MERENCIO, F.T. (2015) A subcoleção Laming Emperaire do lítico Xetá: Caracterização do sistema tecnológico. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 20: 71-76

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A subcoleção Laming-Emperaire do lítico Xetá: Caracterização do sistema tecnológico Fabiana Terhaag Merencio*

MERENCIO, F.T. A subcoleção Laming Emperaire do lítico Xetá: Caracterização do sistema tecnológico. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 20: 71-76, 2015.

Resumo: Entre 1956 e 1961 o Setor de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) coletou informações sobre a cultura material dos índios Xetás, localizados na Serra dos Dourados, noroeste do estado do Paraná, resultando na coleção do lítico Xetá depositada atualmente no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-UFPR), com 160 artefatos lascados e polidos. Este artigo apresenta os resultados preliminares do sistema tecnológico identificado para os artefatos coletados por Annette Laming-Emperaire durante a expedição realizada em 1961. Os tipos identificados, como choppers e chopping-tools, também podem ser associados a outras tradições arqueológicas definidas para a região sul do Brasil.

Palavras-chave: Lítico Xetá – Sistema Tecnológico – Sequência Reducional.

Introdução

O

s Xetás foram localizados oficialmente em 1954 na região da Serra dos Dourados, no noroeste do Paraná. No momento do contato, os Xetás foram apontados como um grupo de caçadores-coletores com alta mobilidade e ocupavam uma área que é comumente associada aos Guaranis, entre os rios do Veado, da Anta, Indovaí, Tiradentes e os córregos 215 e Maravilha, na margem esquerda do rio Ivaí (Silva, 1998:120). Estima-se que a população Xetá era de aproximadamente de 100 a 300 indivíduos,

distribuídos em pequenos núcleos familiares (Fernandes, 1959; Laming-Emperaire et al., 1978; Silva, 1998). Em estudos recentes, o Xetá foi associado ao sub-ramo I da família Tupi-Guarani, intimamente ligado ao Mbyá (Vasconcelos, 2008). Foram realizadas diversas expedições de pesquisa e estudo entre os anos de 1956 e 1961 pela equipe do professor José Loureiro Fernandes da Secção de Antropologia da Universidade Federal do Paraná, com o intuito de recolher informações da cultura material, ritos, informações linguísticas e registro de imagens e vídeos dos Xetás. A coleção do lítico Xetá do MAE-UFPR

(*) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná (PPGAS-UFPR), bolsista CAPES, pesquisadora associada do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/UFPR). < [email protected]>

O material coletado nestas expedições resultou na coleção do lítico Xetá, que atualmente está depositada na Reserva Técnica do

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MAE-UFPR, sendo composta por 160 peças. A partir das informações do contexto de coleta, é possível subdividir a coleção em dois subgrupos: os artefatos coletados por Annete Laming-Emperaire e os coletados por José Loureiro Fernandes. A falta de informações referentes às coletas de José Loureiro, assim como a inexistência de um catálogo das peças, dificulta a correlação direta desse material à presença Xetá, sendo necessário dados sobre o contexto das coletas. Por outro lado, a subcoleção de Laming-Emperaire apresenta informações de contexto divulgadas em uma publicação, onde também consta uma pequena sistematização do catálogo do material coletado (Laming-Emperaire et al., 1978). Através desses dados é possível indicar como local de proveniência para o material coletado na expedição de 1960, e que constitui a subcoleção Laming-Emperaire, o acampamento número 18, próximo à Fazenda Santa Rosa (Figura 1). A análise do lítico Xetá realizada por Laming-Emperaire seguiu uma classificação

