Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil

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2 Direito

Civil

COORDENAÇÃO: Carlos Eduardo Guerra de Moraes Ricardo Lodi Ribeiro ORGANIZAÇÃO: Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Gisela Sampaio da Cruz Guedes Rose Melo Vencelau Meireles

AUTORES: Aline de Miranda Valverde Terra Anderson Schreiber Caio Mário da Silva Pereira Neto Carlos Affonso Pereira de Souza Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Carlos Nelson Konder Cleyson de Moraes Mello Daniel Bucar Daniele Chaves Teixeira Eduardo Nunes de Souza Gisela Sampaio da Cruz Guedes Guilherme Calmon Nogueira da Gama

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Gustavo Tepedino Heloisa Helena Barboza João Felipe Rocha P. Q. Conceição Maria Celina Bodin de Moraes Maria Teresa Moreira Lima Milena Donato Oliva Renata Vilela Multedo Ronaldo Lemos Rosangela Maria de Azevedo Gomes Rose Melo Vencelau Meireles Thamis Dalsenter Viveiros de Castro

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MERECIMENTO DE TUTELA: A NOVA FRONTEIRA DA LEGALIDADE NO DIREITO CIVIL1

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Eduardo Nunes de Souza2** Sumário: 1. Introdução; – 2. A insuficiência da subsunção como técnica decisória e a relevância da fundamentação das decisões judiciais; – 3. Hermenêutica civil-constitucional e o espaço para a ponderação no direito civil; – 4. O princípio da legalidade no direito privado e no direito público: diferentes lógicas de controle valorativo; – 5. A aferição do merecimento de tutela em sentido estrito; – 6. Síntese conclusiva; – 7. Referências bibliográficas.

1. Introdução O controle da autonomia privada pelo direito não constitui uma noção recente para o civilista – conquanto muito controvertida seja sua extensão, sobretudo quando implica a incidência de normas de direito público (e o exemplo mais claro são as normas constitucionais) sobre as relações particulares, incidência ainda hoje resistida por certos setores da doutrina. Como se sabe, a autonomia privada nunca representou um princípio ilimitado: consolidou-se, nos moldes liberais, com a primeira codificação, na passagem entre os séculos XVIII e XIX, e já nasceu geminada com seu balizamento pela lei (muito embora a legalidade, em um primeiro momento, tenha sido pretendida como um limite externo e excepcional ao exercício de direitos subjetivos).3 A mudança de concepção a respeito do papel do 1  * O presente artigo, ora revisto e atualizado, foi originalmente publicado na Revista de Direito Privado. Vol. 58. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun/2014. Agradeço ao Rodrigo da Guia Silva pela leitura minuciosa, presença incansável e valiosas ideias com que contribuiu decisivamente para mais este artigo, bem como pela sempre gratificante reflexão conjunta. 2  ** Doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor contratado dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UERJ. Assessor jurídico junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 3  Talvez a melhor prova desta limitação esteja na disciplina do Code Napoléon ao mais emblemático dos direitos subjetivos: “Article 544. La propriété est le droit de jouir et disposer | 73

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Estado em sua intervenção nas atividades privadas4 culminaria, no Brasil, no estabelecimento da ordem constitucional de 1988, marcada por um forte projeto personalista e solidarista, a provocar uma profunda reconfiguração no próprio fundamento de legitimidade dos atos particulares.5 Na perspectiva do direito civil-constitucional, mais ainda, o exercício da autonomia privada apenas se legitima perante a ordem jurídica quando conforme à axiologia do sistema. A noção de controle valorativo dos atos de autonomia, em outras palavras, revela-se um pressuposto intuitivo da própria proteção conferida pela ordem jurídica a tais atos. Partindo-se de tais premissas, o emprego corrente da expressão “merecimento de tutela” não costuma causar estranheza ao jurista. De fato, afirma-se com frequência que certa pretensão é merecedora de tutela quando se deseja indicar sua compatibilidade com o sistema e, assim, concluir que os efeitos jurídicos pretendidos merecem ser albergados pelo ordenamento.6 Em sentido lato, portanto, a noção de merecimento de tutela representa justamente o reconhecimento de que a eficácia de certa conduta particular é compatível com o sistema e, por isso, deve ser protegida; trata-se, como se vê, de uma consequência necessária da constatação de que certo ato é lícito do ponto de vista estático ou estrutural e, em perspectiva dinâmica ou funcional, não é abusivo (não constitui o exercício disfuncional de uma situação jurídica).7 des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements”. 4  Passou-se de um modelo liberal – já denominado, por força de sua atuação mínima, État veilleur de nuit (“Estado vigia-noturno”, também dito État gendarme ou État minimal) – para um modelo de Estado prestacional e comprometido com a garantia de condições existenciais mínimas para seus cidadãos. 5  Para um histórico dessa evolução, cf. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 6  Alude-se difusamente a direitos “merecedores de tutela legal” ou a pretensões “merecedoras de tutela judicial”. Vejam-se alguns usos da expressão em fragmentos de acórdãos do Superior Tribunal de Justiça: “ausente a presença do consumidor, não se há falar em relação merecedora de tutela legal especial [...]” (2ª S., CC 46747/SP, Rel. Min. Jorge Scartezzini, julg. 8.3.2006); “embora seja uma abstração enquanto entidade jurídica [...] a empresa merece tutela jurídica própria” (2ª T., REsp. 594.927, Rel. Min. Franciulli Neto, julg. 4.2.2004). “A antevisão de possíveis atentados aos direitos de outrem é sempre merecedora de tutela jurisdicional [...]” (5ª. T., HC 24.817, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, julg. 10.12.2002); “Contrato de parceria rural [...] não tem por objeto, aliás, direito indígena, merecedor de tutela através da Justiça Federal” (2ª S., CC 3585, Rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, julg. 10.3.1993). 7  A respeito, seja consentido remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 50. Rio de Janeiro: Padma, abr-jun/2012, pp. 66 e ss.

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Existiria, porém, um sentido estrito para a expressão merecimento de tutela, independente das noções de licitude e não abusividade? Onde se poderia buscar esse sentido? O legislador brasileiro não faz uso da locução. De fato, a principal referência que se tem dela repousa no Código Civil italiano – diploma que, por seu turno, exerceu enorme influência sobre a codificação brasileira de 2002 –, no âmbito da disciplina dos contratos atípicos: “Art. 1.322. ‘Autonomia contrattuale’. [...] Le parti possono anche concludere contratti che non appartengono ai tipi aventi una disciplina particolare, purché siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo l’ordinamento giuridico”.8 Não à toa, a menção ao merecimento de tutela se encontra no dispositivo atinente a uma das manifestações mais simbólicas da autonomia privada: o poder criativo que têm as partes de celebrarem contratos não previstos em lei. O dispositivo do Codice busca subordinar a possibilidade da celebração de contratos atípicos no ordenamento italiano à demonstração de que tais contratos se prestam à realização de interesses merecedores de tutela. Afirma-se, nesse sentido, que os tipos contratuais previstos em lei já teriam sido aprovados em uma valoração prévia do legislador, ao passo que, se a causa contratual não corresponder à previsão típica, esta valoração ainda teria de ser feita, para que se pudessem tutelar os efeitos negociais.9 A doutrina italiana, no entanto, costuma atribuir usos mais diversificados à expressão. Ilustrativamente, Pietro Perlingieri, maior expoente da escola do direito civil-constitucional na Itália, afirma: “Para receber um juízo positivo o ato deve ser também merecedor de tutela. [...] não basta, portanto, negativamente, a não invasão de um limite de tutela, mas é necessário, positivamente, que o fato possa ser representado como realização prática da ordem jurídica de valores, como desenvolvimento coerente de premissas sistemáticas colocadas na Carta Constitucional”.10 8  Em tradução livre: “Art. 1.322. Autonomia contratual. [...] As partes podem ainda concluir contratos que não pertencem aos tipos detentores de uma disciplina particular, desde que estejam dirigidas a realizar interesses merecedores de tutela segundo o ordenamento jurídico”. 9  Com efeito, os negócios atípicos apenas podem ser tutelados se forem “implicitamente permitidos pelo sistema” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa do contrato. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 293), afirmativa que pode ser associada à noção de tipicità sociale de Emilio BETTI (Teoria do negócio jurídico. Campinas: Servanda, 2008, p. 281). 10  PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 650. Remata o autor: “Se o ordenamento italiano se colocasse como objetivo apenas a tutela das situações adquiridas e das liberdades e os limites a tais liberdades fossem considerados exceção, então as liberdades deveriam prevalecer de qualquer forma, como expressões de um princípio-valor. [...] O ato negocial é válido não tanto porque desejado, mas se, e apenas se, destinado a realizar, segundo um ordenamento fundado no personalismo e no solidarismo, um interesse merecedor de tutela” (Ibid., pp. 370-371).

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De que espécie de merecimento de tutela (meritevolezza) se estaria tratando, para cuja configuração não bastariam os controles negativos, vale dizer, a licitude e a não abusividade?11 Seja qual for o conteúdo específico da expressão, percebe-se que ela se dirige a alguma forma de juízo valorativo sobre a autonomia privada. Assim, o estudo da evolução das formas de controle axiológico sobre os atos particulares parece ser um bom ponto de partida para a presente investigação. Trata-se de uma evolução que pode ser apreciada sob ao menos dois pontos de vista: a partir das mudanças que provocou na hermenêutica jurídica, ou da própria ampliação que representou para os limites impostos à autonomia privada. Em outros termos, esse controle valorativo perpassa tanto a compreensão do processo pelo qual se dá a interpretação e aplicação do direito (vale dizer, o meio de identificar o conteúdo das normas que limitam os atos particulares) quanto a própria evolução do direito (dos limites normativos à autonomia). Uma vez abordados esses dois vieses, buscar-se-á propor um possível conteúdo estrito para a noção de merecimento de tutela no ordenamento jurídico brasileiro.

