Merleau-Ponty: a experiência perceptiva

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Merleau-Ponty: a experiência perceptiva Vítor Beghini1

O que é a fenomenologia? Com esta questão Merleau-Ponty abre o prefácio de sua Fenomenologia da Percepção. Mostra-nos que, se por um lado a fenomenologia é o estudo das essências e das coisas como aparecem à consciência, é por outro uma abordagem da existência e sua facticidade; se parte de uma postura transcendental, é também uma filosofia para a qual a presença do mundo antecede todo sujeito reflexivo; se pretende constituir-se como epistemologia, pretende também fundar uma ontologia. Que a fenomenologia — seja o que quiser ser — deve saber conviver com Husserl e Heidegger: filósofos que para além de toda contradição aparente fundam-na antes como método, como estilo de fazer filosofia, campo sempre aberto do conhecimento. O que é a fenomenologia para Merleau-Ponty? É impossível que respondamos aqui a esta questão. Podemos, no entanto, fornecer pistas de como ela configurase, de como constitui-se o estilo merleau-pontiano em face de certas questões, ou para ser mais adequado, pode-se tentar expor uma fração de seu pensamento em regime descritivo. O primeiro projeto que podemos identificar mais claramente em Merleau-Ponty é um esforço de superação de dualidades. Signo e significação, corpo e espírito, eu e outro — em suma, sujeito e objeto — não podem mais ser pensados sob o estatuto de suas noções clássicas, dualizadas em separações pressupostas e não-bilaterais. Sua fenomenologia erigir-se-á justamente da crítica às duas posturas dualistas predominantemente opostas: o empirismo e o intelectualismo. O empirismo da ciência, ao partir de um extremo objetivismo e conceber seus objetos sob um regime mecanicista e causal, acabaria por ignorar toda a dimensão do subjetivo. Merleau-Ponty dirá que a ciência trabalha com pressupostos ontológicos que é incapaz de assumir ou tematizar — ao avançar em seus resultados ela vai além do que se propõe, ultrapassa suas premissas e categorias, e ao percebê-lo retorna a elas, fechando-se num campo ma!1

nipulado do objeto. Em seu ápice, seu extremo objetivismo resultaria em um determinismo total do comportamento, obstáculo à própria liberdade enquanto condição de possibilidade do sujeito. No limite, o empirismo objetificaria o sujeito. A isto responderá Merleau-Ponty: eu não sou uma coisa entre coisas, "eu sou a fonte absoluta"2, o objeto deve passar de alguma forma pela consciência pois sempre há algo de subjetivo na experiência. Este retorno à consciência difere absolutamente de um retorno idealista ao transcendental. O intelectualismo, ao dar primazia ao sujeito cognoscente e levar às últimas consequências a cisão cartesiana entre o corpóreo e o anímico, ignora o que possa haver de objetivo no conhecimento. Parte do Cogito como condição de todo conhecer e liga-se ao objeto pela análise reflexiva, mas esta não se contenta em ser contemporânea ao objeto: a análise reflexiva recua e pretende-se anterior, como se aquilo que derivara sinteticamente do objeto fosse condição de possibilidade deste e estivesse sempre lá enquanto seu fundamento a priori, como se o transcendental redescobrisse aquilo que a consciência sempre fez sem dar-se conta. Assim, ao tentar explicitar o objeto, a análise intelectualista o reconstrói por suas categorias. Tanto quanto há uma desaprovação do mecanicismo fechado da ciência, há aqui uma recusa à operação epistemológica do procedimento analítico. Para a fenomenologia, ora, não trata-se de explicar ou analisar, mas de descrever, e de inscrever o conhecimento no campo de uma "razão alargada". Eis que o modus operandi dualista (seja para que lado tenda) será insuficiente e equivocado. Com efeito, não é nada disso que Merleau-Ponty pretende. Para ele é preciso afastar-se da tradição dualista como condição de recuperar o outro, o mundo, o real, e repensar o próprio estatuto do sujeito e do objeto — este não mais como "objeto" definido por seu em-si ou parasi. É preciso, dir-se-á, voltar-se à percepção, partir de um primado da percepção. O modo de acesso ao real e à verdade não é empírico, analítico, decompositivo, sintético, posicional ou predicativo, mas da ordem do perceptivo: eu percebo a verdade, como percebo o real. Porque sou um sujeito encarnado e aberto, desprovido de pura interioridade, que está consagrado ao mundo e só pode ser nele, que forma com ele uma unidade de sentido, uma única estrutura perceptiva e percebida e um campo antipredicativo de experiência. Estou num mundo que constitui o solo da consciência, mas que existe para além de nossos juízos, atos e saberes. Agora, sujeito e objeto deverão ser igualados como uma correlação unitária, como consciência no mundo; são seres relacionais, só existem quando significados e unificados entre si. Ora, toda consciência é uma "consciência de…" que opera com intencionalidade, e todo objeto é um "objeto para…", dotado porém de uma facticidade que lhe é própria. É preciso encontrar

