheres que, em média, se completa em 26 a 31 dias. O primeiro fluxo marca o início desse fenômeno que se repete mensalmente, entra ano e sai ano, interrompendo-se nos períodos de gravidez e fase de amamentação, chegando a cessar por completo entre os 50 e 55 anos de idade, com a menopausa, cessando também a vida procriativa da mulher. O início desse processo acontece em torno dos 11 aos 14 anos de idade com a primeira menstruação conhecida como menarca ou por expressões que carregam significados culturais. Diz-se “fulana ficou mocinha” para indicar que a menina teve o primeiro fluxo, deixando assim de ser “menina” para ser “moça”, ou seja, uma outra categoria que está entre a criança e a mulher e designa aquela que já tem potencial sexual mas ainda é virgem, evidenciando uma socialização sexual das crianças e das jovens. Segundo o antropólogo Richard Parker, autor de Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil a menarca vincula a menstruação a um processo de repressão, vergonha e proibição, pois: "Com esse novo potencial fisiológico para engravidar e trazer assim vergonha para o nome da família, o perigo latente do seu ser, agora fundamentalmente sexual, recebe atenção crescente... A menarca torna visível e real seu potencial sexual no sentido mais concreto e assim chama à ação um complexo conjunto de processos destinados a contornar, controlar e até negar essa nova realidade- a preservar a

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virgindade, reforçar a castidade e a assegurar a passividade. É um processo que enfatiza a proibição e a repressão natural da moça..." [PARKER, Richard]

Para as ciências biomédicas, a menstruação resulta de um processo endócrino relacionado à produção dos hormônios sexuais femininos, estrógeno e progesterona, responsáveis pelas mudanças associadas à puberdade e à menopausa. Todo mês, a liberação de determinados níveis desses hormônios no organismo da mulher ocasiona a ovulação, um óvulo é liberado de um dos ovários e conduzido através das trompas enquanto o útero se prepara para a implantação e proteção do óvulo fecundado. Caso não haja a fecundação, o corpo trabalha para eliminar o óvulo não fecundado junto com as camadas formadas no útero. É essa saída que chamamos de menstruação. Entretanto, é importante frisar que o reconhecimento científico sobre a menstruação é relativamente recente. De acordo com Sílvia L. Ferreira, "até o início deste século, os conhecimento científicos acumulados sobre o corpo da mulher não vinculavam a menstruação a prociação. Foi necessário o desenvolvimento de equipamentos precisos de mensuração e de pesquisas básicas no campo da endocrinologia e da bioquímica (estudo das glândulas e seus hormônios) para que esta relação fosse estabelecida". [FERREIRA, Sílvia L.]

As descobertas dessa vinculação deram status científico ao fluxo menstrual, entretanto, aprisionaram essa relação ao processo produtivo e muitas cientistas passaram a acreditar que se trata de um sangramento incômodo e inútil. "Esta postura científica reforça a ideia da menstruação como uma composição de células mortas, restos de endométrio, insucesso biológico, útero que chora." (FERREIRA, Sílvia L.) Além disso, os conceitos médicos do século XIX sobre a natureza do corpo e dos temperamentos femininos enfatizaram a debilidade e a inconstância emocional provocada pelas mudanças hormonais. Mulher-bicho: a conexão sagrada com a Natureza. Nas comunidades matriarcais, que reverenciam o corpo feminino, a menstruação era considerada um processo poderoso e curativo. As mulheres da tribo de Yurok, povo nativo da costa noroeste da Califórnia, contavam histórias sobre a Lua e o seu “lago sagrado” durante os rituais iniciáticos da menarca (BUCKLEY, Thomas). Os dias de fluxo eram considerados parte do período lunar da mulher, momento em que ela está mais intuitiva. Assim, as mulheres se afastavam das atividades mundanas e

