Metacrítica do poder disciplinar. Sexualidade e psicanálise em \"A vontade de saber\", de Michel Foucault

June 14, 2017 | Autor: Verlaine Freitas | Categoria: Psychoanalysis, Sigmund Freud, Michel Foucault
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l'viiCHE.L FOl.ICA.lTLT: ENTRE O PASSADO E O

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ANOS DE (DES)LOCAMENTOS

METACRinCA DO PODER DISCIPLINAR. SEXUALIDADE E PSICANÁUSE EM "A VONTADE DE SUEI", DE MICHEL FOUCAULT Verlaine Freitas

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obra de Sigmund Freud exerceu um forte impacto na concepção filosófica de diversos autores. Não foram poucos os filósofos que tomara1n a psicanálise como objeto de investigação, de crítica, de contraposição, mas també1n como elemento nuclear de suas teorias. Seguramente não há outro autor, fora da filoso­ fia, que a tenha influenciado tanto. Isso se deve, de um ponto de vista geral, ao fato de que tanto o objeto (a subjetividade) quanto o princípio metodológico basilar da psicanálise (a her1nenêutica crítica) sej am funda1nentalrnente afins a uma grande porção das correntes filosóficas contemporâneas. Michel Foucault está entre aqueles que mais dialogaram com o mestre vienense. De forma Íinplícita ou explícita, a psicanálise está presente em quase todas suas grandes obras, como A história da loucura, As p alavras e as coisas, Vigiar epunir e A história da sexua­ lidade I, A vontade saber. Não é nossa intenção fazer uma abordage1n panorâmica desse diálogo, 1nas, siln, discutir critica1nente como a arqueologia da sexualidade foi apresentada neste último livro como uma arqueologia da psicanálise. l\1ais propriamente, trata­ se de mostrar as tensões inerentes ao pensamento foucaultiano quando rechaça a hipótese de que o sexo tenha sido reprilnido na sociedade burguesa, a partir do século XVIII, e também quando o autor concebe o sexo como uma unidade artificial, in1aginária e fictícia. Essas duas teses, colocadas, respectivatnente, no início

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·, ·• ··· Né de igualdade a confis são, a arte sadiana e a psicanálise, Foucault precisa abstrair de distinções qualitativas essenciais, que apontam de forma gritante para aquilo que ele quer criticar: a repressão sexual. No que concerne propriarnente à psicanálise, Renato Mezan (1985) demonstra com clareza que Foucault desconsiderou sua especificidade relativa a três elementos fundamentais: 1 ) seu obj eto 1nais próprio, pois o sexo para a teoria psicanalítica não é o corpo­ ral, o praticado conscientemente, mas, sim, o ligado à dimensão psíquica, deter1ninada por fantasias, trautnas, representações recalcadas etc.; 2) seu conceito nuclear, o de inconsciente, sen1 o qual nern a prática nem a teoria psicanalíticas têm sentido; e 3) a regra fundamental da clínica, a associação livre, indispensável para constituir a superficie de falas reveladoras de conteúdos latentes indiscerníveis ao analisando en1 sua introspecção reflexiva. Já e1n virtude dessas três abstrações, podernos dizer que, em­ bora Foucault diga "psicanálise" ao se referir a uma das ciências sexuais, restou dela tão somente o nome e uma face mais superfi­ cial, sem refletir o que ela te1n de próprio. Nesse contexto de abstração generalizada das diferenças em prol de uma crítica contumaz das formas culturais a partir de seu co1nprotnetimento com sua proveniência, um dos grandes proble­ mas da análi�e foucaultiana da sexualidade (não apenas para corn a psicanálise), e que não nos parece ser debatido com a suficiente ênfase na literatura secundária, é o excessivo peso conferido à din1ensão discursiva, de linguagem, para sustentar a crítica à hi­ pótese repressiva. O filósofo francês apoia-sc unica1nente na lógica c no plano do discurso para falar da realidade ou da irrealidade da repressão sexual:

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.t\NOS DE (DESJLOCAMENTOS

[ ...] o essencial é a multiplicaç.ão dos discursos sobre o sexo no próprio catnpo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez n1ais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forrna da articulação explícita e do detalhe infinita mente acu1nulado. (VS 26-7/22) O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa que con­ siste em dizer tudo sobre seu sexo. [. . .] Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se uma aparelhagetn para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de seren1 efeito de sua própria economia. (VS SS/26) história da sexualidade- isto é, daquilo que tüncionou no século XIX con1o domínio de verdade específica- deve ser feita, antes de 1nais nada, tio ponto de vista de urna história dos discursos. (VS 92/67)

