Merografia, totalização e conhecimento na Atenção Básica à Saúde

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PENSANDO (E INTERVINDO) ATRAVÉS DE TODOS: MEROGRAFIA, TOTALIZAÇÃO E CONHECIMENTO NA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE.

[APRESENTAÇÃO PARA A VIII SEMANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIFESP; 14/10/2015; SEM REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS; RASCUNHO]

BRUNO PEREIRA DE ARAUJO

[slide 1] Essa apresentação foi pensada a partir de dois objetivos: [1] apresentar algumas questões que me orientaram durante um processo de pesquisa, ou melhor, de uma pequena experimentação etnográfica no campo da atenção básica à saúde (também chamada de atenção primária); e [2] colocar para discussão outras questões que emergiram desse primeiro momento e que mobilizam meus interesses atuais. A pesquisa à que me refiro foi realizada com bolsa do PIBIC e sob orientação da Prof. Valéria Macedo — a quem devo mais que apenas alguns agradecimentos. Contudo, antes de introduzir a pesquisa, gostaria de comentar por que em ambos os objetivos me proponho a apresentar apenas questões e não resultados. Mário Quintana, com bastante lucidez, escreveu certa vez que “A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas”. Gostaria de assumir uma posição de desconfiança acerca das respostas certas e me mover em direção a possibilidade de formular as questões certas. Por questões certas não pretendo afirmar que essas são as questões melhores a serem feitas, não se trata das questões em si mesmas serem boas. Muito pelo contrário, uma questão certa só emerge através de uma relação. Uma relação que faz ambos sujeito e objeto da questão se tornarem interessantes. Se tornar interessante é se tornar uma questão de interesse. Como diz Bruno Latour, questões de interesse são aquelas que possibilitam que um amplo conjunto de perspectivas-interesses seja mantido junto — exatamente como um (con)junto, mas sem se pressupor que haja/haverá homogeneidade. De fato, uma questão de interesse opera de tal modo que o que mantém a discussão em aberto são as diferenças entre todos que se interessam por tal questão. Assim, o que me interessa ao apresentar simplesmente 1

algumas questões é livrar vocês de terem que aceitar um Fato, uma resposta certa. Permitindo, e esperando, que vocês se engajem de modo interessado no meu empreendimento. *** A pesquisa que vou apresentar foi realizada entre 2014 e 2015 e consistiu em uma etnografia levada a cabo em uma Unidade de Saúde da Família (USF), em Guarulhos-SP. O ponto de partida foi um contraste entre duas descrições acerca da produção de saúde. Uma primeira descrição, vinda de Michel Foucault, apresentava como grande inovação no campo da medicina (que marca o surgimento da medicina positiva na virada do século XVIII para o XIX) a emergência da doença no corpo do indivíduo. A segunda descrição, oriunda do universo das políticas públicas e seus atores, apresentava como grande inovação no campo da saúde uma atenção voltada não apenas para o indivíduo, mas também para a família e a comunidade. [slide 2] Esse contraste me permitia colocar a seguinte questão: o que acontece com a medicina quando colocada diante de duas unidades de intervenção (família e comunidade) que deslocam a centralidade daquela outra unidade (indivíduo) que figurou como fundamental para sua constituição enquanto um saber positivo? Essa questão logo foi colocada de lado, pois reconheci que ela pressupunha respostas certas acerca do que eram indivíduos, famílias e comunidades no campo da saúde. Portanto, a questão se tornou antes saber o que são o indivíduo, a família e a comunidade. Mas como tornar essa questão em uma questão de interesse? [slide 3] Essa pesquisa também foi um momento de experimentar com a proposta de Annemarie Mol de uma filosofia empírica, isto é, um modo de descrever objetos-sujeitos a partir das práticas e relações (ou práticas relacionais) que os trazem a existência. A autora argumenta que objetos-sujeitos são sempre “enactados” através de práticas relacionais bem situadas e o reconhecimento de sua situacionalidade é um dos princípios fundamentais de uma filosofia empírica. Atentar-se para a situacionalidade de objetos implica levar em consideração as seguintes questões: do que tal objeto depende para

