Mercado Relevante: uma perspectiva etnográfica

June 5, 2017 | Autor: Gustavo Onto | Categoria: Antitrust (Law), Legal Anthropology, Antropologia Do Direito
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ONTO, G.. Mercado Relevante: uma perspectiva etnográfica. In: Elvino de Carvalho Mendonça; Fábio Luiz Gomes, Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça. (Org.). Compêndio de Direito da Concorrência: Temas de Fronteira. 1ed.Ribeirão Preto: Editora Migalhas, 2015, v. , p. 119-144.

Mercado relevante: uma perspectiva etnográfica Gustavo Onto

Resumo

A definição do mercado relevante é considerada etapa analítica essencial na grande maioria dos litígios antitruste, seja dentro ou fora do país. Apesar da necessidade de definição de mercado não ser um consenso entre especialistas, na prática antitruste ela é utilizada com frequência, em geral por meio de estimações mais qualitativas do que quantitativas. Este artigo tem por objetivo introduzir uma reflexão sobre o conceito de mercado relevante a partir de um ponto de vista etnográfico; ou seja, por meio de uma breve descrição dos gêneros de conhecimento e ação envolvidos nesse trabalho de construção contextual da concorrência. Baseando-se em tal perspectiva, típica da investigação antropológica, procura-se ressaltar a alternância entre diferentes gêneros do conhecimento legal e dissonância entre distintas epistemologias (econômica e jurídica) que envolvem a prática de utilização desse conceito. Argumenta-se que o mercado relevante pode ser considerado como representação ou técnica, alternadamente. Tornar evidente algumas dessas dissonâncias – filosóficas por definição – pode ser útil não para torná-las menos frequentes ou inexistentes, mas sim para que haja uma maior clareza sobre o que ocorre, na prática, ao se definir um “mercado relevante”.

 

O mercado como objeto do conhecimento1

On a compris que la définition du marché était une nécessité, sauf dans des cas absolument exceptionnels où cette définition est, en quelque sorte, déjà contenue dans les agissements eux-mêmes. On a retenu ensuite que les méthodes de définition du marché n’étaient pas d’un maniement facile, en ce sens qu’elles sont multiples et que, si l’on veut approcher de la vérité économique, il faut les croiser entre elles. Telle est la philosophie de cette recherche du marché pertinent – notion un peu fuyante et pourtant tellement concrète2. (CREDA, 2002) Le droit n’a pas l’ambition de la réalité, moins encore de la vérité, il réinvente un autre monde. Le phénomène est paradoxal pour une instance qui organise concrètement le monde, part de la pratique des hommes et des choses et y retourne3. (Hermitte, 1999:2)

A primeira citação acima foi a conclusão proferida por Micheline Pastourel, vicepresidente do Conseil de Concurrence francês entre 1998 e 2004, ao final de uma mesa-redonda sobre o conceito de mercado relevante realizada em Paris, em 2002. A                                                                                                                 1  Este artigo faz parte de uma reflexão mais ampla sobre as práticas de conhecimento antitruste, sendo parte de um projeto de tese de doutorado em desenvolvimento no departamento de Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN/UFRJ). Gostaria de agradecer, em especial, Elvino de Carvalho Mendonça, Ricardo Medeiros de Castro, Luiz Ros, Pedro Magalhães Batista, Isabelle Menezes e Elizabeth Farina que, com suas explicações e questionamentos, me fizeram entender um pouco mais este conceito e prática central da atividade antitruste. Os comentários e sugestões de Isabelle Menezes, Pedro Magalhães e Luiz Ros foram especialmente importantes na escrita deste artigo. 2  “Entendeu-se que a definição de mercado era uma necessidade, exceto em casos absolutamente excepcionais em que esta definição esteja, de alguma forma, já contida nas próprias ações. Em seguida, retivemos que os métodos de definição de mercado não eram fáceis de se manusear, no sentido de que eles são muitos e que, se queremos nos aproximar da verdade econômica, temos de cruzá-los entre si. Esta é a filosofia desta pesquisa do mercado relevante – noção um pouco evasiva e ao mesmo tempo tão concreta.”   3  “O direito não tem a ambição da realidade, e muito menos da verdade, ele reinventa um outro mundo. O fenômeno é paradoxal para uma instância que organiza concretamente o mundo, parte da prática dos homens e das coisas e retorna a elas.”  

partir desta fala, cabe ressaltar dois pontos quanto ao objeto dessa reunião. Em primeiro lugar, como mencionado por Mme. Pastourel, o conceito de mercado relevante permanece central na análise antitruste, apesar do difícil trabalho que sua definição implica. Em segundo lugar, seu comentário sobre o conceito, como uma noção evasiva mas, no entanto, absolutamente concreta, pode ser considerado como uma descrição igualmente disseminada no campo do direito e da economia da concorrência. A intenção deste artigo é refletir sobre esta descrição, ao tentar dar uma resposta à seguinte indagação: como podemos experienciar um conceito tão central da atividade antitruste como sendo, ao mesmo tempo, fugidio, evasivo, de difícil apreensão e, apesar disso, absolutamente concreto? Argumenta-se que este aparente paradoxo está intimamente relacionado à indefinição quanto ao estatuto ontológico do conceito. Há muitas formas diferentes pelas quais se poderia abordar o conceito de mercado relevante a partir das ciências sociais. Certamente existem abordagens cuja utilidade e legitimidade seriam mais facilmente reconhecíveis para especialistas do direito e da economia da concorrência do que esta desenvolvida nas páginas seguintes. Para citar três, por exemplo, pode-se trabalhar a partir de uma sociologia crítica e procurar apontar para as estruturas ideológicas, inconscientes e políticas de um conceito aparentemente técnico (Bourdieu, 1987). Pode-se, ainda, refletir sobre os limites epistemológicos deste conceito, sobre a sua incapacidade de elucidação do poder de mercado e sua excessiva ênfase estrutural (Kaplow, 2011; Evans, 2010). Por último, seria útil observar o modo como o conceito foi inserido na análise antitruste e como isso alterou o próprio objeto da política de defesa da concorrência (Onto, 2009). Contudo, tais abordagens são no mínimo insuficientes para lidar com este conceitochave da análise e prática antitruste. Quanto à primeira abordagem, sua premissa de que há algo “oculto” por trás do conceito de mercado relevante se mostra equivocada ao se constatar, a partir da observação das práticas administrativas, que a definição de mercado é, assim como deve ser, explícita. A segunda abordagem não apenas pode ser tratada mais apropriadamente por economistas ou juristas como seus próprios questionamentos estão implícitos no paradoxo conceitual ao qual este artigo se dedica. A última alternativa, embora necessária e talvez condicionante da presente análise, considera precipitadamente que o mercado relevante é um conceito “bem resolvido”, que pode ser pensado como um objeto discursivo sem maiores contradições. De uma  