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ficavam longe das preocupações com o sexo oposto para concentrarem sua energia na meditação sobre a natureza e sobre si mesma. O sangue que corre servia para purificar a mulher e para crescimento espiritual. Para as mulheres aborígenes, "durante esse período [menstruação] a mulher está muito mais próxima do autoconhecimento do que o normal. A membrana que separa a mente consciente da inconsciência fica, então, consideravelmente mais fina. Sentimentos, recordações e sensações que em geral são impedidos de atingir a consciência chegam ao conhecimento sem nenhuma resistência. Quando a mulher procura solidão nesse período, ela tem mais material a examinar." (ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres

que correm com lobo. P. 334) Os primeiros antropólogos escreveram artigos afirmando que nessas sociedades as mulheres menstruadas eram vistas como impuras e perigosas e por isso eram "excluídas" de alguns espaços. Essa ideia foi comparada com narrativas de antropológicas escritas por mulheres no artigo de Leavitt, Sykes & Weatherford no qual autoras apontam as interpretações sexistas e argumentam que a prática de reclusão fora interpretada pela ótica judaico-cristã. Nas sociedades matriarcais, a Lua era reverenciada como símbolo do poder feminino estabelecendo uma relação empiricamente observável com o ciclo menstrual feminino pela duração semelhante de aproximadamente 29,5 dias. Essa ligação conectava a mulher aos ciclos da natureza e aos processos naturais que escapam ao controle dos aparelhos da cultura. A pesquisadora Lara Owen conta que "nas sociedades com uma espiritualidade feminina, centralizada na terra, como aquelas dos índios norte-americanos e as culturas mediterrâneas fundamentalmente matriarcais, o ritmo do ciclo das mulheres era utilizado como base para a vida ritual da cultura." (OWEN, Lara.)

Atualmente, as divindades femininas não são reconhecidas, muito menos reverenciadas, e nega-se o valor dos processos femininos. Na medida em que a cultura foi vista como uma ordem/organização superior, as mulheres (papeis e atividades a elas relacionados), por estarem associadas à natureza, foram desvalorizadas em relação ao homem e a tudo que a ele está associado. José Carlos Rodrigues, ao analisar o "tabu do corpo" afirma que, a mulher "tem a potencialidade de funcionar simbolicamente como perturbador dos sistemas sociais de classificações, uma vez que é um ser da Cultura, ostensivamente

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submetido a processos naturais que escapam aos esforços que o aparelho cultural despende para controlá-los. Nesses períodos, a própria mulher coloca-se fora da Cultura e se aproxima da Natureza. Nessas oportunidades, seu estado fisiológico e seu estado social são incompatíveis".

Menstruação: o sangue profano Na organização patriarcal do mundo e da mente dos indivíduos, a mulher ocupa uma posição inferior à do homem, a competição prevalece em detrimento da colaboração, os valores guerreiros em detrimento do amor. Assim, as diferenças são tratadas como desigualdades e o que pertence ao universo feminino é menosprezado, considerado uma fraqueza, silenciado. A menstruação, por ser algo característico e único do corpo das fêmeas, passou a ser motivo de exclusão e o sangue menstrual foi classificado como impuro e perigoso, modificando a relação das mulheres com sua autoestima, isto é, “julgamento ou avaliação que fazemos de nós mesmos, ou seja, a ideia que temos sobre o nosso valor e as nossas competências, sendo também um processo afetivo e decisivo para o desenvolvimento psicológico, social e intelectual.” (BARBOZA, Ana Lúcia Alves et al) Uma das formas que a "dominação masculina", discutida por Pierre Bourdie como sendo um sistema que hierarquiza a posição entre homens e mulheres colocando aqueles como privilegiados, penaliza as mulheres é através da medicalização compulsiva das funções de seus corpos: na menstruação, com pílula e outros medicamentos; no parto com a excessiva intervenção, cesáreas desnecessárias de forma rotineira; no cuidado e alimentação dos filhos com a introdução das mamadeiras e relações de vinculo limitado; na menopausa com terapias hormonais. A pesquisadora L. Graciela Natansohn analisou o corpo da mulher como objeto médico e "mediático", segundo ela: "Quando se fala das mulheres e para as mulheres, o discurso sobre a corporalidade parece tomar rumos precisos: o corpo parece a âncora da mulher no mundo, sua razão de ser, para si mesma e para o outro, para o desejo do outro. Essa é a lógica que orienta o discurso da mídia e se torna visível tanto no discurso da publicidade quanto nos diversos programas de TV. Essa equação mulher = corpo se reafirma nos programas femininos, onde abundam médicos de especialidades diversas para falar de tudo aquilo que falta ou sobra na insubordinada fisiologia feminina."