2. A insuficiência da subsunção como técnica decisória e a relevância da fundamentação das decisões judiciais O fenômeno da constitucionalização do direito civil compreendeu a transposição dos princípios constitucionais para o centro do ordenamento jurídico, com a sua consequente irradiação para todos os setores da ordem jurídica, a incidir inclusive sobre relações privadas (seja por intermédio da norma infraconstitucional interpretada à luz da Constituição – fala-se em eficácia indireta –, seja pela eficácia, dita direta, desses princípios sobre a atividade particular, criando direitos e valorando condutas). Na perspectiva civil-constitucional, esse processo não apenas levou à releitura de todo o sistema pelo prisma da Constituição,12 como também permitiu a restauração do caráter unitário do ordenamento – outrora garantido pela centralidade do Código Civil, mas posto em xeque com a posterior proliferação de estatutos e leis especiais.13 11  Fala-se em “juízos negativos” na medida em que tanto a consideração sobre a ilicitude quanto aquela sobre a abusividade consistem em negar eficácia (ou, sem sentido lato, negar tutela) a atos desconformes ao ordenamento. Trata-se de expressões da função repressiva do direito – a respeito, v. item 3, infra. 12  Processo denominado por parte da doutrina constitucionalista como filtragem constitucional (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 363). 13  Estes e outros pressupostos fundamentais da metodologia civil-constitucional podem

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Compreendido como um todo unitário (embora composto por fontes legislativas potencialmente conflituosas), entende-se que o ordenamento exige um tratamento uno também no que tange à sua interpretação e aplicação.14 A cada momento em que o intérprete se põe diante de um caso concreto, cumpre-lhe aplicar, não esta regra ou tal princípio, mas a ordem jurídica como um todo (o que equivale a afirmar que nenhuma norma pode ter seu sentido apreendido isoladamente sem a consideração global do sistema). Nessa perspectiva, aplicar a norma implica interpretá-la de modo tão inexorável que se tem afirmado que aplicação e interpretação constituem um “momento único”.15 De outra parte, a interpretação torna-se um processo ainda mais complexo por um segundo fator: os elementos do caso concreto, ao contrário do que por muito tempo se sustentou, não permanecem estáticos à espera da incidência da norma – ao contrário, influenciam esta última e compõem necessariamente a construção da solução jurídica a que chegará o intérprete.16 Em outros termos, na metodologia civil-constitucional, o ordenamento apenas se completa quando encontra os próprios elementos do caso; só existe o Direito à luz de certa hipótese fática concreta, com suas peculiaridades e características – ideia que se costuma designar como ordenamento do caso concreto.17 ser encontrados em BODIN DE MORAES, Maria Celina. A caminho de um direito civil-constitucional. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, passim. 14  Na síntese de Pietro PERLINGIERI, “L’unitarietà dell’ordinamento postula una metodologia unitaria [...]. La ricerca-interpretazione della normativa da applicare al caso concreto è attività che coinvolge sempre l’intero sistema normativo” (Applicazione e controllo nell’interpretazione giuridica. Rivista di Diritto Civile, Ano LVI, n.1. Padova: CEDAM, jan-fev/2010, p. 322). 15  Nesse sentido, Eros GRAU: “não há dois momentos distintos, mas uma só operação. Interpretação e aplicação se superpõem” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 284). 16  A relevância de elementos do caso concreto para além da norma positivada é destacada pelos mais diversos juristas. Por todos, cf. Karl LARENZ: “A norma, que tem de se simplificar, porque quer abarcar uma série de situações fáticas, apreende em cada situação fática particular apenas alguns aspectos ou elementos. E descura todos os outros. Mas isto conduz não raramente à questão de se alguns dos elementos descurados na norma são, no entanto, tão relevantes no caso concreto, que a sua consideração seja aqui ineludível, se não se quiser (a partir da noção do Direito) tratar o desigual como igual e assim resolver injustamente” (Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 294). Talvez por esse motivo a metodologia civil-constitucional raras vezes recorra à declaração tout court da inconstitucionalidade de normas em abstrato, dando preferência, em vez disso, à interpretação conforme ou à declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, de índole eminentemente hermenêutica. 17  “O ordenamento realmente vigente é o conjunto dos ordenamentos dos casos concretos, como se apresentam na vigência do dia-a-dia, e vive, portanto, exclusivamente enquanto individualizado e aplicado aos fatos e aos acontecimentos” (PERLINGIERI, Pietro. O direito

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Tais pressupostos põem em xeque o clássico brocardo segundo o qual in claris non fit interpretativo18 e propõem um novo adágio: in claris semper fit interpretatio – ou, talvez fosse mais adequado dizer, nenhum caso jamais será, de fato, “claro”. Porque o caso concreto não permite conduzir imediatamente a uma norma abstrata que o discipline (mas, ao contrário, é a consideração da integralidade do ordenamento que autoriza concluir por tal ou qual normativa aplicável), e porque o próprio ordenamento somente se considera completo após sua fusão aos elementos do caso concreto (igualmente relevantes para a identificação da normativa), nenhuma hipótese de aplicação do direito dispensa o processo interpretativo. O encaixe entre as fattispecie abstrata e concreta nunca é, em uma palavra, automático, como sugeria a dogmática tradicional – na verdade, ambas constituem aspectos de uma única realidade.19 Nesse cenário, afirma a metodologia civil-constitucional a insuficiência da subsunção como método interpretativo (e, por via de consequência, como forma de fundamentação das decisões judiciais). Em sua formulação mais clássica, o mecanismo subsuntivo implicava o encaixe mecânico entre uma premissa maior (a norma) e outra menor (o fato), na estrutura de um silogismo. Se é certo que tal concepção, em moldes tão rígidos, apenas prevaleceu pelo exíguo período histórico em que sobreviveu a dita escola da exegese,20 fato é que a subsunção, ainda que temperada por mecanismos menos literais21 aos quais a doutrina precisou recorrer (como as interpretações histórica, sistemática e teleológica), não logrou impedir que o hermecivil, cit., p. 201). 18  Máxima, aliás, originalmente dirigida apenas à interpretação de testamentos (para os quais sua lógica literal mostra-se mais adequada) e depois degenerada em regra geral de hermenêutica (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1980, pp. 33-34). 19  Conforme observa Pietro PERLINGIERI, com base em HABERMAS, a factualidade e a normatividade “compõem problematicamente o objeto da interpretação” (Applicazione e controllo, cit., p. 333). 20  E esta já teria sido superada, ao final do século XIX, pela escola científica de autores como Raymond SALEILLES e François GÉNY, conforme anota Henri DE PAGE, que registra ter sido a exegese “um parêntese” na história do desenvolvimento das ideias jurídicas e alude mesmo à “nécrose de l’exegese” (Traité élémentaire de droit civil belge. Volume I. Bruxelles: Émile Bruylant, 1948, p 12). 21  Karl LARENZ, ao analisar o método subsuntivo na evolução da ciência jurídica, destaca a insuficiência do critério literal: “A problemática do procedimento silogístico referido reside principalmente, como desde há muito se reconheceu, na correta constituição das premissas, especialmente da premissa menor. No que respeita à premissa maior, não se pode, decerto, admitir que possa ser retirada simplesmente do texto da lei. Ao invés, toda a lei carece de interpretação e nem toda proposição jurídica está, de modo algum, contida na lei” (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, cit., p. 383).

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neuta continuasse a buscar uma identificação automática da norma aplicável ao caso concreto, desconsiderando na prática a unidade lógica e valorativa da ordem jurídica. Após essa identificação, qualquer esforço para o enquadramento sistemático da norma escolhida apenas servia a adaptar sua literalidade ao caso concreto, i.e., a justificar a escolha feita previamente.22 O inconveniente nesta tradição hermenêutica em torno da subsunção consiste em permitir ao intérprete ocultar-se por trás de determinado enunciado normativo, encontrando nele uma fundamentação definitiva e inquestionável para a sua decisão.23 Ao conseguir localizar uma norma que “claramente” se dirigisse ao caso em julgamento (ou ao localizá-la por meio de algum dos mecanismos interpretativos tradicionais), bastava-lhe usar essa norma como fundamento para a decisão. Em outros termos, todo o esforço hermenêutico se voltava, na prática, para justificar a escolha da normativa, e não propriamente para demonstrar as consequências jurídicas dela extraídas. A aparente neutralidade do mecanismo silogístico permitia ocultar ou mesmo negar a existência de pré-compreensões24 e escolhas políticas do intérprete – tudo isso sob a justificativa de uma suposta “clareza”, diante da qual não seria necessário, alegadamente, interpretar.25 22  Um bom exemplo do raciocínio subsuntivo, ainda que superada a lógica exclusivamente literal com a qual por vezes é caracterizado, pode ser encontrado em Karl ENGISCH, que, após explicar o mecanismo da subsunção, indaga o que fazer quando a premissa menor não pode ser enunciada, quer porque não é possível verificar quais são os fatos relevantes, quer porque os fatos não se deixam subsumir à premissa maior: “é necessário que se retirem da lei novas premissas maiores, com as quais se haverão de combinar as correspondentes premissas menores, a fim de fundamentar a sentença sob a forma de uma conclusão” (Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 94-100). 23  A elucidar o papel mascarador do recurso à subsunção, Karl LARENZ: “O que o jurista frequentemente designa, de modo logicamente inadequado, como subsunção, revela-se em grande parte como apreciação com base em experiências sociais ou numa pauta valorativa carecida de preenchimento” (Metodologia da ciência do direito, cit., p. 645). 24  Pré-compreensões estas que não devem (nem poderiam) ser extirpadas da interpretação, mas integradas a ela de modo consciente: “Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, [deve estar] disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. [...] Mas essa receptividade não pressupõe nem ‘neutralidade’ com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade” (GADAMER, H.G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 405). 25  Aduz Maria Celina BODIN DE MORAES: “ultrapassado o positivismo jurídico, o sistema tem agora potencialidade para se tornar muito mais racional e coeso (rectius, previsível), porque a ambiguidade intrínseca aos dispositivos normativos tende a diminuir ou

