\"Metade vale mais do que tudo\"?: Trabalho e Terra em Hesíodo

June 14, 2017 | Autor: Camila Espirito | Categoria: Hesiodic Poetry, Ancient Greek Philosophy
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1. Introdução Propósito O verso 40 de Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo é o enigma a ser interpretado:  Néscios, não sabem quanto a metade vale mais que o todo1

Na Poética, de Aristóteles, encontramos uma definição de enigma: “coligindo absurdos, dizer coisas acertadas, o que se obtém, não quando se juntam nomes com o significado corrente, mas, sim, mediante as metáforas”2. É notável que o pensador que entrou para a história da filosofia como fundador da lógica clássica, justamente por formular claramente o princípio de não-contradição, reconheça uma forma do discurso que não parece obedecer a este princípio, ou seja, que diz uma realidade e, portanto, uma possibilidade, sob a forma de uma impossibilidade. Seria o enigma um modo disfarçado, porque metafórico (por má-fé ou falta de clareza de profetas ou poetas, de retóricos ou sofistas), de dizer o que poderia ser dito de modo rigoroso, isto é, por meio de um discurso inequívoco e não-contraditório? Ou marca-se aí uma distância intransponível entre o que só pode ser dito pelo discurso enigmático e o que deve ser dito pelo discurso obediente ao princípio de não-contradição, estabelecendo, assim, um limite entre o que pode ser propriamente dito (o não-contraditório) e o que pode ser apenas assinalado3 (o impossível)? Ou, antes, abre-se com o enigma o espaço da interpretação: exercício de ligar, por meio do discurso possível, o discurso impossível (enigmático) à realidade (possível porque real)? Aqui não se trata de decidir sobre a posição de Aristóteles, e sim de, a partir destas possibilidades abertas pela formulação do filósofo, assumir nossa tarefa: interpretar o que parece uma contradição, uma impossibilidade, a saber, o verso 40 do poema Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo: “a metade vale mais que o todo”. Não pretendemos traduzir o enigma em 1

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. v. 40 Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. Cf. ARISTÓTELES. Poética 1458a28-33. Tradução de Eudoro de Sousa. Em grego: “ ,·  ,”. 2

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Heráclito diz ser esta a função de Apolo: O senhor, de quem é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta, mas dá sinais. Fragmento 93. Tradução de José Cavalcante de Souza. Em grego: “,  ,.”.

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um discurso não-enigmático, desvendando suas metáforas, para assim mostrar que Hesíodo poderia, não fosse um poeta e arcaico, dizer o que disse de maneira clara e logicamente rigorosa. Também não experimentamos o enigma como aquilo diante do que se deve calar, dado o extraordinário de sua forma e de seu poder. Ao contrário, o enigma é, para nós, um convite, uma convocação; ele pede para ser decifrado, não por uma resposta que o destrua, como a de Édipo diante da esfinge4, mas por uma vida que o cumpra, como a de Sócrates a partir do que disse o oráculo de Delfos 5. O convite de Hesíodo, neste momento, torna-se para nós tarefa de dissertação. Mas qual é o sentido de uma dissertação de mestrado em filosofia sobre um verso de um poeta grego que não só viveu e compôs sua obra antes do surgimento tradicionalmente datado da filosofia, como já ganhou, através de uma série de comentários clássicos 6, seu lugar entre aqueles que, não sendo ainda filósofos, tiveram uma influência decisiva para o nascimento da filosofia7? Pretendemos dar mais um testemunho desta influência, através do estudo de uma questão específica? Ou pretendemos questionar o lugar dado a Hesíodo, encontrando em uma questão específica – a saber: como entender o verso 40 de Os Trabalhos e os Dias? - o motivo para uma outra leitura de Hesíodo, uma leitura filosófica8? E, se é, como de fato é, esta a 4

Cf. SÓFOCLES. Édipo Rei. vv. 14-57. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates 20c-23c. 6 Reconhecemos, grosso modo, na tradição interpretativa, dois modos de pensar a relação entre a filosofia grega nascente e a tradição mítica e poética (a famosa “passagem do mito à razão”): 1. por um lado, alguns autores caracterizam o surgimento da filosofia como “o milagre grego”, “o surgimento da racionalidade”, uma ruptura completa em relação ao pensamento mítico, à poesia, à religião; 2. por outro lado, há autores que buscam explicitar a continuidade entre a filosofia nascente e o pensamento mítico anterior a ela. É a esta segunda posição, dominante, embora com divergências, entre os autores que irão nos acompanhar ao longo desta dissertação, que nos referimos com “uma série de comentários clássicos”. No que se refere especificamente ao papel decisivo de Hesíodo, citamos duas passagens de SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu, na tradução de Pérola de Carvalho: Não é para menos que a Teogonia de Hesíodo representa uma etapa importante e decisiva no caminho que leva da poesia épica à filosofia.(p. 47); ele diz também: e são tão-somente as aparentes contradições entre esses diferentes esquemas de pensamento que permitem que seja atribuído a Hesíodo o lugar que merece na história do espírito (p. 50). 7 Parece uma tarefa propriamente filosófica pensar o sentido deste ainda e deste decisiva. Como o que ainda não é é decisivo para o que vem a ser? De que modo o que se decide, ou seja, o que vem a ser (aqui a filosofia), liga o que ainda não é ao que já é? Formulando mais estritamente: o que acontece entre Hesíodo e Platão que decide que Hesíodo ainda não é filósofo e que Platão já é? A isto podemos dar um nome: “Tales” (como fazem, entre muitos, Aristóteles, Hegel, Nietzsche e Heidegger). Podemos ainda dizer que é “Platão” o nome do acontecimento que abriu esta distância entre o ainda não e o já (como fazem Giorgio Colli e Havelock, por exemplo). De todo modo, aqui, voltar a Hesíodo desde Platão, ou seja, desde o que já é filosofia, pretende ser experimentar, embora não tematicamente, a decisão que coloca distância e proximidade entre eles. 8 Rigorosamente falando a nossa tarefa é justamente aprender o que é uma interpretação filosófica. Se a história da filosofia começa pela apropriação da palavra poética que se apresenta como enigma a ser interpretado e fundamentado (cf. COLLI, Giorgio. “O deus da adivinhação”. O Nascimento da Filosofia. (p. 31-39)), recuperar e seguir tal movimento parece um bom caminho para esta aprendizagem. 5

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pretensão, perguntemos: como ler filosoficamente um poeta; através de que caminho, método? Não corremos o risco de entulhar a poesia de Hesíodo com conceitos, categorias e questões alheias às suas belas palavras? Pretendemos responder oportunamente a esta objeção9, não negando o risco, mas justificando a necessidade que há, segundo cremos, em ler as palavras de Hesíodo desde seu futuro, que somos nós, isto é, desde a tradição filosófica. Se há na genealogia dos deuses cantada por Hesíodo na Teogonia “uma lei onipresente” de que os filhos são explicitações da natureza dos pais10, justifica-se, hesiodicamente, procurar, no que disseram os descendentes de Hesíodo, vias de acesso ao sentido de sua obra. Poder-se-ia objetar que na Idade de Ferro11 os filhos perdem a semelhança com os pais, ao que responderíamos platônica mas, talvez, enigmaticamente: quando se pensa é sempre Idade de Ouro12. Que concepção de tempo vige, no entanto, quando vemos a filosofia como descendente da poesia? Que tempo: o da filosofia, o da poesia ou outro (o da história, por exemplo) dá a medida desta descendência? Saberemos nós qual é o tempo da poesia? Saberemos qual é o tempo da filosofia? Haverá ocasião de encontro entre estes tempos para que possamos falar de descendência e herança? Este trabalho é uma aposta nesta ocasião. Isto quer dizer que seguiremos as indicações e direções que encontrarmos, a seu tempo, nos poemas 9

Os versos 22-35 da Teogonia, que serão analisados no item 2.1.1., ajudar-nos-ão nesta tarefa. Isto porque há nestes versos de Hesíodo, segundo nossa interpretação, a definição do estatuto de seu discurso (sua origem, seu propósito e sua verdade), e, portanto, uma orientação sobre como lê-lo. 10 Como diz TORRANO, Jaa. “O Mundo como Função das Musas”, estudo que introduz sua tradução da Teogonia (p. 31); o autor segue, então, o estudo Origini e forme del mito greco, de Paula Philippson (p. 48 e 49), em que são estabelecidos três recursos para a definição do ser de cada deus: seu nome, seus epítetos e suas ascendência e descendência. Esta “lei” aparece em cena nos diálogos de Platão. A ascendência e descendência de personagens e discursos são muitas vezes tematizadas por Platão. Na República, por exemplo, há uma clara referência à transmissão, por herança, do discurso (cf. 331d –e). Ainda nesta obra, podemos ver desenhadas várias linhagens: Céfalo – Polemarco e Lísias; Aríston – Platão, Glaucon e Adimanto; e, quiçá: Homero – Hesíodo – Tragédia – Filosofia. 11 Referimo-nos ao “mito das raças”, contado por Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias vv. 106-201. Chamamos “idade”, seguindo a tradição, ao tempo próprio de cada uma das raças (o termo grego “ ” é por vezes traduzido por “raça”, por vezes por “idade” ou “geração”, ou, ainda, por “espécie”, “origem” ou “descendência”). A Idade de Ferro é, pois, o tempo atual, o tempo de nossa raça. E Hesíodo conta que nossa ruína dar-se-á quando os filhos não mais se assemelharem aos pais. A objeção com a qual nos confrontamos, portanto, acusar-nos-ia de aplicar aquela “lei onipresente” da Teogonia a um tempo no qual ela perdeu a vigência. 12 A Idade de Ouro é aquela em que vivem, “semelhantes a deuses” (v. 112), os homens da raça de ouro. Para estes homens, “sempre iguais nos pés e nas mãos”, vale a “lei onipresente” da Teogonia. O “enigma platônico”, que podemos depreender da República, e ao qual nos referimos acima, é a possibilidade e a necessidade de que a Idade de Ouro esteja sempre presente quando se pensa, ainda quando a Idade de Ferro parece reinar. A relação entre as raças, seus tempos e suas funções será melhor explorada no item 2.2.3, no qual apresentamos uma interpretação do “mito das raças” em Hesíodo.

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de Hesíodo ao perguntarmos a ele ‘o que é?’, ‘por quê?’, ‘como?’, ‘desde onde isto aparece assim?’ - questões ensinadas pelo Sócrates de Platão, tempos depois. Há aqui, portanto, a assunção de uma “opção”13 metodológica: a interpretação que faremos contará com a leitura dos comentários de filólogos, antropólogos e historiadores 14, mas não buscará reconstituir o contexto histórico, social e religioso em que viveu e produziu Hesíodo. Se com isto assumimos também o risco de exilá-lo, isto se deve à confiança na possibilidade de se instaurar no diálogo15 entre discursos uma justa co-cidadania. Platão é nosso modelo e é em sua companhia que pretendemos ir até Hesíodo. Em seus diálogos estão em cena discursos diversos: estilística, social, espacial e temporalmente. E apesar das diferenças, claramente expressas pelo texto, dá-se entre os discursos uma luta 16, que os faz, ali, conterrâneos e contemporâneos. Ou seja, nos diálogos, nenhum discurso pode fugir à necessidade de se defender por uma suposta distância intransponível. Todos são chamados a responder por si: vivos e mortos; jovens e velhos; estrangeiros e atenienses; sofistas, filósofos, políticos e poetas; escravos, comerciantes, guerreiros e artesãos. Ainda quando se chega a uma aporia, resta a necessidade de prosseguir a busca em momento oportuno. Se a “cidade platônica” expulsa os poetas, ela não o faz sem antes ouvi-los. As referências, citações e interpretações, explícitas e implícitas, dos poetas, nos diálogos platônicos, são inúmeras e essenciais. Esta conversa muito nos interessa. Mas afinal por que, entre tantos interlocutores de Platão, Hesíodo? 13

Dizer “opção” metodológica não parece de todo verdadeiro, já que não se trata da escolha de um caminho entre muitos que indiferentemente se apresentam. Antes, o caminho que aqui se vai trilhar, o método, é o único para o qual este trabalho foi convocado. Isto não quer dizer que não haja outros caminhos para outros trabalhos, talvez mais justos. Ao contrário, significa que esta “opção” só pode ser justificada nela mesma, ou seja, no percurso do caminho pelo qual já se “optou”, e não em confronto com outros possíveis caminhos. Sobre isto, diz o “pai do método”: Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei para conduzir a minha. (...) Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se encontrarão talvez muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele seja útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me serão gratos pela minha franqueza. DESCARTES. Discurso do Método I § 5. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 14 Um utilíssimo “estado da crítica”, até o começo dos anos noventa, é apresentado em LECLERC, MarieChristine. La Parole chez Hésiode: à la recherche de l’harmonie perdue (p.9-20). 15 E aqui queremos fazer coro com o que diz Carolina Araújo sobre o sentido de diálogo: Coloca-se uma preposição, diá, diante do tal discurso (lógos) (...) A diferença marcada pela partícula quer indicar dois movimentos simultâneos. No primeiro deles algo se divide, mantendo a relação entre as suas duas partes. No segundo sentido, algo é atravessado de um lado a outro e, com isso, é realizado em seu todo. Simultaneamente a introdução dessa partícula exige do discurso que ele se decomponha em suas partes e que atravesse todas elas, fazendo com que cada um encontre o seu lugar no sentido do todo. ARAÚJO, Carolina. Da Arte: a   no Górgias de Platão. [Dissertação de Mestrado] (p. 8). 16 A boa luta hesiódica. Sobre este ponto conferir o item 2.2.1. desta dissertação.

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Hesíodo é grego, de uma Grécia arcaica, terra-mãe da filosofia17. Hesíodo é poeta, e a poesia é tema da filosofia: por vezes sua opositora, seu limite 18; por vezes, um seu objeto, tipo de discurso sobre o qual a filosofia encontra algo a dizer19. Hesíodo é, ao lado de Homero, educador da Grécia20. Seus poemas, em especial Os Trabalhos e os Dias, são chamados, pela tradição interpretativa, “morais” ou “didáticos”21, pois há neles a afirmação de valores moralreligiosos e a exortação à justiça e ao trabalho (além de conhecimentos práticos sobre a vida no campo). Por essas características, é comumente visto em Hesíodo um prenúncio das discussões morais com as quais a filosofia posterior ocupar-se-á22. Além disso, as obras de Hesíodo diferenciam-se da épica homérica por haver nelas uma assinatura do poeta, vista, por 17

Parece que os estudiosos da filosofia antiga concordariam em que estudar os textos gregos – de poetas, historiadores, sofistas, retóricos, políticos, médicos, matemáticos – no mínimo, auxilia a compreensão das referências a estes, feitas pelos filósofos. Aqui, entretanto, o grego que atribuímos a Hesíodo e dissemos ser uma primeira justificativa para estudá-lo ecoa da frase-sentença: a filosofia é grega em sua essência, de HEIDEGGER. O que é isto - a filosofia?. Cf. também FOGEL, Gilvan. “Nós e os Gregos”. Da Solidão Perfeita. (p. 51-64); e VALENTIM, Marco Antonio. “O Elemento Grego”. e : A Gênese do Mundo no Timeu de Platão. [Dissertação de Mestrado] (p. 10-18). Ou seja, descobrir o que significa “o ser grego de Hesíodo” é descobrir algo sobre a filosofia. 18 Pensa-se aqui tanto em Platão, da República, quanto em Heidegger e seus textos sobre a poesia. 19 Aqui chamamos o Platão do Ion, ou do Fedro, e a Poética de Aristóteles. Também pensamos nos modernos: Schelling, Hegel, Hölderlin, Nietzsche e seus textos sobre a poesia, em especial sobre a tragédia. 20 Os gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo. JAEGER, “Hesíodo e a vida do campo”, Paidéia, A formação do homem grego (p. 59). Heródoto, em sua História II, 53, chamou atenção para a importância de Homero e Hesíodo na formação religiosa e cultural grega: Parece-me que Hesíodo e Homero, quanto à idade, foram mais velhos que eu em quatrocentos anos, e não mais. Eles são os que compuseram teogonia para os gregos, deram os nomes aos Deuses, distinguiram-lhes honras e artes, e indicaram suas figuras.. Sobre o dar nome aos deuses como função do poeta, há um belo ensaio de HEIDEGGER. “Hölderlin y la Esencia de la Poesía”. Arte y Poesía. Platão também fala da importância de Homero e Hesíodo para a educação grega, cf. PLATÃO. República 377d4, Timeu 21d1, Protágoras 316 d8, por exemplo. 21 Há uma lenda antiga segundo a qual teria havido uma disputa direta entre Homero e Hesíodo, em um torneio de poesia, e Hesíodo teria saído vencedor. Paul Mazon vê nesta lenda uma tentativa de resolver um problema de escola: “a épica de Homero ou a poesia didática de Hesíodo é a preferível?”. Cf. MAZON, Paul. Introduction de l’édition de l’oeuvre d’Hésiode. (p. X e XI). Mazon indica, então, todas as referências a este encontro. 22 Assim diz Solmsen: For many generations Greek moral and thinking had been content to enrich, deepen, and revise Hesiod’s teachongs about justice and injustice. (...) By Plato’s time the Greeks had long found out that the realities of life were far more complex than Hesiod had imagined them to be and they had become sufficiently realistic to accept the facts. (...) It may however be said that Plato on his level of  attempts something comparable to what Hesiod had attempted on his archaic level and had expressed in the medium of religious and mythical speculation. (Por muitas gerações, o pensamento moral e político grego tinha se contentado em enriquecer e revisar os ensinamentos hesiódicos sobre a justiça e a injustiça (...) No tempo de Platão, os gregos, há muito, tinham descoberto que realidades de vida eram muitíssimo mais complexas do que Hesíodo as tinha imaginado e eles vieram, suficientemente realísticos, a aceitar os fatos (...) Pode ser dito, todavia, que Platão em seu nível de meditação universal empreende algo comparável ao que Hesíodo empreendeu no seu nível arcaico e expressou por meio da especulação religiosa e mítica.) SOLMSEN. “Hesiodic Motives in Plato”. Hésiode et son Influence. (p. 174, 179). E, de outra maneira, com a mesma conclusão, Augusto Mancini: O realismo ético, a concepção da vida como conquista por meio de um duro trabalho, o sentido profundo da justiça como meta suprema em que o esforço do homem se harmoniza com a vontade de Zeus, que não pode deixar de ser antes de tudo justo, conferem a Hesíodo um lugar eminente na história do pensamento moral grego. MANCINI, Augusto. História da Literatura Grega. vol.I. Trad. Giacinto Manuppella.

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autores como Havelock, como signo de uma transformação da tradição oral para a escrita 23 e, com isso, de uma ascensão no caminho para o pensamento abstrato24. Temos, pois, quatro razões tradicionais cumulativas para ler Hesíodo: 1. ele é grego, 2. poeta, 3. precursor da discussão filosófica sobre a virtude e 4. precursor do discurso escrito e em primeira pessoa. Entretanto, não é nenhuma delas, que reconhecemos como boas razões, a que nos leva a estudar sua obra. Cremos que é possível ler filosoficamente os poemas hesiódicos porque reconhecemos neles não um prenúncio de algo que viria a nascer e florescer, mas um pensamento desenvolvido sobre a questão propriamente filosófica, numa das formulações que podemos encontrar ao longo da história da filosofia, a saber: o que é o homem? Chamamos, entre muitos testemunhos25, o de Kant, que, em sua Lógica, reúne as questões da filosofia em quatro: 1. o que posso saber? 2. o que devo fazer? 3. o que me é lícito esperar? 4. o que é o homem? 26. Diz ele, então, que todas podem ser reduzidas à última. É claro que nem todo discurso que diz o que é o homem é filosófico. Fosse assim, a biologia, por exemplo, seria filosofia. Mas uma resposta à pergunta ‘o que é o homem?’ que percorre as três outras questões kantianas é filosofia. Dito de outro modo, só vista desde as primeiras perguntas a quarta pode ser filosófica. Sendo assim, se Hesíodo diz o que o homem é, dizendo o que ele pode saber e como, o que ele deve fazer e por quê, e o que lhe é lícito esperar e desde onde, os poemas hesiódicos são filosofia, ou assim podem ser lidos27. 23

Cf. HAVELOCK. “The Justice of Hesiod”. The Greek Concept of Justice: From Its Shadow in Homer to Its Substance in Plato. (p. 193). Cito: Is it possible that Hesiod, as against Homer, is one who not only sings but writes, not only remembers but sees what he is remembering? (…) Is this why each poem contains a kind of signature, giving to its composer a shadowy personality wich bards of the previous nonliterate tradition did not think to claim? (É possível que Hesíodo, em oposição a Homero, seja aquele que não apenas canta mas escreve, não apenas rememora mas vê o que está rememorando? (...) É por isto que cada poema contém um tipo de assinatura, dando a seu compositor uma sombra de personalidade que poetas da tradição não-literata anterior não pensavam em reivindicar?) As assinaturas são as referências que o poeta faz a si mesmo. Cf. Teogonia v. 22 e Os Trabalhos e os Dias v. 10. 24 Ainda o mesmo Havelock: In this latter context, what is likely to be the professional fate of a thesis, here offered, which would regard the achievement of a conceptual syntax, and even of a abstract thought, as the fruit of a change of communication, from the ear to the eye, from the listenning to viewing, from remembering to reading? (Neste último contexto, que é provável que seja o profissional destino de uma tese, aqui oferecida, que consideraria a realização de uma sintaxe conceitual, e igualmente de um pensamento abstrato, como o fruto de uma mudança de comunicação, do ouvido para o olho, do ouvir para o ver, do rememorar para o ler?) 25 Segundo Hannah Arendt, Santo Agostinho é “geralmente considerado como o primeiro a levantar a chamada questão antropológica na filosofia”. ARENDT, Hannah. “A Vita Activa e a Condição Humana”. A Condição Humana. (p. 18). Tradução de Roberto Raposo. Cf. AGOSTINHO. Confissões x.6 e x.17). 26 KANT. Lógica Ak25 e cf. também Crítica da Razão Pura – Seção Segunda do Cânon da Razão Pura B 833. 27 Pode soar estranha esta interferência tão moderna em um texto que pretende ler um grego. Se Kant aqui nos vem em auxílio, isto se deve à convicção de que as perguntas filosóficas, tais como formuladas modernamente

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É lícito que se espere uma discussão sobre a forma do discurso filosófico e sua distinção frente ao discurso poético. Se o testemunho de Kant citado acima, caso se o leve em conta, define a filosofia no que diz respeito ao “conteúdo”, ou seja, àquilo de que ela se ocupa, resta defini-la quanto à forma. Pois continuamos dizendo que faremos uma leitura filosófica de um poeta. Estamos, com isto, assumindo que, apesar do acordo temático que pretendemos demonstrar no caso de Hesíodo, há algo que mantém uma distinção entre o discurso poético e o filosófico? Por ora, apenas seguimos a tradição. A história da filosofia, desde Platão, busca de maneiras diversas estabelecer esta distinção. Para isso é preciso dizer qual é a forma própria à filosofia. Hegel, exemplarmente, na introdução à Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome28, diz que é preciso distinguir formas do pensar do pensar enquanto forma [a filosofia]. Enquanto as formas do pensar se aplicam a objetos separados delas mesmas, postos diante delas, o pensar enquanto forma não tem nenhum objeto diante de si, seu objeto é sua própria realização, a própria formação do pensamento. A filosofia pensa e realiza, então, o próprio fundamento formal de todo pensar, e, portanto, de seu próprio ser. Daí parece advir a grande dificuldade que a filosofia contemporânea enfrenta, como se pode depreender do silêncio exigido pelo Tractatus de Wittgenstein29, por um lado, e do suposto fracasso de Ser e Tempo, de Heidegger30, por outro: é possível um pensamento que diz a forma do pensamento enquanto forma? Isto é, há uma forma da linguagem capaz de dizer a forma do pensamento? Há uma forma da linguagem que seja ela mesma o pensamento enquanto forma31? Não enfrentar diretamente pelo filósofo, expressam propriamente o que está em questão na poesia de Hesíodo, a saber: o que é o homem, seu poder e limite no conhecer, agir e esperar. A dissertação terá como tarefa, ainda uma vez, estabelecer a sincronia entre os que aparentemente estão muito distantes. 28 Cf. HEGEL. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. Introdução §2. Tradução de Artur Morão. 29 Segundo o qual a Filosofia, não podendo dizer a forma da linguagem, mas apenas mostrá-la, deve calar-se. Cf. WITTGENSTEIN. Tractatus Logico-Philosophicus 6.53: O método correto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, i.e., as proposições das ciências naturais - e portanto sem nada que ver com a Filosofia - e depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foi dada uma denotação; e 7: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio.Tradução de M. S. Lourenço. 30 Segundo o qual o discurso sempre falhará em dizer o sentido do ser. Cf. PEREIRA, Alexandre Gomes. “Heidegger e a Decisão do Fracasso de Ser e Tempo”. Cadernos Pet-Filosofia da Ufpr n.3, 2000: (...)o único caminho para a 'virada' é o fracasso decidido de Ser e Tempo, mas este fracasso não pode ser considerado, à maneira de outros célebres fracassos filosóficos, uma escada que se joga fora depois de ter servido; ao contrário, este fracasso vai estar sempre exigindo sua repetição em toda e qualquer situação fáctica em que a pergunta ontológica se ofereça decididamente como a possibilidade incontornável, isto é, como necessidade. 31 Esta questão não é uma novidade da filosofia contemporânea (porque em filosofia não há mesmo novidades: a filosofia diz sempre o mesmo. Cf. PLATÃO. Górgias 482b). Já Platão chama a atenção para a fraqueza do discurso em dizer a forma das formas, o princípio da realidade, o ser. Cf. PLATÃO. Carta VII 342e3-343a5 .