Para a Igreja Católica e as demais religiões que seguem a tradição judaico-cristã, a mulher menstruada é impura e perigosa. Na Idade Média, os autores eclesiásticos e os

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glosadores do Decreto de Graciano afirmaram o caráter impuro do sangue menstrual e algumas penitenciais proibiam as mulher menstruada de comungar ou até mesmo entrar na Igreja. No Antigo Testamento, o livro de Levítico conta que Moisés recebeu a palavra de Deus dizendo que um homem que dorme com uma mulher durante o seu ciclo menstrual deve ser banido de seu povo e que as mulheres nesse período ficam impuras por sete dias. “Quando uma mulher tiver fluxo de sangue que sai do corpo, a impureza da sua menstruação durará sete dias, e quem nela tocar ficará impuro até à tarde.”, Levítico capítulo 15, versículo 19. A ideia de que a menstruação é algo sujo e maléfico ainda está presente no imaginário da sociedade. Um exemplo é o discurso publicitário utilizado para falar sobre esse tema, considerando que este é reflexo e expressão da ideologia dominante na sociedade e a persuasão publicitária é embasada por um contexto social, que por sua vez é firmado sobre um senso comum compartilhado entre os receptores da mensagem publicitária (TAVARES, 2006). Nas peças publicitárias de absorventes, evita-se utilizar a palavra "sangue" ou "menstruação", fala-se em "fluxo" e "a partir do momento em que não se usa palavras do campo semântico da menstruação, é como se ela deixasse de existir. Afinal, somente quando denominamos os objetos e os fenômenos que eles passam a ser materiais." (RATTI, Cláudia; AZELLINI, Érica e BARRENSE, Heloísa). Esse discurso contribui para que a menstruação não seja vista como algo natural e incentiva as mulheres a manterem muita vergonha sobre seus corpos e seu funcionamento. Nos comerciais, associam a noção de liberdade e segurança ao exaltarem que “ninguém vai perceber que você está naqueles dias”. A necessidade de esconder a menstruação se traduz em vergonha e silenciamento, isto é, a falta de diálogo aberto sobre o tema e a negação das mudanças que ocorrem no corpo. Esconde-se aquilo que diferencia as mulheres dos homens, esconde-se a característica única e exclusiva das fêmeas, e a diferença é culturalmente interpretada como inferioridade e fraqueza e influencia diretamente a condição social da mulher que se coloca como o "outro". A submissão àquele que dita a norma faz com que a mulher teatralize seu comportamento. Entendo como a teatralização a busca por definir-se pelo externo, pelo social, afastando-se dos motivos internos e das suas reais convicções.

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"O traço central neste desenvolvimento é que a mulher se constrói e se mantém em um contexto psicológico de ligações e associações com outros. (...) A ameaça de rompimento de uma ligação é percebida não somente com a perda de um relacionamento, mas como uma perda total da própria identidade". [PENNA, Lucy. P. 43]