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existir?; o que ele esconde?; o que ele evoca?; onde ele pode circular?; como ele pode se transformar?; com o que ele conflita?; o que ele exclui?; para onde ele leva/aponta? [slide 4] Foi com essas questões que busquei tornar a questão sobre o que é o indivíduo, a família e a comunidade uma questão de interesse. E de fato essa questão se tornou interessante, pois tal engajamento com as práticas permite desdobrar múltiplas realidades (poderíamos falar em ontologias) que não coincidem entre si, mas que através de algum esforço (pois isso requer muito trabalho!) permanecem juntas como se fossem uma mesma realidade, ou, numa linguagem mais “relativista”, como se fossem apenas diferentes visões de uma mesma realidade. Vamos tomar como exemplo o indivíduo. Rapidamente poderíamos reconhecer o indivíduo na USF como sendo uma simpática senhora. A equivalência entre uma pessoa, um corpo e um indivíduo é concreta o suficiente para nós para que proponhamos que um indivíduo sempre se parece com essa simpática senhora. Na verdade, dentro da USF a simpática senhora é apenas uma entre as várias figurações que o indivíduo assume, isto é, das formas pelas quais ele pode ser objetificado ou feito. É essas diferentes formas que me interessam. [slide 5] Meu trabalho focou em práticas de inscrição na USF, ou seja, nos documentos. E isso por dois motivos. O primeiro, eu precisava apresentar algum resultado em menos de um ano de pesquisa (na forma de um Relatório Final), por isso me aproximei primeiramente dos documentos, pois eles oferecem pouca resistência a nossa aproximação. Documentos não suspeitam de você, não te acham estranho, não se esquivam, ou se fazem tudo isso, ainda não aprendemos a reconhecer. Pessoas, ao contrário, geralmente demoram mais para te aceitar como parte do seu cotidiano. E a qualidade das relações é um aspecto importante para um trabalho etnográfico. No entanto, os documentos também se tornaram meu foco por outro motivo. Ao me interessar pelas práticas de conhecimento na atenção básica, desviar dos documentos parece uma tarefa quase impossível. Principalmente porque eles tornam certos conhecimentos mais “duráveis” que outros. E os documentos fazem isso porque o potencial que eles têm para circular é muito maior que de outros objetos-sujeitos, como por exemplo, as profissionais de saúde. Mas os documentos não fazem durar, através da circulação, um conhecimento que é exterior a eles; muito pelo contrário, eles circulam 3

um conhecimento que é produzido por eles. Deixe me colocar a questão em outros termos. Meu interesse nunca foi em apresentar e lidar com os documentos como se eles apenas representassem algo que está fora deles próprios, o que faria dos documentos uma versão de uma realidade que é ontologicamente anterior e independente ao próprio documento. Na verdade, quis tratar os documentos como se fossem pessoas — do mesmo modo que Alfred Gell, por exemplo, se propôs a tratar obras de arte como pessoas. Isso implica tratar os documentos como agentes que entram em relações como outros objetos-sujeitos e possuem o potencial de transformar essas relações. Dessa forma, abordei os documentos a partir de duas dimensões: uma performativa, que implica que documentos fazem coisas; e a outra, estética, que os documentos têm uma forma persuasiva, para parafrasear Marilyn Strathern. Dito isso, vamos voltar para o indivíduo. Imaginemos que a simpática senhora seja hipertensa. Ela vai para a USF medir sua pressão arterial (PA). O que acontece? Ou melhor, o que é um indivíduo com uma pressão arterial? Se seguirmos a “pressão arterial de um indivíduo na prática” a gente descobre que um indivíduo que tem uma PA é pelo menos dois indivíduos e, na verdade, ele é sim divisível. Para que um indivíduo tenha uma pressão arterial é preciso que haja além de si próprio uma segunda pessoa. E mesmo assim, haverá a necessidade de um instrumento tecnológico bastante interessante que é o aparelho de medir pressão arterial. É claro que a pressão existe como algo que está dentro do corpo da simpática senhora, mas para existir no interior ela precisou antes ser feita no exterior pelo agenciamento de diferentes elementos. Na verdade, interior e exterior, quando seguimos as práticas, são pontos de referência bastante arbitrários e artificiais. Então esse é um indivíduo com uma pressão arterial. Mas ele dura pouco — pelo menos nessa forma específica. Quando seguimos adiante, nos deparamos com a folha de evolução clínica da usuária e ali o indivíduo (com PA) aparece de outra forma. O procedimento de aferição da PA de um indivíduo não cabe nas dimensões de uma folha A4. Para isso, ele precisa ter outra forma. Essa forma emerge do procedimento, mas ao ser inscrita na evolução clínica pode se destacar dele (em outro momento, descrevi os documentos da USF como sendo “duplos burocráticos”). Ela é, por exemplo, “PA: 120x70”. Nada mais diferente que a simpática senhora ou o indivíduo-que-é-pelo-menosduas-pessoas do procedimento de aferição da PA. De fato, se olharmos para a evolução clínica, lembrando que ela circula bastante pela USF, vemos que o indivíduo é, aqui, um amontoado de procedimentos. Ou, no caso da senhora 4