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estas questões não significa ignorá-las. Ao contrário, só não queremos subestimá-las e ser por elas silenciados ou levados a repetir fórmulas das quais não estamos seguros. Interpretar Hesíodo como filósofo é dar a estas questões um encaminhamento que iremos buscar nos próprios versos do poeta. Valemo-nos do exercício aprendido no Parmênides (135d–136e) de Platão: seguir a hipótese - o texto hesiódico poder ser lido como filosofia, isto quer dizer, podemos fazer a ele as perguntas que a filosofia platônica faz a cada vez, diante de cada discurso - e ver até onde este caminho pode levar. Talvez cheguemos a saber por que Hesíodo é poeta e não é filósofo. Apresentaremos, portanto, uma leitura de dois dos poemas de Hesíodo que chegaram até nós: Teogonia e Os Trabalhos e os Dias32, procurando, nas estruturas dos dois e na articulação entre eles, a chave para a compreensão do verso 40. A leitura proposta vê, pois, na resposta à questão ‘qual a relação da parte com o todo?’33 uma resposta à questão ‘o que é homem?’ 34 que passa por ‘o que posso saber?’, ‘o que devo fazer?’ e ‘o que me é lícito esperar?’

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Alguns autores consideram que a Teogonia não é obra de Hesíodo. A favor desta posição estão, por exemplo, Pierre Waltz. Cf. WALTZ, Pierre. “Note sur la Théogonie, v. 22 e seq.”. Revue des Études Grecques 27, 1914, (p. 229235) e, também, BALLABRIGA, Alain. “Le Deutéro-Hésiode et la Consécration de l’Hésiodisme”. Le Métier du Mythe: Lectures d’Hésiode. (p. 71-82). Cf. ainda PAUSÂNIAS 9, 31, 3. Aqui consideraremos as duas obras como de Hesíodo e também não levaremos em conta discussões a respeito de interpolações. Apenas citaremos as controvérsias quando estivermos analisando versos duvidosos, por honestidade para com o leitor. Não nos parece possível, no estágio em que estamos no estudo da língua e da cultura gregas, excluir obras ou partes de obras, a não ser quando há um consenso irrecusável entre os estudiosos. Guia-nos novamente Descartes: Ainda que todos fossem de boa índole e francos, impedindo-nos de tomar coisas duvidosas por verdadeiras e expondo-nos tudo de boa fé, porque dificilmente um afirma algo cujo contrário não seja proposto por outro, nunca sabemos em qual deles acreditar. E não valeria de nada contar os votos para aderir à opinião partilhada por mais Autores; porque, se se trata de uma questão difícil é mais credível que a sua verdade tenha sido descoberta por um reduzido número do que por muitos.DESCARTES. Regras para Direção do Espírito. Regra III. Tradução de João Gama. 33 Esta questão: qual a relação da parte com o todo? - atravessa toda a história da filosofia. Cf. PLATÃO. Teeteto 201c-210d, Cármides 156b-157c, Hípias Maior 302b7-303d10, Parmênides 137c3-d2, 142b1-144e7, 157b4-158d10, 159b2-e1, Mênon 79d6-e3, Sofista 219c-222c, 244b-245d e República IV 420a-421c, 436a-444e, V 465d-466c, Filebo 28d-32d, Timeu 30b-35b, 61b-64e, 87d-89d; ARISTÓTELES. Metafísica  1023b26-1024a10, cap. 10, 11 e 15,  1043a29-1044a14; AQUINO, Tomás de. Suma Contra os Gentios IV, 79; SCOT, Duns. “A Espiritualidade e Imortalidade da Alma”. Escritos Filosóficos (Opus Oxoniense IV, d.43,q.2); KANT. Crítica da Faculdade do Juízo: “Analítica da Faculdade de Juízo Teleológica” §65; “Dissertação de 70”, 1a e 4a Seções; HEGEL. Propedêutica Filosófica §42; Husserl. Investigaciones Lógicas. vol.II, 3a Investigacion; HEIDEGGER. Ser e Tempo § 45-48; Sartre. Crítica da Razão Dialética. livro II. O objetivo aqui não é esgotar as indicações, nem mesmo fornecer uma lista das mais relevantes, mas apenas, a partir de alguns exemplos de textos de autores clássicos, de épocas diversas, ilustrar a importância e o vigor de nossa questão. 34 Pode-se encontrar no próprio texto kantiano a articulação entre estas questões. No parágrafo imediatamente anterior à enumeração das questões às quais a filosofia pode resumir-se, Kant define a filosofia como: a ciência da relação de todo conhecimento e de todo o uso da razão com o fim último da razão humana, ao qual enquanto fim supremo, todos os outros fins estão subordinados, e no qual estes têm que se reunir de modo a constituir uma unidade. KANT. Lógica A25. Tradução de Guido Antônio de Almeida.

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Ocasião O poema Os Trabalhos e os Dias é endereçado a Perses, irmão do poeta, com quem, segundo o próprio texto informa, Hesíodo esteve em litígio pela posse da herança paterna35. Perses, tendo subornado os reis, proprietários de terra responsáveis por julgar a causa, apoderou-se da maior parte dos bens; mais tarde, insatisfeito e já tendo desperdiçado sua herança, volta para reclamar mais. O poema é, diante desta situação, uma reprovação à ambição desmedida, à busca por bens sem limite que só pode trazer malefícios. A esta atitude Hesíodo contrapõe a ação justa, de acordo com Zeus: o cuidado de cada um com seu trabalho, com sua terra, com o que lhe é próprio. É neste contexto que, no verso 40, aparece a afirmação de que “a metade vale mais que o todo”. A interpretação clássica deste verso não o vê como enunciado metafísico, mas como reprodução da máxima tão cara aos gregos ‘nada em excesso’ ou ‘observe a medida’36. Hesíodo estaria dizendo, assim, que a metade - a parte, o pouco, o limitado, a medida - é maior - traz mais benefícios, é mais próprio, proporciona mais felicidade, é justo - que o todo - o muito, a riqueza, o excesso, a desmedida. Esta interpretação pode apoiar-se, por exemplo, no verso 694 do mesmo poema: Observe a medida: a oportunidade é em tudo a qualidade suprema37 · ' .

Não será possível e necessário, entretanto, perguntar: por que esta máxima é tão cara aos gregos? Será demais procurar os pressupostos ontológicos e lógicos sobre os quais se funda a ética grega? Não foi este o movimento da filosofia nascente? Como a metade pode valer mais que o todo, se o valor da metade é sempre determinado pelo valor do todo do qual ela é metade – a saber: o valor do todo dividido por dois? Como a qualidade suprema, a excelência, o alcance do mais alto grau no que se pode ser

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A identidade de Hesíodo, tal como a de Homero, é posta em questão por uma parte dos estudiosos da poesia grega. Cf., por exemplo, NAGY, Gregory. “Autorité et Auteur dans la Théogonie Hésiodique”. Le Métier du Mythe (p. 41-52). Pode-se admitir que a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias tenham um único autor, dois autores ou vários autores. Como não pretendemos investigar composição e autoria dos poemas, concordamos aqui com Stephanie Nelson que, na Introdução de seu estudo God and The Land: The Metaphysics of Farming in Hesiod and Vergil, diz: The poet we truly care about lives inside of the poems [O poeta que verdadeiramente nos interessa vive no poema] NELSON, Stephanie. God and The Land: The Metaphysics of Farming in Hesiod and Vergil (p. 32). 36 Cf. VERNANT. As origens do pensamento grego. 37 Tradução feita a partir da tradução francesa de Paul Mazon.

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realiza-se pela contenção e pela limitação à parte (metade) de tudo o que se pode ser? Por que Hesíodo diz que devemos ser, do que podemos, só metade? Não serão os poemas de Hesíodo resposta a estas perguntas? Perguntaremos a Hesíodo: por que é preciso observar, guardar, manter a salvo (a medida ()? E que medida é esta? Por que a oportunidade, a ocasião, o tempo próprio (é a qualidade suprema? Em que se funda tal máxima? Qual a relação entre estes versos (40 e 694) e os mitos de Prometeu e das Cinco Raças, contados ao longo do mesmo poema? Qual a ligação dos mitos com os conselhos sobre a vida no campo, a administração da casa e a navegação, que compõem a segunda parte do poema? E que articulação há entre Os Trabalhos e os Dias e a Teogonia? Haverá alguma relação entre a origem dos homens e a origem dos deuses; entre a ascensão do mundo olímpico e a decadência das raças dos homens? Haverá relação entre a origem de Terra e Céu e a necessidade de observar e seguir o que é próprio a cada estação? Enfim: que relação há entre a medida que cabe ao homem, sua metade, e o todo, a ordem dos deuses imortais, a justiça de Zeus? Para responder a estas perguntas seguiremos os poemas de Hesíodo. Em companhia dos estudos clássicos e das apropriações feitas pelos filósofos, especialmente por Platão, procuraremos - como foi dito - nas palavras gregas de Hesíodo, sem expatriá-las, a resposta à pergunta filosófica, como formulada por Kant: ‘o que é o homem?’38. As referências de Platão a Hesíodo39 serão cruciais para a nossa interpretação porque, segundo nos parece, a presença do poeta nos Diálogos parece não se restringir a citações eventuais, aprovações ou reprovações. A herança que Hesíodo deixa à filosofia platônica inclui a relação estreita entre natureza humana, trabalho, justiça e medida.

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Hesíodo pode até nos fazer compreender melhor a pergunta kantiana. Ela pode, para alguns, aparecer como uma versão moderna do dito de Protágoras ‘o homem é a medida de todas as coisas’ e, como este, pode ser mal interpretada. Depois de bem lermos os poemas hesiódicos, entretanto, será possível, segundo esperamos, ver a necessidade, não antropológica, antropocêntrica ou humanista da pergunta, mas sua necessidade metafísica. A relação entre Hesíodo e Protágoras, aliás, parece bastante rica. Não deve ser por acaso que, no seu Protágoras, Platão faz o sofista dizer que Hesíodo, entre outros poetas, era um sofista disfarçado e apresentar sua versão do mito de Prometeu, também narrado por Hesíodo. 39 Há, em toda obra platônica, trinta e nove referências nominais a Hesíodo (Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates 41a6, Crátilo 396c4, 397e5, 402b6, 406c7, 428a1, Teeteto, 207a3, Banquete, 178b3, 178b8, 195c2, 209d1, Cármides 163b4, 163c6, Lísis 215c7, Protágoras 316d7, 340d1, Íon 531a2, 531a5, 531a8, 531b3, 531c2, 532a5, República 363a8, 377d4, 377e8, 466c2, 468e8, 546e1, 600d6, 612b2, Timeu, 21d1, Minos 318e2, 319a9, 320c8, Leis 658d7, 677e2, 690e2, 718e1, Carta XI 359a2). Muitas delas, como se pode ver, estão na República. Estas referências e algumas outras, nesta mesma obra, que são citações não explícitas da obra hesiódica, nos interessarão especialmente.

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Pretendemos com este trabalho - através de uma interpretação que sustenta que a relação entre parte e todo é “resolvida”40 por Hesíodo na relação entre trabalho ()41 e terra () -, abrir caminho para um estudo que investigará se também a determinação desta relação (entre parte e todo) – fundamental na obra platônica, e em toda a filosofia – recebe de Hesíodo sua inspiração. E, quiçá, se a “resolução” hesiódica é análoga à que vemos na República de Platão como a relação estabelecida entre trabalho e natureza, que fundamenta a justiça42. A orientação do trabalho já está, assim, determinada por: 1. nossa pressuposição: é possível ler filosoficamente os poemas de Hesíodo; 2. nossa questão principal: por que a metade vale mais que o todo? e 3. nossa hipótese: a relação entre trabalho ( ) e terra ( ),

em Hesíodo, é o que fundamenta a justiça; e 4. a questão que resulta das três

determinações anteriores e que as reúne: o que é o homem como parte que participa do todo? Estrutura Seguindo-se a esta Introdução [1], o trabalho divide-se em duas partes principais: interpretação da estrutura geral dos poemas [2]; e análise de ocorrências de termos específicos [3]. A primeira parte, que se subdivide em duas, apresenta uma leitura da Teogonia [2.1] e da primeira parte de Os Trabalhos e os Dias [2.2] e pretende sustentar que os poemas de Hesíodo são, ambos, a narração da estrutura originária do todo, que se dá pela articulação de múltiplas forças em um sentido. Tal estrutura, segundo veremos, aparece nos poemas como se constituindo temporalmente e, por isso, é narrada. O estudo da Teogonia se concentrará em três momentos do poema: a) o encontro do aedo com as Musas, que origina o canto [2.1.1]; b) o nascimento dos primeiros deuses [2.1.2]; c) a ascenção da ordem de Zeus [2.1.3].

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Aqui o verbo “resolver” não diz “achar solução” ou “reduzir, extinguir, decompor”, mas “basear-se, fundar-se, fundamentar-se”. Cf. Médio Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, verbete “resolver” (p. 1471). 41 Um comentário sobre as possíveis traduções do termo “” será feito no item 3.1 desta dissertação. 42 Cf. PLATÃO. República 433a. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira: O princípio que de entrada estabelecemos que devia observar-se em todas as circunstâncias, quando fundamos a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das suas formas, a justiça. Ora nós estabelecemos, segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua natureza é mais adequada.

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O estudo da primeira parte de Os Trabalhos e os Dias, sua “parte mítica”, interpretará brevemente cada um dos episódios narrados: As duas lutas [2.2.1]; Prometeu e Pandora [2.2.2]; As cinco raças [2.2.3]; O gavião e o rouxinol [2.2.4] – como diferentes imagens da ambigüidade originária do homem e de sua necessidade de realizar-se através do trabalho justo. A segunda parte da dissertação [3] é um estudo das ocorrências dos dois termos que nos parecem fundar, na poesia de Hesíodo, o lugar dado à parte (e portanto, ao homem), que permite que ela participe do, ou perfaça o, todo. Todas as ocorrências dos termos derivados de e  estão aí listadas, com algumas traduções e explicitação dos respectivos contextos. Destas ocorrências selecionamos dez, cinco de cada grupo de termos [3.1. e 3.2], que nos pareceram significativas, para breves comentários. O que se pretende é, através de um confronto direto, enraizar a interpretação no texto interpretado. A Conclusão [4] é um retorno ao começo43 . Pretendemos dar conta, portanto, de dizer em que sentido a resposta que Hesíodo dá à pergunta “o que é o homem?” se relaciona com sua afirmação de que metade vale mais que todo. E em que sentido esta afirmação reúne todas as questões com as quais nos deparamos na leitura de suas obras. Eis o trabalho.

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Desculpe-se a formulação óbvia; toda conclusão de trabalho precisa ser uma volta ao começo. O que se quer aqui salientar, entretanto, e que se tornará claro ao leitor deste texto, é que o caminho da dissertação não é argumentativo, não é um elenco de teses encadeadas por uma relação de necessidade lógica que findam por demonstrar a hipótese levantada de início. O “corpo” do texto, que começa a seguir, arrisca-se a não manter claramente, em todos os seus passos, o vigor da relação pretendida, na introdução, entre pressuposição, hipótese e questão orientadora. Portanto, a volta ao começo, empreendida como conclusão, é a tentativa de recuperar este vigor, depois da experiência que proporcionarem os desvios, abismos, saltos e atalhos em nossa leitura de Hesíodo.

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2. A Origem na Poesia de Hesíodo: “Onde será que isto começa?”, verso de canção popular brasileira composta por Caetano Veloso, é questão que surge a cada vez que um afastamento suficiente nos põe diante de um “isto” que nos desafia. “Isto” que pode ser a cidade em que se habita - no caso da canção citada - ou uma guerra, uma doença, uma paixão, uma dissertação. “Isto” que pode tornar-se tudo: onde será que tudo começa? Assim aconteceu na Grécia, por este grande espanto começou a Grécia. E de Hesíodo temos testemunho de que o começo de tudo é divino44. O que se chama aqui “começo” diz-se, em grego, “” Ou seja, o “onde” buscado pela pergunta não é um lugar determinado geograficamente, nem é uma data. O começo não é um começo que abandona o começado. Começo é, nesta pergunta, origem, princípio, fundamento. O que faz vir a ser desde onde ainda não era, o que sustenta e governa, mantendo sentido: é o que está em questão na pergunta pela “”. O verso de Caetano justifica a assunção da palavra “começo” como tradução de “ ”.

O uso do verbo “ser” no futuro (“será”) mostra que, mesmo quando nos fazemos esta

pergunta cotidianamente, a concepção de começo guardada pela formulação não é de algo que já se deu e está perdido, mas de algo que sempre ainda dar-se-á45 enquanto vigora. Nesta primeira parte do trabalho perseguiremos Hesíodo em sua tarefa de cantar tudo “”: desde a origem, o canto; desde a origem, os deuses; desde a origem, os homens; desde a origem, a ordem que pode harmonizar tanto deuses, quanto homens. A assunção desta tarefa pelo poeta prenuncia a busca pela origem una da realidade que será empreendida tematicamente pelos pensadores posteriores. Quando vemos em Hesíodo a pergunta onde será que tudo começa46? o que vemos é o espanto diante do fato de que a multiplicidade da realidade

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Não é de Hesíodo o único testemunho, talvez nem mesmo o primeiro. A Teogonia de Hesíodo é considerada uma compilação de mitos teogônicos de origens diversas. O esforço original de Hesíodo seria o de fazer um catálogo completo dos deuses e ordená-los em uma narração desde o começo dos tempos (é o que diz, por exemplo, Paul Mazon, no texto que precede sua tradução da Teogonia, em que procura enumerar as principais influências que se pode encontrar na Teogonia. MAZON, Paul. Introduction a la Theogonie. p. 24 -29). 45 Da necessidade deste verbo estar no futuro trataremos adiante, já guiados pelo que diz Hesíodo sobre o começo (cf. 2.1.2). Sobre os diversos sentidos de  cf. ARISTÓTELES. Metafísica . 1012b34 – 1013a23. 46 Parece-nos possível localizar esta questão nos versos 114 e 115 da Teogonia, que anunciam o nascimento dos primeiros deuses: Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio Olímpio/dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu.