Uma análise do vídeo: "E se a menstruação fosse uma pessoa?" Entendendo a relação com o ciclo menstrual e com o período de menstruação como um fator determinante para a autoestima da mulher e sabendo-se que a inconsciência de tais processos corporais produz limitação da liberdade pessoal pela ação impositiva dos mecanismos fisiológicos (PENNA, Lucy), buscarei entender como se dá essa relação atualmente com base na análise do vídeo "E se a menstruação fosse uma pessoa?" publicado pela página do Facebook DRelacionamentos no dia 12 de maio de 2016. O vídeo foi visualizado por mais de 16 milhões de pessoas, compartilhado por 320 mil usuários e recebeu 174 mil curtidas. Tendo como fundamento teórico o conceito de cultura de convergência, de Henri Jenkins, pode-se compreender a convergência como uma transformação cultural conforme os usuários das redes são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões diante de conteúdos midiáticos diversos e dispersos em diferentes meios. Segundo Jenkins, "em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo." Dessa forma, as redes sociais tiram o usuário da passividade e dão-lhe a oportunidade de interagir com o conteúdo, opinando ou o transformando. Devido a grande interação do consumidor com o vídeo a ser analisado e dos comentários positivos a respeito de seu conteúdo, pode-se considerar que além de reforçar os tabus a cerca da menstruação, as interações com o vídeo também evidenciam que muitas mulheres se sentiram contempladas pelas ideias divulgadas, ou seja, o conteúdo do vídeo dialoga com a maneira que as mulheres lidam com seus corpos. No vídeo, a menstruação é representada por uma atriz vestida de vermelho que interage com a atriz que representa a mulher menstruada.

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Logo na Cena 1, primeira cena do vídeo, a menstruação se mostra uma personagem inconveniente e infantil. Ela chega de surpresa na casa da personagem e joga-lhe um copo de água que simbolicamente representa o sangue menstrual. A mulher se mostra nãoreceptiva com sua chegada. Na Cena 2, a Menstruação dá pontadas na barriga da atriz provocando-lhe dor, esta comenta como a menstruação é chata. Durante a Cena 3, a menstruação canta, toca instrumentos e impede que a mulher sentada em frente ao computador consiga se concentrar e, na seguinte (cena 4), ela é forçada a comer chocolate ao ser ameaçada com uma faca pela atriz de vermelho. A cena 5 mostra a atriz com seu parceiro na cama em um momento íntimo. A menstruação surge entre os dois personagens, separando o casal. O homem, ao saber que a parceira está menstruada, se recusa a ter relação sexual com ela, pois, segundo ele, a menstruação é "nojenta" e "não vai rolar com ela". Por fim, a cena 6 representa o mês seguinte. A menstruação é recebida pela atriz com uma abraço caloroso pois seu atraso de três dias a deixou preocupada, provavelmente pela possibilidade de gravidez que o atraso representa. A menstruação é a culpada pelo stress, pela dor de cabeça, pela vontade excessiva de comer doce, pela dificuldade em concentra-se, pela cólica, pela rejeição do parceiro. Ela é chata, nojenta e só é esperada com certa felicidade quando a atriz se preocupa com o fato de estar grávida. No vídeo, pelo desconhecimento dos mecanismos autônomos do próprio corpo, a atriz é cerceada pela menstruação em diversos afazeres de seu dia-dia e se prende aos determinismo bioquímicos. Por estar parcialmente inconsciente da sua corporalidade, a