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Com efeito, já se observou que o raciocínio subsuntivo, talvez o mais conhecido aspecto do positivismo formalista, abrigava uma ampla margem de discricionariedade do intérprete, na medida em que, no interior da “moldura normativa” aludida por Kelsen, caberia qualquer preenchimento que aprouvesse ao juiz.26 Todos os significados comportados pela norma eram justificados pela simples existência dela: a legitimidade democrática do legislador salvaguardava qualquer sentido que coubesse no texto positivo. O reconhecimento do papel das escolhas pessoais do hermeneuta afasta o escudo do raciocínio silogístico e redimensiona a tão propalada necessidade de fundamentação das decisões à luz dos valores e da lógica do ordenamento.27 Afirmar que o limite da interpretação reside no dever de fundamentação à luz da legalidade constitucional significa, sem dúvida, ampliar a moldura normativa – que deixa de se prender ao texto da norma e passa a remeter à axiologia de todo o sistema –, mas também permite lançar o foco da discussão sobre o aspecto discricionário (mas não arbitrário) que sempre existiu na decisão, oculto pela suposta neutralidade silogística.28 Evidentemente, não se pode supor que o intérprete, em seu primeiro contato com o caso concreto, não reconheça, ainda que involuntariamente, a proximidade da espécie fática em exame com alguma norma jurídica. Diante de um contrato em que uma das partes se obriga a entregar certa coisa e a outra a pagar preço correspectivo, seria humanamente improvável desaparecer se, ao interpretar a regra, o juiz é capaz de motivar sua aplicação mediante a explicitação do princípio jurídico que serve a justificá-la naquele caso concreto” (Prefácio. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. iv). 26  Lênio STRECK reputa a principal característica do positivismo “a discricionariedade, que ocorre a partir da ‘delegação’ em favor dos juízes para a resolução dos casos difíceis (não abarcados pela regra)” (Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, jan-jun/2009, p. 69). 27  Previsto pela própria Constituição em seu art. 93, IX, o dever de fundamentação consubstancia-se no grande elemento de legitimação da sentença, sobretudo em um contexto no qual se reconhece progressivamente a falência da técnica legislativa regulamentar diante de uma sociedade multifacetada e infensa à previsão geral e abstrata da norma, o que tem conduzido a uma cada vez maior atuação criativa do intérprete – não raro fazendo escolhas de ordem política, naquilo que se costuma denominar “ativismo judicial”. A respeito, cf. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Seleções jurídicas, n. 5/2009, que define esse fenômeno como “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais” (p. 35). 28  Aduz Maria Celina BODIN DE MORAES que a subsunção “traduz uma segurança ilusória e uma neutralidade falsa, por trás das quais apenas se mascaram as escolhas políticas existentes no processo. [...] Ao que parece, todavia, parte do Judiciário não percebeu que a derrubada do limite externo, formal, que restringia o intérprete – o dogma da subsunção – não significou a consagração do arbítrio, mas, ao contrário, impôs um limite interno, – metodológico – a exigência de fundamentação (argumentativa) da sentença” (Do juiz boca-da-lei à lei boca-de-juiz. Revista de Direito Privado, vol. 56, out-dez/2013, pp. 27-28).

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que o intérprete se furtasse a pensar no tipo normativo da compra-e-venda.29 A metodologia aqui proposta simplesmente postula que não se pode conferir qualquer relevância jurídica a essa primeira identificação (de moldes silogísticos), uma vez que em nenhuma hipótese se admite que a interpretação esgote-se nela;30 ao contrário, é necessário que o julgador (re)conheça suas pré-compreensões, justamente para impedir que seu convencimento se forme apenas com base nelas.31 O entendimento que o magistrado adquire sobre o caso concreto forma-se no processo que a filosofia denomina círculo hermenêutico, um movimento dialético constante que faz com que ele se reporte do fato à norma e da norma ao fato, até alcançar a solução.32 Em outras palavras, como a aparente combinação entre o fato e a norma jamais pode servir de justificativa a uma decisão – considerando-se que a clareza normativa deve ser considerada sempre um posterius no processo interpretativo33 –, exige-se do hermeneuta que reconheça a necessidade de interpretação e que, reportando-se à legalidade constitucional, explicite o raciocínio que o conduziu à sua decisão, fundamentando-a.34 É também 29  Com efeito, sabe-se na psicologia que os estímulos são processados pela mente humana de forma a se extrair deles uma impressão imediata o mais coerente possível, de modo automático e com mínimo esforço cognitivo. Em geral, a mente aceita essa primeira impressão como verdadeira com pouca ou nenhuma modificação; apenas diante de casos difíceis exige-se um esforço mental mais intenso para a identificação do estímulo (e, mesmo assim, é possível treinar a mente para identificá-lo de modo automático). A respeito, v. KAHNEMAN, Daniel. Thinking – Fast and Slow. New York: Farrar, Stratus and Giroux, 2011, passim e, especialmente, pp. 24 e ss. 30  Destaca Carlos KONDER a complexidade da qualificação dos contratos, que não pode ser segmentada “em etapas preclusivas, uma vez que tais etapas – rectius, aspectos – imiscuem-se uns nos outros. Em oposição à visão clássica do trajeto único, subsuntivo, do fato à norma, a atitude do intérprete constrói-se em um constante ir-e-vir entre a reconstrução da realidade e seu diálogo com os enunciados normativos” (Qualificação e coligação contratual. Revista Forense, vol. 406. Rio de Janeiro: nov-dez/2009, p. 65). 31  GADAMER ressalta o “caráter essencialmente preconceituoso de toda compreensão” e alerta: “são os preconceitos não percebidos os que, com o seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição” (Verdade e método, cit., p. 406). 32  O conceito de círculo hermenêutico, baseado no pensamento heideggeriano, é aludido por Michele TARUFFO, que o considera o método inevitável de aplicação do Direito, mesmo quando se afirma tratar-se de subsunção: “o que se usa chamar de sussunzione do fato [à] norma, ou correspondência entre fato e norma, é somente o resultado final de um particular círculo hermenêutico que liga, dialeticamente, o fato e a norma até chegar a uma correspondência entre o fato, juridicamente qualificado e a norma interpretada como referência ao caso, no qual ela é concretamente aplicada” (Legalidade e justificativa da criação judiciária do direito. Revista da EMASPE, vol. 6, n. 14. Recife: jul-dez/2001, p. 435). 33  PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 616. 34  Conforme anota GADAMER, o fato de o próprio juiz estar jungido à ordem jurídica

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nesse sentido que se pode afirmar que interpretação e aplicação constituem um “momento único”: não se trata, por evidente, de um instante cronológico único – como se fosse possível esperar que a solução jurídica decorrente da integralidade do ordenamento se materializasse diante dos olhos do intérprete em um átimo de segundo –, mas sim do reconhecimento de que fato e norma se influenciam mutuamente e, por isso, nenhum momento do processo decisório deixa de consistir em uma interpretação.35 O raciocínio subsuntivo seguia lógica oposta, propondo que a interpretação era necessária apenas para a identificação da premissa maior, mas que a aplicação desta à premissa menor representava um mecanismo lógico neutro – a dispensar, por isso, fundamentação, que estaria suprida pela norma positivada. A metodologia da interpretação e a fundamentação de decisões judiciais mostram-se especialmente relevantes para o desenvolvimento das formas de controle valorativo de atos da autonomia privada.36 Isso porque, como juízo de valor que é, a noção de merecimento de tutela pode implicar (e é este o sentido estrito que se pretende atribuir a ela, como se verá mais adiante) a necessidade de escolha pelo intérprete entre dois exercícios particulares igualmente fundamentados por valores do sistema, mas que se tornam antagônicos no caso concreto. Um raciocínio subsuntivo impediria, nessas hipóteses, que o ordenamento fornecesse solução à controvérsia, pois tais posições contraditórias são ambas protegidas, à primeira vista, por valores do sistema. Quando se trabalha com princípios em colisão, afirma usualmente a doutrina constitucionalista, não se pode aplicar a subsunção: torna insustentável o recurso à subsunção: “A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei, em cada caso, isto é, em sua aplicação. A complementação produtiva do direito, que ocorre com isso, está obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se por sua vez sujeito à lei [...]. Entre a hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe pois uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém uma posição determinante. Pois não é sustentável a ideia de uma dogmática jurídica total, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção” (Verdade e método, cit., pp. 489-490). 35  Ao binômio interpretação-aplicação poder-se-ia adicionar um terceiro termo, o da qualificação. De fato, é a noção de qualificação que permite a aproximação entre fato e norma, e também este aspecto, na perspectiva civil-constitucional, não pode ser separado em um momento estanque (PERLINGIERI, Pietro. Applicazione e controllo, cit., pp. 320-321). 36  De fato, Pietro PERLINGIERI ressalta que a noção de controle valorativo deve ser compreendida como “componente estrutural da interpretação”, propondo um “controle em sede aplicativa das soluções propostas”, que não se reduza a apenas evitar consequências absurdas, “mas que envolva a axiologia do sistema, em toda a sua potencialidade adequadora”. Complementa o autor: “Si che l’interpretazione non soltanto non può essere assurda ma deve essere sempre ragionevole. E la ragionevolezza non si esaurisce né si identifica con l’astratta razionalità ma si conota di aspetti valutativi desunti dai principi normativi di valenza assiologica” (Applicazione e controllo, cit., pp. 333-334).

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cumpre escolher qual deles irá prevalecer por meio da ponderação.37 O reconhecimento de que toda decisão judicial decorre de um complexo diálogo entre fato e norma, e de que toda aplicação do Direito é interpretação, mostra-se essencial para garantir a adequada fundamentação dessa escolha.

3. Hermenêutica civil-constitucional e o espaço para a ponderação no direito civil A exposição realizada até aqui conduz à seguinte perplexidade: se a subsunção não se reputa mais uma forma legítima de fundamentação das decisões, que metodologia se deve aplicar à interpretação-aplicação do direito? A doutrina constitucionalista tem difundido, nos últimos anos, uma possível resposta: afirma-se usualmente que, nos casos em que não se pode aplicar a subsunção, deve-se proceder à técnica da ponderação.38 O termo não corresponde a um conceito unitário, mas, na formulação mais difundida no Brasil, a ponderação consiste na técnica adequada à solução de conflitos concretos em que princípios de mesma hierarquia entram em rota de colisão, indicando soluções antagônicas para o mesmo caso concreto. Em tais hipóteses, faz-se preciso ponderar os princípios em questão, para que se torne possível identificar qual deles deve prevalecer e qual deve ceder espaço para o outro; não se trata da supressão de nenhum dos dois princípios na solução do caso concreto, mas sim da preferência a um em face do outro, apenas na medida em que são incompatíveis. Um pressuposto para essa técnica consiste na distinção, atribuída aos estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy, entre regras e princípios. Afirma-se das primeiras que consistem em enunciados normativos de textura menos aberta, aplicados segundo um princípio de “tudo ou nada” (quando uma regra prevalece para certo caso concreto, outra, antagônica a ela, deve ser necessariamente eliminada da disciplina do mesmo), sendo por isso denominadas por Alexy “mandados definitivos”.39 Os princípios, por sua vez, ditos “mandados de otimização”, aplicar-se-iam de modo diferen37  Por todos, cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, cit., pp. 333-334; e, ainda, BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 31-33, que afirma ser a ponderação uma “alternativa à subsunção”. 38  Ou balanceamento, como é conhecida na língua inglesa (balancing) e italiana (bilanciamento). 39  ALEXY, Robert. A theory of constitutional rights. New York: Oxford University Press, 2010, p. 47.