simpática (será que depois de todas essas traduções continuamos falando da mesma senhora?), o indivíduo é um amontoado de PAs que pode estar organizado de uma maneira melhor na Caderneta Convivendo com Hipertensão e Diabetes. Mas ao chegar no consultório da médica (até agora tudo se passou apenas na sala de procedimentos) esse indivíduo vai sofrer uma nova tradução/transformação. Aqui, através do amontoado de PAs da folha de evolução ou da caderneta e do relato da senhora que a médica tentará escutar com atenção, um novo indivíduo será feito: esse indivíduo terá uma pressão arterial controlada ou descontrolada. Contudo, vamos mudar a história um pouco. Imaginemos que a simpática senhora não sabe que é hipertensa e, na verdade, essa é a consulta na qual ela saberá se “tem pressão alta” ou não. A médica, olhando para o histórico de PAs (que ela solicitou que fosse acompanhado na consulta anterior pela senhora) “descobre” que realmente a senhora é hipertensa. [Uma nota é importante aqui, pois nesse ponto a linguagem da descrição torna a história complicada. Se, como propus, seguirmos as práticas saberemos que quem tem a pressão arterial alta (ou controlada ou descontrolada) não é a senhora simpática, mas seu duplo burocrático (a folha de evolução ou a cardeneta). Contudo, ainda podemos falar que quem tem a pressão alta é a senhora, pois as coisas são de tal modo coordenadas de forma que a multiplicidade ontológica se torne unidade ontológica. Volto a esse ponto mais à frente.] Toda hipertensa precisa ser cadastrada no Hiperdia (o sistema está em fase de transição para o e-SUS). Ela vai ter que assumir uma outra forma, pois nem a senhora simpática, nem o amontoado de procedimentos, nem a “consulta” que fez sua hipertensão têm uma forma apropriada que dá, para dizer como minhas interlocutoras, “jogá-la no sistema”. Não vou descrever essa forma específica, mas é uma forma que facilmente se transforma em informação em sistemas informacionais. Ao se transformar em informações, ou numa linguagem mais contemporânea, em dados, ela vai compor diferentes arranjos estatísticos para o Ministério da Saúde, como o “Número de diabéticos, hipertensos e diabéticos com hipertensão por sexo, tipo e risco”. Já se torna muito difícil reconhecer a simpática senhora que podemos encontrar nos corredores da USF esperando para ter sua PA medida — mesmo que todas essas traduções-formas só vieram à tona porque ela foi parar na USF. No entanto, tudo isso só fará sentido se vocês puderem acreditar que a cada tradução/prática estamos diante um “novo” objeto. Não adianta dizermos que uma estatística é uma representação da senhora hipertensa junto com uma representação de todas as outras hipertensas cadastradas no Hiperdia. O que seria dizer, insisto, que a 5

senhora hipertensa teria prioridade ontológica em relação às estatísticas que seriam, por sua vez, negadas de seu direito a um modo de existência singular. Tanto as estatísticas quanto a senhora são agentes nas redes desdobradas a partir da USF, mas cada um pode fazer coisas diferentes. Uma senhora simpática não gera os mesmos efeitos que uma estatística e vice-versa. Mas mesmo que os objetos-sujeitos que jamais coincidem proliferem na USF, eles não compõem uma realidade fragmentada (como nos ensina Mol). Não estamos falando de pluralismo ou diversidade ontológica, mas sim de multiplicidades. Não me dediquei durante a pesquisa a tal façanha: a fabricação de uma unidade ontológica a partir da multiplicidade (lembrando que pluralismo e diversidade são outras facetas da unidade ontológica). Cabe apenas enfatizar, utilizando uma frase bastante popularizada na antropologia, que a realidade em uma USF (e além) é mais que uma e menos que muitas. Assim como indivíduos, famílias e comunidades. *** [slide 6] No começo, afirmei que estava interessado em apresentar não somente as questões do momento inicial da pesquisa, mas sim questões que emergiram posteriormente. Para apresentar estas questões preciso introduzir um pequeno contexto que deixei de lado no primeiro momento da pesquisa. É possível descrever a constituição de uma atenção primária organizada em torno da Estratégia Saúde da Família como um resultado das preocupações/debates em torno da humanização das práticas e cuidado em saúde. De fato, um debate constantemente reatualizado é o de como promover uma atenção à saúde integral e humanizada. E a forma que geralmente a humanização ou integralidade são pensadas é enquanto modos de lidar com a “totalidade”. A totalidade nesse caso, pode estar associada a três fenômenos distintos, ao menos na USF/Atenção Básica: (1) a pessoa como um todo; (2) a doença como um todo; (3) a saúde como um todo. Abordar algo como um todo é equivalente — pelo menos é o que aparenta — a abordar cada um dos fenômenos levando em consideração seus contextos socioculturais. Mas como os contextos socioculturais aparecem na atenção básica? Eles aparecem através da atenção que não se restringe — termo “nativo” — apenas ao indivíduo, mas que se 6