tipológica, constituída em quatro séries: seixos sem marcas de uso; seixos com marcas de uso; pedra lascada (lascas, objetos de bloco, núcleos, resíduos de lascamento, fragmentos e seixos lascados) e pedra polida (Laming-Emperaire et al., 1978:44-54). A principal crítica a esta metodologia centra-se na impossibilidade de se compreender a natureza da variabilidade das indústrias líticas somente a partir das características morfológicas, sem considerar a dinâmica do processo de produção lítica, como a aquisição de matéria-prima, produção, uso e função, reciclagem e descarte (Fogaça, 2003). Os estudos de tecnologia lítica, denominados sequência reducional (Shott, 2003), foram impulsionados a partir de conceitos vinculados à antropologia social, filosofia da ciência e pré-história, visando a explicar a evolução da tecnologia (Viana, 2005; Sellet, 1999). Leroi-Gourhan (1985[1965]) difundiu o conceito de cadeia operatória, apontando que a produção de instrumentos técnicos é resultado de três

Fig.1. Mapa apresentando localização dos acampamentos Xetás e sítios arqueológicos na região.

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grandes processos: aquisição (matéria-prima), fabricação e consumo. Nos EUA, estudos pautados na proposta conductal de Collins (1975) consideram as seguintes etapas: aquisição de matéria-prima, redução inicial, modificação primária e secundária, uso, reciclagem/manutenção, e abandono do artefato. O desenvolvimento de estudos tecnológicos na análise de lítico implica a existência de um sistema tecnológico e buscam compreender a organização e funcionamento deste em sociedades pretéritas. Os estudos de estilo tecnológico estão vinculados à percepção de sistema tecnológico estruturalista/idealista, e há dois pontos centrais: o estilo corresponde ao modo de se fazer algo, e o estilo corresponde a uma escolha dentre as alternativas (Hegmon, 1992: 517-518). Assim, a escolha de determinadas matérias-primas, as técnicas utilizadas, a escolha de determinadas sequências de produção e os resultados obtidos nestas escolhas, indicado pelas categorias de artefatos, representam os estilos tecnológicos (Dias, 2003: 45). Sob uma perspectiva de análise tecnológica, Tom O. Miller Jr. (1979, 2009) descreveu a técnica de lascamento dos Xetá, a partir das atividades realizadas pelos seus informantes Kwe e Nheengo, como o “lasqueamento espatifado”, onde são obtidos fragmentos e lascas com ângulos abertos (45°-95°), tidos

pelos Xetá como mais úteis para o trabalho em madeira. O problema das tradições líticas no sul do Brasil A definição de tradições arqueológicas no Brasil baseou-se na identificação de artefatos-guias, análises tipológicas, e correlação entre morfologia e função. Quando considerado a definição das tradições “pré-cerâmicas”, o lítico Xetá aparece como um complicador, pois a caracterização tipológica do material existente (Laming-Emperaire et al., 1978) não fornece subsídios claros para sua identificação em campo, já que os tipos descritos, como raspadores, rabotes, chopper e chopping -tools, também são associados a outras tradições arqueológicas (Figura 2). Os trabalhos sobre lítico Xetá focaram ou uma análise tipológica, associando morfologia à funcionalidade, ou uma análise técnica com foco nas técnicas utilizadas no lascamento (Laming-Emperaire et al., 1978; Miller Jr., 1979, 2009). Resultados preliminares – Subcoleção Laming-Emperaire Com o objetivo de se fornecer dados para análises comparativas entre conjuntos

Fig.2. Comparativo de artefatos líticos pré-cerâmico Humaitá e Itararé com lítico Xetá: tipos morfologicamente semelhantes.