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ciado, permitindo a ponderação que um princípio prevalecesse sobre outro que lhe fosse antagônico sem a necessidade de eliminar nenhum deles.40 Um princípio, assim, cede espaço ao outro, mas ambos incidem sobre a fattispecie concreta.41 Por força dessa distinção, convencionou-se afirmar que a ponderação seria a técnica de solução adequada aos chamados hard cases42 (casos que apenas podem ser solucionados pela aplicação de princípios colidentes). A todos os demais casos, considerados simples, seria possível chegar a uma solução por meio da tradicional subsunção. É justamente esse cabimento restrito da técnica da ponderação que se mostra dissonante da metodologia acima exposta de interpretação-aplicação do direito. Partindo-se do pressuposto de que o ordenamento, complexo em suas fontes, deve ser sempre compreendido de modo unitário e aplicado como um todo coerente ao caso concreto, necessariamente compreender-se-á que todos os casos exigem a harmonização dos muitos valores, princípios e regras potencialmente conflituosos do sistema. Afirmar a unidade e a coerência de um ordenamento complexo implica um esforço diuturno (e não esporádico) de compatibilização das normas que o compõem. Assim, pode-se afirmar que, para a metodologia civil-constitucional, todos os casos são casos difíceis.43 Na prática, a solução do caso não é obtida exclusivamente pela aplicação de uma regra ou de um princípio, mas pela construção do ordenamento do caso concreto. Perde o sentido, assim, a dicotomia entre casos fáceis solucionáveis por regras que se subsumem e casos difíceis solucionados por princípios que se ponderam. No mínimo, seria necessário dizer que é preciso ponderar princípios sempre, uma vez 40  Em interessante metáfora, afirma Luís Roberto BARROSO: “A subsunção é um quadro geométrico, com três cores distintas e nítidas. A ponderação é uma pintura moderna, com inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que outras, mas formando uma unidade estética” (Curso, cit., p. 334). 41  A doutrina especializada registra que a decisão oriunda da ponderação deve respeitar o núcleo dos direitos fundamentais envolvidos (suas prerrogativas essenciais), embora persista controvérsia quanto à existência a priori de um núcleo duro e intangível ou a flexibilidade desse núcleo, definido apenas após ponderação em concreto (BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, cit., pp. 139-146). 42  A respeito, cf. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978, pp. 81 e ss. 43  Mesmo na filosofia a noção de casos fáceis é reputada artificial. Cf. Lênio STRECK: “casos fáceis [...] são aqueles que demandam respostas corretas que não são discutidas; casos difíceis são aqueles nos quais é possível propor mais de uma resposta correta ‘que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo’. Mas pergunto: como definir ‘as margens permitidas pelo direito positivo’? Como isso é feito? A resposta que a teoria da argumentação jurídica parece dar é: partir de raciocínios em abstrato, a priori, como se fosse, primeiro, interpretar e, depois, aplicar...” (Hermenêutica, Constituição, cit., p. 70).

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que todo ordenamento do caso concreto é composto por princípios potencialmente colidentes. Portanto, “ponderação”, no sentido de compatibilização de princípios, é algo presente em qualquer hipótese de interpretação-aplicação do direito.44 De outra parte, a noção de ordenamento do caso concreto leva a crer que a ordem jurídica, ao final do processo hermenêutico, fornecerá sempre uma única solução adequada ao caso.45 A crença na possibilidade de mais de uma solução decorria, para muitos autores positivistas, do simples reconhecimento da complexidade do ordenamento46 – e é justamente por força dessa complexidade que se tem afirmado contemporaneamente que aplicar o direito corresponde a interpretá-lo. Sob a ótica da subsunção, na qual a aplicação do Direito acontecia em momento posterior à interpretação e dispensaria fundamentação, era possível cogitar de mais de uma solução extraível da norma e à escolha do julgador; quando se compreende que o ordenamento se interpreta de modo unitário, a solução juridicamente adequada surge ao final do processo hermenêutico; só se pode identificar, assim, qual é a resposta “certa” no exato momento de sua aplicação, porque esta não acontece em separado da interpretação. Nessa perspectiva, aliás, resta claro que a técnica da ponderação como mecanismo de solução de casos em que dois princípios indicam soluções antagônicas corresponde, mutatis mutandis, a uma espécie de subsunção qualificada: tratar-se-ia de um procedimento para harmonizar a complexidade do ordenamento (em casos não solucionáveis pelo mecanismo do “tudo-ou-nada”) após o qual seria possível aplicar ao caso concreto o equilíbrio encontrado entre os princípios originalmente colidentes como se fosse 44  A viva discussão doutrinária sobre a possibilidade de se ponderarem regras parece, nessa perspectiva, um falso problema. Talvez por essa razão afirme Humberto ÁVILA: “a ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras, na medida em que qualquer norma possui um caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador diante do caso concreto” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 50). 45  A crença em uma única resposta certa apenas se torna possível em uma hermenêutica unificada pelos valores constitucionais: “é a partir da hermenêutica filosófica que se falará da possibilidade de respostas corretas ou, se assim for almejado, de respostas hermeneuticamente adequadas à Constituição (portanto, sempre será possível dizer que uma coisa é certa e outra é errada [...])” (STRECK, Lênio. Hermenêutica, cit., p. 69). O positivismo, por outro lado, vinculava-se à possibilidade de múltiplas respostas (o.l.u.c.). 46  Ilustrativamente, LARENZ associava o termo “ponderação” à impossibilidade de se obter uma resposta única por subsunção: “Que se recorra pois a uma ponderação de bens no caso concreto é na verdade, como se fez notar, precisamente consequência de que não existe uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos em que possa ler-se o resultado como numa tabela” (Metodologia, cit., pp. 575-576).

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uma premissa maior – lógica que não dista do raciocínio silogístico.47 Em outras palavras, a ponderação funciona como uma forma mais complexa de se encontrar a premissa maior, exigida por determinados casos, ditos difíceis. Semelhante postura hermenêutica não corresponde, como se vê, a uma superação da subsunção, padecendo das mesmas críticas que o direito civil-constitucional dirige à técnica subsuntiva. Não significa, cumpre ressaltar, que a ponderação não ocorra na metodologia civil-constitucional, mas, ao contrário, que ela ocorre, a rigor, o tempo todo.48 Não são, em outros termos, excepcionais ou especiais as hipóteses em que é necessário compatibilizar princípios – o intérprete o faz o tempo todo.49 Reconhecida essa ressalva, toda a técnica relacionada ao balanceamento revela-se de grande utilidade ao hermeneuta.50 Tampouco significa que a metodologia civil-constitucional não conheça, por analogia à teoria da ponderação, casos mais difíceis (no sentido de ensejarem um tipo ainda mais árduo de fundamentação a ser realizada pelo intérprete). Simplesmente a dificuldade nunca consistirá na impossibilidade de resolução de determinado caso por subsunção (uma impossibilidade permanente), mas em características de outra ordem. 47  A convertibilidade da ponderação de princípios em uma subsunção é reconhecida, dentre outros, por José Juan MORESO, que considera a racionalidade subsuntiva “um pressuposto necessário” à justificação das decisões (Confliti tra princìpi costituzionali. Diritto & questioni pubbliche, n. 2, ago/2002, p. 33). 48  O que se poderia afirmar, aliás, de quase toda metodologia de interpretação, como ressalta Giorgio PINO: “è possibile affermare che una simile logica di bilanciamento sia sottesa a qualunque attività interpretativa, posto che ogni tecnica interpretativa presuppone una ricostruzione (attuale, ipotetica, controfattuale, ecc.), o una proposta di individuazione, di una possibile ratio legis” (Diritti fondamentali e ragionamento giuridico. Torino: G. Giappichelli, 2008, p. 100). 49  O reconhecimento da força normativa dos princípios, neste ponto, talvez tenha apresentado à hermenêutica constitucional um problema semelhante àquele que o direito civil há muito enfrenta com os conflitos entre regras contemporâneas que apresentem igual hierarquia e especialidade. Nesses conflitos, já observava Norberto BOBBIO, “poderíamos quase falar de um autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resolver o conflito segundo a oportunidade” (Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UnB, 1995, p. 100). Em tais casos, “aquilo a que tende o intérprete comumente não é mais à eliminação das normas incompatíveis, mas, preferentemente, à eliminação da incompatibilidade” (p. 102). Essa solução, que o direito constitucional tem alcançado com a ponderação, parece, na verdade, mais simples em matéria de princípios, justamente porque sua textura aberta facilita sua compatibilização. 50  Afirma Pietro PERLINGIERI que, em um sistema “caratterizzato assiologicamente, l’interpretazione e la conseguente qualificazione non possono più prescindere dai normali strumenti di integrazione, di adeguamento e di bilanciamento” (Applicazione e controllo, cit., p. 321).

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Alguns exemplos concretos permitirão esmiuçar quais seriam estes hard cases na perspectiva civil-constitucional; antes, porém, de analisá-los, cabe esmiuçar, com um pouco mais de cuidado, o conceito de legalidade, igualmente útil para determinar os valores que permitem considerar legítima a fundamentação das sentenças judiciais e os parâmetros para a valoração dos atos de autonomia privada – portanto, o elemento que une os dois eixos do presente estudo. De fato, se, como se afirmou anteriormente, o dever de fundamentação das decisões se torna cada vez mais relevante no direito contemporâneo, justamente nestes casos, abertos à escolha do juiz, os limites impostos pela legalidade constitucional ao julgador mostram-se imprescindíveis.

4. O princípio da legalidade no direito privado e no direito público: diferentes lógicas de controle valorativo Como é sabido, o ambiente revolucionário especialmente favorável ao advento do Código Civil francês em 1804 identificava na codificação a possibilidade de criar um espaço de atividade negocial privada infensa às intervenções estatais. A aspiração de reunir toda a disciplina das relações civis em um único corpo normativo, para além de sua base filosófica iluminista, buscava isolar as atividades privadas em um setor específico (consolidando a summa divisio entre direito público e privado, que perduraria de forma inflexível por mais de um século), de modo a demarcar um âmbito de autonomia individual tão amplo quanto possível, sobre o qual o Estado liberal não deveria intervir, salvo em momentos patológicos. Da maior relevância para a consolidação deste cenário foi a concepção que se convencionou denominar princípio da legalidade. De um lado, a garantia de uma legalidade oponível ao Estado contribuía para restringir seu espectro de atuação ao que determinara a vontade majoritária da classe que gozava de participação política à época – justamente, o homem burguês, contratante e proprietário, ao qual se dirigia o próprio Código Civil como sujeito de direitos. Delineava-se, nesta lógica, aquela consequência das revoluções liberais que resultaria, na célebre síntese de John Adams, em um governo de leis, e não de homens.51 Por outro lado, o desenvolvimento da noção de legalidade contribuiu para o fortalecimento da distinção entre direito público e privado, na medida em que se atribuíram ao princípio con51  No original, “a government of laws not men”. A frase, publicada na obra Novanglus (or A History of the Dispute with America from its Origin, in 1754, to the Present Time) em 1775, seria inserida posteriormente na Constituição de Massachussets de 1779, da qual Adams foi o principal redator.