estende também à família e a comunidade. É na capacidade de conectar esses diferentes domínios que um efeito de todo parece poder emergir na ABS. Assim, pessoas, doenças e saúde podem ser vistos como um todo. Mas reconhecer que o todo é um efeito da conexão entre indivíduo, família e comunidade coloca dois problemas. E são, finalmente, esses os problemas que gostaria de introduzir para vocês. O primeiro diz respeito à multiplicidade ontológica do indivíduo, da família e da comunidade. O segundo diz respeito ao modo especifico que nós, euramericanos, conectamos as coisas com o intuito de produzir conhecimento ou torná-las autoevidentes. [slide 7] Se vocês acreditarem que objetos-sujeitos como o indivíduo, a família e a comunidade são múltiplos, sua multiplicidade se torna uma questão para a totalidade. Isso porque a totalidade pressupõe unidade. Se a realidade em uma USF é mais que uma e menos que muitas, ela não se junta como um todo. Contudo, é importante frisar que ela não é fragmentada, um conjunto de partes soltas. [É certamente uma tarefa interessante imaginar um modo de descrever tal situação sem ter que recorrer a ideias como “todo” e “partes”.] Não quero afirmar com isso que o que os diferentes atores no campo da saúde designam como um todo é, na verdade, uma ilusão. Meu argumento vai direção ao que poderíamos chamar de uma “política ontológica da totalização”, no sentido de que fazer emergir um todo envolve algumas estratégias acerca de quais enactamentos do indivíduo, da família e da comunidade entram na composição de todos (e quais são deixados de fora). Comentei acima que a forma mais comum que uma pessoa como um todo é feita na USF é através do reconhecimento de que ela é um indivíduo membro de uma família que faz parte de uma comunidade que apresenta um contexto sócio-cultural específico. Se olharmos para o caso da simpática senhora hipertensa, vemos que todas essas dimensões já estão lá! Aqui um limite do meu próprio trabalho aparece. No primeiro momento da pesquisa, meus interesses me levaram a construir uma ficção para poder descrever a multiplicidade de formas das unidades de intervenção na Atenção Básica. Essa ficção consistiu em separar — reificar — indivíduo, família e comunidade, mesmo que todos esses objetos-sujeitos estejam emaranhados nas práticas relacionais das profissionais da saúde. Me voltar para as práticas de totalização no campo da ABS é exatamente uma forma de recolocar a questão da conexão entre as diferentes dimensões que compõem o todo, 7