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líticos Humaitá, Itararé e Guarani, optou-se por combinar abordagens qualitativas (cadeia operatória) e quantitativas (proposta conductal). Pesquisas recentes apontam que a utilização de somente uma abordagem qualitativa pode mascarar uma variabilidade interna ao se buscar uma simplificação para construção dos esquemas de redução de cada conjunto. Por conseguinte, o emprego combinado de abordagens quantitativas e qualitativas resulta em uma poderosa ferramenta para compreensão da variabilidade de conjuntos líticos (Tryon & Potts, 2011). A subcoleção Laming-Emperaire é composta por 54 peças, das quais 33 são instrumentos, sendo 18 bifaces, 1 uniface, 1 percutor, 10 lascas com marcas de uso e 4 lascas retocadas; somam-se ainda 12 lascas unipolares, 1 núcleo, 1 detrito e 6 peças sem marcas de uso. A figura 3 esboça as etapas do sistema tecnológico do lítico Xetá. Na aquisição de matéria-prima predomina o silexito, com 47 peças (98%), tendo apenas 1 instrumento em arenito (2%). A proveniência do silexito é em sua maioria terrestre (rugoso) com 31 peças (65,95%). Na região ocupada pelos Xetá predominam arenitos da Formação Caiuá; contudo, devido à ampla escala utilizada em levantamentos geológicos, a presença de sílex local não é totalmente excluída. Em mapeamentos geológicos realizados na foz do rio Ivaí, notou-se a presença discordante de seixos de calcedônia e sílex na Formação Caiuá (Santos et al., 2008). A estratégia de produção está focada na obtenção de instrumentos bifaciais. Os suportes recebem poucas retiradas de façonage, formando gumes irregulares, convexos e côncavos, e possuem a parte cortical como zona preensiva/receptiva. Há também instrumentos bifaciais, com pequenas dimensões e retiradas extensivas, mas que não chegam a configurar retoque, e pouca zona cortical. A existência desses instrumentos pode ser justificada pelo potencial de uso que bifaces possuem dentro de sociedades com mobilidade alta/média, pois além de seu uso como instrumento multifun-

cional, também há a possibilidade de utilizá-los como núcleo para extração de um suporte que atenda uma determinada atividade (Hayden et al., 1996). Na estratégia de uso, as lascas resultantes do processo de façonagem dos instrumentos podem ser reincorporadas no sistema tecnológico, de acordo com seu potencial de uso, sendo utilizadas diretamente ou com a adição de retoques. Os instrumentos bifaciais e unifaciais são utilizados para cortar e raspar madeira, enquanto os instrumentos sobre lasca, além do trabalho em madeira, também são utilizados para cortar alimentos. Com relação à manutenção, instrumentos foram reincorporados no sistema tecnológico sem a adição de modificações secundárias, enquanto outros instrumentos receberam reconfiguração da parte preensiva/receptiva após a quebra. Assim, a reciclagem, no sentido de uma nova reconfiguração/adequação, só ocorreria quando uma das Unidades Tecno-Funcionais (UTF’s)1 não estivesse apropriada para o uso. No descarte, a situação é complexa, pois há a reutilização de lascas oriundas do processo da façonage do instrumento, e não há possibilidade de se afirmar se estas lascas são mantidas separadamente para um uso futuro, ou se são descartadas e depois reinseridas no sistema tecnológico. Todavia, indica-se que muito provavelmente ambas as opções possam ter sido empregadas pelos Xetá.

(1) Um instrumento é formado por três partes: receptiva, recebe a energia para o funcionamento do objeto, preensiva, permite o instrumento funcionar, e pode se sobrepor a primeira, e transformativa, responsável por alterar outra superfície. Para Boëda (2000) cada uma dessas partes pode ser formada por uma ou mais Unidades Tecno-Funcionais, que são definidas pela coexistência de elementos técnicos que proporcionam o funcionamento sinergético de uma parte do instrumento.

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Fig.3. Organização do sistema tecnológico Xetá.

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Abstract: Between 1956 and 1961 the Departament of Anthropology from the Federal University of Paraná (UFPR) collected informations about the material culture of the Xetá Indians, located in Serra dos Dourados, northwest of Paraná state, resulting in the lithic collection from the Xetá currently deposited at the Museum of Archaeology and Ethnology (MAE-UFPR), with 160 chipped and polished artifacts. This article presents the preliminary results about the technological system identified for the artifacts collected by Annette Laming-Emperaire during the expedition held in 1961. The types identified, as choppers and chopping-tools, also can be associated with others archaeological traditions defined for Southern Brazil. Keywords: Xetá lithic, technological system, reduction sequence.

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