Messianismo político e sua super-ação: uma breve história do Superman

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MESSIANISMO POLÍTICO E SUA SUPER-AÇÃO: UMA BREVE HISTÓRIA DO SUPERMAN Alexandre Linck Vargas Mestre, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil – [email protected]

Eixo temático: HQ e Cultura Resumo: Este trabalho tem por pretensão ler um potencial espaço político e respectivo diâmetro, sob as noções políticas de Rancière e Sloterdijk, no personagem dos quadrinhos e cinema, Superman. Procurando identificar, assim, a fulguração de um messianismo latente e os caminhos de sua super-ação na política atual. Palavras-chave: Política, Superman, Messianismo. Abstract: This article has the intention to read a potential political space and respective diameter, under Rancière and Sloterdijk’s notions of politics, about the film and comic book character, Superman. Searching to identify the fulguration of a latent messianism and the paths of its own overcoming in the present politics. Key-words: Politics, Superman, Messianism.

Quando um homem de vestes excêntricas foi capaz de erguer um carro, a política clássica vislumbrou a chegada de seu super-homem. Não era exatamente o übersmensch nietzscheano – muito pelo contrário. Superman surgia na Action Comics número 1 em 1938, consolidando consigo um formato que viria a repetir-se por décadas: o super-herói fantasiado publicado em revistas em quadrinhos, conquistando sua alforria dos suplementos dominicais dos jornais e apostando numa nova indústria do imaginado. A primeira aparição deste até então desconhecido Superman não poderia ser mais apropriada: com um colant azul, portando uma capa vermelha, elegante, trêmula ao vento, além de um símbolo marcante, um ‘S’ em seu peito robusto. O atlético homem de queixo quadrado ergue um carro com os fortes punhos semi cerrados, a expressão austera, forçando o veículo contra uma rocha, destruindo-o. As pessoas à volta correm perplexas. Quem ler a trama da edição descobrirá tratar-se de bandidos, mas essa é uma impressão posterior – o observador desavisado apenas verá na capa simples cidadãos apavorados com a fulguração e ação deste impressionante Ser. Destaque para um sujeito caucasiano em primeiro plano, de terno, correndo com as mãos na cabeça, olhos esbugalhados e boca retorcida, como tentando assimilar aquilo que vê – ou viu, já que agora corre,

virando as costas à ameaça do improvável. Erguer um carro para um homem é de fato

um

feito

impressionante,

mas

ainda

cognoscível



um

impossível

compreensível, capaz de atribuir uma dimensão. Tal dimensão, ou ainda diâmetro, espaço traçado e ocupado, associou anos depois o super-heroísmo a um messianismo moral de forma supostamente incontestável. Superman enquanto imagem, antes configurada pelo horror, como na sua primeira aparição, irá aos poucos fortalecer-se na boa-nova do messianismo. Talvez em Superman, o filme, de Richard Donner, em 1978, seja o ápice desta valoração ampliada e potencializada a um público de salas de cinema, de longe muito mais vasto que o dos quadrinhos e mais receptivo a tal evangelho na então fábrica oficial dos sonhos deste século. Não é preciso retomar aqui elementos como a bíblica Krypton; os El, que do hebreu significa Deus; o cataclisma natural que a consome apesar do frio apelo de Jor-El; o Pai que envia seu único filho para salvar os homens, caído de uma estrela, de braços abertos para ser criado por uma família rural humilde; um deserto de gelo, onde o messias na maturidade compreende sua missão após uma série de provações e isolamento; e a aparente imortalidade do pai original que em uma de suas lições pós-morte chega a tocar na palavra imortalidade e “suas bases em fatos reais” (SUPERMAN, 2006). Tais elementos foram bastante desenvolvidos em diversas análises. É sabido que apesar de praticamente todas estas informações estarem presentes parcialmente ao longo das décadas nas Histórias em Quadrinhos (HQs) de Superman, Donner tencionou ao máximo a alusão a Cristo, já constitutiva na mitologia do personagem. A ideia inicial de assombro em um homem erguer um carro em 1938 é convertida num ato benevolente e salvador, altamente messiânico, em um bebê praticando o mesmo feito em 1978 como seu primeiro ato super-heróico, quando então o Sr. Kent ao fazer reparos na parte de baixo do carro vê o veículo perder seu apoio e tal fatalidade acabar por abortada pela jovem criança que ergue o carro e salva o futuro pai da morte. Esta cena é emblemática para pensarmos as mudanças pela qual o personagem Superman atravessa. Entender o porquê dessa mudança em quarenta anos, fora do contexto meramente mercadológico, e sim num sentido político, conseguindo ver suas ressonâncias, sua espacialidade, é o cerne deste artigo: Superman se faz Cristo, ou melhor, Jesus feito enquanto Messias encontra