podendo reconsiderar o modo como indivíduos, famílias e comunidades são produzidos em conjunto e, em alguns momentos, simultaneamente. Vejamos, por exemplo, o caso da senhora com hipertensão. É preciso reconhecer que ao ir a USF aferir/controlar sua pressão arterial a simpática senhora permite que se inicie uma série de atividades que vão produzir tanto sua individualidade (em diferentes formas) quanto uma comunidade com altos ou baixos índices de hipertensão. Sua família também é produzida nesse contexto, apesar de ter deixado de lado essa possível (não necessariamente efetiva) dimensão de sua “personitude como um todo”. Talvez, poderíamos propor uma hipótese/especulação acerca das práticas de conhecimento/intervenção no campo da ABS/ESF: as práticas (de inscrição, por exemplo) existem para manter a pessoa como um todo, pois se considera que a pessoa que está ali já é — e sempre foi — um todo. [Um problema interessante surge: quando mudamos da minha reificação analítica (vale lembrar que ela é efetuada por diferentes atores no campo da saúde também) para uma consideração das preocupações com a “totalidade” dos objetos-sujeitos, a própria separação entre indivíduo, família e comunidade desaparece, ou se torna um empreendimento extremamente arbitrário. Se a simpática senhora com hipertensão já é um todo e condensa na sua ida a USF os diferentes enactamento possíveis daquelas unidades de intervenção, decidir se determinado enactamento corresponde a sua dimensão de indivíduo ou sua dimensão comunitária é pouco interessante. Isso me leva a pensar numa complementação da minha hipótese/especulação acima: não há um modo de lidar com o todo diretamente em uma USF, por isso, o todo (a senhora) é dividido (artificialmente) em diferentes partes para poder ser (finalmente) tratado como um todo; o todo só é realizado na USF através da mediação de uma divisão em partes/dimensões.] Podemos nos dirigir para o segundo problema já que o problema da multiplicidade nos permite vislumbrar uma interessante dinâmica entre partes e todos. O segundo problema diz respeito exatamente ao modo em que partes são conectadas para formar todos. O argumento aqui é dependente dos trabalhos de Marilyn Strathern sobre conexões merográficas. Vou me limitar a apenas delinear uma breve exposição do que são conexões merográficas para poder apresentar as questões que esse modo de conectar coloca para as motivações totalizantes no campo as ABS. O tipo de conexão utilizada por euramericanos para conectar entidades ou domínios é descrita por Marilyn Strathern (1992) como merográfica. Ela busca tornar explícito um modo especifico de conectar entidades/domínios que mantem a individualidade de cada 8

uma intacta, tornando possível que tal entidade não seja completamente parte de um todo, pois ela sempre poderá ser parte de outra coisa a partir de uma outra perspectiva. Assim, partes podem formar todos, mas também serem em si mesmos todos específicos. Esse modo de conectar entidades é bastante eficaz para tornar a produção de conhecimento uma atividade infindável. Sempre é possível descobrir (ou fazer) uma nova conexão entre coisas e dessa forma produzir mais conhecimento sobre elas. Toda mudança de perspectiva implica, dessa forma, um acréscimo (e igualmente um decréscimo) de conhecimento. É exatamente isso que está em jogo na política ontológica de totalização na ABS. Adiciona-se dimensões (diferentes) ao fenômeno com o intuito de conhecer melhor ele; e essa adição é efetuada de tal modo que nem as dimensões e nem o fenômeno sejam confundidos como as mesmas coisas — a sua distinção é mantida. Contudo, se de outra perspectiva o conhecimento é deslocado, pois o fenômeno pode ser visto como conectado a outras dimensões, produzir o todo não chega a termo. O que um descreveu como um todo, pode ser descrito enquanto parte de algo mais por outra pessoa. Isso é extremamente frequente nas discussões sobre como garantir atendimento humanizado no campo da Saúde; me parece que os atores estão sempre se surpreendendo por descobrir uma outra dimensão que parece ter sido ignorada anteriormente. Mas o que parece não acontecer é o reconhecimento de que é a busca pelo todo através de conexões merográficas que inevitavelmente produz a incompletude. O todo só pode ser ajuntado como todo porque ele é incompleto. Mas como etnógrafo, uma das minhas tarefas é levar a sério as pessoas com quem tenho me relacionado — e isso inclui o fato delas afirmarem que lidam com o todo. Portanto, uma questão que me mobilizada são os modos com que eles conseguem estabilizar totalidades, mesmo que elas sejam totalidades sempre parciais. [Ainda não posso afirmar se eles reconhecem ou não tal parcialidade.] Para finalizar, gostaria de enfatizar que essas questões me mobilizam a pensar como descrever as preocupações com a integralidade e humanização sem uma linguagem de todos e partes, tendo em vista que o que tanto a multiplicidade ontológica quanto as conexões merográficas produzem são complicações para uma descrição feita através desses termos. Como descrever objetos-sujeitos que são simultaneamente partes e todos? Como pensar modos de garantir a integralidade e a humanização que não são motivadas pela intervenção através de todos? 9

[Um último efeito da política ontológica de totalização é intrigante. Afirmei que a preocupação com o todo se desdobra em tentativas de lidar com a pessoa como um todo, a doença como um todo e a saúde como um todo. O que é interessante, pelo menos na USF, é que ver todas essas entidades como um todo faz com que elas se tornem análogas. Pessoa, doença e saúde se tornam a mesma coisa, só que de maneiras diferentes. Basta olharmos para a senhora hipertensa, todos os diferentes enactamentos que apresentei indexicam tanto à pessoa (como um todo) quanto a doença (como um todo) ou a saúde (como um todo).]

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