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Pouco faltou para ouvirmos a associação direta: se fala1nos sobre sexo ( seja de que forma for), não o reprimiinos, indepen­ dente do que mais se fizer ein relação às práticas, aos modelos de sexualidade, ao sentimento de vergonha, às culpas etc., que se associam à prática sexual. -Ora, o que dizer da realidade concreta da desvalorização radical do sexo pré-n1atrimonial? Como não prestar atenção ao patriarcalismo da sociedade euro­ peia, que descredencia brutal1nente o prazer feminino, levando à prática da mutilação genital das mulheres? Co1no não considerar o preconceito, a violência e o desrespeito aos homossexuais? Quanto a esta última questão, é necessário ter e111 mente que a aversão social à homossexualidade n ão afeta apenas aqueles que a praticam, pois incide claramente sobre um complexo de fantasias, desej os e princípios de identidade sexual de todas as pessoas. Sabe-se que, durante o século XIX, pessoas acusadas de homossexualidade forarn queimadas vivas na Europa. Diante deste fato, qual outra conclusão tirar a não ser que se trata da face mais visível e drástica de uma atitude altamente repressiva, vexatória e culpabilizante em relação a toda uma importante

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parcela da vida sexual na sociedade? A perspectiva de Foucault, entretanto, é oposta e surpreende bastante: sempre historiadores que dizem que no século XVIII quein1ava1n-se homossexuais. É o que se pode ler nos códigos; mas quantos, de fàto, fbran1 quein1ados no século X\'lll em toda a Europa? Que eu saiba, nem tnesmo 10. Em compensação, constata-se que todo ano, em Paris, centenas de homossexuais são presos no Jardin1 de Luxemburgo e nas cercanias do Palais-Royal. E preciso falar de repressão? Esse sisten1a de detenção não se explica pela lei ou pela vontade de reprimir a homossexualidade (seja de que modo for). Em geral, eles são presos por [apenas vf] 24 horas. (FOUCAULT, 2010, p.SS6) Há



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Essa colocação nos parece estarrecedora. Quantos hornos­ sexuais precisariam ser queÍlnados vivos, e por quanto tempo milhares deles teriam que pertnanecer presos para que Foucault reconhecesse que existe uma forte repressão à homossexualidade? Em relação à pergunta no n1eio dessa passagetn, eu diria que é preciso, siin, falar de repressão, em seus diversos graus, formas, níveis de sua explicitação, com efeitos múltiplos no complex9 psicossexual. Considerando todas essas nuances, é de suma impor­ tância atentar para o fato de Foucault empregar, do início ao fin1 de seu livro, um conceito de repressão essencialmente negativo e totalizante: "Interdição, censura e negação são mesmo as formas pelas quais o poder se exerce de n1aneira geral, talvez en1 qualquer sociedade e, infalivelmente, na nossa?" (VS 18/ 15), e também: Isso seria pr6prio da repressão e é o que a distingue das interdições rnantidas pela simples lei penal: a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecin1ento, mas tan1bén1 como injunção ao silêncio, afirrnação de inexistência e, consequenternente, constatação de que, en1 tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nen1 para saber. (VS 10/ 10)

Está claro que o autor desconsidera diferenças qualitativas e de intensidade da repressão sexual (de forrna análoga a como o 86

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faz relativo aos diferentes tipos de discurso) , de modo que, aliando essa característica à sua ênfase excessiva no â1nbito discursivo, a repressão sexual somente é caracterizada por ele pela proibição radical da prática ou, principalmente, pelo imperativo do silêncio em relação ao sexo. Assim definida, sem se enfocar nenhuma distin­ ção qualitativa relevante nem de inte11sidade, desconsiderando os efeitos altamente maléficos de culpabilização trazidos pela atitude confessional do sexo como pecado, da hutnilhação sistemática das crianças por sua atividade n1asturbatória, do cercea1nento bárbaro do prazer fetninino etc. , ou seja, descarnada de todos os atributos inerentes aos modos e intensidades com que a sociedade constran­ ge a vida sexual em seus di,rersos planos de realização, e sendo ton1ada apenas co1no pura interdição e imposição ao silêncio, não existiria 1nesmo repressão na sociedade burguesa. Foucault, entretanto, reconhece que houve atitudes repres­ sivas desde o início da modernidade - a hipótese não é propria­ n1ente "falsa'' (VS 19/ 16) -, mas, mesn1o neste momento em que . reconhece a existência do que ele nega siste1naticamente em várias outras partes do texto, a repressão é caracterizada co1no pura proibição, como imposição de silêncio, co1no negação da existên­ cia do sexo, e, além disso, tudo é tomado apenas como periferico, episódico, setn importância no co1nplexo geral da evidenciação discursiva que produz o dispositivo de sexualidade sob o influxo de relações de poder (VS 20-1 I 17). 111