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mulher fica sujeita aos condicionamentos fisiológicos e não percebe como se adaptar a essas alterações sem que estas lhe provoque tensão e irritabilidade. A menstruação é interpretada como uma perturbação e não como uma mudança natural do corpo cíclico da mulher e "as afirmações de que a mulher sofre transtornos psicológicos na fase pré-menstrual corroboram o conceito falso de que as funções hormonais femininas são um mal necessário". (PENNA, Lucy; p. 86) Pelo ritmo de vida e as jornadas extenuantes a que são obrigadas a cumprir, as mulheres modernas tentam viver como se não fossem afetadas pelas suas fases e não dão a devida atenção à sua natureza cíclica, mascarando através da medicalização compulsória ou encarando como um fardo as mudanças que ocorrem em seus corpos durante esse período. O descontentamento leva à insegurança que perpetua o velho modelo do corpo feminino como frágil, impuro e inferior. No vídeo, a postura do homem em relação à menstruação corrobora para que esse período seja vergonhoso e uma característica negativa da vida cíclica feminina. O personagem reproduz a ideia de que a menstruação é suja e nojenta, a recusa de tocar e manter relação com a mulher menstruada, reafirmando a não-aceitação. Tendo em vista que a segurança de muitas mulheres está vinculada a atração que os homens têm pelos seus corpos, independente de suas habilidades, interesses ou valores pessoas (PENNA, Lucy; p. 31), não ser considerada "desejável" durante o período menstrual pode constituir à perda da autoestima e à insegurança e faz com que a mulher não aceite seu próprio corpo neste período. A pesquisa que realizei virtualmente, respondida por mais de sete mil mulheres, confirma essa análise. Apesar de não ter validade estatística, os dados podem ser interpretados como indicativos de uma realidade social. A pesquisa foi feita em um formulário de Google e divulgada em grupos de mulheres no Facebook como Share You PPK, Lindes lbt e Menstrualcups Brasil. A maioria das entrevistas tem entre 19 a 25 anos (59,1%), sendo que 18% tem entre 13 a 18 anos;15,3 % entre 25 a 30 anos; 6,4% entre 30 a 40 anos e 1,2% mais de 40 anos. Na pergunta "Você já deixou de usar alguma roupa por estar menstruada?" aproximadamente 80% das entrevistadas afirmaram não usarem certos tipos de roupa durante esse período, sendo que aproximadamente 20% afirmam não usar roupas que evidenciem que estão de absorvente. Esse resultado mostra que a menstruação ainda precisa ser escondida socialmente e afeta as atitudes, inclusive as vestimentas, das mulheres.

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20% das respostas afirma que as mulheres sentem nojo ou não gostam da menstruação e aproximadamente 50% das mulheres que responderam o questionário sentem-se feias, sujas ou fracas durante esse período, associando-o a uma experiência negativa.

Sobre relações sexuais, 14% das entrevistas sentem vergonha de se relacionar sexualmente quando estão menstruadas, 15% sente nojo e 6% afirma que não fazem sexo durante o período porque o companheiro tem nojo do sangue menstrual, como é representado no vídeo analisado.

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Coletor menstrual: uma alternativa saudável para o corpo e para Terra A relação com a menstruação também é construída a partir dos objetos simbólicos que estão associados a esse período. Os absorventes externos e internos (tampões) são um dos objetos deste período e constituem os principais métodos utilizados pelas mulheres para conter o fluxo menstrual. Entretanto, a utilização desses produtos tem impactos danosos ao meio ambiente e à saúde da mulher. Estima-se que durante a vida fértil, uma mulher gera cerca de 150 quilos de absorventes sujos, estes constituem 2% do volume de aterros sanitários e lixões e, pela quantidade de produtos sintéticos, demoram cerca de 100 anos para se decomporem (ZANCHETT, Stella). A fabricação dos absorventes também é bastante prejudicial ao meio ambiente, pois estes têm como matéria-prima o petróleo e a celulose, que requerem muita energia para a extração e criam resíduos de longa duração. Inclui-se ao impacto ambiental os componentes extras, como embalagem, aplicadores e a logística de transporte das matérias-primas. Além da natureza, o corpo da mulher também é prejudicado. O contato do sangue com o algodão provoca mau-cheiro e deixa o sangue com uma aparência de putrefação, corroborando para uma relação desagradável entre a mulher e sua menstruação. No campo simbólico, jogar a menstruação no lixo, como sujeira, também é um fator decisivo para essa relação. O algodão do produto é branqueado com Dioxina, um composto químico que pode afetar os órgãos reprodutores. Este faz com que a bactéria Staphylococcus aureus, naturalmente presente no corpo da mulher, se prolifere em níveis anormais (VARELLA, Mariana Fusco).