certa forma, todas essas abordagens precedentes não possibilitam atentar para as divergências que a própria utilização do conceito, na prática, ocasiona. Divergências essas não apenas representacionais, mas sobretudo ontológicas. A abordagem antropológica aqui pretendida busca atentar para este conceito como um objeto de conhecimento do direito e da economia da concorrência. Sendo o mercado relevante um objeto de conhecimento central nos litígios antitruste, tentar-se-á, a partir de uma análise etnográfica (ou antropológica 4 ) do conhecimento jurídico, refletir sobre o estatuto epistemológico (e ontológico) deste conceito, a fim de dar uma resposta ao paradoxo implícito na citação inicial. Isso implica observar os modos pelos quais este conceito é construído e utilizado na prática, os materiais pelos quais ele circula, os agentes responsáveis pela sua definição e as discussões e controvérsias que envolvem este trabalho. O ponto de partida da discussão que se pretende fazer decorre de uma ambuiguidade, indefinição ou ambivalência implícita na construção intelectual e material de mercados na análise antitruste. Indefinição essa que pode ser expressa na seguinte pergunta com que se depara o antropólogo ao atentar para tais práticas: o mercado relevante é uma tentativa de aproximação da verdade e realidade econômica ou este conceito não tem nenhuma “ambição” em descrever ou representar uma realidade? Uma descrição etnográfica da definição de mercados no antitruste levaria a muito mais páginas do que este breve artigo poderia reunir e, por isso, a reflexão se contém em uma das perguntas que esta perspectiva nos propõe: que tipo de objeto é o “mercado relevante”? Pode-se dizer, para adiantar o argumento, que o mercado relevante é, pelo menos, duas formas de objetos. Essa multiplicidade ontológica do “mercado relevante” decorre de características próprias do conhecimento legal, mas também da relação complexa entre o direito e a ciência econômica, propriamente constituintes da política e do direito da concorrência5. Mais ou menos implícitas na prática e na teoria antitruste, essas divergências e convergências entre modos de                                                                                                                 4  Não se faz no artigo uma diferenciação clara entre etnografia e antropologia, tendo em vista que pretende-se falar a partir de ambas as formas de conhecimento. Contudo, apenas como definição geral muito superficial, pode-se considerar a etnografia como o método antropológico de descrição por excelência e a antropologia como a reflexão produzida a partir desta descrição. 5  Pode-se dizer que há uma relação complexa quando há uma ordem de envolvimento entre formas de conhecimento (no caso, direito e economia) em que uma habita parcialmente ou toca a outra, mas não a envolve completamente (Strathern, 1999).  

conhecer e modos de ser são características do direito econômico nas suas mais variadas especializações (Hannoun, 1995). Afirmar que o objeto “mercado relevante” pode ser pensado como tendo mais de uma forma não significa dizer que existe uma certa ambiguidade presente no conceito, uma indefinição quanto ao seu sentido preciso, mas sim ao fato de que a sua construção – ou seja, a delimitação do mercado – implica numa variedade de práticas instrumentais e expressivas que não necessariamente se combinam num todo coerente, formando um só objeto (Mol e Law, 2004). Isto é, há uma indefinição sobre aquilo que seja o mercado relevante e não apenas a respeito daquilo que ele significa. É por meio da descrição dessas práticas que uma perspectiva etnográfica pode trazer uma resposta a esse aparente paradoxo do mercado relevante. O pressuposto para a utilização de tal abordagem decorre do fato de que o conceito de mercado relevante é uma construção e inovação jurisprudencial e, portanto, pode e deve ser compreendido nos termos das práticas específicas de delimitação de mercado levadas a cabo por advogados e demais profissionais do órgão antitruste (ver Riles, 2004, sobre conceitos jurídicos). Segundo a antropóloga e jurista Annelise Riles (2003), na tradição anglo-americana de conhecimento jurídico, da qual o direito da concorrência faz parte, pode-se dizer que duas formas de objetificação estão sempre presentes e são mantidas em relação6. Essas duas formas de tornar-se objeto dão ao conhecimento jurídico, segundo Riles, a característica de ser ao mesmo tempo um reflexo do mundo e uma coisa no mundo. Esses dois tipos podem ser descritos a partir do que Riles denomina de dois gêneros do ato legal ou do conhecimento jurídico: o gênero expressivo e o gênero instrumental. “As leis e os atos legais tomam uma forma expressiva quando eles marcam grupos” e constroem significados, diz Riles (2003:192). Pode-se dizer que as objetificações do conhecimento legal, quando vistas a partir do gênero expressivo, são constituídas a partir de uma separação entre o ato legal e a realidade da qual esse ato faz referência. Dito de outro modo, o conhecimento legal, neste caso, está separado da realidade que ele expressa, tornando-se ele próprio um objeto de disputa. Assim, criam-se dois objetos neste gênero: o objeto expresso (grupo, classe, categoria, p.ex.) e a                                                                                                                 6  Annelise Riles utiliza-se da reflexão da antropóloga Marilyn Strathern (1988:176177) que define objetificação como “o modo pelo qual pessoas e coisas se tornam objeto do olhar subjetivo ou de sua criação”, o que, descrito de outra forma, é parte de um processo de separação e de co-produção simultânea de sujeitos e objetos.  