Passamos agora à consideração da face 1nais desconcertante da arqueologia foucaultiana da sexualidade, a saber, a concep­ ção do sexo como sendo uma unidade artificial (VS 204/ 145), elemento 1nais especulativo e ideal (VS 205/ 145), um ponto fic­ tício (VS 206/ 11�6) e Ílnaginário (VS 207 I 146), produzido pelo agrupan1ento arbitrário de diversas características, que faz com que sua própria realidade seja nada mais que uma sedilnentação, um modo de realização, uma via de passage1n, uma extensão do poder, o qual se realizaria ao constituir o sexo como tal, sem que

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necessitemos tomar a lei como constitutiva do desejo segundo uma lógica intrínseca, utna vez que a própria percepção do sexo já é produzida por um poder essencialmente não interditar, mas criador de realidade. Ao longo do livro A vontade de saber, Foucault nega sistema­ ticaJnente não apenas que o sexo tenha uma realidade com uma dinân1ica própria, intrínseca, "por natureza", quanto insiste em dizer que se trata na verdade de um produto das relações de poder que se consubstanciam nas tra1nas discursivas, tal como já falamos. Dentre as "propriedades inerentes" do sexo negadas nessa arqueologia, duas delas são de crucial importância para a psicanálise: que o sexo seja, e1n sua dimensão tnais profunda, refratário ao nosso discurso cons­ ciente, e que ele tenha um J)Oder de causação sobre todo o psiquismo (segundo a psicanálise, isso se dá em virtude de que afetos sexuais recalcados deslocam-se por vias associativas para representações psíquicas as mais diversas). Por paradoxal que seja, a perspectiva foucaultiana é de que se pensatnos ser dificil o acesso às verda�es Inais profundas de ·nossos desejos, isso é devido somente ao modo cotn que o discurso sobre o sexo se instituiu. Dizer de uma obscuri­ dade do objeto de des�jo seria fruto de uma construção cultural (!): causalidade no slüeito, o inconsciente do sujeito, a ver­ dade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível desenrolar­ se no discur s o do sexo. Contudo, não devido a alguma propr iedad e natural inerente ao próprio sexo, mas e1n função das táticas de poder que são imanentes a tal dis­ curso (VS 94/68-9)

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Não se deve descrever a sexualidade co mo um ín1peto rebelde, estranha por natureza e indócil por necessidade, a um poder que, por sua vez, esgota-se na tentativa de sttieitá-la e muitas vezes fracassa em dominá-la i n teira­ mente. Ela aparece mais cotno um ponto de passagem p articularmen t e denso pelas relações de poder; entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre adn1inistração e população. (VS ISu/�)8)