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teúdos distintos conforme se tratasse de relações entre particulares ou relações com a participação do Estado. Mesmo atualmente, quando a clássica summa divisio já se considera há muito relativizada,52 a dicotomia conceitual do princípio da legalidade permanece vigente. No controle dos atos da Administração Pública, a legalidade determina que o Estado apenas pode agir nas hipóteses em que a lei o exija ou autorize (princípio previsto no caput do art. 37 da Constituição). Já nas relações em que predominam interesses privados, a legalidade implica afirmar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (como, aliás, consignou o constituinte de 1988 no art. 5º, II).53 Floresceram, sob a égide deste princípio, noções tão fundamentais ao direito civil como a autonomia privada (emblemática manifestação do princípio da liberdade nas relações particulares) e o direito subjetivo (que, em sua configuração oitocentista, e para além das divergências entre as correntes da vontade e do interesse juridicamente protegido, era tido como uma prerrogativa quase ilimitada do sujeito). A legalidade no direito civil constituía, assim, a afirmação de uma liberdade apresentada na forma de controle. Afirmar que a atividade particular encontrava limites apenas na ilicitude (vale dizer, na contrariedade à expressa disposição legal) implicava afirmar, por via de consequência, que nenhum outro limite além da própria lei se aplicava a ela. A segunda metade do século XIX e o começo do século XX trariam, porém, uma significativa mudança a este panorama. O reconhecimento (pioneiramente feito pelos tribunais) de que certas condutas estruturalmente lícitas contrariavam, na locução de Louis Josserand, o espírito do direito no momento de seu exercício, permitiu a construção da figura do abuso do direito e criou uma nova instância de controle valorativo das atividades privadas.54 A concepção de abuso seria, assim, a grande responsável por inaugurar no direito civil uma nova forma de análise das prerrogativas individuais, não mais estática e estrutural como aquela pressuposta pela licitude, mas dinâmica (aplicada ao momento do exercício da situação subjetiva) e funcional. Esta parece ser, aliás, uma boa demonstração da utilidade da figura do abuso do direito, mesmo diante do notável avanço de princípios como 52  Sobre a mitigação da dicotomia, v., por todos, o texto clássico de GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, n. 747. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 53  A respeito da diferença de conteúdo do princípio da legalidade no direito público e no direito privado, cf., dentre muitos outros, BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre o princípio da legalidade. Temas de direito constitucional, t. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp.165-170. 54  Cf. JOSSERAND, Louis. De L’esprit des droits et de leur rélativité. Paris: Dalloz, 1927.

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a boa-fé e a função social. De fato, se a autonomia privada continua sendo um princípio basilar do direito civil, seu controle negativo (repressivo) apenas se justifica com a demonstração de que certo ato de autonomia causou uma afronta ao ordenamento.55 Essa afronta pode ser detectada por uma análise estrutural (e o ato ilícito tem sido, tradicionalmente, a figura responsável por conferir tratamento unitário a tais hipóteses) ou por uma análise funcional (respondendo o abuso pelo tratamento uniforme dos casos de violação aos valores e princípios que orientam e legitimam o exercício das situações subjetivas). Afirmar, assim, que a figura do abuso perdeu relevância diante da possibilidade de aplicação direta dos princípios seria tão impreciso quanto afirmar que a qualificação de certo ato como ilícito seria desnecessária diante de uma proibição normativa expressa. De todo modo, certo é que os juízos de licitude e não abusividade passaram a constituir, em conjunto, o conteúdo da noção de legalidade (entendida como o limite imposto pelo direito para o exercício de prerrogativas particulares). Estas duas instâncias valorativas construíram um sistema de controle predominantemente negativo, compatível com a lógica tradicional que sempre visualizou no direito uma função repressiva e prescritiva de condutas. A evolução do pensamento jurídico exigiria, porém, uma nova mudança nesse sistema, para acomodar o que se passou a denominar função promocional do direito.56 De fato, com a afirmação dos direitos sociais e a superação do Estado liberal clássico, passou-se a compreender que o direito também poderia funcionar como um veículo de promoção de valores socialmente relevantes, incentivando e, muitas vezes, postando-se à frente de importantes mudanças sociais em direção aos valores do ordenamento. Nesse contexto, não basta mais que certo ato se apresente conforme ao Direito, sendo igualmente necessário que se revele merecedor de tutela – o que equivale a dizer que as situações jurídicas subjetivas não se encontram mais limitadas apenas por critérios negativos (repressivos) de controle, mas são valoradas positivamente pelos princípios do ordenamento (em uma perspectiva promocional). Não à toa, afirma-se contemporaneamente que o conceito atual de legalidade no direito privado corresponde à noção de merecimento de tutela. Sustenta Pietro Perlingieri: “Per l’atto di autonomia negoziale, il controlo di legalità assume quindi i contorni di un diversifi-

55  Contemporaneamente, poder-se-ia dizer, simplesmente, uma afronta à legalidade constitucional. 56  A expressão foi consagrada por Norberto BOBBIO: “Nas constituições pós-liberais, ao lado da função de tutela ou garantia, aparece, cada vez com maior frequência, a função de promover” (A função promocional do direito. Da estrutura à função. São Paulo: Manole, 2007, p. 13).

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cato controlo di meritevolezza che abbia conto particolarmente della sua precipua funzione e del suo oggetto”.57 Que sentido se poderia atribuir a este significado contemporâneo de legalidade? O próprio autor sinaliza, no trecho citado, que a noção de legalidade passa a levar em conta também o aspecto funcional, para além da perspectiva simplesmente estrutural que era associada à noção de “conformidade à lei”. O desenvolvimento da teoria do abuso do direito, porém, já havia realizado esta evolução, ao demonstrar que é vedado pelo ordenamento o exercício disfuncional de situações jurídicas subjetivas, ainda que tal exercício se apresente em conformidade com uma estrutura legalmente válida. A atual definição da legalidade como merecimento de tutela, portanto, sugere uma nova evolução conceitual, que vá além da vedação ao ilícito e ao abuso. Essa evolução parece ser justamente aquela que acrescentou à função repressiva do direito uma função promocional. Em outras palavras, afirmar que a legalidade corresponde, hoje, ao merecimento de tutela indica que não se preveem apenas limites à autonomia privada na forma de vedações, mas também preferências conferidas aos atos de autonomia que promovam especialmente valores juridicamente relevantes – eis aí o mérito, maior que a simples conformidade (estrutural e funcional) ao direito, que pode apresentar o ato negocial.58 Tal mudança de perspectiva foi sentida inclusive no sentido atribuído à legalidade pelo direito público. De fato, o reconhecimento da relevância de uma análise funcional do direito e da migração dos princípios constitucionais para o centro axiológico do sistema repercutiu no entendimento de que à Administração Pública cumpre realizar os atos permitidos ou determinados (não mais pela lei, mas) pela legalidade constitucional. O comando ou a autorização legal não bastam para balizar a atuação do administrador; há que se atentar para a totalidade do ordenamento. A essa mudança de sentido tem-se designado pelo termo juridicidade, para identificar o estágio atual do princípio da legalidade no âmbito do direito público.59 57  PERLINGIERI, Pietro. Il diritto di legalità nel diritto civile. Rassegna di diritto civile. Anno 31, n. 1. Milano: ESI, 2010, p. 187. 58  Com efeito, a própria semântica da expressão “merecimento de tutela” permite inferir que não se trata do simples não descumprimento da lei; um ato merecedor de tutela deve trazer um significado adicional, um mérito a mais, promovendo ativamente valores em vez de apenas não violá-los. Segundo o Dicionário Houaiss, “merecimento” significa, dentre outros sentidos, “aquilo que empresta valor a algo; aquilo que há de bom, vantajoso, admirável ou recomendável” em algo. Entre o antigo conceito de legalidade e o atual merecimento de tutela há, assim, uma distância semelhante àquela entre o correto e o recomendável. 59  A respeito da juridicidade, afirma Luís Roberto BARROSO: “O administrador pode e deve atuar tendo por fundamento a Constituição e independentemente, em muitos casos,

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A mudança comum de perspectiva, por outro lado, não impede evidentemente que entre a juridicidade no direito público e o merecimento de tutela no direito privado existam relevantes diferenças. De uma parte, porque o administrador tem, muitas vezes, sua atuação vinculada, o que torna mais graves eventuais indefinições quanto à compatibilidade ou não de certa lei com a principiologia constitucional, em comparação à insegurança que essa indefinição surte no âmbito da (por natureza discricionária) atividade privada.60 De outra parte – e esta é a distinção mais marcante –, porque na atuação do Estado já se encontra pressuposta a persecução de valores juridicamente protegidos e socialmente relevantes (basta observar, por exemplo, que a doutrina há muito denomina interesse público primário o interesse social promovido pela atuação estatal, reservando ao interesse financeiro do erário público a denominação interesse público secundário).61 Em outras palavras, é de se esperar que a atuação legítima do administrador se dê sempre em função de valores sociais relevantes (e, por isso, tutelados pelo direito), ainda que se possa debater, na comparação entre dois atos estatais, qual deles promove melhor tais interesses. No âmbito do direito privado o conceito de merecimento de tutela é pintado de cores muito mais vivas, pois os particulares são movidos à atividade negocial, evidentemente, por interesses individuais próprios, e apenas mediatamente seus atos buscarão promover interesses sociais. Não existe em tal constatação antagonismo, mas apenas diversidade de funções. A expectativa de que a autonomia privada fosse exercida pelo particular na persecução de interesses alheios seria ao menos ingênua,62 de qualquer manifestação do legislador ordinário. O princípio da legalidade transmuda-se, assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, em princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem” (Curso, cit., pp. 375-376). 60  Justamente porque em muitos casos o administrador deve agir sob pena de responsabilidade (inclusive criminal), não lhe assistindo esperar até que, suscitado o controle concentrado de constitucionalidade de certa lei, reste solucionada a dúvida quanto à sua adequação ao sistema, parte da doutrina tem sustentado que os chefes do Executivo podem negar aplicação (com auto-executoriedade) à lei que entendam inconstitucional, mesmo após a Constituição de 1988 (que, ao conferir legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade aos chefes do Executivo federal e estadual, teria, segundo outra corrente, extinto essa prerrogativa). “O descumprimento da lei reputada inconstitucional era – e é – uma decorrência, ou antes, uma exigência do princípio da supremacia da Constituição” (BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 275). 61  Trata-se da clássica distinção formulada por Renato ALESSI. A respeito, do autor, v. Principi di diritto amministrativo. Milano: Giuffrè, 1974, p. 295. 62  Exemplificativamente, embora o particular não possa violar os interesses socialmente relevantes tocados por uma relação contratual, parte da doutrina tem entendido que não

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embora seja certo que ele não possa violar tais interesses e que, se vier a promovê-los ao lado de seus próprios interesses, seu ato terá um mérito especial – será, em sentido estrito, merecedor de tutela. Os interesses privados são protegidos pela ordem jurídica na medida em que não se contraponham aos valores que o ordenamento associa a eles (tem-se aí um controle de abusividade, e não por acaso se afirma usualmente que a função social e outros princípios de matriz solidarista conformam “internamente” as situações jurídicas patrimoniais); mas um ato particular que consiga promover tanto interesses individuais quanto outros interesses juridicamente relevantes receberá ipso facto tutela prioritária em face de outros atos que apenas promovam os interesses das partes. Eis por que a expressão merecimento de tutela se adapta com particular exatidão ao direito privado, no qual os interesses primariamente perseguidos não são necessariamente públicos.