representação que o expressa. Representação e realidade. Por isso, nesse caso, as objetificações estão sempre sujeitas a revisões, pois podem ficar ultrapassadas de acordo com uma mudança de contexto cultural, político, tecnológico ou econômico. Este gênero de conhecimento foi intensamente explorado por sociólogos (Bourdieu, 1987) e antropólogos a partir de perspectivas distintas sobre o poder discursivo dos artefatos burocrático-legais – os textos das leis como discursos que produzem seu próprio efeito, seus próprios objetos –, tendo sido os trabalhos muito influenciados pela filosofia pragmática da linguagem (Austin, 1962), assim como pelo pensamento de Michel Foucault (ver Wastell, 2007). Por outro lado, ao se considerar o conhecimento legal a partir do gênero instrumental, aquilo que é objetificado são o que os advogados chamam de formalidades jurídicas, as técnicas jurídicas e suas materialidades, como, por exemplo, os documentos e outras formas burocráticas – títulos de propriedade, mapas, livros de registro. Neste caso, são os objetos dos instrumentos e não as objetificações das expressões que são reificados, tornados concretos. A partir da perspectiva das formalidades, do gênero instrumental do conhecimento legal, os documentos, os autos dos processos e a técnica jurídica emergem como objetos paralelos no mundo (Riles, 2003:205). Conforme diz Riles (idem), “as formalidades legais conseguem essa centralidade pelo modo como incorporam aquilo que elas representam”, tornando-se o objeto em si. Os mecanismos particulares do fazer jurídico, as práticas, orientações e etapas que constituem um ato como jurídicos são postos em evidência nesse gênero, tornando-se, eles mesmos, objetos do conhecimento. Assim, adotando-se essa separação, que será utilizada ao longo das próximas sessões, pode-se dizer que o conhecimento legal é tanto os textos e discursos quanto os documentos (enquanto materialidade), práticas e formalidades nas quais esses textos são produzidos, circulados e transportados (Latour, 2002), de modo que cada gênero produz um tipo distinto, porém inter-relacionado, de objetificação. Essa separação entre duas perspectivas do conhecimento legal é necessariamente arbitrária e serve somente para uma tentativa de compreender o conceito de mercado do antitruste, amplamente utilizado e de difícil tradução. Na prática jurídica, esses dois gêneros são sempre utilizados conjuntamente, em sequência ou alternadamente. O que vale ressaltar é que essas distintas operações do conhecimento jurídico-legal apontam para a complexidade dos objetos e para as construções (paradoxais) que são performadas a  

partir deles e sobre eles (Hermitte, 1999). A tarefa deste artigo será apenas a de apontar para a diversidade ontológica implícita nas práticas antitruste quando se utiliza o conceito de mercado relevante. Esta arriscada tentativa de refletir sobre mercado relevante não decorre de uma simples curiosidade intelectual ou esforço intelectual de relacionar a antropologia do conhecimento a um conceito central do direito concorrencial, mas acabou se tornando um modo de compreensão das mencionadas ambiguidades ou dissonâncias sobre o conceito de mercado relevante que surgem entre discursos e práticas de definição de mercado. Essas discordâncias e dissonâncias não são disputas, enfrentamentos filosóficos presenciados no CADE ou controvérsias sobre a definição de um mercado relevante particular em algum processo específico. Trata-se de alguns desacordos, desencontros ou incoerências, como a citação que iniciou esse texto, que deixam à mostra certas particularidades que dizem respeito à relação complexa entre gêneros do conhecimento legal e construções da ciência econômica no cotidiano burocrático da política de defesa da concorrência. O que impressiona ao se observar de perto práticas analíticas do CADE é uma intensa busca por informações extremamente detalhadas a respeito dos “mercados” (da “realidade econômica”) associada à uma posição enfática com respeito a qualidade meramente técnica do procedimento de definição de mercado por parte de juristas e advogados. Se é claro para alguns que o “mercado relevante” é apenas uma técnica, um procedimento, como pensar esses mercados do antitruste em relação com a “realidade dos mercados”? É para refletir sobre essa questão a partir de uma perspectiva não-jurídica e não-econômica que este artigo começa por meio de uma breve descrição a respeito da definição de um mercado relevante que não tem outro propósito a não ser “objetificar” o mercado relevante, desta vez a partir da etnografia.

Aproximando-se do mercado relevante7

                                                                                                                7  Esta aproximação etnográfica das práticas de definição de mercado tem como consequência a utilização pelo autor, em certos trechos, da primeira pessoa do singular, devido a forma presencial e experiencial característica deste modo de produção de conhecimento.    

Durante minha estada no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, entre os anos de 2012 e 2013, como parte de um projeto de pesquisa de doutorado sobre as práticas de conhecimento envolvidas na análise e julgamento antitruste, pude conversar com analistas, assessores, coordenadores e conselheiros sobre o conceito de mercado relevante. Nesse período, além das conversas, li diversos artigos a respeito do conceito de mercado relevante: sobre sua origem, sobre os casos exemplares em que ele foi utilizado, sobre as controvérsias em torno da sua utilidade e sobre as várias possíveis técnicas de definição de mercado. Com base apenas nessa pesquisa documental, nota-se como o conceito de mercado relevante é quase sempre referido como parte de uma discussão sobre a “definição do mercado”, podendo ser ele compreendido como o resultado final de tal processo de definição. Mesmo sendo óbvio para especialistas em direito e economia da concorrência, a ênfase no processo de definição mostra o quanto o procedimento, nesse caso, é tão importante quanto uma definição precisa do “objeto”. É praticamente impossível encontrar um guia, livro, manual ou artigo sobre o mercado relevante que não descreva, ao mesmo tempo, o mercado relevante a partir de uma perspectiva expressiva – “o mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado” (Forgioni, 2013:213) – e a partir de sua forma instrumental – “mercado relevante serve para definir as zonas francas, aquelas em que a fusão não coloca risco, e para avaliar o poder de dominação” (Philippe, 1998:132)8. Minha contribuição a essa reflexão extensa do próprio campo não tem como ser crítica e nem poderia ser capaz de sugerir uma nova interpretação desse conceito. É necessariamente uma contribuição lateral (e portanto etnográfica) que busca descrever resumidamente como um mercado relevante é definido na prática a partir da atividade de um analista técnico ou assessor do CADE. O que essa descrição sugere é como o mercado relevante se situa entre modos distintos de fazer e conceber a ordem econômica. A pequena descrição poderia ser feita deste modo: Dia 10 de julho: Um coordenador-geral da superintendência-geral do CADE distribui um processo de ato de concentração para um analista técnico em sua sala. Ele explica que o caso pode ter algum problema quanto à definição de                                                                                                                 8  Ver, como exemplos, Forgioni (2013), Motta (2004) e Hovenkamp (2005).    