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nestes termos um modo de realizar efetivamente o projeto husserliano de "volta às próprias coisas". Sabemos que se Merleau-Ponty faz uma fenomenologia, esta é uma fenomenologia da percepção. Doravante, mapeemos portanto esta noção de percepção, na tentativa de descrever alguns de seus aspectos, pressupostos e consequências. No prefácio, lemos que a percepção não é ciência, nem mesmo ato ou deliberação, ela é "o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles"3 . MerleauPonty apropria-se aqui da Gestalttheorie, para apresentarmos-nos à noção de que o fenômeno perceptivo — tanto a percepção quanto o percebido — operam sob um regime de figura sobre fundo. O "algo" perceptivo está sempre em meio a outras coisas, ele sempre constitui um campo perceptivo, de modo que uma superfície absolutamente homogênea ou um dado sensível absolutamente isolado não oferecem nada a ser percebido, não poderiam configurar nenhuma percepção. Só distingo a figura porque vejo o fundo, e o "puro sentir", fosse possível, traduziria-se em nada sentir. Sinto em minha frente uma superfície vermelha, mais propriamente avermelhada, que é provida de texturas e irregularidades, vejo o efeitos das luzes e sombras do ambiente refletidos nela, percebo que essa superfície delineia um sólido: um ovo colorido, por sua vez colocado sobre uma mesa de madeira, em frente a uma parede, num quarto.4 O ovo sozinho é imperceptível como o puro vermelho o é. "O objeto visto é feito de fragmentos de matéria e os pontos do espaço são exteriores um ao outro"5. O fenômeno só aparece como conjunto. A percepção também é figura e fundo, pois é da ordem das relações e do sentido, e só efetiva-se perceptivamente quando concebida no horizonte relacional da extensão do mundo sensível e daquele que percebe. É das relações que emerge todo significado. Disto, pensemos em um cubo. Um cubo possui seis faces iguais, mas eu não posso vêlo enquanto tal: vejo algumas de suas faces, ou (ainda que em um cubo transparente) as vejo em perspectiva. Quando o rotaciono em minhas mãos vejo suas as faces gradativamente desvelarem-se ao passo em que são distorcidas à minha visão. O cubo de seis lados iguais é invisível, ou antes, impensável. Eu não posso jamais apreender a "totalidade de uma coisa", mas se posso compreender estas faces visíveis como um todo que é cubo é somente porque já as percebo enquanto cubo em sua inteiridade. Para as tradições dualistas, ao contrário, as faces seriam partes justapostas do cubo, desprovidas de qualquer relação intrínseca entre si, e para que eu apreendesse o objeto em suas partes seria necessário um operador externo que as articulasse. No intelectualismo, isto se dá pela apreensão idealista do espírito que constitui a síntese do objeto, pela análise reflexiva, como uma coisa descolada do mundo (se levássemos tal noção ao limite, porém, seria coerente que pudéssemos escolher não percebê-lo). Assim, o