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(tudo) exige, para sustentar-se,

um princípio - começo e governo - uma “”47. O

pensamento, ao se perguntar onde será que tudo começa?, só o faz porque reconhece, na própria reunião promovida pela pergunta, a necessidade de haver unidade em tudo o que há. Dito de outro modo, o que propomos é pensar se o “tudo é um”, aquela “intuição mística que encontramos em todos os filósofos”, segundo Nietzsche48, ou a “sobressunção da multiplicidade na unidade”, tal como descrita por Hegel49, está presente na busca de Hesíodo pela origem e, se sim, como. Queremos, então, encontrar em Hesíodo um nome que, colocando-se no lugar da “água” de Tales, do “fogo” de Heráclito, do “átomo” de Demócrito, do “número” de Pitágoras, permita-nos chamá-lo filósofo pré-socrático? Não. O que nos interessa aqui não é qual é o princípio responsável pela unidade do múltiplo, mas como é possível que haja unidade do múltiplo. Ou seja, o que buscamos na poesia de Hesíodo é o seu testemunho sobre a origem da articulação de muitos em um (a origem da unidade da origem) ou, talvez o mesmo, diferentemente, a origem do desdobramento do um (da origem) em muitos. Narrando a origem de tudo – deuses, homens e ordem divina – Hesíodo narra a gênese da totalidade, ao mesmo tempo múltipla e una. Esta é, portanto, a nossa primeira questão: como se origina a totalidade na poesia hesiódica e qual é o sentido desta totalidade? Está claro que só a partir de uma compreensão do sentido, ou dos sentidos, de totalidade em Hesíodo, poderemos proceder à interpretação de nosso enigma que diz que “metade vale mais que todo”. Seguindo uma indicação de Heidegger em uma nota de Ser e Tempo50, objeto de estudo da tese de doutorado de Cláudio Oliveira intitulada Do Tudo e do Todo ou De uma Nota de Rodapé

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Algo semelhante diz Aristóteles: Os que assim pensavam afirmaram a existência de um princípio das coisas que é ao mesmo tempo a causa da beleza e aquela espécie de causa de onde se origina o movimento. Seria de suspeitar que Hesíodo tenha sido o primeiro a buscar algo deste gênero – ele ou algum outro que colocasse o Amor ou o Desejo como um princípio ente as coisas existentes, a exemplo de Parmênides .ARISTÓTELES. Metafísica A 984b20-25. Tradução de Leonel Vallandro. 48 NIETZSCHE. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos §3. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Coleção Os Pensadores. Volume dedicado aos Pré-Socráticos. 49 Cf. HEGEL. Preleções sobre a História da Filosofia. (p.203-205). Tradução de Ernildo Stein. Coleção Os Pensadores. Volume dedicado aos Pré-Socráticos. 50 Desde Platão e Aristóteles é conhecida a diferença entre todo e soma, hólon e pan, totum e compositum. Com isso, sem dúvida, ainda não se reconheceu e nem se conceituou a sistemática das variações categoriais encerradas nesta distinção. HEIDEGGER. Ser e Tempo §48. (p. 25, vol II). Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.

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do Parágrafo 48 de Ser e Tempo, procuraremos, previamente, distinguir dois sentidos de totalidade, guardados, ainda que problematicamente, pelos termos gregos “”e“”51. Segundo Chantraîne52, “” significa “todo, cada um” (no plural, “todos”). Tem um campo semântico mais extenso que “”, que exprime totalidade, mas não multiplicidade; “” significa “inteiro, intacto, completo, todo”, por vezes, “são”53. A diferença semântica, tal como apresentada pelo léxico, aponta para uma diferença gramatical: “” tem função pronominal, enquanto “” tem função adjetiva. Podemos, a partir disto, encontrar, na língua portuguesa, dois termos que equivalem, se não unívoca, ao menos freqüentemente, a estes termos gregos e às suas funções54. “Tudo” é um pronome indefinido e diz “todas as coisas”, “todas as coisas de que se trata”, “tudo o que há”, “a totalidade das coisas”55. “Todo” pode ser adjetivo e dizer “completo, inteiro, total”, “que não deixa nada de fora”, ou pode ser um pronome indefinido, quando diz “qualquer, cada”. Pode ainda ser um advérbio, dizendo “inteiramente, totalmente”56. Como se pode perceber, “tudo” e “todo” podem ser, ambos, em alguns casos, pronomes indefinidos e “tudo”, então, pode substituir “todos”. Por exemplo: “quantos bens Perses quer?” “ele quer tudo” ou “ele quer todos”. Neste caso, “tudo”, sempre singular, diz o mesmo que “todos”, sendo plural. A singularidade deste “tudo”, portanto, dá-se pela totalização, pela soma, de muitos. O “todo” adjetivo, entretanto, diz uma unidade que pode ter partes, mas à qual não falta nenhuma parte. As partes do todo são múltiplas em um. A diferença é a diferença entre “tudo” (ou “todas as coisas”) e “a coisa toda”, “algo todo”. No primeiro caso há uma soma de unidades, no segundo caso há unidade de partes. 51

Há uma indicação desta possível distinção, por exemplo, no final do Teeteto de Platão, 204a11. Sócrates pergunta a seu jovem interlocutor se são a mesma coisa “ ”e “”, ou algo diferente cada um dos dois. 52 CHANTRAÎNE, P. Dictionaire Étymologique de la Langue Grecque, v.2, p. 859-860. 53 CHANTRAÎNE, P. Dictionaire Étymologique de la Langue Grecque, v.2. p.794. 54 Os convites para pensarmos a distinção entre “ ”e “” a partir da distinção morfológica que há entre estes termos, bem como para os traduzirmos respectivamente por “tudo” e “todo”, nos chegaram através da tese de doutorado de Cláudio Oliveira da Silva. SILVA, Cláudio Oliveira da. Do Tudo e do Todo ou De uma nota de rodapé do parágrafo 48 de Ser e Tempo: Uma discussão com Heidegger e os Gregos. Afastar-nos-emos bastante da distinção tal qual formulada nesse estudo, mas não podemos deixar de reconhecer aqui nossa dívida e gratidão pelas chispas. 55 Médio Dicionário Aurélio, verbete “tudo”, (p. 1700). 56 Médio Dicionário Aurélio, verbete “todo”, (p. 1660).

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Mas será que a distinção é tão simples assim? O que dá unidade para o que se reúne por meio do termo “tudo” (pronome) não precisa ser “todo” (adjetivo)? Será que todo homem (tudo que é homem), ou seja, cada homem (ou os múltiplos homens) não precisa ser, de algum modo, um homem todo, um homem inteiro? Onde mais estaria a unidade que permite a junção de múltiplos senão em cada um deles? Da mesma maneira se deve perguntar: o que dá multiplicidade ao todo? Como o todo, que é um, pode ser formado de partes, e por que cada parte é ela mesma uma? Se houver uma unidade do tudo (pronome) para além dos muitos que o compõem e se, por outro lado, houver uma unidade de cada uma das partes que compõem algo todo (adjetivo), será que a distinção entre tudo, como soma de unidades, e todo, como unidade de partes se sustenta como uma distinção real? Ou será que as partes enquanto consideradas em sua interdependência, como partes necessárias para a constituição de um todo, são partes do todo (inteiro), mas, se consideradas como independentes, como unidades autônomas, são unidades que, se somadas, formam um “tudo”? Podemos fazer dois movimentos contrários que talvez nos ajudem a pensar estas questões: 1. Parece claro que as partes de um todo podem ser elas mesmas todos, formados por outras partes. É possível, portanto, decompor sucessivamente os todos em partes buscando encontrar a parte mínima, o elemento, ele mesmo indivisível. Mas o que determina o fim das divisões? E o que determina que estas sejam as divisões adequadas para buscar a parte mínima? 2. Os todos não podem ser partes de outros todos? Onde isto pára? Qual é o todo que dá conta de todos os todos?57 Parece que “parte”, “todo” e “tudo” são relativos, mas a quê? A hipótese com a qual trabalharemos é a seguinte: o “tudo” () é uma soma de unidades, que podem ser realmente idênticas às partes do todo (), mas que não estão assim determinadas, ou seja, não têm sua função determinada pela unidade do todo. Assim, um “tudo” é indeterminado e, como tal, incapaz de dar aos elementos que o compõem um sentido, uma identidade. “Tudo” é, então, um modo múltiplo, indeterminado e, desta maneira, imperfeito de ver um todo. “Tudo” não é nada porque quando se perpassa de sentido uma multiplicidade, 57

Dito por Kant: No que respeita a um composto substancial, a análise somente se detém quando encontra uma parte que não é um todo, isto é, no simples; também a síntese apenas se detém no todo que não é parte, isto é, no mundo. KANT. “Da Noção de Mundo em Geral” §1. Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e do mundo inteligível. Tradução de José Andrade. (p. 187). Resta a questão: é possível diferenciar o simples do mundo? Ou ainda: que concepção de mundo vige quando se opõem mundo e simples?

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esta passa a ser una e toda. “Tudo” é, então, a soma do que ainda não ou do que já não é visto como parte de nenhum todo. Se for assim, como entender a sentença, filosófica por natureza, “tudo é um”58? Ela não é, então, trivial. Ela não diz que uma totalidade inteira e completa é una. Ao contrário, o que ela diz parece ser uma contradição59: uma totalidade múltipla e indeterminada é atravessada de sentido e torna-se, assim, una, inteira, completa, um todo. O que a sentença faz é reunir a multiplicidade das coisas que são à unidade que lhes permite ser, criando assim um novo sentido de totalidade, o sentido propriamente filosófico de totalidade. Uma totalidade que não é soma, mas uma articulação que precisará ser a cada vez, em cada ocasião de pensamento, explicitada em seus elementos e em sua possibilidade de reunião. Vejamos como se pode encontrar no verso de Hesíodo que orienta este trabalho uma indicação destes problemas. Hesíodo diz a Perses, seu irmão, que, para ser algo, ele precisa assumir a metade () que lhe cabe e parar de querer tudo (); porque o “tudo” que Perses quer jamais será suficiente, jamais dará à sua vida a completudeque ele espera60. Para ser o que é, Perses precisa conquistar um “todo” que determine a sua parte (a metade) e que lhe dê um sentido. Segundo esta interpretação, Hesíodo pretende, em Os Trabalhos e os Dias, mostrar a Perses que, graças ao que o homem é (apartado - por sua determinação originária), ele só será íntegro, completo, em realizando seus trabalhos (), de acordo com a ordem divina, a qual se manifesta através dos dias (). Tal ordem divina, entretanto, segundo o testemunho do mesmo Hesíodo, na Teogonia, veio a ser. A origem da totalidade – a unidade de sentido de tudo o que há – tem uma história, isto é, uma articulação temporal. Os deuses nascem, há progenitores e descendentes, há uniões e separações, há amores e guerras. Também entre os deuses há ação, há obra ( ), para que a harmonia seja estabelecida. Portanto, seguir a ordem dos deuses – o que Perses, como 58

“”. Cf. HERÁCLITO. Fragmento 50. É por esta aparência que ela é objeto de controvérsias no Sofista de Platão. Cf. PLATÃO. Sofista 244b-245d. 60 Hesíodo diz “”. “” é o comparativo de “”, dizendo, assim, “mais”, “maior”, “mais numeroso”, cf. CHANTRAÎNE. Dictionaire Étymologique de la Langue Grecque. (p. 913). Mas pode ser também, segundo BAILLY. Dictionnaire Grec Français Le Grand Bailly. (p. 1569), o neutro de “”, significando então “pleno” ou “cheio”, sentido utilizado por Hesíodo no verso 792 de Os Trabalhos e os Dias. A sintaxe da frase, uma comparação introduzida pelo termo “” (quão maior, quão mais) pede para que o primeiro sentido seja o escolhido, como fazem todas as traduções por nós consultadas. Entretanto, é interessante notar, sem ir com isto muito longe, que pode haver uma ligação semântica entre este “valer mais” e “ser pleno, cheio, completo”. Agradecemos à prof. Marta Mega por ter chamado nossa atenção para esta possibilidade. 59

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homem mortal, pode e deve fazer – talvez não seja copiar um desenho estático, um modelo atemporal, mas, antes, participar (através de seu trabalho próprio) do movimento divino de conquista desta ordem. Precisamos, então, perguntar a Hesíodo: Como de um “tudo” múltiplo e indeterminado vem a ser um “todo”? De que modo a parte participa deste vir a ser? O que é, como é e por que é o trabalho () que perfaz esta participação? É o que faremos a seguir. 2.1. Origem do todo: A Teogonia narra a origem dos deuses, seus nascimentos, suas genealogias; a ascensão de Zeus e a divisão dos lotes. Mas nela também é dito o que ela mesma é, sua origem, seu sentido, sua verdade. Isto quer dizer que no canto em que se diz onde tudo começa e se ordena em um todo, diz-se também onde começa o canto. Junto à pergunta “onde tudo começa?” está a pergunta “onde isto – a pergunta pelo começo de tudo – começa?”. Estes começos orientarão nossa leitura e deles buscaremos a junção. Ou seja, perguntaremos: 1. como um canto (nosso isto) alcança a origem de tudo e narra sua articulação em um todo?; 2. como tudo articulando-se e tornando-se todo permite e exige (é condição necessária e suficiente para) a origem do canto que canta sua origem? Podemos começar, então, a leitura do poema pelo verso 1, no qual se inicia o que costumamos chamar “proêmio”, a invocação das Musas, seu hino e seu encontro com Hesíodo: origem do canto. Ou podemos começar pelo verso 116, no qual se inicia a narração do nascimento dos primeiros deuses: origem de tudo. Ou, ainda, podemos começar pelo verso 453, pela narração do nascimento de Zeus, de sua ascensão e da distribuição dos lotes: origem do todo. Seguiremos o caminho do poeta: primeiro, encontraremos as Musas, filhas de Zeus, seu futuro, que nos dirão o que é o canto; depois, em companhia das Musas, veremos nascerem os primeiros deuses, antepassados de Zeus, que nos mostrarão tudo vindo a ser; e, por último, acompanharemos o deus que, derrotando os titãs, fazendo a partilha dos lotes e tornando-se pai de deuses e homens, estabelece a ordem do todo. Há, segundo nos parece, necessidade de que o caminho seja este. Somente podemos chegar à origem da totalidade, entendida como a articulação da multiplicidade em um sentido 18

uno, tal como a expusemos anteriormente, partindo do que abre a possibilidade para que se pergunte por esta origem - no caso, o canto. O que estamos dizendo é que se a Teogonia começasse pela origem dos primeiros deuses e seguisse, cronologicamente, as linhagens divinas, sem dizer desde onde o canto canta, poderíamos considerá-la “apenas” mais uma narrativa mitológica de origem. Mas não é isto o que acontece. Há, na Teogonia, também, e em primeiro lugar, uma narrativa do que torna possível que haja narrativas: o encontro do pastor com as deusas. Este movimento do discurso sobre si mesmo, da pergunta pela origem da pergunta, é filosófico61. Hesíodo não pretende estabelecer previamente um critério de verdade que possa legitimar seu discurso, como fazem os filósofos modernos; porém, ele narra a experiência que abre a possibilidade e a necessidade de seu canto. É a experiência que passamos, então, a acompanhar. 2.1.1. O canto das Musas Como dissemos na Introdução, o percurso da leitura dos poemas de Hesíodo será acompanhado por Platão. Ou seja, a filosofia platônica ajudar-nos-á a dialogar com a poesia hesiódica. Afirmamos, há pouco, que o movimento realizado pela pergunta concernente à origem do canto, no canto que pergunta pela origem de tudo, pode ser caracterizado como filosófico. Em outros termos, é próprio da filosofia exigir que todo discurso se pergunte por desde onde fala. Nos diálogos platônicos, quando estão em questão as atividades discursivas - a rapsódia ou a retórica, por exemplo - Sócrates impõe aos interlocutores, em busca de saber se tais atividades são arte () ou o que são, que respondam: qual é o objeto de sua atividade; de onde ela se origina (se é uma inspiração divina, uma opinião ou um conhecimento; se pode ou não ser ensinada, se pode ou não ser aprendida); qual é a verdade contida em seu discurso (se quem diz sabe o que diz e faz o que diz). Assim, a Górgias, por exemplo, Sócrates pergunta: ... podes ensinar tua arte a outras pessoas?62; e, depois: ... a respeito da retórica: qual é o objeto particular do seu conhecimento?63. Ao 61 62

Localizamos esta pergunta pela pergunta no verso 35: Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra? PLATÃO. Górgias 449b. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Em grego: 

 63

PLATÃO. Górgias 449d. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Em grego:



;

19

rapsodo Íon ele pede: ... mostra-me por tua parte, já que és melhor conhecedor de Homero do que eu, o que pertence ao rapsodo, e o que a este, melhor do que ninguém, compete considerar e ajuizar. 64; E, adiante, insiste: ... o que é, afinal, o que ele conhece?65 No Íon66, Sócrates diz que a poesia não é uma arte (), mas um entusiasmo ( ),

uma inspiração divina (),já que os poetas não sabem aquilo sobre o que

falam, não tem objeto determinado e nenhum controle sobre sua produção. N’A República, no entanto, Sócrates dirá que a poesia é uma arte (67), mas uma arte que imita a aparência das coisas68, sem conhecê-las69, estando, pois, três pontos afastada da verdade (70). Não pretendemos aqui fazer justiça à complexa crítica platônica à poesia, mas trazê-la, de modo apenas provocador, para a conversa com Hesíodo71. Faremos, então, aos versos de Hesíodo que narram seu encontro com as Musas, três perguntas, de inspiração platônica: (1) Qual é a origem do canto? (2) Qual é a verdade do canto? (3) Qual é o objeto do canto? Ou, de outro modo, para o bem de quê canta a poesia? É Sócrates quem nos concede a palavra, exigindo que nosso amor pela poesia transforme-se em defesa, não apenas do prazer que ela proporciona, mas, sobretudo, do bem que ela é para o homem e a cidade: Concederemos certamente a seus defensores, que não forem poetas, mas forem amadores de poesia, que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como é não só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-los-emos favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela é não só agradável, como também útil.72

64

PLATÃO. Íon 539e. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Em grego:    65

PLATÃO. Íon 540b. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Em grego: , ; Cf. PLATÃO. Íon 533d-535a. 67 Cf. PLATÃO. República 601d. 68 Cf. PLATÃO. República 601c. 69 Cf. PLATÃO. República 602 b. 70 Cf. PLATÃO. República 602 c. 71 Nisso também os diálogos de Platão são o modelo. Quando, no Teeteto, Sócrates termina a imitação da “defesa de Protágoras”, ele diz: Se o próprio Protágoras fosse ainda deste mundo, teria defendido as suas idéias com outra grandiosidade. PLATÃO. Teeteto 168c. Tradução de Fernando Melro. 72 PLATÃO. República 607d-e. 66

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Vejamos, pois, de que modo os versos de Hesíodo podem nos ajudar, ou seja, vejamos o que eles têm a dizer sobre o que é a poesia e qual é a sua tarefa ():              73 Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Estas palavras primeiro disseram-me as deusas Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide: “Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”. Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas, por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado, impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por último sempre cantar. Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?74

(1) Qual é a origem do canto? A origem do canto é o encontro de Hesíodo com as Musas, narrado nos versos acima. É preciso notar que o sujeito gramatical dos versos é “as Musas” (com exceção do último, em que aparece a pergunta à qual já nos referimos). Hesíodo é aquele ao encontro de quem vieram as Musas, com quem elas falaram, a quem elas ensinaram algo, deram um presente, um dom.

73 74

HESÍODO. Teogonia. vv. 22-35. Tradução de Jaa Torrano.

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É recomendável que, ao mesmo tempo, atentemos à gramática e dela desconfiemos. Sujeito age, objeto sofre? Sujeito sustém o objeto que diante dele se coloca? As musas, deusas que são, merecem o lugar de sujeito, deste que, antes e depois da ação, subsiste? Que ação é esta que aqui se narra? Um encontro. O encontro que permitirá a ação do poeta: o canto. As Musas vêm ao encontro, são elas que agem para que possa haver o poetar. Com isto estamos dizendo que Hesíodo é passivo, que ele nada fazia? Não, Hesíodo pastoreava suas ovelhas, guardava, cuidava de seu rebanho. O pastor é um guardador e a atividade da guarda é uma atividade de vigília, de cuidado, de espera. O pastor “olha pelas ovelhas”, ele vê o que é melhor para elas, qual o pasto mais adequado, mais seguro. Leva as ovelhas para o campo, as conduz para seu ambiente, responsabilizando-se por elas, percebendo a aproximação de alguma ameaça e defendendo-as. É no momento de tal atividade, de espera atenta e responsável, de cuidado pela medida da Terra, que aparecem as Musas. As Musas agem, mas o pastor só pode elevar-se à posição de objeto da ação das Musas se fez sua parte, se realizou o trabalho de guarda e esteve à espera. As Musas trazem sua palavra () àquele que realiza a obra (). Este encontro entre a obra do pastor e a palavra das Musas abre o tempo do canto. As Musas vieram “um dia”, quando Hesíodo pastoreava. A expressão grega “” fala de algo que se passou “alguma vez”, em um tempo indeterminado. Se “” anuncia um acontecimento em um passado indefinido, “” traz este acontecimento para o presente, um presente que recebe o passado, que o guarda. Talvez possamos fazer corresponder esta expressão ao “era uma vez” que inicia os contos de fadas. Dizer “era uma vez” significa deixar vir como presente um outro tempo, o tempo da narração que se inicia. “Era uma vez” torna cada vez aquela vez, a hora e a vez da história que se inicia. É a marca de uma mudança no tempo. O tempo cotidiano do que a ouve e do que a conta (ou do que a lê) será a cada vez invadido e modificado pelo tempo próprio da história. Parece-nos, portanto, que as Musas apareceram a Hesíodo no tempo do “era uma vez”. É preciso deixar claro que com isto não estamos dizendo que o encontro, como “conto da carochinha”, não aconteceu de fato, que ele é inverossímil. Ao contrário, pretendemos com isto dizer que a força deste encontro é tamanha que ele pode se repetir sempre ainda uma vez.