mercado relevante e que precisaria ser feita uma pesquisa inicial para verificar a possibilidade de aceitação ou não da definição apresentada pelas requerentes. Neste momento, o analista não sabe praticamente nada do caso, a não ser o nome das duas empresas envolvidas na fusão. O nome das empresas pode fazer o analista relembrar casos passados em que esta mesma empresa esteve envolvida e os possíveis mercados em que ela atua. Ao mesmo tempo, o analista, com base em sua experiência pessoal ou profissional, possui já algum conhecimento prévio de características de mercado ou do setor em que a empresa poderia atuar. Ele diz para o coordenador que irá verificar a definição, fazendo uma pesquisa, e que iria avisá-lo a respeito do que encontrasse. O analista sai da sala do coordenador e leva o processo consigo para sua mesa, empilhando-o sobre outros processos sob sua responsabilidade. Dia 11 de julho: Considerando que no dia anterior haviam outros processos mais urgentes para serem lidados, o assessor abre o novo processo e inicia a leitura da notificação das requerentes. Após uma breve leitura da operação, das características das empresas requerentes e dos produtos comercializados, o analista se detém sobre a definição de mercado sugerida. Segundo as requerentes, a fusão entre empresas não geraria nenhum aumento preocupante no mercado relevante definido. A definição utilizada pelas requerentes já havia sido utilizada em dois casos anteriores, como as empresas descreviam na notificação inicial. Segundo elas, tal definição estava consolidada na jurisprudência. O analista, então, busca as definições prévias do mercado na jurisprudência para compreender o contexto no qual haviam sido utilizadas. Ainda, inicia uma busca na internet a respeito de informações sobre as duas empresas envolvidas e o mercado em questão. Por meio dessa pesquisa, reúne e lê alguns relatórios produzidos por órgãos governamentais para estudar o mercado. Com base nessas informações e nas definições trazidas pelas requerentes, o assessor acredita ser necessária uma investigação mais profunda para saber o real impacto da aquisição no mercado que, para ele, ainda não tinha sido precisamente definido, apesar da referência aos outros casos. Além disso, os casos anteriores já tinham sido julgados há mais de 10 anos e uma nova definição de mercado poderia se

 

utilizar de técnicas mais recentes e de informações mais atualizadas sobre o mercado. Dia 12 de julho: O analista prepara ofícios para todos os concorrentes que as requerentes afirmaram ser participantes do mercado e os envia prontamente, de forma impressa e por e-mails, exigindo uma resposta no prazo de 15 dias. No ofício, o analista pede informações a respeito da localização das unidades dos concorrentes, dos tipos de produtos específicos produzidos e de características dos clientes, com sua localização aproximada. Com isso, o analista procura definir a dimensão produto (material) e geográfica deste mercado, conforme metodologia já consolidada no antitruste. Além disso, o ofício pede para que as concorrentes opinem a respeito da definição de mercado relevante das requerentes. No mesmo dia, as concorrentes ou seus representantes legais confirmam o recebimento dos ofícios. Dia 27 de julho: Considerando que os concorrentes responderam no prazo e com as informações precisas (o que talvez seja o ponto mais idealizado de toda minha descrição), o analista inicia a compilação da série de dados fornecidos, incluindo numa tabela as localizações de unidades produtivas e de clientes dos concorrentes nos municípios que potencialmente seriam mais afetados pela concentração. O analista tem a intenção de verificar se uma definição de mercado geográfica baseada em raios de distância poderia ser mais útil do que aquela apresentada pelas requerentes tendo como base as fronteiras municipais. Com toda a informação coletada, o analista compara as duas definições possíveis e verifica que apenas em um município a diferença de concentração seria significante, mas que, ainda assim, não causaria grandes preocupações concorrenciais. Isso porque havia uma certa facilidade de entrada nesse município e uma percepção forte de rivalidade, de acordo com uma análise do histórico desse mercado. Dia 28 de julho: O analista escreve seu parecer técnico definindo o mercado relevante da forma como foi apresentado pelas requerentes, incluindo no parecer as informações coletadas por meio dos ofícios que davam suporte à definição. Após uma descrição do mercado e da conclusão de que não haveria altas concentrações de mercado e, portanto, reduzida possibilidade de

 

exercício de poder de mercado, o analista conclui seu parecer recomendando pela aprovação da operação notificada pelas requerentes. O analista envia por e-mail o parecer técnico para o coordenador que o lê, imprime e assina o documento. Após a análise e assinatura do superintendente-geral, o parecer é anexado ao processo e arquivado.

O que chama atenção nesta breve, parcial e necessariamente seletiva descrição etnográfica de uma definição de mercado, que acaba por aceitar uma definição anterior (voltaremos a este ponto), é uma existência múltipla de reificações do mercado relevante: ora como representação, ora como técnica ou ferramenta, ora como discurso jurídico e às vezes como realidade observável. A descrição acima ilustra sucintamente os dois gêneros apresentados na introdução de forma conjunta, atentando para, ao mesmo tempo, (i) o procedimento de definição, os objetos materiais que são necessários para essa definição, as formas ou a estética em que essa definição deve ser realizada e, conjuntamente, para (ii) definições, afirmações, declarações, textuais ou orais, que esses procedimentos englobam. O gênero instrumental (i) e o gênero expressivo (ii) do conhecimento legal estão sempre relacionados e produzem, cada um a seu modo, o efeito de que o mercado relevante seja uma técnica, porém, simultaneamente, a representação de uma realidade. Nas próximas seções se discutirá um pouco mais profundamente as características de cada um desses gêneros, as objetificações que eles produzem e os efeitos que decorrem dessa multiplicidade de reificações.