uma nova atualização em Superman. Poder-se-ia dizer que Superman é um Cristo Messias mais completo para as ansiedades políticas do século XX do que Jesus? Aqui cabe um intervalo na forma de uma pergunta: o que é política? Jacques Rancière para fazer esta mesma pergunta parte da concepção de “partilha do sensível” para entender o ser político. Uma denominação se faz necessária: Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e de recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta a participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. [...] A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum, etc. (RANCIÈRE, 2005, p. 15-16).

Ocupação, ação de ocupar. Um ponto de percepção que traz consigo toda a dinâmica de uma estética da política – esta no seu conceito seminal para o ocidente, o da pólis ocupada por politikos, animais políticos para Aristóteles –, se entende num sentido kantiano – eventualmente revisitado por Foucault – como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (RANCIÈRE, 2005, p. 16-17).

Tal concepção de Rancière torna-se eticamente relevante para pensarmos a política fora de uma tradição do conhecimento, ontológica, estabelecida por uma noção de “campo” autonômico, ou antes, de “centro”. A partilha do sensível não pressupõe um centro, a não ser o centro enquanto ausência, ou antes, ampla presença – onipresença. A política se dá de todas as formas e maneiras onde um espaço se faz. Nesse sentido, compreender política é antes de tudo avistar os acontecimentos, as edificações, construções epistemológicas de espaço. Aqui é que, precisamente, nossos super-homens pontuam-se numa vida política. Ficção, entendida como ocupação, “antes de tudo uma questão de distribuição dos lugares”

(Idem, p. 17), desenrola-se principalmente na Arte, onde, por excelência, se faz o espaço da potência, do poder-vir-a-ser infinito. “A política e a arte, tanto quanto saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer.” (Idem, p. 59). Partindo, portanto, que fictos, gibis, super-heróis são seres políticos, ocupantes de um espaço, pergunto: quais espaços os super-heróis ocupam politicamente? Qual pode ser seu diâmetro? Será por meio do sujeito de outro espaço caído ainda bebê no nosso que tentarei obter uma argumentação aceitável à minha presunçosa suposição inicial de ler Superman enquanto um messias não só da tradição judaico-cristã, mas acima de tudo, da política clássica. A leitura da prática política ao longo da História feita por Peter Sloterdijk é de grande valia para este trabalho. A sua divisão em três períodos – a saber, a paleopolítica, política clássica e hiper-política – é crucial para compreender não só o espaço do super-herói, mas também suas propagações e consequências. É na paleopolítica, período pré-civilizatório, onde em hordas, o homo sapiens pratica sua primeira grande política: a repetição do homem pelo homem – que, apesar de parecer uma operação simplória, fulgura critérios-noção de pertença, definindo quem deve nascer, viver ou morrer em uniões-fusões feitas em nome de poder, terras, armas ou atributos físicos. Essa vontade de pertença, esfera primitiva distintiva, início de uma partilha do sensível autoconsciente, pré-projeto de comum tão caro à paleopolítica das pequenas hordas é o fundamento da chamada política clássica da era das grandes civilizações agrárias: o local onde violentamente é transposta a milhares ou milhões de pessoas viventes em grandes cidades ou impérios uma mesma pretensão de unidade, de assimilar um Grande, de pertencer a um Todo. É na política clássica que todo investimento humano migrará de uma política da repetição para uma problemática da utilização do homem pelo homem. Como manter politicamente monológica multidões mergulhadas em espaços plurais inerentes à intensificação do múltiplo desenvolvimento espaço-político das grandes cidades e impérios? Como tornar possível uma macro-horda? À responsabilidade deste exercício megalopata de adestramento político do homem, Sloterdijk atribui ao atletismo estatal. “Nas grandes civilizações, os agentes da política clássica são, portanto,