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Quanto às interpretações que pretendem relativizar a realidade do encontro, estamos inteiramente de acordo com Rudhardt: Une rencontre avec lês Muses paraît invraisemblable aux esprits modernes qui cherchent à expliquer lê récit d’Hésiode de plusieurs façons. Les plus sceptiques d’entre eux n’hésitent pás à dire qu’il est fictif, composé dans um jeu purement littéraire, à l’imitation d’autres textes relatant l’inspiration de chantres ou de prophètes. J’admettrais volontiers l’idée que de tels textes ont existé dans la tradition grecque avant Hésiode. Ils l’ont peut-être influencé mais en resulte-t-il à coup sûr que son réciit en soit une simple imitation ? Si nous recourons à une hypothèse de ce genre pour expliquer la naissance d’um passage que nous jugeons invraisemblable, il nous restera à expliquer celle de ses modèles puisqu’ils présentent nécessairement une invraisemblance égale. Le problème est d’autant plus grave que de tels modeles ont des parents dans plusieurs civilisations différentes.75

Explicações culturais ou sociais, portanto, não nos satisfazem, pois delas também desconhecemos o fundamento. É preciso que perguntemos o que é este fenômeno, qual a natureza dos testemunhos de que forças divinas vêm ao encontro do homem. Numa formulação bastante sucinta de Eudoro de Sousa: Fala-se em “divinização” como se a palavra designasse um processo cuja natureza se entende sem qualquer explicação. Quantas vezes não ouvimos dizer, ou lemos escrito, que o homem diviniza isto ou aquilo, este ou aquele? Tão vulgar e comum é o dito ou escrito, que, diante dele, não nos demoramos para pensar. Pense-se, então, que Deus ou os deuses têm de preceder toda e qualquer divinização.76

Então, perguntemos ainda uma vez: quem são estas deusas, as Musas? As Musas são o princípio do canto, a força que possibilita o cantar. Elas trazem ao homem a inspiração poética, ensinam-lhe o belo canto. Mas as Musas nascem no próprio canto, na Teogonia.77 Esta aparente contradição – como o que ainda não nasceu pode cantar o nascimento do mundo e seu próprio nascimento? – é apenas a confirmação de que as deusas e o cantar estão de tal modo unidos que talvez pudéssemos dizer que o cantar, infinitivo, forma nominal do verbo, 75

RUDHARDT, Jean. “Le Préambule de la Théogonie: La Vocation du Poète. Le Language des Muses”, Le Métier du Mythe. Lectures d’Hésiode. (p. 25). [Um encontro com as musas parece inverossímil aos espíritos modernos que procuram explicar a narrativa de Hesíodo de muitas maneiras. Os mais céticos dentre eles não hesitam em dizer que ele é fictício, composto em um jogo puramente literário, à imitação de outros textos que relatam a inspiração de cantores e profetas. Eu admitiria voluntariamente a idéia de que tais textos existiram na tradição grega antes de Hesíodo. Eles talvez o influenciaram, mas resulta disto com certeza que sua narrativa seja uma simples imitação? Se nós recorremos a uma hipótese deste gênero para explicar o nascimento de uma passagem que nós julgamos inverossímil, nos restará explicar os seus modelos, já que eles apresentam necessariamente uma inverossimilhança igual. O problema é tanto mais grave porquanto tais modelos têm parentes em muitas civilizações diferentes]. 76 SOUSA, Eudoro de. História e Mito. (p. 26 e 27). 77 HESÍODO. Teogonia. v. 60.

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força que possibilita e mantém cada canto, cada realização temporalizada, recebe, aqui, um nome próprio, aliás, nove: os nove nomes das Musas78. As Musas, na linhagem dos deuses ensinada por Hesíodo, são filhas de Zeus (expressão máxima do poder) e de Mnemosyne (a memória). Como foi dito na Introdução, a filiação, na Teogonia, diz muito. Em seu quinto casamento, Zeus desposa Mnemosyne e dessa união nascem as nove Musas. O poder casa-se com a memória. A memória é força de presentificação, força de aparecimento do que está esquecido, força de revelação do ausente: o ausente passado, presente ou futuro. Memória, aqui, não é simples lembrança, pelo menos não no sentido a que estamos habituados; é desocultação, mesmo descobrimento. Descobrimos não só o passado, mas também o futuro e, com mais dificuldade, o presente. As musas são, assim, filhas da unidade de sentido de todas as divindades com o poder de trazer à luz esta unidade. Elas são, portanto, aparecimento do divino (que reúne em si passado, presente e futuro). Mas à fonte de poder para a lembrança pertence, na mesma medida, o poder para o esquecimento; as Musas, portanto, não apenas fazem lembrar, elas também fazem esquecer. É o que Hesíodo nos diz ao narrar a sua concepção: Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida, Memória rainha nas colinas de Eleutera, para oblívio dos males e pausa de aflições.79

Lembrar o essencial, a unidade de tudo que é - mais bela palavra, segundo Hölderlin80 é alegrar o coração, esquecer os pesares e aflições. Talvez por isso o canto das Musas, instaurando o tempo da ordem divina, acusa os pastores de vis, pobres, infames: porque os pastores, em seu tempo ordinário, atados aos fatos, podem esquecer dos deuses, o que significaria esquecerem o bem de seu rebanho e lembrarem apenas de seus ventres81, de sua fome. As Musas chamam a atenção para o perigo que corre o pastor, distanciando-se da 78

Friedländer e Snell foram, segundo Leclerc, os primeiros que viram a relação entre os nomes das Musas, que aparecem nos versos 77-79, e os termos que designam o canto e seus efeitos, que aparecem ao longo do prólogo, antes da narração do encontro do pastor com as Musas. Cf LECLERC, Marie-Christine. La parole chez Hésiode. (p. 162). Cf. também FRIEDLÄNDER. “Rezension der Theogonie-Ausgabe von Felix Jacoby”; e SNELL. “Die Welt der Götter bei Hesiod“. Hesiod. Org. Ernst Heitsch. 79 HESÍODO. Teogonia. vv.53-55. Tradução de Jaa Torrano. 80 HÖLDERLIN. Hyperion. 81 O termo está “” está ligado à fome, à digestão e à reprodução. Segundo Leclerc, ele é utilizado na fala das Musas para aproximar os homens dos animais, distanciando-os dos deuses. Cf. LECLERC, Marie-Christine. La parole chez Hésiode. (p. 169). O termo reaparece nos versos 460, 487, 890 e 899 da Teogonia.

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ordem dos deuses, de deixar de ser pastor, de perder de vista o sentido último do trabalho, que não é o ventre, mas o bem. No livro I da República o interesse da arte () é discutido por Sócrates e Trasímaco e talvez não seja demais supor que há nesta discussão uma herança das Musas hesiódicas82. Trasímaco reprova Sócrates porque este julga que os pastores guardam as ovelhas para o bem delas e não deles mesmos, pastores, ou de seus patrões83. Ao que Sócrates responde, fazendo a distinção entre o que é próprio a cada arte, e a arte do lucro, que nenhuma arte proporciona o que é útil a quem a exerce, mas ao seu objeto, isto é, àquele de quem a arte “cuida”84. Os pastores, pois, que olham para seu próprio ventre, em vez de cuidarem do bem das ovelhas, são vis, infames, maus pastores. E o cetro dado ao poeta pelas Musas? O cetro é de louro, que, segundo Leclerc 85, já era, no tempo de Hesíodo, a árvore de Apolo. O cetro é instrumento real, de poder, mas também o é de pastores e profetas. Hesíodo ganha das Musas um poder inspirado por Apolo, o deus da mântica, do canto, da medicina. O poder e a inspiração estão juntos. A inspiração e a guarda e o cuidado estão juntos. Vale ainda ressaltar que, na Teogonia, Hesíodo nos diz que as Musas falam através de poetas e também de reis que com suas belas palavras encantam os homens86. Os comentadores têm chamado a atenção para a diferença entre o modo como Hesíodo se refere aos reis em Os Trabalhos e os Dias e o modo como na Teogonia ele os caracteriza87. Não parece, entretanto, que há na Teogonia uma tentativa de legitimar o poder dos reis que de fato estão exercendo o poder (os que julgam o litígio entre Hesíodo e Perses, por exemplo), mas um reconhecimento de que os verdadeiros reis, ou seja, aqueles que exercem o poder legitimamente, o fazem por um dom das Musas. Isto parece estar totalmente de acordo com o que é dito em Os Trabalhos e os Dias, já que os reis “comedores de presentes”, corruptos, são 82

Sobre a diferença entre a perspectiva (marcada pelo uso de diferentes verbos gregos que expressam o ver) de Sócrates e a de Trasímaco no Livro I da República, ver: HADDAD, Alice. Sócrates e Trasímaco: Uma Discussão Acerca do Olhar do Artífice.[Dissertação de Mestrado]. 83 Cf. PLATÃO. República 343b. 84 Cf. PLATÃO. República. 346e 85 Cf. LECLERC, Marie-Christine. La parole chez Hésiode. (p.176). 86 Cf.HESÍODO. Teogonia. vv.80-90. 87 Cf., por exemplo, WEST, M. L. “Introoduction”. Theogony, Works and Days: A new translation.(p.xiv) e BALLABRIGA, Alain. “Le Deutéro-Hésiodisme et la Consécration de l’Hésiodisme”. Le Métier du Mythe: Lectures d’Hésiode.(p.74).

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aqueles que não reconhecem a ordem divina, o poder de Zeus, ou seja, aqueles que não são verdadeiramente reis. É o encontro com as Musas que dá ao pastor a palavra capaz de “hinear o ser dos venturosos sempre-vivos”, “dizer o presente, o futuro e o passado”. O canto, o dom da palavra é mesmo uma inspiração divina (). Mas é em meio a este encontro, também, que surge a pergunta: Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra? Hesíodo reconhece que algo veio até ele: as Musas, a palavra inspirada, a possibilidade e necessidade do canto. Ele pergunta, então: por quê? E o “por quê” incide sobre “a vinda disto”, mas também sobre o desde onde “isto” veio: “de carvalho e de pedra”. O entusiasmo não cega, não faz Hesíodo perder o domínio sobre si mesmo, não o tira de seu lugar. Ao contrário, o entusiasmo, a presença das deusas, permite que ele olhe para si, para a sua própria experiência. Este olhar para si é um perguntar-se: “mas por quê?”. “Por que me vem isto?”: por que hinear o ser dos deuses e não apenas comer? “Por que me vem isto de carvalho e de pedra?”: por que me vem isto do campo? Por que me vem isto da Terra? Por que me vem isto de Zeus? O carvalho e a pedra são, ao mesmo tempo, o ambiente do pastoreio, a paisagem do monte Hélicon e o santuário de Zeus, em Dódona 88. É de carvalho e de pedra que vem a possibilidade de o poeta dar-se conta de si mesmo como poeta. O canto é dom das Musas, mas o encontro com as Musas é dom da Terra e de Zeus.

(2) Qual é a verdade do canto? Que mentiras semelhantes aos fatos são aquelas que as Musas sabem dizer? A questão “qual é, ou melhor, quais são as concepções de verdade que estão presentes na obra hesiódica?” vem sendo discutida há muito. Grande parte dos comentadores89 vê aí, nos versos 27 e 28 da Teogonia, uma crítica à poesia de Homero e uma ruptura em relação a ela. Enquanto as Musas de Homero diriam mentiras verossímeis, as de Hesíodo diriam verdades. De fato, o verso 27 reproduz com pouquíssima diferença o verso 203 do canto XIX da 88

Cf. PLATÃO. Fedro. 275b-c ; RUDHART, Jean. “Le Préambule de la Théogonie: La Vocation du Poète. Le Language des Muses”. Le Métier du Mythe. Lectures d’Hésiode, (p. 26). Agradecemos ao prof. Fernando Santoro pela dica sobre os carvalhos de Dódona. 89 Cf., por exemplo, VERDENIUS. “Notes on the Proem of Hesiod’s Theogony”. Mnemosyne, 4, 25, 1972. (p. 225260).

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Odisséia, em que o aedo diz que Odisseu é capaz de fazer aparecerem numerosas mentiras semelhantes a realidades, ou seja, que ele é capaz de se fazer passar por outro que ele não é. Há ainda alguns estudiosos90 que compreendem esta referência à Odisséia não como uma ruptura em relação à poesia homérica, mas como a assunção de um duplo poder da poesia em qualquer tempo: dizer mentiras verossímeis e verdades. O que faremos aqui, em vez de decidir se Hesíodo está ou não se contrapondo a Homero, é propor que há nestes versos não apenas duas possibilidades para a palavra, mas duas concepções de verdade. Seguiremos nisto a tese do estudo de Marie-Christine Leclerc, já citado anteriormente, intitulado La parole chez Hésiode, sem, entretanto, acompanhar na íntegra a sua demonstração. Os versos em questão (27 e 28) parecem opor a mentiras semelhantes a fatos, verdades. Mas há na obra de Hesíodo dois termos que dizem “verdade”:  (Os Trabalhos e os Dias v. 10) e  (Teogonia v. 28). Portanto, é preciso compreender não apenas a relação entre as mentiras semelhantes a fatos () e as verdades ( ),

na fala das Musas, mas também a relação entre estas mentiras verossímeis e as verdades ( 

)

contadas por Hesíodo a seu irmão Perses. Vejamos o que diz Leclerc sobre esta última: Pour dire q’un enoncé est vrai, Hésiode dispose de deux termes. Le premier, employé deux fois, se présente sous les formes “étymos” e “etétymos”, cette dernière variante comportant, selon Chantraine, un redoublement expressif. Ces termes désignent des paroles conformes à la réalité, au point qu’on a supposé une origine commune du terme avec eînai et suggéré un type d’exactitude vérifiable dans la réalité sensible.91

A primeira verdade (), que corresponde aos fatos, aparece expressamente em Os Trabalhos e os Dias, verso 10. Liga-se etimologicamente a “” (aos fatos ou às realidades), que aparece no verso 27 da Teogonia. Portanto, é esta verdade () que pode contrapor-se às mentiras () que as Musas sabem dizer.

90

Entre eles ARRIGHETTI. “Hésiode et les Muses: Le don de la vérité et la conquête de la parole”. Le Métier du Mythe, Lectures d´Hésiode, (p. 53-70); e Jacyntho Brandão . “As Musas ensinam a mentir”. [versão eletrônica]. 91 LECLERC, Marie-Christine. La Parole chez Hésiode. (p. 68-69). [Para dizer que um enunciado é verdadeiro, Hesíodo dispõe de dois termos. O primeiro, empregado duas vezes, se apresenta sob as formas “étymos” e “etétymos”, esta última variante comportando, segundo Chantraine, um redobramento expressivo. Estes termos designam as palavras conformes à realidade, a tal ponto que se supôs uma origem comum do termo com eînai e sugeriu-se um tipo de exatidão verificável na realidade sensível.]

27

A segunda, que aparece no verso 28 da Teogonia: “”, desvelamento, descobrimento, revelação, segundo as traduções que se tornaram célebres com Heidegger não se pode opor à mentira ou à falsidade. Isto porque o que se revela não é algo à semelhança de fatos, mas a própria estrutura que permite que haja fatos e que haja semelhança: o aparecimento. A oposição que parecia haver entre  e  desfaz-se, então, em uma oposição entre e , ambas relativas; enquanto  é absoluta. Cito ainda Leclerc: Contrairement aux aléthea, indéterminés et ainsi absolus, les "mensonges" s'inscrivent dans l'horizon de la vérité et se definissent par rapport à elle. Il paraît raisonnable de leur attribuer la valeur de "fictions" mentionnée par Chantraine.92

Assim, a primeira concepção de verdade guardada pelo termo “ ”, assemelhando-se a fatos, está subordinada à segunda, guardada pelo termo “”, que faz ver possibilidade de fatos e de semelhança. Para mostrar algo como algo (algo à semelhança de algo) é preciso mostrar, fazer ver, desvelar, revelar. Fazendo ver pode-se ainda não representar as coisas como são: Odisseu, com o poder do discurso, pode se passar por outro que não o marido de Penélope, mas Odisseu jamais poderá não ser o que é, a saber: alguém para quem há a possibilidade de ser ou não marido de Penélope. O que tentamos mostrar com tudo isto é que as Musas dizem a Hesíodo, nestes versos da Teogonia, que o canto, “ficcional” ou “factual”, semelhante ou não aos fatos, às coisas como são, guarda sempre a possibilidade de deixar ver a estrutura mesma dos fatos e a possibilidade mesma da semelhança verdadeira () ou falsa (). Se for assim, o que as Musas dão a Hesíodo é uma revelação sobre o que é a verdade, e sobre a possibilidade do discurso falso – questões de toda filosofia. (3) Qual é o objeto do canto? O que se revela no canto? Para o bem de quê ou de quem canta o poeta? Hesíodo diz que seu canto quer mostrar o que é, a raça dos venturosos sempre vivos. E que isto é gloriar presente, passado e futuro. Quando as musas fazem de Hesíodo poeta, é este 92

LECLERC, Marie-Christine. La Parole chez Hésiode, (p. 71). [Contrariamente às aléthea, indeterminadas e assim absolutas, as “mentiras” se inscrevem no horizonte da verdade e se definem em relação a ela. Parece razoável atribuir-lhes o valor de “ficções” mencionado por Chantraine.] Cf. CHANTRAÎNE. Dictionaire Étymologique de la Langue Grecque. v.2. “ ”.

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o poder que elas lhe dão e este poder deve ser invocado pelo poeta a cada vez que ele canta. O objeto do canto é a palavra cantada. Mas as Musas não cantam qualquer palavra. A palavra das Musas é aquela que pode (e também pode não) revelar a estrutura do mundo, é aquela que pode dizer, desde o princípio, o nascimento dos deuses, é a que pode fazer ver, desde a pergunta pelo começo de si mesma, o começo do todo. Mas, como já dissemos anteriormente e desenvolveremos adiante, tanto o começo do canto, quanto o começo do todo aparecem, em Hesíodo, ligados a trabalho ( ). Que tal se há, pois, em Hesíodo, não apenas um pensamento sobre o canto, mas sobre o que é o trabalho verdadeiro93? Que tal se a experiência narrada por Hesíodo for o que dá legitimidade a todo trabalho (da cerâmica à medicina, da agricultura à filosofia)? Se há, em cada tarefa, uma força divina que vem ao encontro de quem trabalha, e que cabe a ele guardar, escutar, obedecer? Tanto o poeta, quanto o agricultor94, e o pastor, precisam olhar, ou melhor, olham, se são de fato poeta, agricultor e pastor95, para o bem de sua obra, daquilo com o que se ocupam. Assim, o bem da palavra, no poema hesiódico, é cantar a origem do mundo () e revelar a estrutura () que torna possível qualquer nascimento, qualquer mundo, através do trabalho (). O bem da terra é ser lavrada. O bem da ovelha é ser pastoreada. O trabalhador, o poeta, o pastor, o agricultor são o meio para que o bem da obra se realize, eles são atravessados pela obra. O bem do homem é ser obra de sua obra96.

93

Em PLATÃO. Cármides 163c, Crítias diz: Aprendi isso com Hesíodo, quando diz: Trabalhar não é vergonha. (...) como ele também era de parecer que por vezes fazer alguma coisa pode ser vergonhoso, quando a essa atividade não está aliada a beleza, ao passo que o trabalho nunca é vergonhoso. Dava o nome de trabalho ao que é feito com vistas à beleza e à utilidade; trabalhos deste tipo é que para ele eram feitos legítimos e ocupações. (Tradução de Carlos Alberto Nunes). A perspectiva de Crítias parece ainda longe da hesiódica (e da platônica, segundo cremos) conquanto ele diz que Hesíodo não poderia dizer que cortar sapatos, por exemplo, não é vergonhoso. Parece que Crítias não vê a possibilidade de belamente cortar sapatos, isto é, de fazer sapatos em vista do bem. De todo modo, ele vê, e nisto estamos de acordo com ele, que trabalho, para Hesíodo, é o que é feito com vistas à beleza e à utilidade. 94 Diferentemente do que diz Pierre Waltz (cf. WALTZ. Hésiode et son Poème Morale, p. 21-29), para quem Hesíodo era fundamentalmente um agricultor que se dedicava em suas horas de lazer à arte poética, consideramos que a agricultura, tal como é apresentada em Os Trabalhos e os Dias é modelo para a arte verdadeiramente hesiódica: a poesia. 95 Cf. PLATÃO. República 342e-347a. 96 Parece-nos que é o que diz Hesíodo a seu irmão em Os Trabalhos e os Dias. Tentaremos explicitar o sentido desta formulação quando tratarmos deste poema (2.2).

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2.1.2. Os Deuses Primordiais Vamos agora ao começo de tudo: o nascimento dos primeiros deuses. Concentrar-nosemos nos quatro deuses primordiais: Caos, Terra, Tártaro e Eros97. Estes são deuses primordiais porque não têm progenitores, seu sentido só será dado “depois”, por sua prole, por sua história. O fundamento de tudo () se mostra em Hesíodo como o sem fundamento? Ou se mostra como o que tem que ser feito, fundamentado desde o futuro? Zeus é quem dará orientação e unidade aos deuses, ele cessará as revoluções, dividirá os lotes. Pode-se dizer, então, que “antes” disto não há sentido? Como veremos, ele dá sentido e orientação justamente por respeitar o sentido e a orientação do que já havia “antes”, dos que já estavam. Então, trata-se de um círculo: o que funda a unidade é fundado por aquilo a que dá unidade? Ou seja, Zeus dá sentido a seus antecessores, mas recebe deles o seu próprio sentido? Sim, parece que é este círculo98 de fundação, de origem () que Hesíodo narra. Mas há uma ordem na narração e esta ordem indica uma hierarquia. Primeiro, vêm a ser os deuses primordiais e, depois de algumas gerações e obras, Zeus ordena o mundo. Por isto, precisamos descobrir quem são estes, os primeiros, cujo sentido é realizado pela ordem de Zeus. 99 Sim bem primeiro nasceu Caos100

97

A autenticidade dos versos 116-122, que narram o nascimento dos primeiros deuses, foi posta em questão por alguns editores (Solmsen, por exemplo, suspeita do verso 119) e sua interpretação, mesmo entre aqueles que os aceitam, varia: seriam três ou quatro os deuses primordiais? Para West, a quem seguiremos aqui, os versos são autênticos e Tártaro deve ser visto como um dos deuses primordiais, que são, portanto, quatro: Caos, Terra, Tártaro e Eros. West segue os testemunhos de autores antigos como Plutarco, Pausânias e Damáscio. Cf. também TORRANO, Jaa. “A Quádrupla Origem da Totalidade”. O Mundo como Função das Musas. (p. 39-48), estudo que acompanha a edição brasileira da Teogonia. 98 Cf. PARMÊNIDES. Fragmento 5: ... para mim é comum donde eu comece; pois aí de novo chegarei de volta. Tradução de José Cavalcante de Souza. 99 HESÍODO. Teogonia. v. 116. 100 Tradução de Jaa Torrano.