Mercado relevante como representação da realidade

Talvez por ser economista de formação, meu primeiro contato com o conceito de mercado relevante foi mais facilmente compreendido de acordo com o que Annelise Riles denomina como gênero expressivo do conhecimento. Isso porque o gênero expressivo se aproxima mais do modo como a teoria econômica (e antropológica) concebe seus próprios objetos de conhecimento. O mercado relevante seria, nesse caso, uma representação de um objeto, mesmo que este objeto tenha sido construído  

no próprio ato expressivo 9 . Como os economistas que trabalham com direito concorrencial afirmam, não é possível uma comparação entre o mercado relevante e o mercado “real”, aquele com o qual economistas de outras subdisciplinas se ocupam10 (Evans, 2010; Sullivan, 1977). Mesmo assim, como podemos observar na pequena descrição da sessão anterior, uma certa aproximação entre os dois conceitos (“mercado relevante” e “mercado”) é constantemente feita na prática de definição de mercado11. Pode-se dar como exemplo de uso expressivo do conceito de mercado relevante o modo como o Horizontal Merger Guidelines do Departamento de Justiça dos Estados Unidos descreve esta noção. A explicação contida nesse guia coincide com a definição de Riles de que o conhecimento legal tem como uma de suas características a construção de “grupos” ou de coletivos. Na citação e tradução de Possas (2002), o guia de concentrações horizontais norte-americano, de 1992, define o mercado relevante desta forma: “Um mercado é definido como um produto ou um grupo de produtos e uma área geográfica na qual ele é produzido ou vendido tal que uma hipotética firma maximizadora de lucros, não sujeita a regulação de preços, que seja o único produtor ou vendedor, presente ou futuro, daqueles produtos naquela área, poderia provavelmente impor pelo menos um ‘pequeno mas significativo e não transitório’ aumento no preço, supondo que as condições de venda de todos os outros produtos se mantêm constantes. Um mercado relevante é um grupo de produtos e uma área geográfica que não excedem o necessário para satisfazer tal teste”.                                                                                                                 9  É sobre a construção do seu próprio objeto que a grande maioria dos economistas ficaria mais incomodada com essa comparação. Para a teoria econômica, a realidade econômica é dada e não poderia ser concebida de outra maneira, tendo como risco sua própria credibilidade “científica”. A antropologia econômica vem criticando, há praticamente um século, essa naturalização de uma esfera econômica da sociedade. Para uma formulação mais contemporânea dessa crítica, ver Callon (1998). 10  Quem primeiro me alertou sobre essa possível confusão conceitual foi Elizabeth Farina, a quem agradeço por ter me apontado, há alguns anos, para as possíveis “realidades paralelas” que o conceito de mercado relevante implicava. 11  Uma

discussão mais aprofundada sobre a relação entre esses dois conceitos de mercado não pode ser feita neste artigo pois requereria uma descrição etnográfica muito mais extensa.  

Como este exemplo ilustra, os guias de concentração antitruste, escritos e divulgados pelos órgãos nacionais de defesa da concorrência, constroem descrições de mercado que expressam e objetificam um conjunto de elementos materiais, espaciais, temporais e subjetivos, considerados constitutivos do mercado. Contudo, a existência de uma objetificação do mercado relevante de gênero expressivo, diferenciada de outras possíveis objetificações do conceito, torna-se mais clara a partir de certos usos do conceito. Como explicado por um analista do CADE, formado em direito, “há no antitruste uma certa confusão sobre o mercado relevante”, visto que, segundo ele, o conceito é comumente utilizado como se fosse uma realidade “empiricamente observável” e não simplesmente como uma “ferramenta ou uma técnica”. Como exemplo, sugere ele, basta observar o modo como o mercado relevante aparece na Lei no 12.529 de 2011, atual Lei da Concorrência. A legislação, assim como guias de análise, também pode ser interpretada como objetificando o mercado relevante. Isso fica mais evidente no seguinte dispositivo da referida lei: Art. 13. Compete à Superintendência-Geral: I - zelar pelo cumprimento desta Lei, monitorando e acompanhando as práticas de mercado; II - acompanhar, permanentemente, as atividades e práticas comerciais de pessoas físicas ou jurídicas que detiverem posição dominante em mercado relevante de bens ou serviços, para prevenir infrações da ordem econômica, Ou ainda, o artigo 36, caput e § 2o, do mesmo diploma legal: Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e

 

IV - exercer de forma abusiva posição dominante. (…) § 2o Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia. O texto da lei claramente expressa – e objetifica – um “mercado relevante” nesses exemplos, seja por meio da descrição de uma tarefa da Superintendência-Geral do CADE (acompanhar as atividades e práticas comerciais em mercado relevante) ou como um possível objeto de “dominação” das atividades econômicas (“dominar o mercado relevante de bens e serviços” ou “controlar 20% ou mais do mercado relevante”). Além disso, o § 2o do artigo 36 traça uma relação entre o mercado relevante e “setores específicos da economia”12. Essa relação entre o conceito e áreas da economia estabelece uma característica ainda mais concreta e relacional para esse objeto que foi construído pelo texto da lei. Mas o mercado relevante não é só objetificado, por meio do gênero expressivo, quando observamos textos legais. O trabalho de definição de mercado implica uma série de processos ou etapas interpretativas que são características desse gênero de conhecimento

13

. Por meio desse trabalho, os mercados relevantes são

permanentemente re-significados, mesmo que o trabalho do analista venha a concordar ou aceitar a definição de mercado proposta pelas partes. O trabalho interpretativo envolve, em geral, muito mais elementos do que podemos encontrar em qualquer descrição sobre a “definição do mercado” presente em manuais ou artigos acadêmicos, mas uma parte deles é explicitada no próprio discurso dos textos produzidos pela autoridade de concorrência – nos votos, pareceres, notas técnicas,                                                                                                                 12  Como é amplamente sabido, na lei norte-americana as expressões line of commerce e sections of the country são interpretadas como sendo o mercado relevante do produto e o mercado relevante geográfico. Sua relação de representação com um certo objeto empírico, neste caso, é ainda mais evidente do que no caso brasileiro. 13  Segundo Riles (2003), uma característica comum a esse gênero de conhecimento legal, e que nos auxilia a identificá-lo, seria a existência de uma autoria explícita do processo interpretativo, ou seja, os textos são assinados, possuem um autor.