os

atletas

do

Estado

amadurecidos

num

training

do

Grande

existencialmente abrangente para a estada num mundo de perspectivas e preocupações grandes e abstratas.” (Idem, p. 46). Este atleta não é só aquele que o senso comum hoje denomina de “classe política”, mas também filósofos, religiosos, cientistas, artistas, intelectuais, que se destacam enquanto excelentes construtores de fictos, na função de ordenar os espaços do Estado – e aqui penso estado em seu duplo jogo, político constituído e de estar, ocupar um espaço. Apesar de Sloterdijk apontar que com a era industrial temos gradativamente uma degradação e impossibilidade de projetos coletivos na transição para a hiperpolítica, ele mesmo atenta para resistências por inércia, quase que “naturais” da política clássica em desaparecimento, a exemplo do hitlerismo, stalinismo, etc. De certa forma, Walter Benjamin assinalaria em seus estudos sobre a degeneração da experiência e o fim da narração homem a homem, talvez, o acontecimento decisivo para esta cisão de espaços, esta política divisão de águas – para nos mantermos nas analogias religiosas. Afinal, a partir do momento em que a tradição perde a capacidade de coesão cultural na transmissão narrada, e em troca dá-se uma série sem fim de fragmentos, dados sem História para lembrarmos Marx, nasce então a modernidade, uma filha plural de valores irreuníveis e escalas incomensuráveis. Esta é a hiper-política, caracterizada, portanto, na recusa de um Grande, em nome de um Outro, incapaz de reunir-se numa esfera de absolutos, conservar-se na ordem do Pai, viver pela vida de Deus. “Fará da minha força a sua e verá a minha vida através de seus olhos assim como a sua será vista através dos meus. O filho transforma-se no pai e o pai transforma-se no filho” diz Jor-El ao Superman no filme. Em Jean Paul, Heinrich Reine e por último em Nietzsche a nova consciência de era assume uma forma programática sob a frase “Deus está morto”. [...] Numa cultura monoteisticamente condicionada, declarar que deus está morto implica um abalo em todas as referências e o anúncio de uma nova forma de mundo. Com “Deus” apaga-se o princípio de pertencer-se de todas as pessoas na unidade de um espaço criado [...] [deixando-as] lado a lado com pluralidades órfãs numa monstruosa paisagem mundial sem nome nem denominador comum, sem saber se na ausência de um criador coletivo uma obra coletiva ainda poderá ser definida. (SLOTERDIJK, 1999, p. 58-59).

Desta forma, o espaço hiper-político se funda numa partilha do sensível que não mais se pressupõe num universo finito de ocupações delineado em fronteiras fixas, mas num multiverso de dimensões ressonantes em acontecimentos móveis.