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

diz “abertura, abismo, espaço”101, liga-se102 ao verbo  que diz “abrir-se,

entreabrir-se” e também “abrir a boca (estupefato, admirado)”, “abrir a boca para falar” e, ainda, “bocejar”103. 

diz “nasceu, veio a ser”. O tempo do verbo, o aoristo, usualmente traduzido

pelo nosso pretérito perfeito, indicando um acontecimento pontual no passado, aceita também um uso intemporal, sendo, então, traduzido pelo nosso presente. Por isto uma tradução possível seria: “...primeiro vem a ser o Caos”. Com isto, a narração de Hesíodo deixa de ser de algo que aconteceu em um tempo longínquo, no começo dos tempos, e passa a ser a narrativa do que sempre acontece, no tempo dos começos. Mas o tempo dos começos é tempo dos começos dos tempos. Ou seja, o tempo que é começo de algo é sempre tempo do começo do tempo de algo, começo do tempo em que algo vige. Isto quer dizer que a narrativa de Hesíodo é temporal, mas não se resume ao que pode, ou não, ter acontecido no passado. Nela se pode encontrar a estrutura temporal de todo acontecimento. Numa formulação de Eudoro de Sousa: “Primeiro não foi o Caos. Caos é sempre o primeiro.”104 Em tudo que nasce, nasce primeiro o Caos. Fränkel relaciona este verso aos versos 736 e seguintes105 da Teogonia e diz que juntos eles implicam profundas especulações ontológicas106: Al principio [v. 116], habíamos oído que, antes del ser, fue el “vacío”en el que afloró el ser. Aquí [v.736 e seg] no se habla del orígem del mundo sino de su estructura, y Hesíodo dice que los “límites”y las “fuentes” (o “raices”, 728) de todas las cosas se superponen al “abismo vacío”.107

101

Cf. BAILLY. Dictionnaire Grec-Français Le Grand Bailly. (p.2122). Cf.CHANTRAÎNE. Dictionaire Étymologique de la Langue Grecque. ‘’”; KIRK ; RAVEN. “Os Precursores da Cosmogonia Filosófica”. Os Filósofos Pré-Socráticos. (p. 20); CORNFORD, F. M. “O Padrão da Cosmogonia Iônica”. Principium Sapientae: As Origens do Pensamento Filosófico Grego. (p. 318); TORRANO, Jaa. “A Quádrupla Origem da Totalidade”. O Mundo como Função das Musas, ensaio que antecede a tradução da Teogonia. (p.43). 103 Cf. BAILLY. Dictionnaire Grec-Français Le Grand Bailly. (p.2113). 104 SOUSA, Eudoro de. História e Mito. (p. 20). 105 Aí, da Terra trevosa e do Tártaro nevoento/ e do Mar infecundo e do Céu constelado/ de todos, estão contíguos as fontes e confins/ torturantes e bolorentos, odeiam-nos os Deuses/ Vasto abismo(), nem ao termo de um ano/ atingiria o solo quem por suas portas entrasse/ mas de cá para lá o levaria tufão após tufão/ torturante, terrível até para os Deuses imortais/ este prodígio. A casa terrível da Noite trevosa/ eleva-se aí oculta por escuras nuvens. HESÍODO. Teogonia. vv. 736-745. Tradução de Jaa Torrano. 106 Profundidade suficiente para levar Epicuro à filosofia. Diógenes Laércio conta que: no primeiro livro de sua Vida de Epicuros, o epicurista Apolôdoros afirma que Epícuros se voltou para a filosofia após haver repudiado as metres-escolas porque não souberam explicar-lhe e significação de “caos” em Hesíodo. DIÓGENES LAÉRCIO. “Epícuros”. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. livro X, (p.283). Tradução de Mário da Gama Cury. 107 FRÄNKEL, Hermann. Poesía y Filosofía de la Grecia Arcaica. (p. 114) Tradução de Sánchez Ortiz de Urbina. 102

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Origem e estrutura ligam-se, portanto. O primeiro na origem é também o mais fundamental na estrutura: na abertura, representada por Caos, estão as fontes e confins de todos os deuses. Vale salientar que “primeiro” no verso 116 não é numeral ordinal; “ ” é um adjetivo no superlativo, diz “primeiríssimo”, primeiro dos primeiros. Caos nasce primeiro entre os primeiros, ou seja, Caos é sempre prévio, anterior. Mas prévio e anterior a quê? A todo outro nascimento, a todo outro modo de nascer (é superlativo). Com isto o que se diz é que a abertura, cissura (como diz Torrano108), o espaço que vem a ser é ele mesmo “pré” e “para” os outros nascimentos, o que se poderia reunir nos dois sentidos da partícula “pró”: anterior e a favor. Caos, portanto, não é senão promoção e promessa de abertura para os que vêm109. E vêm, depois, Terra, Tártaro e Eros.  ' ,   , ' , ' , , , '  .110 (...) depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.111 108

TORRANO, Jaa. “A Quádrupla Origem da Totalidade”. O Mundo como Função das Musas, ensaio que antecede a tradução da Teogonia, (p. 44) 109 Em uma apropriação um tanto singular, Plutarco cita Hesíodo para dizer o quão fundamental é a disponibilidade de espaço para receber convidados: ...pero la penuria de sitio, y el que se agote ante la concurrencia, supone cierto desprecio por parte del que invite y lo atestigua admirablemente también Hesíodo, cuando dice: “Desde luego primero fue el Caos”, pues era preciso que espacio e sitio subjacieran previamente a lo que llegase a ser...”. PLUTARCO. Obras Morales y de Costumbres IV. libroV. cuestión quinta. Esta sabedoria do bom anfitrião, que parece tão distante daquelas “especulações ontológicas”, funda-se nelas. O anfitrião é bom, ou seja, é verdadeiramente anfitrião, porque é capaz de na sua experiência refletir uma estrutura ontológica. Ele sabe que para acolher o que quer que seja é preciso “abrir espaço”, “liberar terreno” para que se possa “deixar vir” o outro. A relação entre a especulação ontológica e as máximas morais parece mesmo ser muito estreita em Hesíodo. O poema Os Trabalhos e os Dias é exemplo disto. Se há, como pretendemos que haja, unidade entre as suas duas partes, entre os mitos narrados e os conselhos práticos, isto se deve a que os conselhos sejam fruto de uma experiência prática particular da estrutura universal que é fundada nos mitos, também de forma particular porque figurada. Dizemos, então, que a diferença entre as duas partes do poema não é entre universal e particular, mas entre dois modos particulares, e concretos, portanto, de experimentar o universal. 110 HESÍODO. Teogonia. vv. 116-122.

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A Terra tem amplos seios, amplo peito, amplo coração112. Ela é a sede, a morada, o assento () seguro () para todos. Mas de onde vem esta segurança se a Terra não tem pais e nasce “depois” de Caos que é pura abertura? Se abaixo dela, no seu fundo, está Tártaro nevoento, abismo. A Terra é segura porque dá segurança aos outros: deuses e homens. Ela dá segurança porque é, entre os deuses primordiais, a presença da fonte infinita e sempre () renovável de vida113. De todas as revoluções divinas a Terra participa, como veremos adiante114. A Terra é prodigiosa, enorme, extraordinária115, sem-fim116. Ela treme, geme, retumba117. É conselheira, ordenadora118. A Terra tem entranhas, covil119, recebe, acolhe, esconde120. A Terra gera121, é divina122, é nutriz, portadora de vida123. É também matéria a ser plasmada124 e conformada em corpo de mulher. A Terra tem, pois, na Teogonia, um estatuto privilegiado. Ela é, a um tempo, potência cósmica de criação, a Terra-mãe125, e “simplesmente a terra que vemos todos os dias”126, solo e matéria127. Tártaro (), a parte mais baixa, brumoso, nebuloso, mas de amplas vias. É o subterrâneo, morada dos Titãs, ocultos por ordem de Zeus128. Ele está à mesma distância da Terra que a Terra estará de seu filho Céu (), seu igual. O Tártaro opõe-se 111

Tradução de Jaa Torrano. Cf. BAILLY. Dictionnaire Grec-Français Le Grand Bailly. . (p.1790). 113 Aristóteles chega a indagar na Metafísica 989a: Dos outros três elementos, cada um encontrou seu defensor, pois alguns sustentam que o fogo, outros que a água, e outros ainda que o ar é esse elemento. Mas por que, afinal de contas, não propõem também a terra, como fez a maioria dos homens? Efetivamente diz o povo que tudo é terra, e até Hesíodo declara ter sido ela a primeira das coisas geradas – tão antiga e popular é esta opinião. ARISTÓTELES. Metafísica 989a. Tradução de Leonel Vallandro. 114 Cf. item 3.1. 115 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 159, 173, 479, 505, 731, 821, 858, 861. 116 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 187, 878. 117 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 679, 839, 843, 858. 118 “” Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 494, 626, 884, 891. 119 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 158, 173, 483. 120 “”, “”Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 184, 479, 505. 121 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 45, 126, 821. 122 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. v. 300, 483. 123 “”Cf. HESÍODO. Teogonia. v. 693. 124 “”. Cf. HESÍODO. Teogonia. v. 571. 125 Como dirá explicitamente HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 563: a Terra, mãe de todos. Versão feita a partir da tradução inglesa de Glenn Most. 126 Cf. CORNFORD, F. M. “O padrão da cosmogonia iônica”. Principium Sapientae: As origens do pensamento filosófico grego. (p. 316). 127 Cf. SOLMSEN, Friedrich. “The Theogony”. Hesiod and Aeschylus. (p. 58-59). 128 Entre os versos 721 e 819 da Teogonia, há uma descrição do Tártaro. 112

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topicamente, portanto, ao casal Terra-Céu, origem dos Olímpicos. É o abismo sob a Terra, abismo sobre o qual se assenta o assento de todos. Ou seja, a prodigalidade da Terra funda-se no sem fundo. Eros (), o amor, aquele que doma o espírito e a prudente vontade ( )de

todos os homens e deuses (' ). Eros, a

força da cópula, o que faz, de dois, mais um. O que reúne e proporciona a geração por união. Jaa Torrano chama atenção129 para a possibilidade de compreender o poder de Eros em dois domínios: 1. o do desejo que faz um deus ou um mortal entregar-se, ser domado no ânimo, perder-se por, ou em, um outro - o poder do “solta-membros” 130; 2. a força de reunião cósmica, de atração e harmonia131. Talvez devêssemos perguntar pela ligação entre estes dois domínios: como a submissão ao domínio erótico e, portanto, o sair de si em direção a outro pode levar à harmonia? Dito de outro modo: que harmonia é esta, promovida por Eros, que tira de deuses e homens o domínio sobre seu espírito ( ) e sua vontade ()? Está claro que a harmonia não é estática, Eros é atração, movimento. Mas este movimento é um movimento de cada um para fora si; é, portanto, um movimento que supõe a necessidade de se reunir àquilo de que se está separado, a saber: um outro. Deuses e homens não são, pois, auto-suficientes132, eles desejam, eles reúnem-se, eles geram. As gerações, na Teogonia, se dão de duas maneiras: por cisão ou por união. Isto quer dizer que pode haver um progenitor, que se divide, gerando outro de si, ou dois, que se unem, gerando um terceiro. O primeiro movimento é promovido por uma força de cisão, de abertura, que pode ser identificada com o Caos. O segundo é promovido pela força de atração, de reunião, o poder erótico.

129

Cf. TORRANO, Jaa. “A Quádrupla Origem da Totalidade”. O Mundo como Função das Musas. Estudo que acompanha sua tradução da Teogonia. (p. 42-43). 130 “”: epíteto atribuído a Eros, cf. HESÍODO. Teogonia. vv. 121 e 911. 131 Este é o sentido reconhecido por Aristóteles nos versos de Hesíodo sobre o nascimento de Eros: o que implica que entre os seres existentes devia haver desde o começo uma causa motriz e ordenadora das coisas. ARISTÓTELES. Metafísica 984b. Tradução de Leonel Vallandro. 132 No discurso de Diotima, no Banquete de Platão, 202b-e, o argumento apresentado pela mulher de Mantinéia para provar que Eros não pode ser um deus, mas deve ser uma divindade entre homens e deuses, é o seguinte: se 1. Eros é o desejo do bom e do belo; e 2. só deseja quem é carente do que deseja; e 3. um deus não pode ser carente do bom e do belo; logo, Eros não é um deus. Ou seja, os deuses de Hesíodo, entre os quais, Eros, distinguem-se dos deuses tais como apresentados por Diotima, justamente porque carecem da reunião com os outros, para a realização do bom e do belo. Serão os deuses de Hesíodo como os homens da cidade produzida na República, 369b, que “não são auto-suficientes, mas necessitados de muitas coisas”? Fique a questão.

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Os quatro deuses primordiais são vistos, assim, como quatro princípios: a abertura ou separação (Caos), a união ou atração (Eros), a portadora de vida, sede segura (Terra), e o abismo nebuloso, sobre o qual se funda toda segurança (Tártaro). Da ação destes quatro princípios nascerão todos os outros deuses. Boa parte da Teogonia ocupa-se, pois, de listar as linhagens divinas, os casamentos, os nascimentos. Diz Cornford: A cosmogonia que acabamos de analisar não é um mito, ou melhor, já não é um mito. Avançou tanto no caminho da racionalização que apenas uma divisória muito fina a separa dos primeiros sistemas iônicos (...) Mas mal o cosmos é estruturado para servir de palco à ação que se vai desenrolar e logo elas se transformam em seres sobrenaturais que se entregam às paixões humanas do ciúme e do ódio, naqueles ‘feitos violentos’ que tanto escandalizaram mais tarde os espíritos religiosos.133

O que o autor observa é que, ao contrário do que se pudesse imaginar, os quatro deuses primordiais, ainda que representem princípios complementares e que formem o arcabouço do mundo, não geram ordem, mas multiplicidade e agonia, tudo. Os ‘feitos violentos’, aos quais Cornford se refere, são: a violência do Céu contra a Terra e seus filhos, os quais ele impedia que viessem a luz; a vingança armada por Terra e Cronos, a castração do Céu; a violência de Cronos com seus próprios filhos que, mal nascidos, ele devorava. Estas revoluções parricidas cessam com a ascensão de Zeus e o estabelecimento da ordem, como veremos a seguir. 2.1.3. A ordem de Zeus Como de uma multiplicidade antagônica de deuses (um tudo) cria-se um mundo (um todo)? Podemos responder usando as palavras de Burkert: Zeus é o mundo como um todo e, sobretudo, o fogo pensante que tudo penetra, configura e mantém dentro de limites.134 Porque é o fogo que tudo penetra, mantendo cada parte em seus limites, Zeus é o mundo como um todo, isto é, Zeus faz de tudo um todo. Encontra-se, na tradição interpretativa, a afirmação de que há na poesia hesiódica um prenúncio de monoteísmo, já que o poder de Zeus cantado por Hesíodo seria muito superior 133

CORNFORD, F. M. “O Padrão da Cosmogonia Iônica”. Principium Sapientae. (p. 323-324). BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. (p. 263). Tradução de Manuel José Simões Loureiro. 134

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aos poderes dos outros deuses135. Não exatamente a superioridade do poder de Zeus, que já podemos encontrar expressa em Homero, mas fundamentalmente o princípio ordenador deste poder é o que canta Hesíodo. Se for possível compreender este “tema monoteísta”, sugerido por Snell, como unidade do divino, sentido orientador de forças múltiplas, então, concordamos. Sim, Zeus é aquele que derrota os titãs, acaba com os parricídios, divide os lotes, instaura uma outra época, um outro tempo. É importante notar que os titãs e suas outras épocas, seus outros tempos, continuam a existir, a co-existir136. Derrota não parece significar aqui extermínio, aniquilamento e nem mesmo submissão. Zeus não submete Cronos, Zeus dá a Cronos um sentido. Mas o que isto quer dizer? É na e pela luta com Zeus que os titãs realizam seu destino, ganham seus lotes. Zeus tem o grande entendimento, a grande percepção, ele é o raio, que “de todas (as coisas) dirige o curso”137. Por isso Zeus é pai, por isso Zeus é poder. Na Carta VII, Platão diz algo bastante semelhante sobre o que é preciso para que se conquiste soberania e paz em uma cidade: ... quem quer que, por disposição divina, seja dotado de um pouquinho de bom senso, há de compreender que não poderão cessar as desgraças próprias das revoluções antes de deixarem os vencedores de exercer represálias sob a forma de combates sangrentos, banimentos e execuções, e de persistirem em vingar-se de seus inimigos. Ao contrário, precisarão dominar-se, para estabelecer leis comuns que tanto beneficiem os vencidos como a eles próprios, recorrendo a meios duplamente compulsórios para a todos obrigar a obedecer a essas leis, com respeito e temor: temor a fim de demonstrar-lhes que lhes são superiores pela força; e respeito, por se revelarem capazes de dominar os apetites e de se submeterem voluntariamente às leis. A não ser assim, não cessarão os males de qualquer cidade convulsionada pelas revoluções; as facções, as inimizades, o ódio e a desconfiança prevalecerão nas comunidades de governo sujeitos a tais abalos.138

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Ao mesmo tempo, aqui é sugerido um tema monoteísta que iria ser igualmente retomado e desenvolvido pela filosofia posterior, tendo em vista que Hesíodo coloca Zeus, o ordenador do mundo, muito acima dos outros deuses. SNELL, Bruno. “O mundo dos deuses em Hesíodo”. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. (p. 51). Tradução de Pérola de Carvalho. 136 No Górgias de Platão (523a-524a), Sócrates narra a transformação do julgamento dos mortos, ocorrida depois da ascensão de Zeus ao poder - uma história verdadeira, segundo ele. O último capítulo do estudo de Carolina Araújo sobre o diálogo platônico apresenta uma interpretação desta narrativa socrática que corrobora nossa hipótese de que a derrota dos titãs não é propriamente uma submissão, mas uma ordenação. ARAÚJO, Carolina. Da Arte: a tékhne no Górgias de Platão. [Dissertação de Mestrado], (p. 118-126). 137 Cf. HERÁCLITO. Fragmento 64: De todas (as coisas) o raio fulgurante dirige o curso. Tradução de José Cavalcante de Souza. 138 PLATÃO. Carta VII 336e-337b. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

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As revoluções cessam, após a conquista do Olimpo por Zeus, porque ele é capaz de estabelecer leis que beneficiam vencidos e vencedores, deuses antigos e novos, titãs e olímpicos. Estas leis são essencialmente uma só lei, como não poderia deixar de ser, responsável que é pela unidade do divino: a cada um cabe seu lote, suas honras. A ordenação que Zeus impõe é uma ordenação que respeita o que cada deus é e, por isso, é a única ordenação possível. Mas algo precisa ser lembrado, ainda uma vez: Zeus é ordenador, o que dá sentido, mas não é o criador de tudo que há; ele mesmo é descendente de outros. Portanto, a unidade do divino que a ascensão de Zeus impõe é complexa e histórica, é unidade conquistada. Se podemos ver em Hesíodo, como propusemos, uma formulação do “tudo é um”, origem da filosofia, este um, que dá unidade a tudo, que forma o todo, é complexo, tem modulações, aspectos, tempos. Entender o caráter de Zeus na poesia hesiódica é entender que unidade é esta e por que ela, ainda que posterior, é princípio. O nascimento de Zeus (1), a conquista de suas armas (2), a vitória sobre os titãs (3), sobre Tifeu (4), e a divisão das honras (5) nos guiarão na busca por respostas a estas questões. (1) Nascimento de Zeus:      139 Réia submetida a Crono pariu brilhantes filhos: Héstia, Deméter e Hera de áureas sandálias, o forte Hades que sob o chão habita um palácio com impiedoso coração, o troante Treme-terra e o sábio Zeus, pai dos Deuses e dos homens, sob cujo trovão até a ampla terra se abala.140

Zeus é filho de Cronos, em grego “. Segundo Chantraine141, apesar de não haver etimologia conhecida deste nome, não é de se espantar que a etimologia popular o tenha aproximado de , tempo. Mas ele deixa claro: esta aproximação é desprovida de todo 139

HESÍODO. Teogonia. vv. 453-458. Tradução de Jaa Torrano. 141 Cf. CHANTRAÎNE. Dictionaire Étymologique de la Langue Grecque. (). 140

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valor lingüístico. Chantraine não diz se não devemos nos espantar com esta aproximação apenas pela semelhança fonética entre as palavras ou se há, além disto, na natureza de Cronos uma semelhança com o sentido de tempo que está em jogo no termo “”. Cronos é filho do Céu e da Terra, e é o responsável pela separação entre os pais. Quando castrou seu pai, vingando-se da violência sofrida por ele, sua mãe e seus irmãos, Cronos impediu o Céu de, tomado por desejo, em uma virilidade descontrolada, estender-se a tudo, cercando a Terra e deixando-a atulhada. A mudança de tempo, representada por esta tomada de poder por Cronos é o que queremos pensar. O tempo do Céu é de reunião simbiótica entre Céu e Terra, e de impedimento de novos nascimentos, o Céu detesta seus filhos. Portanto, o tempo do Céu é um tempo que não passa, um tempo para o qual não há futuro, só presente e constante cópula. O Céu é sem-fim e por isso sem fissura, sem instante; sem a separação crônica entre Céu e Terra, não haveria instante, agora, só um sempre. Cronos instaura, então, um novo tempo, em que há separação. Se o Céu se define por sua virilidade e desejo de constante cópula, Cronos define-se pelo pensamento e pela prevenção que este possibilita. Cronos tem curvo-pensar, e porque soube, por seus pais, que seria derrotado por um descendente, pondo-se à espreita, devora todos os seus filhos. No tempo de Cronos há futuro, como possibilidade, mas uma possibilidade contra a qual o deus precisa precaver-se através de seu pensar. O tempo de Cronos é, pois, o tempo do cálculo: primeiro cálculo que derrota o pai, depois cálculo que devora os filhos. Parece que este é mesmo o tempo cronológico, o tempo que quer ser medida para tudo, que quer calcular, desde si, todo o passado e todo o futuro, um tempo que é portanto uma sucessão de agoras. A mãe de Zeus é Réia (). O nome “” também tem seus similares: o fluxo, o fácil. Diz Hesíodo que Réia foi submetida a Crono. Portanto, o fluxo, que é passagem, corrente, foi submetido ao tempo-medida, ao cálculo. Desta submissão surge o novo deus, Zeus, que instaurará ainda um novo tempo, também pensado e medido, mas não mais pensado por pensamento curvo e medido por medida prévia. A medida de Zeus será justa e seu pensamento grande. É importante notar que já na narrativa do nascimento de Zeus, que reproduzimos acima, canta-se que ele é pai de deuses e homens. Isto significa que a paternidade que se atribui a Zeus não se restringe àquela atribuída aos outros deuses e aos homens em relação a seus descendentes imediatos. A paternidade ganha em Zeus outro sentido. Pai é quem pode 38

deter poder, mandar, orientar. Zeus acaba com a sucessão de parricídios porque Zeus, sendo pai, pode ser pai de seus filhos. (2) Depois da derrota de Cronos:

     142 E livrou das perdidas prisões os tios paternos Filhos de Céu a quem o pai em desvario prendeu; E eles lembrados da graça benéfica Deram-lhe o trovão e o raio flamante E o relâmpago que antes Terra prodigiosa recobria. Neles confiante reina sobre mortais e imortais.143