 

ofícios14, entre outros documentos. A objetificação do mercado relevante, nesse caso, envolve uma série de comparações, analogias, cálculos ou categorizações entre definições jurisprudenciais, definições propostas por requerentes e concorrentes, referências em jornais, revistas e na internet, dados coletados, reuniões e até mesmo o conhecimento pessoal ou profissional sobre o mercado. É em parte esse trabalho investigativo, necessariamente interpretativo, que procurei chamar atenção na pequena descrição da seção anterior. O objetivo de todo esse trabalho é produzir uma “definição do mercado relevante que ajude a identificar os participantes do mercado, a delinear as fronteiras do mercado e a determinar uma área de concorrência efetiva” (OCDE, 2012:21). O mercado relevante é, no gênero expressivo, uma relação entre pessoas, empresas, produtos e espaços geográficos e, por isso, um objeto que exige uma constante ressignificação a cada novo caso. É por meio de uma diferenciação entre espaços e produtos, decorrente de interpretações sobre o modo de produção, sobre a característica de produtos, sobre as subjetividades de consumidores e as percepções dos concorrentes que esse “mercado” vai sendo construído. Novas representações exigem uma produção de conhecimento por meio de um trabalho de coleta e produção de informações; um processo interpretativo que envolve uma tentativa de construir um “espelho” do mercado – como muitos analistas explicam –, mesmo que esse espelho seja inevitavelmente impreciso15. Esse

gênero

de

conhecimento

legal

produz,

necessariamente,

problemas

epistemológicos, visto que sua objetificação é produzida a partir de processos interpretativos, representacionais. Não é à toa que grande parte dos artigos sobre o mercado relevante produzidos na área do direito ou economia da concorrência atentem para os problemas e consequências que as formas de representação do                                                                                                                 14  O ofício objetifica o mercado relevante, expressiva e instrumentalmente, de diversos modos. Uma simples questão que pode ser colocada para concorrentes – “vocês concordam com a definição de mercado relevante trazida pelas requerentes?” – pode ser um exemplo claro o suficiente dessa performatividade do conceito jurídico. 15  A impossível sobreposição entre o mercado relevante construído e o mercado “tal como ele é na realidade” se daria, segundo analistas do CADE, pelo problema informacional decorrente de toda administração ou regulação econômica: o mercado, ou seja, os indivíduos e empresas efetivamente atuantes nesse mercado, sempre “sabe mais” do que o Estado. A justificativa aqui é a mesma que propõe Hayek ao apontar para o problema da informação imperfeita da expertise burocrática.  

mercado relevante podem ter para uma política de defesa da concorrência. Problemas como a construção de fronteiras excessivamente bem definidas (Evans, 2010; Hovenkamp, 2012), a insuficiência da definição de mercado relevante para a resolução do caso (Carlton, 2007) ou ainda a completa incoerência dos dados e das representações utilizadas para mensurar o mercado (Kaplow, 2010) são todos problemas epistemológicos que fazem desses artigos, portanto, reflexões sobre o gênero expressivo do conhecimento legal16. A objetificação expressiva é ainda, segundo Riles (2003), uma produção de significado temporalmente situada e, por isso, a expressão ou o sentidos da lei (definições) podem ficar datadas, separadas de seus objetos. É nesse sentido visto a partir deste gênero, que se diz que “a definição de mercado relevante deve ser refeita” pois já está defasada com relação a uma contexto ou temporalidade que é externo ao objeto (um ambiente econômico, tecnológico ou institucional, no caso do antitruste). Essa constante necessidade de reavaliação da expressão com relação ao objeto previamente construído produz as disputas de definição de mercado relevante que são parte importante do processo de análise antitruste e que envolve tanto analistas, coordenadores, conselheiros ou assessores e as partes envolvidas no processo com seus respectivos representantes legais, assim como, facultativamente, seus concorrentes.

Mercado relevante como ferramenta jurídica

Em que sentido o mercado relevante é objetificado por meio do gênero instrumental do conhecimento legal? Se no gênero expressivo o mercado relevante era objetificado como um conjunto de relações (uma objetificação das expressões), no caso do gênero instrumental o que é objetificado são os próprios instrumentos e seus artefatos. O que isso significa, nesse caso, é que o mercado relevante é um procedimento, uma formalidade, uma técnica jurídica, uma simples etapa como explicam os guias. O                                                                                                                 16  Isso não quer dizer que alguns desses artigos não estejam interessados em problemas do gênero instrumental do conhecimento, como, por exemplo, Kaplow (2010).    

objeto mercado relevante é um meio para se atingir um determinado fim: a conclusão a respeito de uma configuração de ilícito concorrencial. O mercado relevante não é, portanto, uma ideia ou um ponto de vista sobre o mundo (Hermitte, 1999), mas uma ferramenta (Riles, 2003) do direito da concorrência. Como ferramenta, o mercado relevante não tem um projeto representacional, ele possui sua ontologia própria, pois serve somente para que se possa alcançar um objetivo outro. No gênero instrumental não existe a produção de um sentido sobre o que é o mercado relevante, visto que o objeto tem uma função técnica, essencialmente jurídica. Nesse caso, o mercado relevante é o próprio ato de sua definição – o ato não se distingue do objeto, como no gênero expressivo –, ele é uma realidade construída a partir de procedimentos específicos do Direito Administrativo, uma instanciação e não uma mera representação de um mercado. Ele é um objeto distinto porque não tem porque compará-lo com algo “lá fora”. Isso porque este é utilizado como se fosse o mercado, sabendo-se que ele não é e não pretende ser nenhum mercado17. Se parece difícil compreender como uma técnica pode ser um objeto, basta considerar que algo torna-se um objeto quando é colocado em uso para resistir a outros possíveis objetos. O mercado relevante pode ser um bom (e resistente) objeto para sustentar uma tese sobre a ilicitude de uma prática econômica. É nesse sentido que, também no caso do gênero instrumental, o objeto “mercado relevante” pode ser bastante “concreto”, visto que ele é uma ferramenta analítica 18 . Nesse sentido, mercado relevante aqui não é uma perspectiva, um ponto de vista a respeito do mercado, mas sim um “conceito” de mercado (Henare, Holbraad e Wastell, 2007:14). Tal ato de concepção de um mercado “não é uma questão de imaginar ou de representar” um

                                                                                                                17  Pensar o mercado desta forma é aproximá-lo do conceito de ficção jurídica, que geralmente não é associado a ele, talvez por uma insistência ideológica, como diz Hannoun (1995), de que o “direito econômico tem a ver com a realidade”. No caso do direito da concorrência, essa insistência não é tão ideológica assim, já que, como vimos no gênero expressivo, existe a necessidade de uma investigação, da construção de um sentido sobre o funcionamento do mercado. 18  Como

explica Latour (2000), “objetos” são aqueles que nunca perdem sua capacidade de objetar, de fazer objeção, devido a impossibilidade destes serem influenciados por interesses externos.