“Os participantes do novo jogo mundial da era industrial não se definem através de ‘pátria’ e solo, mas de acessos a estações ferroviárias, terminais aéreos, possibilidades de conexões. O mundo para eles é uma hiper-esfera conectada.” (Idem, p. 60). Não é por meios imediatos que o homem da política clássica migrará à hiperpolítica. Além dos exemplos apresentados por Sloterdijk, poder-se-ia pensar a cultura de massa também como uma dessas resistências? Nem sempre consciente da sua capacidade de ordenação do Grande na cultura, mas, ainda assim, formalizada tradicionalmente para esta disposição – e deslumbrada com as possibilidades técnicas industriais de produção e reprodução antes impossíveis na era agrária? Não seria a cultura de massa, costumeiramente vista sintomática à industrialização, uma condição segunda forjada regra-fora-da-regra na serventia para a eterna auto-manutenção de uma condição primeira? Já que Deus está morto, alguns sentirão a necessidade de ocupar este espaço – e sempre lembramos dos ditadores, porém pouco dos ditos. Voltemos ao Superman das HQs e do cinema: Clark cresceu no campo, aprendeu os ditos valores universais e partiu para o mundo. Seu emblema, sua presença, nas palavras do próprio pai biológico, serve ao propósito de “uma luz para mostrar o caminho” (SUPERMAN, 2006), porém tais fundações suficientemente capazes de erguer diretrizes não aparecem demonstradas por Jor-El – é de Jonathan e Martha que Superman as lega. O evangelho de Superman, portanto, se funda enquanto um estatuto de política clássica do filho da era agrária, levado àqueles que nela não mais se reconhecem – vivemos a grande perda do fim dos tempos e a salvação tem de vir da restauração, diria o religioso acalentado. “De fato, o homo politicus e o homo metaphysicus se pertencem mutuamente; prospectores do Estado e prospectores de Deus são gêmeos evolucionários.” (Idem, p. 33). Seria então o Superman, ícone da cultura de massa, um grande messias, um super-homem, um homem-em-superação, o mais magistral atleta do Estado jamais concebido, confundido entre pássaro ou avião, tamanho seu ineditismo, capaz de resgatar a política clássica, ou melhor, de levar à hiper-política uma nova velha receita de pertença ao Todo? “O atletismo de Estado da globalidade ainda não foi

escrito, e se realmente há preparativos para o mesmo, então somente na forma de treinamentos selvagens e autodidatas.” (Idem, p. 65). É na ficção política, virtualidade criadora, potência espacial, alavancadas pela reprodutibilidade técnica na cultura de massa, que o jogo presente em Superman se propaga para além dos seus ditames em papel ou em película, lançando-se numa espécie de inconsciente político. Isto é magistralmente elucidado no início do filme do super-herói, quando, em preto e branco, uma criança nos apresenta uma velha HQ do personagem para depois da exibição dos créditos iniciais, ao nos aproximarmos de Krypton e, avistando aquele planeta, gênese da saga do Superman, Jor-El proferir a seguinte frase “isto não é fantasia...”. É o que Nietzsche, para Sloterdijk, nos diz: “sobre aquilo que inspira nosso tempo com esperança e horror.” (Idem, p.60). Há um semblante que demarca uma queda, ausência, numa urgência sem limites do real – para adotarmos Lacan – que “se cristalizam em novidades não compreendidas.” (Idem, p. 60). Seria, portanto, o horror do homem da capa de Action Comics 1 e a esperança do Jonathan Kent em Superman, o filme, quando presenciam o filho das estrelas erguer um carro, a demonstração de uma sensibilidade política traduzida na percepção de que precisamos de super-atletas políticos porque temos um problema crônico adiante? Com a hiper-política a incapacidade de pertença num Todo parece se extinguir dando lugar a um individualismo levado até as últimas consequências: cada homem torna-se uma aparição única, um ser desassociado de uma essência comum a todos os outros seres. Deleuze havia posto que na luta contra um Mesmo povoado por cópias-ícones ideais, as “boas” pretendentes no platonismo, dever-se-ia responder com os simulacros-fantasmas, potências do falso, força criadora e distinta, seres porvir, Outros, incapazes de uma pertença, ou ainda mais, de uma reduplicação, transmissão de si, a não ser enquanto exemplo da própria impossibilidade de exemplos (DELEUZE, 1994, p. 270-271). Sloterdijk parece crer que a era dos simulacros-fantasmas finalmente chegou e um novo problema político se estabelece: como ainda repetir o homem pelo homem? Tal orientação chave da paleopolítica, na hiper-política não parece fazer o menor sentido. Como repetir algo que por natureza não se permite repetível, como manter uma experiência mínima que garanta ao menos a perpetuação da espécie?