5. A aferição do merecimento de tutela em sentido estrito Como proceder à realização do juízo valorativo denominado merecimento de tutela? Conforme se buscou evidenciar acima, este tipo de valoração dos atos de autonomia privada não pode, por sua própria natureza, restringir-se à lógica negativa que pauta os juízos de licitude e não abusividade. A uma, porque estas duas últimas formas de valoração encontram seu fundamento na função repressiva do direito, ao passo que o merecimento de tutela surgiu no bojo do reconhecimento de uma outra função, de cunho promocional. A duas, porque, embora seja certo que o particular não possa violar, em sua atividade negocial, interesses juridicamente relevantes (e, se o fizer, não há dúvidas de que deve ser reprimido na medida de sua contrariedade – estrutural ou funcional – ao direito), de outra parte não se pode afirmar que ele deva necessariamente promover tais interesses. E, se não há dever ou proibição propriamente ditos (no plano estrutural ou funcional) a se respeitar, não se pode falar, de modo técnico, em sanção negativa ou repressão de condutas. Com efeito, a função promocional do direito lança mão das chamadas sanções positivas, consubstanciadas em incentivos ou privilégios prohá um dever positivo de promover tais interesses (ou, de modo mais simplificado, que as partes não são movidas a contratar por força de interesses sociais, mas sim por interesses próprios, que não podem ser contrários aos primeiros). “Quando muito, é o Estado que estaria obrigado a prever em seus contratos administrativos esses deveres promocionais, o que reduziria significativamente a pretendida eficácia do princípio da função social” (RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 305-306).

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porcionados pela ordem jurídica, em lugar das sanções negativas, de cunho repressor.63 Assim também o merecimento de tutela se revela uma instância positiva de controle dos atos particulares, que não visa diretamente à repressão de violações ao direito (papel já desempenhado pelos juízos de licitude e não abusividade), mas sim a conferir uma proteção privilegiada a determinado ato pelos valores que promove – ainda que a consequência indireta dessa proteção acabe por resultar na repressão a outro exercício particular conflitante com ele. De fato, pode acontecer que dois atos particulares sejam indubitavelmente lícitos e não abusivos, mas, ainda assim, encontrem-se, no caso concreto, em rota de colisão, de tal modo que o exercício de um não se compatibilize com o de outro. É justamente neste ponto, quando já se verificou que não há ilicitude nem abuso de nenhuma das partes, e ainda assim um novo juízo valorativo precisa incidir sobre tais atos (de modo a decidir qual deles irá prevalecer), que se revela especialmente útil o juízo de merecimento de tutela. Trata-se de verdadeiros hard cases, nos quais a decisão buscará proteger primordialmente o ato que se reputar mais promovedor dos valores do ordenamento, e apenas por via transversa negará tutela jurídica ao outro ato, apenas na medida em que for inevitável que ambos convivam. Vale ressaltar que tais casos não se reputam “difíceis” porque suas soluções adviriam de princípios e não de regras (como na terminologia aludida pela doutrina sobre ponderação de princípios). Tais hipóteses são difíceis porque, enquanto na maior parte dos casos o recurso à axiologia do ordenamento permite alcançar uma resposta definitiva para a controvérsia (a partir da identificação de uma posição particular ilícita ou abusiva a ser reprimida), aqui não há contrariedade a reprimir e, portanto, o regular exame dos limites à autonomia privada não oferece uma solução. A função do Direito predominante para dirimir esses casos, por isso, deixa de ser a repressiva e passa a ser outra, ainda pouco usual: a função promocional. Como essa função do Direito visa mais a estimular condutas do que desestimulá-las, tem-se nela um âmbito muito maior de discricionariedade para o julgador – eis aí a dificuldade que caracteriza tais casos. Note-se que a solução conferida ao ato que não se considera merecedor de tutela não dista daquela direcionada ao exercício abusivo das situações jurídicas: a partir de uma análise funcional, identifica-se em que medida o ato precisa ser reprimido. A diferença está essencialmente no fundamento pelo qual se nega tutela ao ato. Em caso de abuso, verifica-se uma desconformidade à função que caracteriza e legitima a própria situação jurídica, aos valores e interesses que o sistema associa a ela. Trata-se de um juízo que prescinde da existência de uma pretensão antagônica: o ato é abu63  Cf. BOBBIO, Norberto. A função promocional do direito, cit., p. 19.

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sivo porque exercido de modo contrário aos valores associados àquela situação subjetiva.64 As consequências são várias: a antijuridicidade do ato permite advogar por sua nulidade;65 o dano eventualmente causado ensejará responsabilidade civil como se decorresse de ato ilícito; os interessados podem pedir o desfazimento do ato ou o suprimento judicial de declaração de vontade abusivamente negada pelo titular do direito. A conduta será, em resumo, reprimida e seus efeitos negados na medida necessária para que o exercício volte a ser compatível com a função da situação jurídica subjetiva. Por sua vez, um ato que não se considere merecedor de tutela o será sempre em termos relativos (ou seja, não será merecedor de tutela em relação a outro exercício particular que lhe seja contraposto). No plano funcional, esse ato é plenamente conforme aos valores associados à sua tutela jurídica (i.e., à sua função); sua repressão decorre tão somente de uma incompatibilidade com outro ato, também obediente à respectiva função, mas que, à luz da totalidade do sistema, merecerá tutela preferencial. A medida da repressão do primeiro ato, assim, não será a sua própria função, mas a medida necessária para a tutela do outro, dito merecedor de tutela em sentido estrito. Não se pode afirmar, assim, que o primeiro ato seja antijurídico (ao menos, não no mesmo sentido em que se fala do ilícito e do abuso); não existisse uma posição particular contraposta que promovesse melhor os valores do sistema, esse ato teria sua eficácia reconhecida. Em suma, todo ato lícito e não abusivo será, em sentido amplo, merecedor de tutela: o merecimento é, em regra, uma consequência da licitude e não abusividade do exercício; excepcionalmente, porém, exigir-se-á do intérprete um terceiro e último juízo valorativo para determinar se o ato terá seus efeitos protegidos. Em geral, as hipóteses desse juízo de merecimento de tutela em sentido estrito envolverão direitos absolutos (tais como os direitos reais e os chamados direitos da personalidade), que, por serem oponíveis erga omnes, sempre se contrapuseram a outros interesses juridicamente tutelados, ocasionando a necessidade de juízos valorativos capazes de solucionar a colisão entre eles. A questão se põe com menor frequência no âmbito dos di64  Pense-se, por exemplo, no exercício do direito à resolução pelo credor que ainda tem interesse útil na execução do contrato, no exercício do poder familiar por um dos pais apenas com intuito emulativo em relação ao outro genitor, ou no exercício do proprietário que não cumpre a função social de seu bem. Nestes casos, a desconformidade do exercício se relaciona à própria função da situação jurídica abusada (respectivamente, a causa negocial que objetivamente determina o interesse contratual; o melhor interesse da criança, que deve sempre guiar o exercício do poder familiar; e a função social da propriedade, que conforma internamente o domínio e contra a qual este jamais pode ser exercido), 65  Trata-se da chamada nulidade virtual ou não cominada – aquela que, embora não prevista pelo legislador, resulta da vedação do ato pelo ordenamento.

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reitos relativos justamente porque a contraposição, na prática, a interesses diversos dos perseguidos pelas partes é pouco usual66 e, quando ocorre, em geral já conta com norma específica, o que permite resolver a questão com o recurso aos juízos negativos de controle (licitude e não abusividade).67 Pense-se no clássico embate entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, caracterizado inclusive pela própria doutrina constitucionalista como um caso difícil.68 Entre o jornalista, por exemplo, que pretende noticiar fatos relativos à vida íntima de certa celebridade e a pretensão desta a impedi-lo de divulgar tais informações pode não existir qualquer traço de ilicitude ou abusividade: basta imaginar que se trate, ilustrativamente, de dados sensíveis69 da pessoa (a justificar seu pedido de não divulgação), porém de inegável interesse público (como no caso do político que, tendo arregimentado eleitores por defender certos valores religiosos, mantém secretamente hábitos privados frontalmente contrários a tais valores).70 Ainda no âmbito da mesma discussão, ganhou repercussão o tema, levado ao Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucionalidade, da publicação de biografias não autorizadas.71 Os melhores argumentos contrários à publicação se relacionam com a tutela da privacidade do biografado, sobretudo no que tange à divulgação de dados sensíveis ou informações íntimas, que se prestariam apenas à satisfação da curiosidade 66  Decorrência do princípio res inter alios acta, hoje mitigado por novos princípios como a boa-fé objetiva, mas ainda bastante característico desta espécie de relação. 67  Exemplo característico é a difícil identificação de efeitos da função social do contrato que já não se encontrem previstos em outras normas, o que tem levado parte da doutrina a sustentar que o princípio coincide, no momento atual, com a função negocial (v., por todos, BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa, cit., p. 316). O esforço jurisprudencial e doutrinário tende a especificar, com o tempo, novas decorrências do princípio, identificando interesses em colisão que talvez demandem uma aplicação mais frequente do juízo de merecimento de tutela também nas relações contratuais. O tema foi previamente desenvolvido em SOUZA, Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato: subsídios para um estudo comparativo. Revista de Direito Privado, vol. 54, abr-jun/2013, pp. 83-84. 68  Cf., por exemplo, BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Temas de direito constitucional, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, passim. 69  Designam-se dados sensíveis os dados pessoais, em geral relacionados à saúde ou à opinião, que, se divulgados, poderiam gerar discriminação (RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 79). 70  O caso aconteceu com o senador americano Roy Ashburn (que, tendo-se destacado como forte opositor dos homossexuais junto aos seus eleitores, foi detido ao sair dirigindo embriagado de um bar GLS) e é comentado por SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2012, p. 154. 71  Trata-se da ADIn. 4.815, proposta em 2012 pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), pretendendo a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto dos arts. 20-21 do Código Civil.