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transcendental kantiano coloca uma universalidade a priori e formal na experiência, e as psicologias intuicionistas misturam o objeto ao sujeito perdendo o relacional. No empirismo, por sua vez, o objeto é concebido como um conjunto de partes. Para uni-las há a articulação de uma causalidade mecânica: algo excita os receptores nervosos dos meus órgãos da visão que comunica impulsos eletroquímicos ao meu córtex visual e gera uma imagem-impressão que processarei por associações conscientes (disto poderíamos entender, porém, que cada elemento do objeto causaria uma reação separada). Assim, o empirismo impõe uma universalidade mecânica e fisiológica e provoca uma perda da singularidade, num mundo que é uma universalidade concreta e singularizada. Tanto de um lado, quanto de outro, o objeto é algo inteiramente determinado que perde sua consistência própria. Mas o fenômeno perceptivo é, antes, da ordem do antipredicativo. Perceber "o cubo" não é uma operação de consciência, não se trata de um processo de síntese, associação, afinidade, lembrança ou causalidade empírica. A percepção relacional constitui um tecido operante de intencionalidade: as próprias faces invisíveis ligam-se às visíveis numa coesão e o cubo se oferece reunido. Pois a figura é uma constante evocação do fundo como o fundo é uma evocação da figura, o fundo é uma ausência que suscita uma presença, reversivelmente, e se reconheço um objeto, o que vejo é apenas sua estrutura figura-fundo funcional constituindo meu campo. Há assim em todo visível uma profundidade operante do invisível, como há em todo audível um inaudível, em todo dizível um indizível, que é no limite sua condição perceptiva. O cubo não está nem totalmente em mim nem totalmente nele mesmo, ele nasce de sua relação comigo. Dirá Merleau-Ponty: "se para mim existe um cubo com seis faces iguais e se posso alcançar o objeto, não é que eu o constitua do interior: é porque pela experiência perceptiva eu me afundo na espessura do mundo. O cubo com seis faces iguais é a ideia-limi-te pela qual exprimo a presença carnal do cubo que está ali, sob meus olhos, sob minhas mãos, em sua evidência perceptiva. Os lados do cubo não são suas projeções, mas justamente lados. Quando eu os percebo um após o outro e segundo a aparência perspectiva, não cons-truo a idéia do geometral que dá razão dessas perspectivas, mas o cubo já está ali diante de mim e desvela-se através delas."6 . Não existe cubo ideal, cuja representação seja a ideia-referência que me permite nomeá-lo em sua presença física. O cubo é evidente: quando o vejo eu percebo sua totalidade; uma totalidade relacional, não-totalizante, que tampouco é a soma de seus lados. Embora eu não possa apreender a "totalidade" da coisa, que me escapa, e não haja nela sequer uma forma exata e efetiva de ser e estar, eu percebo a coisa lá como ela é. Pois a percepção é legítima por