Nisso, o desenvolvimento do mundo moderno enriqueceu em sentido o teorema de Nietzsche a respeito do “último homem” a partir do prólogo de Assim Falava Zaratustra. [...] O último homem é o homem sem retorno. Ele está embutido num mundo que não mais reconhece a primazia da reprodução. Indivíduos desse tipo são, de acordo com seu autoentendimento e mais ainda com sua posição num processo das gerações, tanto Novos quanto também Últimos. Eles vivem com o sentimento do nãoretorno; o indivíduo individualizado até o limite quer uma vivência que se auto-recompensa; ele leva sua vida como consumidor final de si mesmo e suas chances. [...] a perspectiva de descendentes não significa mais autorepetição de formas de vida em novas gerações; a reprodução, quando escapa, abre perspectivas de imprevisibilidade na forma de filhos, que já existirão como neo-pessoas dessemelhantes em neo-mundos dessemelhantes. (SLOTERDIJK,1999, p. 88-89).

A individualização extremada traz consequências éticas a toda uma nova maneira de fazer política, construir ficções. O cataclisma ecológico cada vez mais iminente – e dentre os motivos, destaca-se a incapacidade de reaproveitamento futuro de toda uma infraestrutura de produção – é apenas um sintoma, segundo Sloterdijk, desta política feita por e para homens que não conseguem vislumbrar mais do que sua própria exaltação numa vida presente, sem um futuro projeto comum de transmissão de experiências. A hiper-política diante deste problema se lança como a primeira política possível para os últimos homens – “na medida em que organiza a capacidade de convívio dos últimos, deve fazer um desafio de exigências sem precedentes; ela está diante da missão de fazer da massa dos últimos uma sociedade de indivíduos que aceitam continuar desempenhando um papel de intermediários entre ascendentes e descendentes.” (Idem, p. 92). A este desafio o Superman fracassou. Mesmo considerando que boa parte do mundo esteve à espera dos bárbaros – parafraseando um poema de Kaváfis –, o Messias da política clássica não conseguiu atingir o objetivo desejado. Do começo mais discreto em 1938, enquanto uma figura pública pouco confiável e de poderes impressionantes, mais ainda limitados – pois aquele Superman não podia voar, só dar grande saltos –, passando, posteriormente, ao Superman no auge de seu messianismo em 1978, de imensa popularidade e ampla aceitação, que não só flutuava sobre nossas cabeças à incríveis velocidades como também era capaz de fazer a Terra girar no sentido contrário para salvar vidas humanas – seria em direção ao tempo em que projetos comuns ainda eram possíveis? –, o último filho de Krypton presenciou seu fim nos anos 1980. A cultura de massa voltou-se contra seu

estandarte: as continuações de Superman, o filme, não obtiveram o sucesso mercadológico desejado, suas histórias não venderiam mais como antes e a indústria de HQs norte-americanos de predominância cada vez maior de adultos no seu público leitor, empurrou Superman cada vez mais para um espaço a ele pouco conhecido e menos ainda tolerado – o da irrepetibilidade, impossibilidade de autoexemplo ficcional-político na hiper-política. 1986 é um ano-chave para esta acusação: três obras serão decisivas para deslocar espacialmente o Superman, alterando definitivamente sua dimensão. Em Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, quando um Bruce Wayne mentalmente perturbado e violento, aos 55 anos, retorna à ativa como Batman, proclamando-se uma espécie de auto-código de lei, resulta numa série de crises políticas que culminam num confronto mortal com um Superman. O filho de Krypton assim age atendendo ao pedido do presidente Reagan em conter o novo e incontrolável homem-morcego. Com isso, temos uma virada significativa, pois, mesmo que outrora Superman fosse sempre associado aos valores norteamericanos, aqui tal ligação se coloca como falência da totalidade messiânica do personagem. Superman é realocado politicamente – distancia-se categoricamente como detentor de um projeto comum à humanidade para assumir-se detentor de um projeto à maioria, da antiga política oficial, do Velho, presumindo assim a existência de uma minoria não-enquadrável, ou antes, incapaz de servir às estruturas detentoras da política clássica, e por isso mesma, sem-salvação perante o Messias. O discurso de Batman em pensamento, no momento em que luta contra o Superman, no local onde viu seus pais serem assassinados, sintetiza tal ideia: Você sempre soube o que dizer... ‘Sim’. Você sempre disse sim a qualquer um com distintivo... Ou uma bandeira. [...] Exatamente como seus pais ensinaram. Meus pais me ensinaram uma lição diferente. Caídos nesta rua... Sangrando muito... Morrendo sem razão nenhuma... Eles me mostraram que o mundo só faz sentido quando você o obriga a fazer. (MILLER, 2007, p. 194-196).