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popular, e não a interesse público objetivamente aferível.72 De outra parte, os melhores argumentos em favor da dispensa de autorização aludem à historicidade social que pode estar contida na vida do biografado, a justificar o interesse coletivo na publicação, já que aspectos dos mais íntimos da vida particular poderiam refletir-se na própria história do país ou influenciar seus rumos políticos, culturais etc.73 A perspectiva de que casos semelhantes são solucionáveis apenas em sede de um juízo valorativo positivo e promocional parte ainda de uma premissa: se para a generalidade dos casos já não cabem soluções abstratas (pois o ordenamento apenas se concretiza à luz do caso concreto), nesta espécie de casos seria impossível até mesmo prever alguma solução. Não cabe, assim, aludir a uma suposta prevalência prima facie da liberdade de expressão, ou a uma tutela menos rígida da privacidade de pessoas notórias, assim como não há critérios que definam a priori quais informações devem ser protegidas em todos os casos e quais podem ser eventualmente publicadas.74 Se este é, como parece, um caso que exige uma avaliação meritória, apenas à luz das circunstâncias do caso concreto é possível ponderar qual das pretensões promove melhor os valores do ordenamento e merece tutela jurídica privilegiada.75 72  Segundo Maria Celina BODIN DE MORAES, os argumentos favoráveis à publicação associam a exigência de autorização prévia ao já superado ambiente ditatorial brasileiro de décadas atrás. Entende a autora que a publicação das biografias não autorizadas busca “garantir um pretenso ‘direito fundamental da sociedade’ a conhecer as fofocas e os detalhes picantes”, “sendo isso, como se sabe, o que influencia diretamente a quantidade de exemplares vendidos” (Biografias não autorizadas: conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade das pessoas humanas? Civilistica.com. Ano 2, n. 2. Editorial). 73  Considera Gustavo TEPEDINO: “As biografias revelam relatos históricos descritos a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos principais protagonistas da cadeia de eventos cronológicos que integram a história” (Opinião doutrinária. Disponível em: . Acesso em 24.10.2013). Rebeca GARCIA lembra que esse papel histórico normalmente estimula o interesse na publicação da obra, tanto pelo autor quanto pelo público (Liberdade de expressão e privacidade na história da vida privada. Revista de direito privado, vol. 52. São Paulo: RT, out-dez/2012, p. 41). 74  Em sentido contrário, sustenta-se que “as pessoas que ocupam cargos públicos têm o seu direito de privacidade tutelado em intensidade mais branda. [...] O mesmo vale para as pessoas notórias, como artistas, atletas, modelos e pessoas do mundo do entretenimento”. Considera-se, ainda, que “o interesse público na divulgação de qualquer fato verdadeiro se presume, como regra geral”, e que “as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício de outras liberdades, o que justifica uma posição de preferência – preferred position – em relação aos direitos fundamentais individualmente considerados” (BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão, cit., pp. 105-116). 75  Rebeca GARCIA destaca “o fundamental papel da ponderação e a necessidade de superação de armadilhas conceituais, como a de supor mais importante, abstratamente, o valor da liberdade de expressão”, ressaltando a necessidade de “critérios interpretativos que

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Exemplo ainda mais característico consiste nos casos de conflito possessório entre proprietário e possuidor direto de determinado bem. Como se sabe, a simples não promoção da função social da propriedade não acarreta automaticamente a perda do domínio.76 No conflito, porém, entre possuidor direto e titular da propriedade, admite-se contemporaneamente a tutela da posse inclusive contra o título dominial, sobretudo em consideração ao cumprimento da função social do bem.77 A questão apenas pode ser resolvida com atenção ao momento dinâmico da relação de direito real, vale dizer, valorando-se os exercícios em concreto do proprietário e do possuidor quanto ao seu potencial de promoção da função social.78 O exemplo da função social revela-se especialmente adequado porque a grande maioria dos casos em que a doutrina menciona o merecimento de tutela consiste em hipóteses de aplicação desse princípio.79 De fato, a função social tem contribuído bastante para propagação da análise funcional do Direito; além disso, a confusão entre os termos “função social” e “funcionalização” não é rara.80 Todos esses fatores têm acarretado que a mais usual aplicação do juízo meritório nas relações patrimoniais corresponda à aferição do cumprimento da função social. Em matéria de relações existenciais, por outro lado, nas quais é de se questionar a verificação de uma funguiem, além do magistrado, os demais agentes envolvidos nesse tipo de situação (editoras, autores etc.)” (Liberdade, cit., p. 67). 76  Não obstante a Constituição Federal preveja o não cumprimento da função social como fundamento legítimo para a desapropriação do bem (arts. 182, § 4º e 184). 77  A respeito, v., por todos, TEPEDINO, Gustavo. In AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao Código Civil, vol. 14. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 58. 78  Na verdade, se a posse corresponde à exteriorização do domínio por meio do exercício de uma ou algumas de suas faculdades, muito embora tenha prevalecido a expressão “função social da propriedade”, parece mais adequado entender a questão como um simples conflito entre as funções sociais de duas posses. Isso porque uma tal valoração deve necessariamente levar em conta o exercício concretamente realizado pelas partes e, no caso sui generis do direito de propriedade, esse exercício recebeu historicamente designação e disciplina específicas (a posse). Tal perspectiva permitiria também superar a clássica controvérsia sobre a natureza da posse (fato ou direito): trata-se do exercício de um direito, analisado autonomamente porque apenas sobre ele se pode realizar uma análise funcional do domínio. 79  Embora não se restrinja a noção de merecimento de tutela a este único princípio, tal parece ser a aplicação mais frequente. Afirma-se, por exemplo, que a função social “impõe aos contratantes a obrigação de perseguir, ao lado de seus interesses privados, interesses extracontratuais socialmente relevantes, [...] sob pena de não merecimento de tutela do exercício da liberdade de contratar” (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. Temas de direito civil, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 153). 80  Sobre a confusão entre os termos função, funcionalização e função social, seja consentido remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato, cit., pp. 67-73.

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ção social,81 parece melhor fornecer outros parâmetros de merecimento de tutela, para que não se inviabilize sua aplicação.82 Evidentemente, pode acontecer que um dos interessados (seja o proprietário, seja o possuidor direto) descumpra, por exemplo, no uso de sua propriedade, regras atinentes aos direitos de vizinhança, caso em que será simples a identificação da ilicitude do exercício. Outro proprietário, que mantivesse o bem sem qualquer utilização produtiva, por outro lado, poderia ter sua posse caracterizada como abusiva, uma vez que disfuncional.83 Se, porém, tanto o proprietário quanto o possuidor apresentarem usos plenamente lícitos e funcionais do bem, apenas um juízo meritório poderia permitir identificar qual deles deve ser premiado com uma tutela privilegiada em face do outro. Do mesmo modo, nos casos de colisão entre privacidade e liberdade de expressão, a dificuldade não está nos casos em que as pretensões do biógrafo ou do biografado se revelassem ilícitas ou abusivas, mas sim nas hipóteses em que as instâncias de controle negativo não permitam indicar a qual pretensão será negada a tutela jurídica.84 Vale citar um terceiro exemplo, desta vez em matéria de responsabilidade civil. Como se sabe, a concepção contemporânea da responsabilidade aquiliana foi fortemente modificada por aquilo que Orlando Gomes denominou um “giro conceitual”:85 a substituição do ato ilícito pelo dano injusto como fonte de responsabilidade. A noção de dano injusto, desenvolvida pela doutrina italiana à luz do art. 2.043 do Codice,86 após se despren81  A suposta função social de situações existenciais é negada, dentre outros, por Maria Celina BODIN DE MORAES (Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 148). 82  Por força da marcante coincidência prática entre o merecimento de tutela e o cumprimento da função social (e enquanto ela perdurar), já se sustentou, em outra sede, que o controle de abusividade (mais restrito que o juízo meritório, pois não busca promover valores positivamente) seria, em certo aspecto, mais abrangente que o merecimento de tutela, pois considera outros aspectos funcionais além da própria função social (SOUZA, Eduardo Nunes de. Abuso do direito: novas perspectivas, cit., p. 84). 83  Ainda assim, autorizada doutrina não nega o entendimento de que o não uso seria uma forma legítima de exercício do domínio. Este é, assim, mais um aspecto a ser valorado à luz do caso concreto. Para Gustavo TEPEDINO, “a inação apenas merecerá tutela do ordenamento se e enquanto atender à função econômica e social da propriedade” (Comentários ao Código Civil, cit., p. 472). 84  Assim, por exemplo, caso o pedido de indenização caracterizasse litigância de má-fé (art. 17 do CPC), não seria preciso cogitar do juízo meritório sobre o pedido de indenização. 85  Cf. GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco (Org.). Estudos em homenagem ao professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 293 e ss. 86  Verbis: “Art. 2.043. Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno”.

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der, em um primeiro momento, da violação a uma norma ou direito subjetivo, passou a significar a lesão a qualquer interesse juridicamente tutelado. A fórmula, considerada verdadeira cláusula geral,87 já foi interpretada das mais diversas formas.88 Em uma perspectiva contemporânea, a noção de dano injusto tem sido considerada uma oportunidade oferecida ao intérprete para, ponderando os interesses em jogo, identificar qual deles será considerado merecedor de tutela no caso concreto.89 Assim, pode acontecer que de determinada conduta, lícita e não abusiva, decorra dano. Nesses casos, se a responsabilidade estiver prevista em lei, a ponderação terá sido feita previamente pelo legislador; caso contrário, caberá ao julgador decidir se a pretensão da vítima ao ressarcimento merece tutela, a caracterizar, por via transversa, a injustiça do dano, ou se, em vez disso, deverá prevalecer o interesse do agente que deu causa ao evento danoso, caso em que o dano será considerado irressarcível.90 Assim como se esclareceu nos exemplos sobre o direito à privacidade e o direito de propriedade, semelhante ponderação apenas será necessária nos casos em que ambas as pretensões em conflito não se mostrarem ilícitas ou abusivas.91 87  A natureza de cláusula geral evidencia como o dano injusto é um bom exemplo de hipótese solucionável apenas por um juízo meritório – bastante semelhante ao da ponderação de princípios no que tange ao sopesamento de interesses (a serem equilibrados, mas não suprimidos). Leciona Guido ALPA que a expressão ingiustizia apresenta as funções e problemas de uma cláusula geral: “è tendenzialmente indefinibile, ha connotati storicamente relativi, costituisce una valora che tempera la rigidità dell’ordinamento, consente all’interprete elasticità di apprezzamento, e così via” (I principi generali. In IUDICA, Giovanni; ZATTI, Paolo (a cura di). Trattato di diritto privato. Milano: Giuffrè, 2006, p. 486). 88  De se destacar a concepção de Stefano RODOTÀ, que caracteriza o dano injusto a partir de uma lesão à solidariedade social (Il problema della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1967, p. 89). 89  Explica Pietro TRIMARCHI que a atipicidade do sistema italiano de responsabilidade civil exige do intérprete que especifique o conceito de injustiça do dano: “La soluzione di questo problema dipende principalmente dalla valutazione comparativa di due interessi contrapposti: l’interesse minacciato da un certo tipo di condotta e l’interesse che l’agente con quella condotta realizza o tende a realizzare” (Istituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 2011, p. 110). Na doutrina pátria, v. Maria Celina BODIN DE MORAES: “O dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima permaneça irressarcida” (Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 179). 90  Entende Pietro TRIMARCHI que esta valoração tem grande peso em sede legislativa, na definição de particulares figuras de ato ilícito, mas também grande importância “per l’interprete, quando deve integrare la disciplina legislativa dove questa è incompleta o generica” (o.l.u.c.). No mesmo sentido, PINO, Giorgio. Diritti fondamentali e ragionamento giuridico, cit., p. 99. 91  Interessante caso de identificação de dano injusto é o do dano moral por rompimento de noivado. A respeito, Maria Celina BODIN DE MORAES afirma que, sopesadas a liberdade de