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Havíamos co1nentado que Foucault se abstén1 prograrnati­ camente de refletir sobre a validade ou não dos conceitos, teses, hipóteses etc., da psicanálise, enfocando apenas fatores históricos extr·ínsecos à diinensão epistetnológica dessa teoria. Além do pro­ blema da falácia genética, temos agora um outro, que nos parece tão ou 1nais grave: o filósofo faz repetidas vezes a afirmação taxativa de que não existe uma propriedade inerente ao sexo que o torne refratário à nossa autorreflexão consciente - uma tese que con­ traria frontahnente diversos princípios 1nobilizados na construção da teoria psicanalítica-, se1n aduzir nenhur11 argumento que a sustente. A ·única forma de conferir validade a este posicionamento teórico consiste, ao longo de todo o livro, e1n apenas reafirmar urna outra tese própria de que o sexo é produzido por relações de poder, ·q ue geram esta categoria artificial, fictícia, idealizada etc. Trata-se de uma dupla negligência em relação à gravidade do ato de confrontar discursos teóricos distintos, pois Foucault se isenta total1nente da tarefa de investigar a especificidade do discurso psicanalítico em contraste com a confissão cristã, a psiquiatria, as instituições pedagógicas etc., considera totalmente desnecessário verificar a validade intrínseca de tal discurso teórico, e agora aplica este mesmo procedimento a seu próprio discurso, colocando urna tese altamente problemática e que afi·onta diretatncnte u1n discurso que é alvo de uma crítica contundente, sem nem mesmo esboçar algu1na justificativa teórica. Vemos claramente: é o dispositivo de sexualidade que, em suas diferentes estratégias, instaura essa ideia "do sexo"; e o faz aparecer, sob as quatro grandes formas - da his­ teria, do onanismo, do fetichismo e do coito ínterron1pido - co1no sendo submetido ao jogo do todo e da parte, do princípio e da falta; Ja ausência e da presença, do excesso e da deficiência, da funç.ão e do instinto, da finalidade e do sentido, do real e do prazer. Assiln, formou-se pouco a pou­ co a arrnação de un1a teoria geral do sexo. (VS 203-4/ 14.:})

Foucault faz u1n apanhado de várias formas de ler o sexo: o infantil, o perverso e o patológico; refere-se a níveis diferentes: somático, comportamental, mentalidade e jogos de poder; mistura

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VANIA 1V1A.H JA. I.�ESCANO c;trEHHA

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for1nas bizarras de nosologização, superstições, pluralidades de perspectivas teóricas; relaciona formas distintas de abordagem: médica, psiquiátrica, confessional, psicanalítica; e conclui por u1na avaliação filosófica cética e radicalmente nominalista, to1nando como objeto uma formulação generalizada: Huma teoria geral do sexo, (sendo que, dentro dessa "teoria", há diversas estratégias que não são teóricas). Tudo isso lhe permite esquivar-se à obrigação de demonstrar suas próprias posições (de que a obscuridade ao discurso não é uma qualidade inerente ao sexo, por exemplo), na rr1edida em que pode dizer, através de uma descrição fenomenista e historiográfica, que tudo são formas de articulação de poder que criam a realidade do sexo e da sexualidade. Ora, essa teoria assin1 engendrada exerceu um certo nú­ mero de funções no dispositivo de sexual�dade que a tor� naram indispensável. Sobretudo três foram ilnportantes. Primeiro, a noção de "sexo,. permitiu agrupar, de acordo co1n urna unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres e pertnitiu fa­ zer funcionar esta unidade fictícia con1o princípio causal, sentido onipresente, segredo a descobrir em toda parte: o sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e co1no significado universal. (VS 204/ 144-5) ,

E ilnportante notar aqui a conotação extren1arnente pejorativa de "unidade artificiar' da categoria de sexo em contraste com a "realidade'' supostamente não artificial (ou sej a, natural) não pro­ blernatizada dos elementos particulares: lielementos anatÔinico�, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres". Ora, toda unidade de elementos heterogêneos conté1n algum grau - mínimo que seja - de artificialidade e de arbitrariedade, pois ela faz u1n recorte e um agrupamento de características, ge­ rando tnna totalidade a que se confere u1n valor cognitivo, prático, estético, rnoral etc. Cotno isso é evidente, tan1bé1n o é a atitude depreciativa para com a psicanálise como aposta teórica, pois seu princípio fundarnental de que o sexo é uin componente fundante do psiquisn1o já se encontra não apenas antecipado pela afirmação

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de se tratar de uma unidade �'artificial", quanto tambérn invalidado, sem que sua estrutura argumentativa própria sej a analisada. Ao 1nesmo te1npo ern que taxa de artificial a unidade do conceito Hsexo", Foucault toma "elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres" como se tivessem u111a validade evidente, autodada, ou seja, 'cnatural'', em contraste com o "artificial" do sexo: ora, o que é prazer? Sernpre existiu esse conceito? Em que medida ele se distingue do desprazer e da dor? Te111 ele dimensão quantitativa ou qualitativa? Será ele tão evidente e natural co1no quer Foucault? Tribos africanas e povos anterio­ res aos gregos possuiriam uma palavra para demarcar o prazer em contraste com diversos outros sentimentos e sensações? N·ão será o conceito ''prazer" uma "unidade artificial"? -E assim para todos os outros itens. Logo, qual o sentido de separar o artificial e o natural para conceitos gerais, e, com base nessa separação, descredenciar o fundamento de uma teoria? A distinção, porém, entre o sexo como unidade geral abstra­ ta e aquelas particularidades tem un1a irnportância política não negligenciável para Foucault: Se, por utna i nversão tática dos diversos mecanis1nos da sexualidade, quisermos opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua tnultiplicidade e s u a pos s ibilidade de resistência às captações do poder, será com relação à ins tância do sexo que deveremos liberar-nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra­ ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos

e

os

prazeres. (''S 20R/ 1 47)