Ao mesmo tempo em que Frank Miller solapava a política de um Superman, o inglês Alan Moore lançava no mesmo ano, dois arcos de histórias aparentemente sem conexão, porém apontadas à uma mesma asserção: o ícone da política

clássica, detentor do bem comum, o super-herói, enfim, está morto – e as coincidências com o Deus morto por Nietzsche são vitais. Em 1986 Alan Moore compôs uma espécie de morte do Superman em duas partes, primeiro na revista Superman e por fim na precursora Action Comics. O que aconteceu com o Homem de Aço? de Alan Moore, desenhada por Curt Swan, mostra uma Lois Lane aos quarenta anos, casada com um operário, mãe de um pequeno garoto, numa sociedade futurista concedendo uma entrevista a um dos muitos jornalistas que de tempos em tempos a procura para ouvir novamente sua história dos últimos dias de vida do Superman. A trama então prossegue mostrando o passado, onde vemos Superman numa queda em perplexidade e melancolia por uma sucessão de fatos que o isolam ainda mais na busca de segurança para si e seus aliados num mundo de vilões hiper-violentos. Ao clímax, diante de ameaças a toda vida na Terra, Superman se vê obrigado a matar o vilão arquiteto de todos os crimes – e para isso não há perdão. Superman não admite o ato que cometeu e se dirige a câmara de kryptonita dourada, extinguindo seus poderes permanentemente. De volta ao futuro, o repórter não crê na morte do Superman, já que nunca fora encontrado o corpo, Lois insiste: Superman está morto. O repórter parte e o marido de Lois, Jordan, que havia chegado em casa minimizando o interesse do jornalista, dizendo “Ele não era nada de especial. Nós, trabalhadores, filho... nós é que somos os verdadeiros heróis” (MOORE; SWAN, 2006, p. 191) se revela ao leitor como exsuper-homem, agora, só homem.“Você gosta mesmo disso, não? Ir trabalhar todos os dias, levar o lixo pra calçada, trocar as fraldas de Jonathan... Toda essa coisa normal”( Idem, p. 214) questiona Lois. Jordan é enfático a respeito de Superman, “O cara foi superestimado. Era todo cheio de si. Achava que o mundo não podia passar sem ele” (Idem, p. 191). A última página da história conclui-se com Jordan e Lois em suas rotinas matrimoniais enquanto vemos o filho, Jonathan, ao pegar carvão, transformá-lo em diamante. Sem parecer ter visto tal fenômeno, Superman encerra a história dando uma piscadela para o leitor, questionando “...o que você acha?”. Alusões cristãs à parte como a menção de um corpo nunca encontrado, o mais relevante aqui é o Superman percebendo-se incompatível com o mundo moderno: assim como a superexposição da violência na modernidade não faz mais o menor sentido – diria Benjamin, não lega mais nenhuma experiência –, um super-