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Além do algodão, os absorventes são feitos de rayon (uma fibra sintética feita de celulose) que, segundo pesquisa divulgada em 1994 pela Enviromental Protection Agency (EPA), agência norte-americana para o meio ambiente, é uma substância que está presente na poluição do ar, da água e do solo, nos alimentos e também no algodão e pode causar câncer em animais e provavelmente em pessoas. Para a EPA, pessoas expostas a altos níveis da substância podem ter problemas com o sistema imunológico e levar a desenvolvimento de endometriose, crescimento descontrolado do tecido do endométrio. Essa fibra dá origem a um tecido altamente absorvente que impede que a pele respire e pode acumular toxinas. Asbesto (mineral cancerígeno utilizado para produzir azulejos) e Poliacrilato (mais conhecido como “gel absorvente”) são outras químicas do absorvente e tampões. Devido à toxicidade desses produtos, seu uso pode causar sérios problemas. Em 2012, a modelo californiana Lauren Wasser a ter uma parada cardíaca e a amputar a perna direita e, em 2015, Jemma-Louise, de 13 anos, nadadora da Inglaterra, morreu. Ambas tiverem a Síndrome do Choque Tóxico, uma infecção devido às toxinas produzidas pelas bactérias Gram-positivas, especialmente pela Staphylococcus aureus. Essas toxinas desencadeiam reações graves que podem levar a insuficiência renal aguda e morte. Os absorventes de tecido e os coletores menstruais são uma alternativa aos produtos oferecidos pelas grandes indústrias. Ainda pouco conhecido, o coletor surgiu em mais ou menos 1937, idealizado pela norte-americana Leona W. Chalmers, mas na época as mulheres não aderiram à ideia, pois não se sentiam confortáveis para experienciar seu corpo e sua vagina. Em 2000, o coletor voltou a ser produzido com silicone, material hipoalergênico e resistente a bactérias. No Quênia, os coletores menstruais tem dado liberdade às mulheres das comunidades. Devido ao elevado custo dos absorventes, as mulheres utilizam trapos, jornal e até casca de árvore ou lama para contém o fluxo, métodos desconfortáveis que podem causam infecções. A falta dos absorventes (“itens de luxo”) faz com que, a cada três anos, 8 meses de estudos sejam perdidos devido à menstruação, segundo a estimativa do Days For Girls. Pensando em como solucionar o problema, algumas organizações, como a canadense Femme International, tem fornecido a essas mulheres o coletor menstrual, uma alternativa ecológica, econômica e higiênica que dura até 10 anos e pode ficar até 12 horas seguidas no corpo. Com mais acesso a higiene sanitária, as mulheres se sentem mais

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confortáveis para frequentarem a escola e podem concluir seus estudos, como mostra a pesquisa da organização Days For Girls. Nas prisões brasileiras, como relata o livro Presas que menstruam de Nana Queirós, os absorventes são itens valiosos, pois o governo não disponibiliza a quantidade de produto necessária para as detentas. Estas recorrem a métodos perigosos como o uso de miolo de pão como absorvente interno.

Conclusão A menstruação não é encarada como uma política pública e as mulheres enfrentam barreiras econômicas, políticas, sociais e culturais ao abordarem pautas vinculadas ao feminino, portanto, subalterna. Menstruar significa para muitas mulheres ser excluída dos espaços públicos; é comum dizerem que a mulher, durante o período pré-menstrual, fica sentimental e afastada da sua racionalidade, deslegitimando seu discurso e taxando-a de “louca”, uma relação direta com a misoginia e com a dominação masculina. “Menstruar é um ato político”, como escreveu a jornalista Barbara Blum. Reconhecer o corpo feminino, amando a si mesma é revolucionário, pois o autoconhecimento transforma e liberta o indivíduo. A consciência da própria corporalidade leva a autovalorização, trazendo também responsabilidade (PENNA, Lucy). Mas ainda hoje poucas mulheres têm acesso ao conhecimento do seu próprio corpo que continua tendo suas especificidades invisibilizadas.

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