Contra o artificial, especulativo, ideal, fictício e imaginário sexo, Foucault quer se apoiar positivistamente no corpo e nos prazeres, cuj a evidência parece garantir-lhe uma naturalidade­ ainda-não-doinesticada pelo poder. Sua dispersão, multiplici­ dade e naturalidade parecem-lhe bons pontos de apoio contra o poder, que atua no sentido de homogeneizar para dominar, ordenar para conhecer, instituir para apropriar, incitar para se afirmar por cooptação. Co1no cada indivíduo tem seus infinitos 91

VA�IA lVfARJA. L.ESCANO CJuEHRA E F�DGAR C Nol .Asco .

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prazeres e te1n seu "próprio" corpo, estará tanto mais imune à arregimentação do poder quanto mais afir1nar essa particula­ ridade própria e dispersiva. Vemos e111 ação uin non1inalisrno positivista e surpreendenten1ente naturalista que se autoprojeta como libertário frente a um poder que é concebido co1no so1nente agindo através de grandes categorias: unidades artificiais por­ que abstratas, genéricas. Isso demonstra un1a luta mal resolvida entre duas correntes internas à argumentação de Foucault: um antinaturalis1no que se apoia em um naturalismo positivista para se afirn1ar (cf. DEWS, 198 7, p. 204-5). Sobre o positivis1no de Foucault, Peter Dews afir1na: Tal con1o em N 1 e tzsche, há uma forte corrente po­ sitivista no pensan1ento de Foucault, herdado - via estru turalismo - d e Co1nte e Durkheim. Por causa dessa herança, Foucault esquivou-se i n s istenten1ente do empreendimento filosófico questionável de desenvolver u m a concepção crítica de conhecimen to, e adotou a perspectiva de que a validade cognitiva é sempre re­ lativa a u m s i s tema específico de discursos

e

práticas,

e que, assim, a h i s tória do conhecimento não pode ser nada diferente do que a história do que foi tomado como conhecimento en1 qualquer época particu lar. (DEWS, 1 9 8 7 , p. 2 1 9)

Com base e1n todos esses elementos, não é difícil concordar­ Ines com Devvs quando diz que o objeto antes negado como alvo da repressão não simplesmente desaparece, mas é apenas deslo­ cado. Se a hipótese repressiva dizia que o sexo era reprimido pelo complexo de valores morais, econôrnicos, religiosos etc., agora Foucault, setn o adn1itir, situa os corpos, sensações e prazeres como objeto de repressão pelo próprio dispositivo da sexualidade. A crítica à hipótese repressiva, assim, perde seu principal apoio, a saber, o argumento de que não existe exterioridade entre uma dirnensão natural co11traposta a outra, cultural (DEWS, 1 987, p.204-5; WHITEBOOK, 2003, p.S37).

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.lVIlCHEL F()lTCA.U.LT: ENTRE O PASSADO r: O PHESENTE, 30 ANOS DE