Quando Réia estava para dar à luz Zeus, pediu ao Céu e à Terra, seus pais, que a ajudassem a ocultar-se para que o filho não fosse imediatamente devorado pelo pai. Zeus nasceu e foi criado e nutrido pela Terra, em suas entranhas, escondido sob um covil. Derrotou, então, o pai, em ardil tramado por Terra, Céu e Réia que deram, em lugar do filho, uma pedra para Cronos devorar. A primeira ação de Zeus, narrada por Hesíodo, depois da derrota de Cronos, é a libertação dos Ciclopes, reproduzida acima. Os tios dão a Zeus, em recompensa pela liberdade, raio e trovão. Raio e trovão, as armas de Zeus144, são poder de mudança, divisão de tempo, no tempo. O novo tempo que se instaura com a ascensão de Zeus é tempo de partilha 142

HESÍODO. Teogonia. vv. 501-506. Tradução de Jaa Torrano. 144 O que é arma? Arma é qualquer coisa empunhada em meio à irrupção de um ataque. Digo, sabendo o que digo, “qualquer coisa”. Uma taça que o embaixador oferece em sua casa ao chanceler de uma potência estrangeira: arma. A mão que o rei levanta diante do embaixador que discursa: arma. O torno de um operário alheio às engrenagens políticas que margeiam a guerra: arma. E assim o cálice que um sacerdote eleva, num templo afastado, nos dias mais distantes do início dos combates. Mas, como assim, arma? Os três primeiros exemplos são claros; não o último. Pois não há aí nem cálculo nem alheamento político, nem embaixadas nem a cotidiana rejeição do pensamento. O sacerdote intencionalmente nada tem a ver com os cálculos da guerra; ele não a quer. À medida de seu não querer, mal conta com ela. O sacerdote mesmo é essa rejeição e move-se nela sem pensar. Mas seu cálice erguido ergue-se contra a guerra, pelo fim da guerra. O cálice: arma. (...) Não porque na história sempre irromperam combates, mas porque o empunhar qualquer coisa, inclusive um corpo, nosso corpo, é, já, testemunho de uma posição em meio a... quê? Heráclito diz que “pólemos é de tudo o pai”. (...) Tal combate não é fortuito nem meramente possível: é necessário; mais do que necessário, já sempre se instalou e esteve em curso. Libanio Cardoso. Entre as Armas e a Vitória. [texto inédito]. 143

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e reunião, tempo dos tempos. Tempo que sustenta todo outro tempo. O raio e o trovão são figuras deste tempo, do tempo da tempestade, que atravessa céu e terra, promove mudança e instauração de novo tempo. Abre-se tempo passado e tempo futuro. O raio é a re-ligação entre Céu e Terra, não mais simbioticamente unidos, mas atravessados por um sentido uno145. (3) Titanomaquia: ", ' .  ' , .  , ,   ."146 “Ouvi-me, filhos magníficos da Terra e do Céu, que eu diga o no peito o ânimo me ordena: já há muitos anos, uns contra os outros, todo dia combatemos pela vitória e poder os Deuses Titãs e quantos nascemos de Crono. Vós com grande violência e braços intocáveis surgi contra os Titãs na lúgubre batalha, lembrai a doce lealdade e quanto sofrestes na prisão cruel antes de voltar à luz por nossos desígnios, de sob a treva nevoenta”.147

A conquista da soberania por Zeus não se dá, porém, sem luta. Há uma guerra entre os deuses que já dura dez anos quando, tendo soltado os Cem-Braços – Briareu, Cotos e Giges – da prisão, Zeus os convence a lutarem ao seu lado, e dos demais deuses nascidos de Cronos, contra os antigos titãs. Os deuses libertos, tendo como porta-voz Cotos, reconhecem o poder de Zeus, sua sabedoria. A luta com os titãs abala todos os deuses: Terra, Céu, Tártaro, Oceano, ventos, todos são transpassados pelo fogo da guerra e gemem, a luta é cósmica. No verso 700, Hesíodo diz que o calor do raio de Zeus atravessa até o Caos. A tomada de poder pelo pai de deuses e 145

Uma epifania directa de Zeus é o trovão. No local onde ele embate é erigido um santuário ao “Zeus descendente”. BURKERT, Walter. “Kataibátes”. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica (p. 255). 146 Hesíodo. Teogonia. vv. 644-653. 147 Tradução de Jaa Torrano.

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homens, a ordenação do todo, depende de que a sua força se volte para, e alcance, os deuses primordiais e, dentre eles, o primeiro dos primeiros. Só indo à origem de tudo, à abertura que promove todos os outros nascimentos, e transpassando a multiplicidade de forças divinas com um mesmo sentido, seu fogo, Zeus ordenará o mundo. Os Tttãs são cobertos pelos Cem-Braços de pedras e presos, por Zeus, no Tártaro, o abismo nevoento. Assim termina a Titanomaquia. (4) A luta com Tifeu: ' ,  · ' ' ,  ·  , ·  ' · [' ·] ' , ' ·  ' , '  , ' , ' , ' , ' ', ' . , , '  148 E quando Zeus expulsou do céu os Titãs, Terra prodigiosa pariu com ótimas armas Tifeu Amada por Tártaro graças a áurea Afrodite. Ele tem braços dispostos a ações violentas E infatigáveis pés de Deus poderoso. Dos ombros Cem cabeças de serpente, de víbora terrível, Expeliam línguas trevosas. Dos olhos Sob cílios nas cabeças divinas faiscava fogo E das cabeças todas fogo queimava no olhar. Vozes havia em todas as terríveis cabeças A lançar vário som nefasto: ora falavam Como para Deuses entender, ora como touro mugindo de indômito furor e possante voz, ora como leão de ânimo impudente, ora símil a cadelas, prodígio de ouvir-se, 148

HESÍODO. Teogonia. vv. 820-839.

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ora assobiava a ecoar sob altas montanhas. Naquele dia suas obras seriam incombatíveis E ele sobre mortais teria reinado Se não o visse súbito o pai de homens e Deuses E trovejou grave e duro.149

A descrição do último adversário de Zeus, nascido da união entre o Tártaro e a Terra – vindo, portanto, do polo oposto ao da origem dos Olímpicos (que são descendentes de Terra e Céu) - é muito significativa. Assim como o soberano do Olimpo150, diz-se que Tifeu nasce com ótimas armas (). Mas, em vez de grande espírito (), ele tem cem cabeças com línguas trevosas. Seus olhos soltam fogo e de suas cabeças saem vozes múltiplas: ora fala como um deus, ora como bestas. Assim, todo poder descontrolado, nos braços, nos pés, nos olhos, nas línguas, ter-se-ia tornado rei, incombatível, se Zeus não trovejasse, impondo, pois, limite a tamanha potência. Novamente o calor de Zeus atravessa os confins e domina a força desmedida. Tifeu é atirado ao Tártaro, onde será sua morada. Mas, de lá, Tifeu manda ventos desordenados e destruidores que vêm, vez por outra, trazer males aos homens que vivem sobre a terra. Se a Titanomaquia é uma guerra múltipla, que sempre já está em curso, uma guerra de muitos contra muitos, a luta com Tifeu é de um contra um, do soberano com seu duplo e oposto, o monstro cujo poder é sem limites e que, por isso, não pode impôr limite a ninguém. A superação de Tifeu é a superação de uma possibilidade sempre presente: a tirania da força indeterminada e múltipla. (5) O reinado de Zeus e a divisão das honras:     151 Quando os venturosos completaram a fadiga e decidiram pela força as honras dos Titãs, por conselhos da Terra exortaram o Olímpio longevidente Zeus a tomar o poder e ser rei dos imortais. E bem dividiu entre eles as honras.152 149

Tradução de Jaa Torrano. Cf. HESÍODO. Teogonia. v. 478. 151 HESÍODO. Teogonia. vv. 881-885. 152 Tradução de Jaa Torrano. 150

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A quinta etapa da ascensão de Zeus começa quando, por conselhos da Terra, os deuses exortam Zeus a ser seu rei. A ação do rei é dividir as honras, isto é, dar a cada um o que lhe é próprio, uma tarefa própria (), algo para cuidar, um sentido, um lugar, um tempo. Reinar significa aqui bem repartir, e reconhecer que cada parte faz parte, ou seja, que cada parte precisa ser o que é para que o todo se ordene. Zeus, o que vem depois, é começo e fim do canto porque é começo e fim do mundo. Zeus não é apenas um entre os deuses, ele é o um entre os deuses, o que pela ação () dá sentido a tudo. Abrigado e nutrido pela Terra, superando a medida única de seu pai, conquistando suas próprias armas, lutando na guerra dos muitos, já em curso, vencendo o poder descontrolado que vem do abismo e dividindo os lotes, Zeus instaura ordem. Portanto, a Teogonia, canto de Hesíodo, inspirado pelas Musas, filhas de Zeus, é o canto de tudo que vem a ser todo. 2.2. Origem da parte: Este capítulo ocupar-se-á da primeira parte do poema Os Trabalhos e os Dias. Nossa leitura será guiada pelos episódios que narram a “chegada” do homem à sua condição atual, apartado do todo. Precisamos perguntar: o que quer dizer, aqui, condição atual? E o que é estar apartado? Atual diz presente, mas também em ato, em atividade. A condição atual do homem é condição que condiciona, que está presente, quando o homem é como é atualmente, determinando as suas experiências. Valemos-nos aqui da distinção entre natureza e condição humanas, tal como proposta por Hannah Arendt153. Diz ela que a natureza humana é de tal maneira pura possibilidade que o máximo que se pode dizer dela é que ela é atualmente condicionada, mas não essencialmente condicionada por esta ou aquela determinação prévia. 153

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. (p. 17-18). Tradução de Roberto Raposo: Para evitar erros de interpretação: a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana não constitui algo que se assemelhe à natureza humana. Pois nem aquelas que discutimos neste livro nem as que deixamos de mencionar, como o pensamento e a razão, e nem mesmo a mais meticulosa enumeração de todas elas, constituem características essenciais da existência humana no sentido de que, sem elas, essa existência deixaria de ser humana. A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal evento, já não inteiramente impossível, implicaria que o homem teria que viver sob condições, feitas por ele mesmo, inteiramente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece. O labor, o trabalho, a ação e, na verdade, até mesmo o pensamento como o conhecemos deixariam de ter sentido em tal eventualidade. Não obstante, até mesmo esses hipotéticos viajores terrenos ainda seriam humanos; mas a única afirmativa que poderíamos fazer quanto à sua “natureza” é que são ainda seres condicionados, embora sua condição seja agora, em grande parte, produzida por eles mesmos.

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Ou seja, onde há homem, atua condição, mas não sempre a mesma. No entanto, a condição humana pode ser definida atualmente, isto é, é possível dizer que condições estão condicionando o homem. Dizer, entretanto, que a condição humana atual é descrita por Hesíodo como apartada significa dizer que o que atua condicionando o homem é o fato de que ele precisa conquistar a sua participação no todo, isto é, ele é imperfeito, incompleto e, por isso, possibilidade e necessidade de realização. Com isto, chegamos ao seguinte: a condição atual do homem, hesiodicamente compreendida, não é nunca apenas determinação atualizada, mas sempre possibilidade a realizar-se, isto é, inclui a indeterminação essencial para a qual Hannah Arendt chama atenção. O precisar fazer-se do homem, sua condição atual, guarda, pois, sua natureza, que é a de, sendo pura possibilidade, condicionar-se pelas atualizações. Como dissemos antes154: o bem do homem é ser obra de sua obra. Por isso um poema pessoal - inspirado por uma situação particular, condicionado, portanto, por suas próprias circunstâncias - pode dizer o que é o homem. Porque o condicionamento ao qual está submetida a história particular de Hesíodo e Perses - dois irmãos gregos, agricultores, brigando pela herança paterna - é o mesmo condicionamento ao qual está submetida qualquer história, a saber: o fato de ser particular, ou seja, de ser uma história. O poema de Hesíodo, portanto, não peca por sua particularidade, mas, ao contrário, ele pode ser o que é, um poema que diz o que é o homem, exatamente por sua particularidade. Estamos dizendo, portanto, que todo discurso que diz o que é o homem precisa ser particular? Sim. O homem, entendido como aquele a quem cabe conquistar sua parte através do trabalho (), só pode ser particularmente; e, por isto, essencialmente ele só pode ser dito assim, condicionado por circunstâncias particulares. Neste sentido, poderíamos dizer que a Crítica da Razão Pura, a Fenomenologia do Espírito e Ser e Tempo são obras tão particulares e condicionadas por suas circunstâncias quanto Os Trabalhos e os Dias? Sim, ainda que naquelas obras o autor e seu irmão não sejam personagens, como são nesta; ainda que não haja personagens, tais como nós os concebemos geralmente; cada uma destas obras é sempre uma obra e, como tal, uma história de pensamento: testemunho de querelas entre posições divergentes, tentativa de, através do trabalho, ser herdeiro dos que vieram antes e/ou de superá-los. 154

Cf. item 2.1.1 desta dissertação.

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Então cada história particular diz o que é o homem? Cada história pode dizer o que é o homem, como a palavra das Musas pode revelar a unidade de sentido do mundo (). Mas pode também não. Assim, toda história pode dizer, e nenhuma história diz o que é o homem. Pois para que a história diga é preciso que alguém ouça, assim como para que as Musas se revelem para Hesíodo é preciso que ele esteja atento, guardando seu rebanho155. No entanto, ainda que o dizer dependa de um ouvir correspondente (que é ele mesmo um trabalho), há histórias que dizem, quando se ouve, esta sua dupla possibilidade: 1. dizer um homem particular (fictício ou “baseado em fatos reais”); ou 2. dizendo um homem particular, dizer o homem todo. É isso que Hesíodo parece fazer: ao narrar a sua história com Perses (particular), narrando a Perses histórias tradicionais que narram a origem da condição apartada do homem (e é determinante que não seja uma só, para que não esqueçamos de que a unidade da origem é articulação de muitos), o poeta nos lembra que Prometeu, os homens de ferro, Perses, os reis comedores presentes, o próprio poeta e cada um de nós, somos, diferentemente, atualizações da indeterminação original do homem e guardamos, pois, sempre atual, a possibilidade de realizar, ou não, a nossa participação no todo, de nos decidirmos, ou não, a cada vez, por nossa parte, por nosso trabalho próprio (). A origem da condição humana narrada na obra hesiódica, que dizemos sustentar esta posição tão radical quanto aos discursos que dizem o que é o homem, precisa, então, ser acompanhada. 2.2.1. As duas Lutas A Luta ( é filha da Noite. Toda a sua linhagem, qualificada de hedionda e de ânimo cruel, é, na Teogonia, uma linhagem de cisão. Não aparecem, ali, ambigüidades da Luta e nem uma outra Luta. Entretanto, em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo diz que são duas sobre a terra, e de origens distintas. A inclusão do “sobre a terra” pode indicar que o poeta esteja fazendo uma distinção da Luta que há entre os deuses e as Lutas que existem entre os homens 156? Será 155

O critério para que digamos “é uma história” é este: ser lembrança, para algum ouvir possível, do que é o homem, ainda que seja pelo que nela é esquecido. 156 Cf. MEGA, Marta. “Ephémeros: o cotidiano como um modo de vida”. A Vida Comum: Espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. (p. 56):... o “sobre a terra”, espaço generalizado da experiência humana.

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preciso perguntar: por que ele faria esta distinção? Será que existem dois modos dos homens lidarem com aquela divindade? Que modos são estes? Que relação há entre estes modos e o trabalho? A Luta boa é aquela que faz o homem medir-se a outro de mesma atividade: o oleiro medir-se ao oleiro; o aedo ao aedo. Ela leva o preguiçoso ao trabalho já que para estar à altura do outro, ele precisa trabalhar, cumprir sua tarefa. A Luta má afasta o homem do trabalho, levando-o a medir-se por o que ele não é. Ela faz o homem desdenhar de sua necessidade e querer o que não pode. A força construtiva e ordenadora da  boa de Hesíodo pode comparar-se à criação promovida pelo  heraclítico que é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.157 Também pode comparar-se ao princípio vital que é o  homérico, ao menos tal como compreendido por Nietzsche, que diz que a oposição de forças agônicas entre os gregos incita a ação, assim como a mantém nos limites da medida158. Na República159 de Platão vemos,na distinção estabelecida por Sócrates entre e ,uma

apropriação da ambigüidade da  hesiódica.  (guerra) liga-se à boa

luta e à medida, é a arte () própria do guardião () da cidade justa, que possui disposição e educação necessárias para lutar quando preciso. (combate)liga-se à luta desmedida, à má luta. Dela valem-se os cidadãos ricos e gordos das cidades inchadas, aqueles “néscios” que querem tudo e não encontram a sua parte. 2.2.2. Prometeu e Pandora O mito de Prometeu aparece tanto na Teogonia, vv. 507-616, quanto em Os Trabalhos e os dias, vv. 42-105. As duas versões se complementam e, por isso, estudaremos seus versos conjuntamente. Enquanto na Teogonia o enfoque está no engano a que Prometeu pretende submeter Zeus, em Os Trabalhos e os Dias o enfoque está na criação da mulher e naquilo que esta criação significa para o homem, o que será a questão principal de nossa leitura. 157

HERÁCLITO. Fragmento 53. Tradução de José Cavalcante de Souza. Cf. NIETZSCHE. La Lucha de Homero: Prólogo para un libro que no se há escrito. Traducción de Eduardo Overejo y Maury. [Obras Completas de Frederico Nietzsche v. I]. (p. 215-223). 159 Cf. PLATÃO. República 422c-e. 158

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Tal qual nos é contado no segundo poema, este mito começa com uma descrição da condição atual do homem. O poeta fala, no tempo presente, que os deuses ocultam do homem o que lhe é vital. Por isto o homem tem que trabalhar todos os dias, sem descanso, por que lhe falta algo que está oculto. O homem é, então, atualmente, ou seja, em ato, aquele que age sobre uma falta, ou seja, aquele que pode, pela falta, tornar-se ativo. Hesíodo explica, então, por que se dá este ocultamento. Diz ele que Zeus, encolerizado por Prometeu tê-lo enganado, tirou o fogo dos homens. Prometeu era um titã, filho de Jápeto. Seu nome diz “pro-métis”, aquele que vê antes, o que tem astúcia, o que se antecipa na compreensão das coisas. Seu irmão, Epimeteu, que também aparecerá no mito, é seu reverso: “epi-métis”, aquele que vê depois, o que se retarda ou compreende tardiamente. Pois bem, não aparece no relato de Os Trabalhos e os Dias qual foi a trama que Prometeu armou. Na Teogonia a descobrimos. Prometeu preparou uma oferenda para Zeus: dividiu um boi, pondo de um lado carnes e gordas vísceras e cobrindo-as com a pança do boi; e, de outro lado, ossos de boi cobertos de brilhante banha. Assim, pediu que Zeus escolhesse a oferta que lhe parecesse melhor. O poderoso deus não ignorou a astúcia do titã, previu o que estaria por trás dos aparentes presentes. E aí, viu mais, viu os males que aos homens mortais deveriam ser dados. Por isso, ergueu a gordura e, encontrando os ossos, encheu-se de cólera. Negou, então, aos homens mortais a força do fogo, ocultando-a em suas entranhas. Qual foi mesmo a ofensa de Prometeu, se Zeus já sabia de tudo? Prometeu tenta enganar Zeus falsificando a aparência de algo. Esta a ofensa: Prometeu, com sua astúcia, tenta ir contra os desígnios do pai. Enganar Zeus é, no entanto, impossível. Ele é “o raio que dirige todas as coisas”. O pai vê a ofensa do filho, apesar da cólera, como decorrência de sua natureza160: Filho de Jápeto, o mais hábil em seus desígnios, ó doce, ainda não esqueceste a dolosa arte! 161 Como castigo, esconde o fogo dos mortais. Prometeu recupera, no entanto, o fogo para os homens. E Zeus, ainda mais encolerizado, promete a Prometeu e aos homens vindouros um mal com o qual todos se alegrarão, mimando-o muito. A mulher, Pandora, então, é criada. Forjada por Hefesto, de terra e água, ela recebe um dom de cada deus. Ela é um presente para os homens que é um mal. 160

Dizemos aqui que Zeus é pai de Prometeu no sentido que antes afirmávamos que Zeus era pai de todos os deuses. 161 HESÍODO. Teogonia. vv. 559 e 560.

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Quem recebe Pandora dos deuses é Epimeteu que, apesar de ter sido avisado por seu irmão, engana-se com a sedução da mulher. Além dos males, diz o poema, Pandora traz a espera, que fica guardada, no fundo de seu vaso. Que males ela traz? Doenças e trabalhos, ou seja, degeneração e geração, corrupção e criação. O que é a espera que resta guardada162? Mary Lafer traduz “” por “expectação” e não por “esperança”, que tradicionalmente aparece nas traduções. Ela justifica esta opção afirmando que o verbo “”, do qual provém “”, diz “expectar”, “esperar”, ou seja, fala de uma espera ambígua que espera tanto algo de bom quanto algo de mau. A palavra “esperança”, no entanto, guardaria um sentido mais específico da espera, ela seria a confiança em conseguir aquilo que se deseja, ou seja, algo bom, por suposto.163 Preferimos aqui o termo “espera” ao termo “expectação” porque se trata de um termo mais usual, ligado a um verbo corrente. De todo modo, qualquer que seja o termo utilizado para a tradução de “” o importante é que fique clara a sua ambigüidade. É com esta intenção que a tradutora cita a passagem de As Leis de Platão164 em que o termo tem seu sentido esclarecido: “” fala das opiniões que concernem ao futuro; quando estas opiniões supõem que o que virá é algo de ruim, chamam-se “”, temor; quando esperam por algo de bom, chamam-se “”, confiança. Fica guardada, em “”, portanto, a indefinição daquilo por que se espera. A espera é, fundamentalmente, uma abertura para o futuro. Abrir-se para o futuro é estar em um tempo que não é sempre o mesmo, é estar em um tempo em que há o “o que virá”. Portanto, como diz Guimarães Rosa: Esperar é reconhecer-se incompleto165. Isto porque só suporta futuro o tempo de quem pode deixar vir outro tempo, o que virá. É esta experiência de tempo que Pandora traz para os homens e que resta guardada: a experiência da incompletude, do porvir. Mas pode-se interpretar esta espera como uma fuga do presente e, portanto, uma não aceitação do que é, mantida por uma ilusão acerca do que será. Desta maneira Nietzsche, por 162

Discordamos da interpretação de Cornelius Castoriadis que supõe que o fato de Pandora fechar o vaso, antes de a espera sair, indica que a espera está ausente da vida do homem. Ao contrário, achamos que é próprio do modo de ser de “espera” estar guardada como ausência presente. Cf. CASTORIADIS, Cornelius. “Séminaire du 26 janvier 1983”. Ce qui fait la Grèce. (p. 169-170). 163 LAFER, Mary. “Prometeu e Pandora”. Os Mitos: Comentários. (p. 72). Estudo que acompanha a tradução de Os Trabalhos e os Dias 164 Cf. PLATÃO. As Leis 644c-d 165 ROSA, João Guimarães. “Desenredo”. Tutaméia. (p. 73).