 

mercado (idem:15), mas de concebê-lo – de pensá-lo como existente 19 . Esta concepção do mercado no gênero instrumental é uma prática e não apenas uma construção mental, por isso o procedimento é o próprio objeto. Pensar, conceber o mercado relevante é, portanto, o exercício teórico e prático de definir um mercado. Enquanto que no gênero expressivo do conhecimento legal a forma (procedimento) da definição é implícita à definição de mercado, pois o que interessa ao analista é o significado ou a adequação entre o mercado relevante e o mercado “real”, nesse caso a forma jurídico-administrativa é explícita. De fato, a forma, o procedimento é o próprio objeto “mercado relevante”, que nesse caso é identificado com a etapa “definição de mercado”. Conforme ilustrado na passagem etnográfica, o mercado relevante pode ser “descrito”, conforme feito pelo autor deste texto, como um conjunto de etapas e procedimentos especificamente jurídicos nos quais o analista pode se apoiar. As formas jurídicas e os documentos jurídico-burocráticos são os objetos concretos em que o mercado relevante existe propriamente. Desse modo, o mercado relevante não é “relevante” porque ele representa alguma coisa da realidade econômica, ele é “relevante” no sentido estritamente jurídico, instrumental, visto que é apenas um enquadramento feito para que seja possível uma decisão posterior. Ou seja, ele é relevante no sentido que ele dirige a atenção, através da lei, para um outro objetivo (Riles, 2003). É por isso que ele pode ser útil ou não de acordo com o caso em questão, pois a noção não é concebida como uma representação de algo externo a ela mesma20. É interessante fazer aqui um pequeno desvio para a etimologia da palavra “relevante”. No latim medieval, as palavras relevans e relevare, significando “levantar” ou “tornar mais visível”, implicavam uma forma de ação e não um estado, uma qualidade do mundo. No século XVI, a palavra relevant ganha no vocabulário jurídico escocês o sentido de “juridicamente pertinente” (Cunha, 2010; Oxford American Dictionary). O que a tradição latina nos relembra é essa qualidade construída da relevância. Relevante não é apenas aquilo que sobressai ou que é saliente (Novo Dicionário Aurélio, 2008), mas aquilo que é tornado relevante. O gênero instrumental explicita                                                                                                                 19  “Concepção é um modo de explicitação (...) que cria seus próprios objetos, somente porque os dois são a mesma coisa, assim “ver” os objetos é o mesmo que criá-los” (Henare, Holbraad e Wastell:15). 20  Caso o mercado relevante tivesse uma existência estritamente representacional, a necessidade de sua definição estaria sempre presente nos casos do CADE.      

esse sentido etimológico do termo, pois faz da técnica o seu objeto de interesse. Aqui não é o caso de descrever mais precisamente o mercado, mas de criar as fronteiras daquilo que é pertinente para a análise jurídica. É, portanto, do ponto de vista do gênero instrumental que o mercado relevante emerge como um objeto paralelo no mundo, sem conteúdo, tendo em vista o modo como as formalidades incorporam aquilo que elas representam (Riles, 2003; Latour; 2002). As relações de mercado entre concorrentes e consumidores são uma característica do próprio procedimento e não algo a que se faz referência ou que se busca representar. Deve-se notar que o mercado relevante seria uma técnica inconsistente se ela não incorporasse essas relações (se apenas as representasse), pois sua “representação” estaria sempre sobre suspeita, permanentemente inadequada, sendo que as decisões administrativas do Conselho estariam sempre equivocadas, instrumentalmente falando. A objetificação instrumental do mercado relevante enquadra as relações, constrói sua própria temporalidade e seu próprio contexto a partir das formalidades. É por isso que a técnica do mercado relevante pode ser utilizada sem que se corra o risco desta estar defasada juridicamente, pois sua construção formal, em cada caso, é explícita. Pode-se voltar ao comentário do advogado no início da seção anterior e refletir sobre a suposta confusão que ocorria quando o mercado relevante era expresso na legislação. Para ele, somente como uma ferramenta legal é que o mercado relevante poderia produzir uma decisão resistente de um ponto de vista jurídico. A objetificação do mercado relevante pensada a partir do gênero instrumental produz uma distância e diferenciação subjetiva e ontológica que torna as relações de concorrência analisadas uma produção juridicamente efetiva. É essa distinta produção ontológica que permite ao direito administrar a economia sem estar sujeito a uma permanente adequação entre representações e realidades. Como o mercado relevante é apenas uma ferramenta, um filtro que qualifica o mercado, construindo um “outro” paralelo, a crítica que pode ser feita ao conceito de mercado relevante, quando vista exclusivamente a partir do gênero instrumental, não pode ser epistemológica – o que o mercado relevante deixou ou não de representar –, mas sim procedimental – pode-se ou não usar mercado relevante neste caso.