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IV

Apesar de o próprio Foucault ter admitido que, en1bora sern importância central, houve e há aspectos repressivos da sociedade burguesa, é surpreendente cotno alguns psicanalistas dizern con­ cordar com o filósofo francês de que o sexo não foi repri1nido desde o século XVII; Renato Mezan, por exemplo, assume isso explici­ tainente (Mezan, 1 985, p. 1 20 ) . Segundo pensamos, é necessário não apenas conferir uma iinportância nuclear à repressão sexual, quanto ressaltar um outro conceito, mais relevante ainda de u1n ponto de vista psicanalítico, rnas infelizmente que recebeu muito pouca atenção ao longo da história da recepção da obra freudiana: o de recalque. A diferença entre as duas noções, no tnais das vezes, é completamente ignorada, muito em decorrência dos problen1as de tradução, particularmente das línguas inglesa e portuguesa. (A palavra empregada por Freud para o que se traduz atualmente por "recalque'' é "Verdrãngung" e a traduzida por "repressão" é uunterdrückung", sendo que em inglês traduz-se a primeira por . "repression", ·e a segunda por ('suppression", que derivou o par "repressão/ supressão" nas prirneiras traduções no Brasil. Não é dificil notar, em textos de língua inglesa e portuguesa u1na 1nistura acrítica de repressão e supressão, tomando a primeira como u1n conceito genérico, se1n diferenciação para com a segunda.) Tal contratempo, no entanto, tem sua origem conceitual já na obra de Freud, e, dentre os textos n1ais relevantes nesse sentido, destaca-se O mal-estar na civilização, que se tornou uma referência conceitual iinportante para vários autores na filosofia e na sociologia. Ele contém, de fato, conceitos pertinentes I)ara a análise de fenômenos culturais ·contemporâneos. Seu princípio teórico 1nais amplo, entretanto, não se nutre especialmente das descobertas de seu autor no ân1bito psicanalítico. Tal como Freud mesmo reconhece, o tom geral do livro ressoa conceitos e ten1as j á conhecidos do público, como a concepção política de Tho1nas Hobbes e a filosofia moral de Nietzsche. A temática que indica de for1na Inais clara a pouca especificidade psicanalítica do texto é jus­ tainente a desconsideração da diferença entre recalque e repressão,

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VANlA NlARI;\. LESCANO G·UERRA E .EDGAR C. N OLASCO

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com utn deslocamento de foco nitidamente em direção à últin1a. Este problema foi, por assim dizer, amplificado, devido ao fato de que tal indistinção teórica se refletiu em diversas abordagens e apropriações filosóficas do texto freudiano, con1o em Willian1 Reich, Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Quando se focaliza o ato de reprimir, o que está em jogo, rnais propriamente falando, é o quanto uma detertninada força é exercida sobre uma outra, tornando-a inoperante, imperceptível, enfraquecida, colocando-a fora de circulação etc. Trata-se de uma for1na de negação de um desejo, de urna fantasia, de um ímpeto, de un1a necessidade, sen1 ern que entre em jogo - e isso é fundamental para a distinção perante o recalque - se ou como a força repressora se qualifica, detertnina, conforina em virtude desse embate. Só está em questão o exercício de uma força sobre a outra, e não o quanto ou como elas se influenciam reciproca1nente, "dialoga1n" entre si para entrar em uma espécie de acordo (LAPLANCHE; PONTALIS, 2000, verbete "recalque"). - Não é dificil concluir que a repressão é medida n1ais facilmente en1 termos quantitativos, e não qualitativos, de modo a se dizer de menos ou 1nais repressão (corno o fez Marcuse, en1 seu livro Eros e civilização), e não de uma repressão Irlelhor, pior ou diferente. E1n contraste direto cotn tais características, o recalque é n1arcado essencialmente pelo que a psicanálise descreveu e qualificou em seu horizonte teórico e clínico como fortnação de co1r1prornisso. Nesse sentido, recalcar não significa apenas negar, enfi--aquecer ou anular um determinado impulso (desejo ou fanta­ sia), mas, sim, estabelecer utn conflito, fazendo com que ambas as forças sej am marcadas reciprocamente, gerando um acordo entre elas, e1n que, por 1nais que se possa dizer da preponderância de urna, o resultado exprime o embate entre ambas. (Há que se notar, tarnbé1n, que este conflito admite u1na pluralidade de forças, e não apenas duas.) Consider·ando que cada uma dessas forças significa a busca de u1n prazer, da afirmação de um ímpeto volitivo, tem-se que o recalque sernpre será fruto de uma dupla satisfação: tanto da força recalcante quanto do impulso recalcado (FREUD, 1 999 [ 1 9 1 5]). A esta prir11eira diferenciação se somam outras, dentre as