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exemplo, viu a espera cristã por outra vida como sinal da depreciação desta vida, deste mundo166. De fato, a espera guarda uma dupla ambigüidade. Não apenas a indeterminação do objeto por que se espera torna-a ambígua, mas também ela mesma, enquanto abertura para o que virá, é ambígua. Isto quer dizer que, como viu Nietzsche, a espera pode significar abandono e negação do presente, mas, pode, ao contrário, significar sua intensificação, à medida que o que é tem sempre um sentido proveniente do que há de vir, isto é, à medida que é o futuro que orienta, realiza, perfaz (dá a) o presente. Não em outro tempo, mas no tempo da espera. Se assim se experimenta a espera, ela não se torna passiva ou depreciativa, mas, ao contrário, ela se torna atividade autêntica, trabalho, obra (). Novamente Guimarães Rosa: Esperar é um à-toa muito ativo167. É um à-toa porque é espera por outro, por algo que não se sabe, pelo inesperado e, por isso, por algo que não se pode fazer desde si. É muito ativo porque a espera se torna ação, não uma ação por arbítrio – fazer isto ou aquilo – mas acolher e fazer o que desde o futuro precisa ser feito. “Um à-toa muito ativo” é a “espera pelo inesperado” de que nos fala Heráclito168. Neste sentido, a espera é uma grande aceitação da incompletude do presente, enquanto presente apenas. Ou seja, é aceitação de que não há sentido pronto e feito para o que é, e de que o sentido do que é sempre ainda se dará, não num tempo que virá e será então presente, mas no tempo futuro em vista do qual este tempo é o tempo presente. A atividade na espera é como a do pastoreio. A certeza de que cabe bem pastorear convive com a gratuidade que deixa a atividade própria ainda sempre aberta à vinda de um outro. A que isto corresponde no mito contado por Hesíodo? Qual é a relação entre o engano, o fogo, a mulher, os males, o trabalho e a espera? A mulher, que vem como castigo pelo roubo do fogo divino, traz os males, os sofrimentos e a necessidade constante de trabalhar. A mulher abre a possibilidade da descendência e da obra: o futuro. E isto é, ao mesmo tempo, malefício e benefício que ela traz. O homem passa a ser aquele que pode trabalhar, que pode amar, que pode procriar. Mas isto significa que o homem passa a ser 166

Cf. NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo: Tentativa de Autocrítica. § 5. Tradução de J. Guinsburg. 167 ROSA, João Guimarães. “Orientação”. Tutaméia. (p. 161). 168 HERÁCLITO. Fragmento 18: Se não esperar o inesperado não se descobrirá, sendo indescobrível e inacessível. Tradução de José Cavalcante de Souza.

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aquele que deve trabalhar, que deve amar, que deve procriar. Ela é este presente de natureza ambígua que é dado aos homens: a um tempo possibilidade e necessidade. Temos, assim, a estrutura do mito: a fraude (que gera a necessidade de sacrifício aos deuses - diz a Teogonia, versos 556 e 557 , que, por conta da fraude, os homens passaram a ter que queimar ossos nos altares); o primeiro castigo (ocultamento do fogo); o roubo do fogo (com tudo o que o fogo significa: a técnica, o conhecimento); e o segundo castigo: mulher (a diferença, a possibilidade de geração, a necessidade do trabalho). Desde o início do poema, justiça e trabalho aparecem intimamente relacionados: para defender a justiça, Hesíodo discorre sobre a necessidade humana do trabalho e faz um grande elogio a este. Como se explicará, então, o fato de no mito de Prometeu e Pandora o trabalho ter se originado de uma ação contra a justiça de Zeus: o roubo do fogo? Como e por que o trabalho aparece como um mal? Parece-nos que, em sua ambigüidade, o trabalho relaciona-se com a espera. Por um lado, com Pandora, dá-se de forma definitiva a ruptura entre a vida de deuses e a vida de homens (até então os homens viviam sem conhecer doenças, trabalhos fatigantes e outros males). Por outro lado, o trabalho, necessidade humana a partir de então, é o que torna possível a justiça, comunhão com o divino. Isto porque a completude do homem, a sua participação no todo, precisa ser agora conquistada. É como diz Hölderlin: Ora, onde mora o perigo, é lá que também cresce o que salva169. O mito de Prometeu conta a origem do homem como a origem do apartado, mas também fala da possibilidade de que o homem conquiste, através da sua obra, a sua justa parte170. 2.2.3. As Cinco Raças Hesíodo inicia seu discurso () dizendo que ele vai reafirmar o que a outra história (de Prometeu e Pandora) já havia dito. O que é isso que dizem as duas histórias? É trabalho de extrema importância para a filosofia pensar como é possível que dois discursos digam o mesmo, ou,

em outros termos, como o mesmo pode ser dito

169

HÖLDERLIN. “Patmos”. Canto do Destino e outros cantos. Cf. TORRANO, Jaa. Prometeu e a origem dos mortais. O autor chama a atenção para o fato de que nas quatro versões antigas do mito de Prometeu (as que aparecem nos poemas de Hesíodo, no Prometeu, de Ésquilo e no Protágoras, de Platão) a idéia de partilha está presente. Em Platão há o verbo némeio (distribuir); em Ésquilo, moira (parte, partilha, destino); e, finalmente, em Hesíodo, dasmós (partilha). 170

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multiplamente. Citamos Platão, anteriormente, dizendo que “a filosofia diz sempre o mesmo”171. Se é assim, como entender a infinidade de discursos da história da filosofia? Mesmo que consideremos “filosofia” apenas a obra platônica, não se torna trivial reconhecer o que é o mesmo que ela diz. Há poucos pensadores com tantas vozes e, portanto, tão equívocos quanto Platão. É preciso, pois, que conquistemos este mesmo dito sempre pela filosofia. O fragmento 3 de Parmênides, que diz “... ” (pois o mesmo é pensar e portanto ser172), pode ser interpretado como a afirmação da identidade entre duas coisas aparentemente distintas: “ser” e “pensar”; mas também pode ser lido como a definição do que é “mesmo”. O mesmo é pensar e também ser. O sujeito, como em toda oração nominal, precisa ser encontrado. Então, na interpretação aqui proposta, o sujeito não é “pensar”, ou “ser”, mas “mesmo”. Ou seja, o mesmo é pensar e ser juntos. Sendo assim, talvez pudéssemos interpretar a sentença de Platão, citada acima, como dizendo “em tudo o que diz a filosofia, sempre diz o mesmo: pensar e ser juntos”, ou seja, “há filosofia quando pensar e ser encontram-se”. Feita a digressão, retomemos a direção. Façamos como ensina Sócrates na República:...tal como um pugilista, dá-me outra vez a mesma pega. Eu faço-te a mesma pergunta, e tu tenta responder-me o que nessa altura te preparavas para me dizer.173 Pois bem: o que é isto que dizem essas duas histórias? As duas narram a origem dos homens e a separação entre a vida de homens e a vida de deuses. E qual a diferença entre as duas? A diferença é que, em Prometeu, não aparecem os ciclos da vida dos homens, seus tempos, suas eras. Há decadência (com o roubo do fogo e a criação da mulher) e espera (possibilidade de obra). No mito das raças há idades e os homens pertencem a seus tempos. Seguiremos, então, brevemente, a descrição destes tempos tais quais aperecem no “mito das raças”: Os imortais criaram os homens mortais, no tempo de Cronos. Estes homens, da raça de ouro, viviam, então, com coração despreocupado, sem sofrimentos, não envelheciam e morriam como quem dorme. A terra, entretanto, cobriu esta raça. Zeus transformou-os em 171

Cf. PLATÃO. Górgias 482b Tradução de José Cavalcante de Souza. 173 PLATÃO. República 544b. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 172

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gênios, corajosos, curadores. Vestidos de ar (como a justiça, ou pela justiça) eles vagam pela terra, dando riquezas, dons. Este foi o privilégio real que lhes foi dado. A segunda raça, criada de prata, era inferior à primeira. Os homens viviam como crianças por cem anos junto a suas mães e, então, ao chegar à adolescência, eram tomados de tal desmedida que padeciam de dores horríveis e não queriam cultuar os deuses. Assim, Zeus encolerizado escondeu-os sob a terra. Apesar de seu excesso, diz o poeta, honra ainda os acompanha. A terceira raça, de bronze, foi criada em nada se assemelhando à anterior. Uma raça de desmedidos, violentos. Tinham duro o coração, eram fortes e inacessíveis. Esta raça se autodestruiu. Por suas próprias ações, os homens de bronze desceram ao Hades, anônimos. A morte os tomou negra e sem a luz do sol eles ficaram. A quarta raça é a dos heróis. Eles são criados por Zeus, mais justos e guerreiros. São nossos antecessores diretos. Foram destruídos pela guerra e Zeus os colocou, de corações tranqüilos, na Ilha dos Bem Aventurados, onde a terra os nutre. Esses têm honra. A descrição da raça de ferro começa com um lamento: Hesíodo lamenta não ter morrido antes ou nascido depois deste tempo. A raça de ferro trabalha pesadamente de dia e destrói-se à noite. Os deuses lhes dão muitas angústias e a esses males bens estão misturados. A partir daí o que se faz é uma profecia. Hesíodo passa a falar no tempo futuro: Zeus destruirá os homens quando não houver entre eles nenhuma medida, nenhum amor, nenhuma semelhança, nenhuma gratidão, nenhuma piedade. Os vícios, então, serão mais valorizados que as virtudes, a inveja será companheira dos homens. O que Hesíodo anuncia é o fim dos homens, e a isto está ligada a retirada do Respeito () e da Retribuição (). O discurso fecha-se com uma declaração apocalíptica: Contra o mal força não haverá.174 Uma primeira leitura do “mito” nos faz vê-lo como uma narrativa progressiva e linear da decadência do homem. Entretanto, Jean-Pierre Vernant, em seu texto O mito hesiódico das raças. Ensaio de análise estrutural, chama a atenção para dois aspectos que exigem uma nova leitura, que coloque em questão a estrutura do mito. Cito: 1. O mito parece querer opor a um mundo divino, em que a ordem é imutavelmente fixada desde a vitória de Zeus, um mundo humano no qual a desordem se instala pouco a pouco e que deve acabar virando inteiramente para o lado da injustiça, da desgraça e da morte. Mas este quadro de uma humanidade destinada a uma queda fatal e irreversível não parece muito 174

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. v. 201. Em grego: ' 

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próprio para convencer Perses e os reis sobre as virtudes da Díke e os perigos da Hýbris.175 2. Intercalada entre as gerações do bronze e do ferro, ela [a raça dos heróis] destrói o paralelismo entre raças e metais; além disso, interrompe o movimento de decadência contínuo, simbolizado por uma escala metálica com valor regularmente decrescente: o mito sublinha, com efeito, que a raça dos heróis é superior à de bronze, que a precedeu.176

Por um lado, entender o “mito” como narrativa linear e irreversível da decadência do homem parece torná-lo incompatível com seu propósito declarado: instruir Perses. Por outro, esta decadência progressiva é quebrada explicitamente pela raça de heróis. Mas se a estrutura da narrativa não é linear, qual é sua estrutura? A proposta de Vernant, que recorre ao sistema de tripartição funcional dos indo-europeus, conforme os estudos de Dumézil, nos parece, no geral, bastante interessante177. Ele se baseia na seguinte hipótese: Cada raça possui uma temporalidade própria, uma idade, que exprime sua natureza particular e que, do mesmo modo que seu gênero de vida, suas atividades, suas qualidades e defeitos, define o seu status e a contrapõe às outras raças.178

Assim sendo, não há uma temporalidade única no mito, mas muitas. Resta a Vernant determinar quais, ligadas a que gêneros de vida e a que funções. Resumamos aqui, de maneira bastante superficial, sua posição. As duas primeiras raças (ouro e prata) representam a função real, jurídico-religiosa. O modo de vida da primeira opõe-se ao da segunda pela presença, respectivamente, da justiça ( )

e da desmedida (). A terceira e a quarta (bronze e heróis) representam a função

guerreira. Quanto ao modo de vida, a terceira está para a quarta como a segunda está para a primeira. Isto quer dizer, elas são indiretamente proporcionais: enquanto a raça de ouro 175

VERNANT, Jean Pierre. “O mito hesiódico das raças. Ensaio de análise estrutural”. Mito e Pensamento entre os Gregos. (p. 28). 176 VERNANT, Jean Pierre. “O mito hesiódico das raças. Ensaio de análise estrutural”. Mito e Pensamento entre os Gregos. (p. 29). 177 A interpretação de Vernant foi duramente criticada por DEFRADAS, J., em “Le mythe hésiodique des races. Essai de mise au point”. L’information Littéraire. 1965. n. 4. (p. 152-156). A acusação principal do artigo é a de que Vernant teria, impropriamente, utilizado um esquema estrutural para interpretar o mito que, segundo Defradas, obedece claramente a um esquema cronológico. Para nós o interesse maior da análise de Vernant é justamente propor que a compreensão de tempo do mito não é apenas cronológica, mas também “kairológica”. Segundo nos parece, esta compreensão está suficientemente fundamentada na poesia hesiódica. Embora reconheçamos que o esquema estrutural possa nos cegar para alguns aspectos da narrativa, por ora, vemos nele mais vantagens do que desvantagens. 178 VERNANT, Jean Pierre. “O mito hesiódico das raças. Ensaio de análise estrutural”. Mito e Pensamento entre os Gregos. (p. 31).

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apresenta o rei justo, a de prata apresenta o rei desmedido. Enquanto a raça de heróis apresenta o guerreiro justo, a de bronze apresenta o guerreiro desmedido. Quanto à quinta raça, a de ferro, de Hesíodo, dos trabalhadores, Vernant diz que ela não é uma só, mas duas. A ambigüidade desta raça, já apontada na distinção entre as duas lutas (), e explicitada no episódio de Prometeu e Pandora, reside no fato de que para ela bens e males estão misturados. Assim, o fim apocalíptico desta raça, narrado por Hesíodo, é apenas uma das possibilidades que ela tem. Há um modo de vida para o homem de ferro, para o homem comedor de pão, para aquele que é marcado pela necessidade de trabalhar, que é justo. O tempo da raça de ferro é o tempo do dia, da labuta diária, como observa Marta Mega: A raça de ferro vive no único dos ciclos cuja descrição parte de uma necessidade de cotidiano. Os homens têm que labutar, no dia e na noite; têm que realizar algo, fazer algo incessantemente, repetidamente, para garantir seu sustento (o alimento), sua descendência e mesmo seu lugar na ordem das coisas. O que é efêmero vive entre o dia e a noite. Pot’êmar: na duração temporal do dia, o homem labuta e pena, se esgota e se esforça.179

Desta maneira, o propósito do “mito” não se perde. Hesíodo quer instruir Perses sobre o modo de vida que ele deve levar, sendo um trabalhador da raça de ferro, se não quiser ser destruído. Cito Vernant: A lógica que orienta a arquitetura do mito, que nela articula os diversos planos, que regula o jogo das oposições e das afinidades, é a tensão entre Díke e Hýbris: ela não só ordena a construção do mito em seu conjunto, dando-lhe o seu significado geral, mas confere a cada um dos três níveis funcionais, no registro que lhe é próprio, um mesmo aspecto de polaridade.180

O que mais nos interessa na leitura de Vernant, aqui reproduzida de modo bastante superficial, é o fato de que ele fala em vários tempos e no pertencimento de certos tipos de homens, com certas funções, a certos tempos. E fala da superioridade das raças que, em seu tempo, seguem a justiça no exercício de sua função: os de ouro fazem sacrifícios aos deuses e dão retas sentenças; os heróis lutam com medida, obedecendo à justiça de Zeus; aos homens de ferro cabe trabalhar, cuidar de sua terra. 179

MEGA, Marta. “Ephémeros: o cotidiano como um modo de vida”. Espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. (p. 55-56). 180 VERNANT, Jean Pierre. “O mito hesiódico das raças. Ensaio de análise estrutural”. Mito e Pensamento entre os Gregos. (p. 55).

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Cada trabalho () tem seu tempo próprio (). Ora, este é o argumento suplementar que Sócrates apresenta na República 370b-c, para defender o “princípio de especialização” na formação da cidade. Cito: Mas julgo que é também evidente que, se alguém deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa, perde-a. (...) É que, creio eu, a obra não espera pelo lazer do obreiro, mas força é que o obreiro acompanhe o seu trabalho, sem ser à maneira de um passatempo. (...) Por conseguinte, o resultado é mais rico, mais belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo com a sua natureza e na ocasião própria, deixando em paz as outras.

Os diversos tempos que poderiam parecer, a princípio, excludentes, no “mito” tal como contado por Hesíodo, convivem na República de Platão. Sócrates reconta este “mito” para fundamentar não apenas a diferença, mas principalmente a harmonia entre as raças, entre as classes, que só se dá pelo cumprimento da tarefa que cabe a cada uma, a justiça. Se, respeitando o tempo próprio de sua obra, os homens fazem sua parte, dia a dia, como é preciso na idade de ferro, sendo guiados por reta justiça, a idade de ouro pode vir a seu encontro: ... sobre esta terra está a paz nutriz de jovens e a eles não destina penosa guerra o longevidente Zeus: nem a homens eqüânimes a fome acompanha nem a desgraça: em festins desfrutam dos campos cultivados; a terra lhes traz muito alimento; o carvalho no topo traz bálanos e em seu meio, abelhas; ovelhas de pêlo espesso quase sucumbem sob sua lã; mulheres parem crianças que se assemelham aos pais; sem cessar desabrocham em bens e não partem em naves, pois já lhes traz o fruto a terra nutriz.181

2.2.4. O gavião e o rouxinol Esta fábula Hesíodo endereça aos reis. Diz ele que o gavião, levando o rouxinol cravado nas garras, dizia ao passarinho que não lhe aproveitaria cantar pois, sendo o gavião o mais forte, estava em seu poder fazer-lhe o que quisesse, mesmo o rouxinol sendo um bom cantor. Hesíodo conclui: não ajam como o gavião pois aos homens foi dada a justiça e ela não se equivale à vontade do mais forte. Aqui o poeta posiciona-se claramente contra aqueles que, 181

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias vv. 228-237. Tradução de Mary Lafer.

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representados nos diálogos platônicos por personagens como Trasímaco182, supõem que a força é a medida da virtude. O homem, diz o poeta, é força que precisa limitar-se, medir-se, encontrar seu sentido. O homem não pode tudo o que pode. Ao homem foi dada a tarefa de descobrir, na ação e pela ação, o que pode, ou seja, a sua parte. A força ilimitada que quer poder qualquer querer, tudo, como a de Perses e a dos reis “comedores de presentes” assemelha-se à de Tifeu que, ainda que esteja sempre na iminência de reinar, não produz sentido, ordem, virtude.

182

Cf. PLATÃO. República 338c-354c.

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3. Trabalho e Terra: Assim Stephanie Nelson inicia seu trabalho sobre Hesíodo e Virgílio: In Plato’s Parmenides the young Socrates is disconcerted by Parmenides’ challenge: if there are forms of beauty and goodness, are there also forms of mud and hair? When Socrates admits his perplexity, Parmenides replies that he is still young; when he is older he will not, in his pursuit of understanding, despise even these (Parmenides, 130b-e). Farming is like that. Farming is a matter of dirt and dung. It is not the kind of thing we look to to find the meaning of human life. It is too ordinary, too inescapably a part of life to be interesting. We know that it has to be done, but see no reason to pay much attention to it. But it is just because farming is inescapably a part of human life that it may provide a clue to what is most basically human, and so a clue to our place within the cosmos. Or, at least, so Vergil and Hesiod believed.183

A agricultura é, sem dúvida, em Os Trabalhos e os Dias, o modelo privilegiado de trabalho. A segunda parte do poema contém uma descrição dos trabalhos no campo através das estações do ano, alguns conselhos sobre navegação e a organização da casa e um calendário dos dias mais propícios e menos propícios para determinadas atividades. Apesar de reconhecermos o caráter educativo do poema, estamos de acordo com os autores que não vêem nesta segunda parte um manual de agricultura ou administração184. A pedagogia hesiódica, aplicada a seu interlocutor, Perses, e a nós, seus leitores, é a dos antigos mestres que ensinam o trabalho (), pelo trabalho. Ele nos leva, através da descrição feita na segunda parte do poema, à vida do trabalho no campo, ao seu ritmo, às suas dificuldades. Nós que, até este momento, lembrávamos de nossa condição através de mitos de origem e exortações bastante generalizadas, somos agora jogados na terra, em meio a lama e pêlo.

183

NELSON, Stephanie. “Preface: Man, God, Nature – and Farming”. God and the Land: The Metaphysics of Farming in Hesiod and Vergil. (p. v). [No Parmênides de Platão o jovem Sócrates é desconcertado pelo desafio de Parmênides: se há formas da beleza e do bem, há também formas de lama e cabelo? Quando Sócrates admite sua perplexidade, Parmênides replica que ele é ainda jovem; quando ele for mais velho ele não vai, em sua busca de entendimento, desprezar mesmo isto (Parmênides 130be). Agricultura é assim. Agricultura é assunto de sujeira e estrume. Não é o tipo de coisa para a qual olhamos para encontrar o significado da vida humana. É tão ordinário, tão inevitavelmente uma parte da vida para ser interessante. Nós sabemos que deve ser feita, mas não vemos razão para prestar muita atenção nisto. / Mas é exatamente porque agricultura é inevitavelmente uma parte da vida humana que isto pode providenciar uma chave para o que é mais fundamentalmente humano, e assim uma chave para nosso lugar no cosmos. Ora, ao menos, assim acreditavam Virgílio e Hesíodo.] 184 Cf. NELSON, Stephanie. “The Composition of Hesiod’s Poem”. God and the Land: The Methaphysics of Farming in Hesiod and Vergil. (p. 49-50): ; MEGA, Marta. “Ephémeros: o cotidiano como um modo de vida”. Espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. (p. 53): Sobretudo, carece da lógica expositiva de algo que pudesse ser por nós compreendido como um manual.