herói, que em resposta teria que empregar os mesmos esforços, também não terá mais seu espaço político resguardado enquanto semblante dos bons valores e costumes. Não há mais um Todo possível revestido de bom-mocismo a ser erigido a respeito do mundo por um super-herói. Portanto, a individualidade preservada na ilha familiar é o único espaço de auto-salvação e auto-manutenção. Mesmo assim, Superman acaba traído. A incapacidade de repetição do homem pelo homem na hiper-política se volta contra o antes homem de aço quando os acontecimentos mostram que a despeito de suas intenções de legar a vida do homem comum, seu filho se mostra tão incomum, irreduplicável enquanto vontade do pai. O título da história, em forma de pergunta dirigida ao passado, num apelo temporal, “o que aconteceu?”, poderia muito bem enlaçar-se com um clamor espacial de “por onde anda?”; e assim, tanto na versão brasileira, que se refere ao Superman como “homem de aço”, como na norte-americana “man of tomorrow”, a morte de uma iconografia do espaço comum, da herança da “boa” tradição, do perduro do homem clássico, ou, em outras palavras, a queda de um homem de aço e a impossibilidade de um homem do amanhã, representariam mais que sintomas decisivos da crise instituída na hiper-política. Diálogo semelhante em torno da impotência do super-herói messiânico da política clássica ocorre em outra obra escrita por Moore e desenhada por Dave Gibbons, Watchmen, quando vemos – além de todas as imbricações psico e sociológicas inevitáveis em super-heróis coabitando um mundo real –, o ponto central, o marco zero, o espaço puro em que um super-herói precisa postar-se para atingir seu objetivo. Ozymandias, um Narciso moderno que vive da auto-repetição de sua imagem em programas televisivos, brinquedos, jogos eletrônicos e derivados; ele, que confessa possuir forte admiração somente por um homem, Alexandre, o Grande, pela sua capacidade de unificação do mundo em nome de uma só proposta humanística – e que no quadrinho possui a mesma fisionomia de Ozymandias –, é quem vai engendrar a chacina de metade da população de Nova York sob a fachada de uma invasão alienígena para conter a guerra nuclear iminente entre os EUA e URSS – o que veremos mais adiante, obter seu êxito na união de todas as nações contra a ameaça do espaço externo. Tal situação, hiperbólica da fábula que cerca a bomba de Hiroshima, também citada em Batman – O Cavaleiro das Trevas, parece

ser instrumental à compreensão do super-heroísmo político clássico: é preciso matar milhares para salvar milhões, e com isso cessar a segunda grande guerra – assim como é preciso matar milhões para salvar bilhões, e com isso estancar a guerra nuclear. Qual é o próximo extermínio de homens em massa que um super-herói terá de aplicar contra ameaças ainda maiores à massa de homens? Watchmen mostra com bastante contundência a ocupação, posição inescapável do super-herói clássico como aquele que precisa tornar-se o maior super-vilão na defesa da vida. Superman, nesse sentindo, foi revolucionário quando resolveu se aposentar. Quem sabe ele tenha percebido a impossibilidade da conjunção do super-heroísmo na hiper-política, ou simplesmente o “homem de aço” estivesse cansado e desgastado – dá no mesmo. Se na catástrofe lingüística que impossibilitou Babel, diz Sloterdijk, se estabeleceu “a ausência de uma obra comum a todas as pessoas como decreto divino” (SLOTERDIJK, 1999, p. 13), talvez na narrativa de Superman, teologicamente melhor enquadrada aos nossos tempos, o cataclisma natural de Krypton nascido a partir do momento em que um homem discordou do Todo, e com isso, não viu mais possibilidade de auto-repetição da espécie no espaço do seu mundo, esteja uma boa oportunidade de um (re)início a uma pergunta mal formulada a respeito de vida e política, messianismo e potência. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-222. DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1994. SUPERMAN, o filme. Direção: Richard Donner. Los Angeles: Warner Brothers, 2006. 3 DVD (142 min). Distribuído por Warner Home Video. MILLER, Frank. Batman – O cavaleiro das trevas. São Paulo: Panini, 2007. MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Panini, 2009. MOORE, Alan; SWAN, Curt. O que aconteceu com o homem de aço? In: MOORE, Alan. Grandes clássicos DC 09. São Paulo: Panini, 2006. p. 164-214. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005. SIEGEL, Jerry; SHUSTER, Joe. Superman: crônicas. Vol. 1. São Paulo: Panini, 2007. SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

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