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Para fins de aferição do merecimento de tutela de determinado ato, as ideias de proporcionalidade, razoabilidade e adequação costumam ser invocadas como parâmetros da maior relevância,92 assim como também já afirma a doutrina constitucionalista em matéria de ponderação de princípios.93 Sinteticamente, uma noção de legalidade atenta aos valores juridicamente relevantes em jogo exige do intérprete uma harmonização razoável e proporcional de eventuais interesses em colisão.94 A notável abertura de tais parâmetros, nesse contexto, permite concluir que a fundamentação das decisões assume um papel fundamental na realização desta espécie de juízo meritório. De fato, a necessidade de fundamentação já se faz sentir, como ressaltado anteriormente, em todos os setores do direito, como decorrência da superação da subsunção e como pressuposto para o imprescindível reconhecimento das escolhas políticas do juiz e seu adequado balizamento pela legalidade constitucional.95 Em última análise, no sentido aqui proposto, o juízo de merecimento de tutela se presta aos casos em que é preciso escolher entre duas pretensões lícitas e não abusivas, porém antagônicas. Neste caso, a solução a ser casar e a integridade psíquica da pessoa abandonada, a depender das circunstâncias concretas (por exemplo, caso o nubente desista do casamento no altar, durante a cerimônia), pode haver espaço para a reparação (Dano moral: conceito, função, valoração. Revista Forense, vol. 413. Rio de Janeiro: Forense, jan-jun/2011, p. 373). 92  Cite-se, novamente, Pietro PERLINGIERI, a respeito do merecimento de tutela do conteúdo negocial: “la verifica di conformità a Costituzione e quindi il respetto del principio di legalità costituzionale si realizzano con il controllo di meritevolezza (art. 1322 c.c.), inspirato a ragionevolezza, proporcionalità e adeguatezza [...]” (Il principio di legalità nel diritto civile, cit., p. 184). 93  Afirma Luís Roberto BARROSO que a ponderação “socorre-se do princípio da razoabilidade-proporcionalidade” para promover a máxima concordância entre direitos em conflito (Curso, cit., p. 338). 94  Esta legalidade decorrente de ponderação modifica os contornos da autonomia privada tanto no exercício dos direitos quanto nos setores em que a lei limita a criação de direitos. Enrico CATERINI ressalta que, em matéria de direitos reais, a legalidade “é o momento de síntese e de unidade do sistema jurídico-social onde as diferentes instâncias merecedoras de tutela encontram um ponto de equilíbrio”, a justificar que a autonomia privada também possa “ocupar legitimamente um posto na complexa regulamentação das relações reais” (Il principio di legalità nei raporti reali. Napoli: ESI, 1998, p. 218). 95  Conforme analisa Maria Celina BODIN DE MORAES, “Se antes as soluções repousavam na lei – na época em que o juiz era considerado simples mensageiro desta (na expressão clássica de Montesquieu, la bouche de la loi) –, o problema a ser enfrentado, no contexto atual, corresponde a determinar de que forma (isto é, em que nível de fundamentação), com base em que critérios e em que situações o Direito deverá ser dito pelo magistrado (o direito segundo a boca-do-juiz). O deslocamento foi radical e parece imprescindível sua rápida identificação, para que se comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar possibilidades” (Do juiz boca-da-lei à lei boca-de-juiz, cit., pp. 29-30).

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extraída da aplicação unitária do ordenamento fará prevalecer a pretensão mais consentânea com a axiologia do sistema, por promover de modo mais adequado ou mais intenso valores juridicamente relevantes. A outra pretensão não receberá a tutela preferencial do ordenamento,96 devendo ceder espaço à pretensão que se considera merecedora de tutela (na exata medida da harmonização entre as duas, podendo – e devendo – merecer proteção no espaço em que não colidir com a outra). Por todos esses motivos, semelhante juízo, de delicada aplicação, depende fundamentalmente dos elementos do caso concreto. Como se pode perceber, o raciocínio aplicado em todos os exemplos acima se aproxima daquele atinente à técnica da ponderação em alguns aspectos: o controle deve ser feito em concreto, como propõem muitos autores em matéria de ponderação,97 e a solução final alcançada após o juízo de merecimento de tutela também trabalha com uma gradação na proteção conferida a cada uma das pretensões em conflito, e não com a supressão completa de qualquer uma delas.98 Neste ponto, porém, vale ressaltar: a proximidade com a técnica da ponderação se estende unicamente à noção de harmonização de princípios, sem resgatar o já aludido aspecto subsuntivo existente ao final do balanceamento de princípios. Não se deve compreender, assim, que o processo de interpretação ou aplicação foi cindido em momentos estanques; ao contrário, à luz do caso concreto as três instâncias de controle valorativo se analisam simultaneamente e se influenciam reciprocamente, em um proces96  Tal noção não é nova, tendo sido aludida pela doutrina sob variadas formulações. Louis JOSSERAND, por exemplo, previa que uma das possíveis consequências do abuso do direito, para além da cessação do exercício abusivo, era a negativa de tutela ao direito exercido disfuncionalmente que fosse depois desrespeitado por terceiros. No exemplo do autor, hoje extemporâneo, um produtor de teatro que anunciasse com cartazes um espetáculo “licencioso e desonesto” não poderia pedir perdas e danos contra quem viesse a dilacerar os referidos cartazes (De l’esprit des droits, cit., p. 415). 97  Conforme observa Giorgio PINO, os defensores do bilanciamento caso per caso não sustentam que dois casos concretos com os mesmos elementos relevantes possam ou devam ser decididos de formas diversas (daí a impossibilidade de solução abstrata), mas sim que nunca haverá, de fato, dois casos concretos idênticos (Diritti fondamentali e ragionamento giuridico, cit., pp. 120-121). 98  Veja-se, a respeito, a síntese de Pietro PERLINGIERI a respeito do merecimento de tutela dos contratos: “Il controllo di meritevolezza ha ad oggetto l’atto tenuto conto delle peculiarità del caso specifico, collocandolo nel contesto politico-economico: soggetti, materia-oggetto del contratto, tempi, modalità di conclusione concorrono alla precisazione del regolamento negoziale. Il controllo esige una valutazione inspirata al bilanciamento degli interessi e dei valori, sí che il contratto risulti ragionevole (senza che necessariamente vi sia una perfetta equivalenza di diritti e di obblighi o di prestazioni!)” ( Il principio di legalità nel diritto civile, cit., p. 189).

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so hermenêutico único. De fato, a identificação da ilicitude torna desnecessária a perquirição da possível abusividade; a identificação desta última dispensa um possível juízo positivo de merecimento. Os elementos, porém, que permitem a realização dessas três instâncias de controle são, na prática, percebidos a um só tempo pelo julgador.

6. Síntese conclusiva Em uma perspectiva promocional do direito, o princípio da legalidade passa a apresentar como conteúdo, em sua incidência entre particulares, não mais apenas limites negativos, mas também uma forma positiva de controle. Embora, sem dúvida, o dever que tem um particular de promover valores socialmente relevantes seja diferenciado daquele atribuído à Administração Pública, de tal forma que não se possa falar em uma suposta repressão de posições particulares lícitas e não abusivas por não perseguirem interesses extra-individuais, por outro lado o ordenamento pode deixar de tutelar, nas hipóteses em que se verifiquem duas pretensões particulares antagônicas, aquela que promover menos intensamente tais valores. Tais casos, de difícil resolução pelo intérprete, devem necessariamente ser apreciados à luz dos elementos do caso concreto, de tal modo que a pretensão que se considerar menos merecedora de tutela ceda espaço à outra, que promove melhor os valores do ordenamento. Trata-se de um procedimento bastante semelhante, nesse aspecto, à ponderação de princípios, muito difundida pela doutrina constitucionalista brasileira; esses casos não podem ser considerados difíceis, porém, apenas com base na necessidade de sua resolução mediante a ponderação de princípios (a compatibilização de valores potencialmente antagônicos que compõem o sistema é enfrentada pela metodologia civil-constitucional para a resolução de todo e qualquer caso, na medida em que o ordenamento deve ser aplicado sempre de modo unitário). Sua real dificuldade reside no fato de ambas as pretensões particulares estarem amparadas por valores do ordenamento, o que gera a necessidade de se resolverem tais questões tendo a função promocional (e não a função repressiva) do direito como principal parâmetro. Os juízos de licitude e não abusividade partem da premissa de proibir condutas desconformes ao Direito. Assim, o merecimento de tutela em sentido amplo é a natural consequência da conformidade (estrutural e funcional) de certo ato ao direito (afinal, se um ato não é contrário ao ordenamento, merecerá proteção jurídica). Por vezes, porém, atos particulares que não apresentam fundamento para sua supressão podem sujeitar-se a outra espécie de valoração, baseada em seu potencial de promover valores

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do ordenamento. Esse julgamento, o merecimento de tutela aqui proposto em sentido estrito, não classifica os atos como ilegítimos ou legítimos (ainda que, ao final, um dos atos venha a ser reprimido), mas procura identificar qual deles deve merecer tutela privilegiada em face do outro no caso concreto. A valoração, como se nota, é mais quantitativa do que qualitativa. Tal pode ser considerado o conteúdo estrito do juízo de merecimento de tutela, e corresponde ao mais recente estágio alcançado pela legalidade no direito civil – embora nada obste que a prática jurídica continue a empregar a expressão, em sentido amplo, para fazer referência a todas as formas de controle valorativo imposto à autonomia privada.

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