.fviiCHEL FOUCAlJI;r: ENTRF� O PASSADO E O PHESENTE, �H1

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quais vamos nos limitar a apenas algumas, por assim dizer n1enos técnicas em ter1nos psicanalíticos. Ligado ao aspecto unidirecional da repressão está o fato de que esta pode ser descrita tanto no âmbito in- quanto consciente, e, além disso, não apenas do s�jeito em relação a si mestno, mas de u1na pessoa etn relação a outros ou da sociedade em relação a cada um de seus 1nembros. Cabe perfeita1nente falar de repressão poli­ cial, de um regüne político repressivo, de utna autoridade paterna repressora etc. No âmbito individual, podemos dizer claramente que reprimiiiiOS nossos desejos ern relação ao que consideramos imoral, ruin1, inadequado, impróprio etc. No âmbito inconsciente, Freud se referia à repressão de afetos, como um dos efeitos do próprio recalque (FREUD, 1 999 [ 1 9 1 5]). Diferente desta gama de aplicações da repressão, o recalca­ mento sempre ocorre de forma inconsciente, segundo uma lógica e em virtude de n1ecanismos que opera1n abaixo do lüniar de nossa consciência, e isso de forma necessária como tal. (U1na das tarefas do tratamento analítico consiste propriamente em fornecer u1n grau de consciência maior para todo este complexo de fatores.) O recalcan1ento está na base da estruturação psíquica, fazendo com que o próprio eu sej a urna espécie de consequência de um conflito de forças gerado de forma bastante originária, inicial, na consti­ tuição subjetiva. Em função disso, pode-se dizer que o recalque opera de forma subterrânea, fazendo com que todos os atos de consciência sejam devedores do modo com que um conflito rnais funda1nental se resolve, de forrna melhor ou pior, con1 UIIl grau e for1na de liberdade tnenos ou mais claramente percebida como tal. Em virtude disso, não se pode dizer com propriedade que um pai recalca o filho, mas, s im, que o filho desenvolva certa forma de recalque e1n virtude do modo com que recebe o complexo de _ ações e sentimentos J)aternos (além de outros fatores, obviamen­ te). Assim, pode-se falar de uma hiperatividade ou de vício no trabalho como frutos de recalque, urna vez que este não qualifica apenas uma inibição, como é o caso de alguém que, por exemplo, não consegue falar e111 público. Em termos gerais, em todos os casos e·m que encontramos um grau de compulsão significativo, �)5

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pode1nos dizer que o recalque não encontra uma solução por assim dizer satisfatória psiquicamente, momento em que dizemos que o confl ito é de tal orden1 e assumiu certa conformação que gerou um enrijecimento dos ímpetos pulsionais que são a base do que nos move psiquica1nente. Fazendo uma série de abstrações, podemos dizer que, e1n geral, a teoria freudiana até 1920 forneceu bem mais apoios para se delinear o recalque como este núcleo conflituoso inconsciente do psiquismo, ao redor do qual gravitam todos os elementos de caráter, personalidade, valores, sentÍinentos etc., que nos quali­ ficain con1o seres humanos socialmente for1nados. A partir da publicação de Para alérn do princípio de prazer, seguida do reforço do texto O eu e o isso (ou O ego e o id, em traduções Inais antigas), te1nos un1a polarização entre in1pulsos biológicos, ou mes1no cos­ mológicos, como as pulsões de vida e de morte, por um lado, e a esfera sociocultural de outro, culminando na perspectiva exposta em O mal-estar da civilização, que compreende a relação entre in­ divíduo e sociedade fundamentalmente pelo conceito de repressão ("Unterdrückung"). E1n vez de Freud direcionar seus esforços no sentido de fazer progredir nossa cornpreensão da dinâ1nica íntitna/interna/inconsciente do conflito presente no recalque, passou a focar a relação entre um indivíduo nutrido de impulsos fundatnentais que entram em choque com uma série de norrnas e padrões sociais, seja1n eles éticos e1n sentido estrito, ou religiosos, profissionais, cognitivos etc. Desse modo, a dimensão vertiginosa do conflito inconsciente perdeu a sua especificidade e importância como algo intrassubjetivo, cedendo lugar a uma exterioridade do conflito entre o desej o individual e a lünitação societária. - Este desdobramento tardio da psicanálise, que - concordamos con1 Jean Laplanche ( 1992 [ 198 1 J ) - significou um grave retrocesso da teoria freudiana, serviu de base para a apropriação filosófica de Freud realizada por Adorno, Reich e Marcuse. No caso destes últimos, a leitura teve um forte viés de apelo político a uma revo­ lução contra uma sociedade repressora. A insurgência de Foucault a se dá precisa1nente contra esta última concepção que produzira um n1ovimento de exteriorização 96

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