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si só e aquilo que percebo é a coisa em sua realidade, anterior a todo juízo que se possa destarte fazer. Com efeito, a noção de objeto é uma construção tardia e, grosso modo, ilusória: é a partir da coisa percebida que contrói-se o objeto. Meu contato espontâneo com o mundo não se dá com objetos, mas com estruturas e unidades significativas que constituem o campo perceptivo e operam em todas as experiências. A razão, porém, necessita de conceitos. O que leva o sujeito a conceituar é a própria percepção: a latência perceptiva tende a precisar-se, a cristalizar-se no conceito e extrapolar toda indeterminação. Mas se a reflexão pode tardiamente realizar esta operação é somente porque parte sempre de um estado irrefletido que, enquanto tal, é pré-conceitual e antipredicativo. A reflexão não encontra a verdade da coisa, tal como queriam os intelectualistas, mas cria algo novo, cria uma verdade, efetiva-se como uma mudança de estrutura em relação ao percebido — daí sua suposta incompatibilidade com o procedimento analítico. Mas a fé perceptiva — relacional e espontânea — será sempre o substrato do qual toda abstração engendra-se. Para Merleau-Ponty, com efeito, o grande equívoco da ciência não é querer explicar as coisas e fenômenos em regime de causalidade — o método científico é, ora, vital para as sociedades — mas esquecer-se, assim como nas categorias analíticas, que sua experiência originária está na dinâmica perceptiva, da qual aproveita-se tacitamente e depois ignora, nunca tendo deixado realmente de habitar seu solo. As teorias clássicas valem-se de uma noção de conceito que é incompatível com a percepção, posto que ao trabalhar com objetos já constituídos elas não dão conta de pensar a sua gênese. O pensamento ocidental, de um modo geral, inverteu a posição dos termos: aquilo que era o fundado tornara-se o fundante. A necessidade de retornar à percepção é, assim, a necessidade de retornar ao fundante. Esta percepção é a experiência inalienável de um campo relacional, ao mesmo tempo interno e externo, imanente e transcendente, mas é também a configuração de um ato perceptivo. O sujeito que percebe não é nem ativo nem passivo, mas ambos, simultaneamente. Não há "o objeto cubo": o cubo é um estilo de espacialização que existe no tempo, ao qual meu corpo molda-se enquanto é moldado por meu corpo. É com meu corpo que percebo a multiplicidade do percebido em todos os seus caracteres sensoriais, e se há evidência perceptiva pré-objetiva é somente porque o esquema da coisa extensa é correlato ao esquema do meu corpo alargado. Disto podemos ver como opera a temporalidade nas relações de um sujeito aberto e encarnado que é, antes de tudo, situacional. Se sou um sujeito situado, só posso existir com meu corpo, só posso existir imerso nas camadas vivas do mundo, do espaço, do tempo, condenado ao sentido, aberto numa unidade relacional e dinâmica de compreensão, isto é,

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em regime fenomenológico. Se a figura ou o fundo mudam, a minha percepção muda, se minha percepção muda, meu corpo é mudado por ela, se meu corpo muda, a percepção o acompanha, em uma cadeia de implicações e ajustes corporais. Novamente: o cubo não está nem totalmente em mim nem totalmente nele mesmo, ele nasce de sua relação comigo. A percepção não é passiva, pois não é efeito do percebido: meu corpo age para perceber e o percebido age para ser percebido, pois abrem-se à mudança. Não se trata tampouco de uma atividade absoluta do sujeito, mas de uma "atividade demandada não-determinante". A situação é o campo vivido ativamente pelo sujeito, é o campo de legitimação de sua liberdade, num mundo que é, em sua espontaneidade latente, uma intersecção unitária de dimensões simultâneas e diferenciadas de experiência — experiência que é cisão que não cinde, ponto máximo de unidade e pluralidade. Assim a percepção funda nossa idéia da verdade, e nosso corpo, enquanto corpo que conhece e reflexiona, é nosso acesso ao mistério do mundo e da razão. Será somente dando o devido papel a este corpo situado, espacial, temporal, sensitivo e expressivo que se poderá destituir a consciência reflexiva de seu papel constituinte e soberano, de seu projeto ambicioso de posse do mundo, e poder encontrar na própria fenomenologia uma via efetiva ao projeto husserliano de "volta às coisas mesmas". Disto podemos chegar na maior das lições de Merleau-Ponty: "a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo"7. Eis uma tarefa interminável! ––––––––––––––––––––––––––

Notas

1 USP - Universidade de São Paulo. Graduando em Filosofia. Artigo apresentado ao prof. Alex de

Campos Moura como conclusão à disciplina Filosofia Contemporânea I, de introdução a MerleauPonty, sendo avaliado com a nota 9,5. Correções mínimas foram aplicadas. 2 M.-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. pág. 3 3 idem, pág. 6 4 A escolha de um “ovo” é uma alusão ao conto “O Ovo e a Galinha”

(1977) de Clarice Lispector, que renderia uma belíssima interpretação fenomenológica. Toda a Fenomenologia da Percepção está ali sem pretender estar. 5 M.-PONTY. pág.

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6 idem, pág. 275 7 idem, pág. 19

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