Mercado relevante como espelho ou filtro: uma questão política  

No período de aprovação do projeto da nova lei de concorrência 12.529, surgiu uma pequena controvérsia a respeito do uso do conceito de mercado relevante na nova redação da legislação, que apontava para um possível risco na política de concorrência. A questão tinha que ver com a fato de que o mercado relevante estava sendo usado como parâmetro para a aplicação de multa na nova lei. Uma reportagem da Agência Brasil de 6 de outubro de 2011, intitulada “Governo admite que definição de mercado relevante pode atrapalhar defesa da concorrência”, resume a discussão da seguinte forma: Brasília – A indefinição do que é “mercado relevante” poderá servir de recurso protelatório para o pagamento de multas das empresas condenadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). De acordo com o Projeto de Lei nº 3.937/04, que a Câmara dos Deputados aprovou na noite de ontem (5), a multa poderá variar de 1% a 30% do faturamento bruto da empresa no mercado relevante em que ocorreu a infração. Atualmente, a multa varia entre os mesmos percentuais, mas é calculada sobre o faturamento bruto da empresa, documentado no ano anterior à instauração do processo. A lei, que deverá ser sancionada pela presidenta Dilma Rousseff e entrará em vigor em 180 dias após a publicação, não explicita o que é o mercado relevante. O secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça (MJ), Vinícius Marques de Carvalho, admitiu que a base de cálculo da multa poderá ser “alvo no Judiciário”. Apesar da brecha, o governo não deverá fazer veto no projeto aprovado nem definir em portaria o que significa juridicamente a expressão. “Uma portaria retira a flexibilidade da lei”, analisou o conselheiro e presidente interino do Cade, Olavo Chinaglia. Segundo ele, “substratos das teorias econômicas servem para a definição do que é mercado relevante” e a legislação assegura que a multa não poderá ser inferior ao dano causado. Aquilo que chama a atenção na reportagem é que a ambivalência ou ambigüidade do conceito de mercado relevante, que poderia gerar um risco a um eficaz enforcement da política é, ao mesmo tempo, o que torna a lei mais flexível. Essa ambivalência,

 

caso fosse apenas interpretativa, como o jornalista parece supor, poderia ser facilmente eliminada com uma definição em portaria. Contudo, como vimos, o mercado relevante não é apenas uma representação de um objeto – “o mercado relevante em que ocorreu a operação”. Ele também é um objeto do direito da concorrência, uma ferramenta que não pode ser definida com precisão, sob o risco de tornar o direito uma simples aplicação de categorias a casos21. A ênfase neste artigo para o conceito de mercado relevante como objeto do conhecimento, utilizando-se da separação entre dois gêneros do conhecimento legal, busca tão somente argumentar que as ambiguidades percebidas neste conceito “evasivo, porém concreto” são mais fundamentais e mais inescapáveis do que certos especialistas do direito e da economia da concorrência parecem crer. O propósito deste pequeno ensaio de antropologia do direito concorrencial foi descrever objetivamente (em todos os sentidos da palavra) os modos pelos quais o mercado relevante é performado, aparecendo alternadamente como técnica/ferramenta ou representação/realidade. Essa alternância decorre do fato de que o mercado relevante é construído como uma representação particular de uma realidade e, por isso, torna-se objeto dos discursos legais ou é concebido como uma realidade paralela, uma ferramenta ou procedimento do direito, cujo propósito não é objetificar algo externo a si mesmo, mas servir como espécie de passagem para a resolução de processos. O efeito gerado pelo duplo acionamento, ou melhor, pela dupla performatividade desses estatutos do conceito na prática do antitruste é o de produzir constantemente a percepção de que o mercado relevante é ao mesmo tempo “concreto” e “abstrato”, como Mme. Pastourel intuía. Essa mesma dupla performatividade do conceito produz a percepção de que o mercado relevante pode ser ou não uma tentativa de se aproximar da realidade econômica. O mercado relevante, portanto, se situa entre diferentes gêneros de conhecimento correspondentes a diferentes formas pelas quais o conhecimento necessário para a administração antitruste é produzido. O mercado                                                                                                                 21  Essa alternância ontológica do conceito não é típica do caso brasileiro. Num relatório comparativo produzido pela OCDE (2011) sobre definição de mercado essa mesma utilização como parâmetro para imposição de multas era tida como usual entre diversos países:   “The importance of market definition also extends beyond its role in analysing competition concerns: the concept is used as a basis for calculating fines, for estimating the effects on trade between EU member states and has served as a procedural model for other areas of law (OCDE, 2012:11).  

relevante pode ser descrito como um espelho da realidade econômica e/ou filtro do direito da concorrência. Embora essa pareça ser uma constatação filosófica sem muitas implicações para a política antitruste, pode-se concluir a partir deste ensaio que talvez essa ambivalência do conceito esteja na raiz de problemas práticos relacionados à sua utilização, especialmente em casos recentes desafiadores para a análise, como, por exemplo, setores econômicos sujeitos à processos de “financeirização”22. Questiona-se, nesses casos, se a análise das relações das empresas com o mercado financeiro deve ser estendida com o fim de se compreender a realidade econômica na qual a fusão, por exemplo, está imbricada, ou se a definição do mercado relevante, tal como definida pela jurisprudência, já é suficiente (juridicamente falando) para tratar da questão. Se a “correta definição e adequada delimitação de um ou mais mercados relevantes é crítica para a quase totalidade das aplicações da legislação antitruste” (Possas, 2002:18), como pensar os limites e as possibilidades que as duas objetificações do mercado relevante apresentadas produzem em casos desse tipo? No início do artigo desconsiderou-se uma visão crítica sobre o conceito de mercado relevante que acreditava estar nele implícita uma espécie de ideologia política. A questão política mais relevante, a partir da reflexão feita sobre o conceito, não diz respeito àquilo que o mercado relevante em cada caso deixa ou não de observar ou representar, mas sim sobre qual o uso do conceito que é posto em evidência nos casos analisados. Ou seja, qual a concepção – o gênero de conhecimento legal – que se enfatiza em um caso ou noutro? Qual o efeito que a ênfase em uma das formas de objetificação traz para a resolução do processo? Conclui-se que talvez a política que surge como mais premente neste momento na prática do direito da concorrência não seja propriamente referente ao problema epistemológico, representacional, do conceito de mercado relevante, mas sim sobre a questão do seu estatuto ontológico, sobre aquilo que o mercado relevante é e deve ser.

                                                                                                                22  Agradeço a Pedro Magalhães Batista pelos comentários que me fizeram atentar para as consequências práticas nos recentes casos do CADE dessa múltipla objetificação do mercado relevante.    

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