57

Aprendemos, então, que o ritmo da terra (as estações e os dias) mostra-se para quem sabe olhar para o céu e reconhecer estrelas, ventos, pássaros185. Tentaremos, nesta segunda parte da dissertação, seguir, ainda uma vez, Hesíodo. Olhando os avisos do céu, vamos ao trabalho com a terra. Nossa terra, aqui, a matéria de nosso trabalho, é palavra. Portanto, apresentaremos a seguir nossa lida com algumas palavras hesiódicas. Organizamos quatro quadros com: 1. todas as ocorrências dos termos “” e “” e seus derivados, na Teogonia e em Os Trabalhos e os Dias; 2. algumas de suas traduções186; e 3. as situações187 em que estes termos aparecem. O interesse dos quadros é mostrar, através das ocorrências, os diferentes sentidos em que os termos são empregados ao longo dos poemas e como estes sentidos vão-se somando e se tornando complexos, conforme sugere a observação de Jaa Torrano: Este método de circunvoluções e retomadas parece-me justificar-se por si mesmo, já que não é de outro modo que o pensamento arcaico procede: jamais aborda um objeto de uma única e definitiva vez descartando-se dele depois, mas sempre o retoma dentro de outras referências, circunvoluindo através de enfoques sucessivos e por vezes constratantes.188

Depois de listadas todas as ocorrências, selecionamos cinco de cada termo, as quais serão objeto de breves observações. Seguindo estes versos e relacionando-os com o que até aqui chamamos de “origem do todo” e “origem da parte”, tentaremos explicitar de que modo a relação entre parte, tudo e todo resolve-se em Hesíodo na relação entre terra () e trabalho (). 185

Cf. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias vv. 826-828: Felizes e afortunados aqueles que, sabendo tudo o que concerne aos dias, fazem seu trabalho sem ofender os imortais, consultando os avisos celestes e evitando o erro. Versão a partir da tradução de Paul Mazon. 186 As traduções que aparecem neste quadro são as das seguintes edições: 1. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1995. (3ª edição). 2. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. (primeira parte). Tradução, introdução e comentários de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2002. (4ª edição). 3. HÉSIODE. Théogonie, Les Travaux e les Jours, Le Bouclier. Texte Établi et Traduit par Paul Mazon. Paris : Les Belles Lettres, 1982. (11ème tirage). 4. HESIOD. Theogony, Works and Days, Testemonia. Edited and Translated by Glenn W. Most. Cambridge, Massachusetts, London: Harward University Press, 2006. (Loeb Classical Library n.57). 5. HESIOD. Theogony, Works and Days. A new translation by M. L. West. New York: Oxford University Press, 1999. (Oxford World’s Classics). Na coluna em que as traduções aparecem, por vezes, colocamos não só a tradução do termo, mas também os artigos, preposições e pronomes que o acompanham. 187 Caracterizamos as situações em que os termos aparecem de modo bastante livre, inclusive, algumas vezes, parafraseando os versos do poeta. Nos quadros referentes a Os Trabalhos e os Dias, utilizamos a divisão do poema proposta por Paul Mazon. 188 TORRANO, Jaa. “A Quádrupla Origem da Totalidade”. O Mundo como Função das Musas. Estudo que acompanha a tradução da Teogonia. (p. 39).

58

(1) na Teogonia: Termo 

Versos



146



158



171, 210, 677, 836, 954

89, 166, 172, 264, 603



440



503



595, 601, 710

Traduções . reparações (89), obras (166, 172), ações (264), obrigações (603) (Jaa Torrano). . revanche (89), oeuvres (166, 172, 264), oeuvres de souci (603) (Paul Mazon). . deeds (89, 166, 172), works (264), dire works (603) (Glenn Most). . amends (89), behaviour (166, 172), attainments (264), trouble cause (603) (M. L. West). . na ação (Jaa Torrano). . dans leurs actes (Paul Mazon). . in their works (Glenn Most). . upon their works (M. L. West). . na obra (Jaa Torrano). . à cette oeuvre (Paul Mazon). . in his deed (Glenn Most). . in the work (M. L. West). . obra (171, 210, 954), obras (677, 836) (Jaa Torrano). . besogne (171), forfait (210), les bras (677), oeuvre (836), tâche (954) (Paul Mazon). . deed (171, 210, 677, 836), work (954) (Glenn Most) . task (171), thing (210, 836), feat (677, 954) (M. L. West). . lavram (Jaa Torrano). . exploitent (Paul Mazon). . work (Glenn Most). . till (M. L. West). . graça benéfica (Jaa Torrano). . bienfaits (Paul Mazon). . kind deed (Glenn Most). . goodness (M. L. West). . de malefícios () (595), de obras (601), dos braços (710) (Jaa Torrano). . oeuvres (595, 601), exploit (710) (Paul Mazon). . works (595, 601), deed (710)

Situações 89. Palavras reparadoras dos reis inspiradas por Calíope. 166. (fala da Terra) e 172. (fala de Crono) Violência do Céu, impedindo seus filhos de saírem da Terra e virem à luz. 264. Ações sábias das Nereidas. 603. Núpcias e obrigações dos homens em relação às mulheres.

Vigor, violência e engenho dos Ciclopes: Trovão, Relâmpago e Arges. Violência do Céu, impedimento seus filhos, escondendo seus filhos na cova da Terra e impedindo-os de virem à luz. 171. Punição, vingança, violência de Crono contra seu pai, Céu. 210. Vingança dos filhos do Céu que por isso são apelidados pelo pai “Titãs”. 677. Luta entre Titãs e Cem Braços 836. Ações violentas de Tifeu: braços, fogo nos olhos, palavras e ruídos de bestas. 954. Os trabalhos de Heracles. Trabalho de homens no mar.

Libertação dos tios (Trovão, Relâmpago e Arges) por Zeus.

595 e 601. Exploração das mulheres que, como zangões, nutrem-se do esforço alheio. 710. Violência na luta entre Titãs e Cem Braços.

59



823



879

 903



996

(Glenn Most). . badness (595), causing difficulty (601), . action (710) (M. L. West). . ações (Jaa Torrano). . oeuvres (Paul Mazon). . deeds (Glenn Most). . feats (M.L. West). . campos amáveis (Jaa Torrano). . riantes moissons (Paul Mazon). . lovely works (Glenn Most). . fair husbandry (M. L. West). . cuidam dos campos (Jaa Torrano). . veillent sur les champs (Paul Mazon). . care for the works (Glenn Most). . watch over the works (M. L. West). . obras brutais (Jaa Torrano).

Violência de Tifeu.

Os campos cultivados pelos homens que são destruídos pelos ventos que vêm de Tifeu e que sopram às cegas. Cuidado de Eqüidade, Justiça e Paz em relação aos campos cultivados pelos homens.

Ações do estulto Pélias.

. douloureux et multiples travaux (Paul Mazon). . violent-working (Glenn Most). . wicked and stern in action (M. L. West).

(2)  em Os Trabalhos e os Dias: Termo 

Versos 20, 311, 316, 382, 409, 412, 440, 554, 779

Traduções . trabalho (20, 311, 316, 382)

(Mary Lafer). . au travail (20, 316), à travailler (311), travail (382), ouvrage (409, 412, 440, 554, 779) (Paul Mazon). . work (20, 311, 316, 382, 409, 412, 440, 554, 779) (Glenn Most). . work (20, 311, 316, 382, 554), cultivation (409, 412), job (440), weaving (779) (M. L. West).

Situações 20. As duas Lutas: Trabalho para o qual a boa Luta desperta o indolente. 311. Exortação ao trabalho: Trabalho não é desonra. 316. Exortação ao trabalho: Trabalhar para cuidar de seu sustento. 382. Exortação ao trabalho: Trabalhar se riqueza seu ânimo deseja. 409. Os trabalhos dos campos: Se a estação passa, perde-se a obra. 412. Os trabalhos dos campos: Quem negligencia seu trabalho, não enche seu celeiro. 440. Os trabalhos dos campos: bois de nove anos não deixam seu trabalho inacabado para perderem-se em querelas. 554. Os trabalhos dos campos: Não espere para pôr fim em sua obra antes

60



21, 578



28, 443, 579

. de trabalho (21) (Mary Lafer). . à labourer (21), du travail (578) (Paul Mazon). . working (21), of the working (578) (Glenn Most). . work, of work (21, 578) (M.

que caia a chuva. 779. Os dias: O dia em que a mulher elabora seu trabalho. 21. As duas Lutas: Um sente desejo de trabalhar vendo o próspero trabalhar. 578. Os trabalhos dos campos: A madrugada toma um terço do trabalho do dia.

L. West).

. do trabalho (28) (Mary Lafer). . au travail (28), de sa besogne (443), de l’ouvrage (579) (Paul Mazon). . from work (28), into his work (443), on work (579)

28. As duas Lutas: a má Luta não afaste o peito do trabalho. 443. Os trabalhos dos campos: Empregue um homem robusto de quarenta anos, cioso de seu trabalho. 579. Os trabalhos dos campos: A madrugada faz ganhar o trabalho.

(Glenn Most).



43



44

. from work (28) to the work (443), job (579) (M. L. West). . trabalharias (Mary Lafer). . travaillerais (Paul Mazon). . to work (Glenn Most). . work (M. L. West) . ócio (Mary Lafer). . sans rien faire (Paul Mazon). . without working (Glenn Most).

Prometeu e Pandora: Se os deuses não ocultassem o que é vital ao homem, bastaria trabalhar um dia por ano. Prometeu e Pandora: Se os deuses não ocultassem o que é vital ao homem, bastaria trabalhar um dia por ano, ficando no ócio o restante do tempo.

. without working (M. L. West).



46, 64, 124, 231, 238, 254, 306, 393, 398, 422, 454, 521, 767, 773

. trabalhos (46, 64), obras (124, 238, 254, 306), campos (231) (Mary Lafer). . travail (46), travaux (64, 306, 393, 398, 422, 521, 767), (versos 124 e 125, considerados duvidosos, não são traduzidos por Paul Mazon), du fruit des champs (231), oeuvres (238, 254), ouvrage (454), besognes (773) (Paul Mazon). . work (46, 306, 454) (422 – na edição de Glenn Most o termo aparece no singular “érgon”), crafts (64), deeds (124, 238, 254), labors (231), works (393, 398, 521, 767, 773) (Glenn Most). . business (46), crafts (64), crops (231), deeds (238),

46. Prometeu e Pandora: Se os deuses não ocultassem o que é vital ao homem, bastaria trabalhar um dia por ano, ficando no ócio o restante do tempo, os trabalhos de bois e mulas se perderiam. 64. Prometeu e Pandora: Os trabalhos ensinados por Atena a Pandora: tecelagem. 124. As cinco raças: Depois que a terra cobre os homens de ouro, eles viram gênios, por ordem de Zeus, e vigiam decisões e obras. 231. Exortação da Justiça: Os homens equânimes desfrutam de seus trabalhos, os campos cultivados. 238. Exortação da Justiça: Aos que se ocupam de más obras, desmedidas, Zeus destina a Justiça. 254. Exortação da Justiça: Gênios de Zeus vigiam sentenças e obras. 306. Exortação ao trabalho: Ordene

61

wickedness (254), work-tasks (306), works (393), work (398, 454, 767), job (422), affairs (521), tasks (773) (M. L. West).



46

'

119, 146

. incansáveis (Mary Lafer). . patientes (Paul Mazon). . hard-working (Glenn Most). . toiling (M. L. West). . de seus próprios bens (érg’enémonto) (119), obras gementes (érg’émelen) (146) (Mary Lafer).

. de leurs champs (119), travaux gémissants (146) (Paul Mazon). . the fruits of their labors (119), the painful works (146)

prudentes obras para que os celeiros se encham. 393. Os trabalhos dos campos: Trabalhar nu se você quiser acabar em seu tempo os trabalhos de Deméter. 398. Os trabalhos dos campos: Trabalhe os trabalhos que os deuses reservaram aos homens. 422. Os trabalhos dos campos: Corte, então, as madeiras, se você segue os trabalhos de cada estação. 454. Os trabalhos dos campos: Os bois têm seu trabalho. 521. Os trabalhos dos campos: A jovem moça ainda ignorante dos trabalhos de Afrodite. 767. Os dias: O melhor dia para examinar os trabalhos e repartir as rações. 773. Os dias: Melhores dias para o descanso dos trabalhos humanos. Prometeu e Pandora: Mulas incansáveis não trabalhariam se os deuses não retivessem o que é vital aos homens. 119. As cinco raças: Os homens de ouro nutriam-se de pródigos bens. 146. As cinco raças: Os homens de bronze ocupavam-se de trabalhos violentos.

(Glenn Most).



151



299, 397



302

. their fields (119), acts of violence (146). (M. L. West). . trabalhavam (Mary Lafer). . labouraient (Paul Mazon). . worked (Glenn Most). . laboured (M. L. West). . trabalha (299) (Mary Lafer). . travaille (299, 397) (Paul Mazon). . keep working (299), work (397) (Glenn Most). . must work (299), do the work (397) (M. L. West). . do ocioso (Mary Lafer). . qui ne fait rien (Paul Mazon).

As cinco raças: Os homens de bronze trabalhavam com bronze.

299. Exortação ao trabalho: Trabalha para que a fome te deteste. 397. Os trabalhos dos campos: Trabalhe os trabalhos que os deuses reservaram aos homens.

Exortação ao trabalho: A fome é companheira do ocioso.

62

. who does not work (Glenn Most).



303, 312, 498

. workshy (M. L. West). . ocioso (303), invejoso (312) (Mary Lafer).

. sans rien faire (303, 498), celui que ne fait rien (312) (Paul Mazon). . without working (303), who does not work (312, 498)

303. Exortação ao trabalho: Homens e deuses irritam-se com o ocioso. 312. Exortação ao trabalho: O ocioso o invejará se trabalhares. 498. Os trabalhos dos campos: O homem que sem trabalhar repousa sobre uma vã esperança, se enche de reprovações quando lhe falta o pão.

(Glenn Most).

. without working (303), workshy man (312, 498) (M. L. West).



305

. ociosamente (Mary Lafer). . sans rien faire (Paul Mazon). . without working (Glenn

305. Exortação ao trabalho: O ocioso parece, na índole, com o zangão que se alimenta do trabalho alheio.

Most).



308, 334, 494, 641

. idleness (M. L. West) . por trabalhos (308), a obras (334) (Mary Lafer).

. par leurs travaux (308), de leurs actes (334), travailleur (494), de faire (641) (Paul Mazon). . from working (308), for works (334), worker, (494), of work (641) (Glenn Most). . from work (308), for actions (334), industrious man (494), to tasks (641) (M. L.

308. Exortação ao trabalho: Os homens são ricos por trabalhos. 334. Exortação ao trabalho: Quem ultraja ao velho pai, o próprio Zeus com este se irrita e impõe difícil reparação a tão injusta obra. 494. Os trabalhos dos campos: Se o frio impede o trabalho no campo, cuida-se da casa. 641. A navegação: Lembre-se de fazer cada tarefa no seu tempo.

West).



309



311



312



314, 382, 438, 623

. trabalhando (Mary Lafer). . en travaillent (Paul Mazon). . if you work (Glenn Most). . a working man (M. L. West). . ócio (Mary Lafer). . de ne rien faire (Paul Mazon). . not working (Glenn Most). . not working (M. L. West). . trabalhares (Mary Lafer). . travailles (Paul Mazon). . work (Glenn Most). . work (M. L. West) . trabalhar (314), trabalha (382) (Mary Lafer). . travailler (314, 623),

fais

Exortação ao trabalho: Trabalhando os homens serão caros aos imortais.

Exortação ao trabalho: O ócio é desonra.

Exortação ao trabalho: O ocioso o invejará se trabalhares.

314. Exortação ao trabalho: Por sua condição, trabalhar é melhor. 382. Exortação ao trabalho: Trabalhar se

63

succéder (382), au travail (438) (Paul Mazon). . working (314, 438), work



382, 444



411

(382, 623) (Glenn Most). . work (314, 382), working (438), work (623) (M. L. West). . sobre trabalho (382) (Mary Lafer). . à travail (382), à son ouvrage (444) (Paul Mazon). . upon work (382), on his work (444) (Glenn Most). . upon work (382), on the work (444) (M. L. West). . qui néglige sa besogne (Paul Mazon).

. the futilely working man

riqueza seu ânimo deseja. 438. Os trabalhos dos campos: Bois machos de nove anos são excelentes para o trabalho. 623. A navegação: É o momento de não mais navegar seu barco, mas de trabalhar a terra. 382. Exortação ao trabalho: Trabalhar se riqueza seu ânimo deseja. 444. Os trabalhos dos campos: Sem procurar o olhar dos camaradas, o coração todo em sua obra.

Os trabalhos dos campos: Quem negligencia o trabalho não enche seu celeiro.

(Glenn Most).

. of ineffectual labour (M. L. West).



413

. qui remet sa besogne (Paul Mazon). . work- postponinig (Glenn

Os trabalhos dos campos: Quem adia o trabalho não enche seu celeiro.

Most).



549

. postponer (M. L. West). . les champs (Paul Mazon). . onto the works (Glenn Most).

Os trabalhos dos campos: Nestas manhãs um vapor fecundante cobre os campos cultivados.

. over the wheat-fields (M. L. West).



629

. le bon (Paul Mazon). . the well-worked (Glenn

A navegação: Ponha o leme que bem trabalhou sobre a fumaça para secar.

Most).



791, 796



801



827

. well-crafted (M. L. West). . patients (791, 796) (Paul Mazon). . hard-working (791, 796)

(Glenn Most). . toiling (791, 796) (M. L. West). . sur cet acte (Paul Mazon). . for this kind of work (Glenn Most). . undertaking (M. L. West). . fait sa besogne (Paul Mazon). . does his work (Glenn Most). . works (M. L. West).

791 e 796. Os dias: Castre e guarde as mulas incansáveis.

Os dias: Traga uma esposa para casa depois de consultar os pássaros sobre esta ação. Os dias: Feliz e afortunado é o que faz seus trabalhos, conhecendo os dias, sem ofender os imortais, consultando os avisos celestes e evitando toda falta.

64

(3) na Teogonia: Termo 

Versos 15

Traduções . que sustém a terra (Jaa Torrano).

. le maître de la terre (Paul

Situações O epíteto refere-se a Posídon, na primeira lista de deuses que são hineados pelas Musas.

Mazon).



15

. earth-holding (Glenn Most). . earth-charioted (M. L. West). . que treme a terra (Jaa Torrano).

Ainda referindo-se a Posídon, na mesma lista.

. l’ébranleur du sol (Paul Mazon). . earth-shaking (Glenn Most). . shaker of the earth (M. L. West).



45, 126, 159, 173, 184, 479, 505, 702, 821

. Terra (Jaa Torrano). . Terre (45, 126, 159, 173, 184, 479, 505, 821), la terre (702) (Paul Mazon).

. Earth (Glenn Most). . Earth (M. L. West).



69, 108, 693, 839, 843, 858, 861, 867

. terra (69, 693, 839, 843, 858, 861, 867), Terra (108) (Jaa Torrano).

. terre (69, 108, 839, 861), le sol (693, 843, 867), Terre (858) (Paul Mazon).



20, 470



106

. earth (Glenn Most). . earth (M. L. West). . Terra, à Terra (Jaa Torrano). . Terre (Paul Mazon). . Earth (Glenn Most). . Earth (M. L. West). . da Terra (Jaa Torrano). . de Terre (Paul Mazon).

45. Referência sos que foram gerados por Terra e Céu. 126. Nascimento do Céu, parido pela Terra, igual a si mesma. 159. Céu impede a Terra de parir seus filhos. Terra trama vingança. 173. Crono, dentro da Terra, promete cumprir o ardil. 184. Terra recebe os respingos de sangue do pênis do Céu, cortado por Crono. 479. Terra recebe Zeus escondido de Crono para nutri-lo e criá-lo. 505. Terra recobria o trovão, o raio e o relâmpago. 702. Céu e Terra tocam-se durante a luta entre os Deuses. 821. Terra pariu Tifeu amada por Tártaro. 69. Hino às Musas, terra negra grita. 693. Luta entre os deuses, terra nutriz retumba. 839 e 843. Luta entre Zeus e Tifeu, terra retumba e geme. 858, 861 e 867. Zeus vence Tifeu, a terra geme, queima-se, funde-se. 20. Lista dos deuses hineados pelas Musas. 470. Réia suplica a Terra e Céu comporem um ardil contra Crono, devorador de seus filhos. Pedido do aedo para que as Musas gloriem os deuses, nascidos da Terra e do Céu, da

65

'

117



147, 154, 158, 421, 463, 494, 626, 644, 884, 891

. from Earth (Glenn Most). . of Earth (M. L. West). . Terra (Jaa Torrano). . Terre (Paul Mazon). . Earth (Glenn Most). . Earth (M. L. West). . da Terra (Jaa Torrano). . de Terre, à Terre (o verso 494 é considerado interpolado por Paul Mazon) (Paul Mazon).

. from Earth, in Earth, by Earth, of Earth (Glenn Most). . of Earth, from Earth, Earth’s (M. L. West).



176, 238

. ao redor da Terra, da Terra (Jaa Torrano).

. Terre, à Terre (Paul Mazon). . around Earth, with Earth (Glenn Most).

Noite e do Mar. Nascimento da Terra.

147. Nascimento de Cotos, Briareu e Giges, filhos da Terra e do Céu. 154. Céu impedindo seus filhos com a Terra de virem à luz. 158. Terra geme pela violência do Céu. 421. Hino à Hécate, que recebeu dons de todos os filhos da Terra e do Céu. 463. Crono soube da Terra e do Céu que seria submetido por um filho e, por isso, engolia seus filhos ao nascerem. 494. Crono soltou a prole, por conselhos da Terra, vencido por Zeus. 626. Zeus e seu irmãos restituíram, por conselhos da Terra, Cotos, Briareu e Giges à luz. 644. Zeus, ao vencer, fala aos filhos da Terra e do Céu. 884. Os deuses, por conselhos da Terra, exortavam Zeus a tomar o poder e ser rei entre os imortais. 891. Zeus engole Métis, por conselho da Terra e do Céu, quando esta estava por parir. 176. O Céu vem sobre a Terra, estendendo-se a tudo desejoso. 238. O Mar, amante da Terra, gerou Espanto, Fórcis, Ceto e Euríbia.

. over Earth, with Earth (M. L. West).



187, 346, 365, 723, 753, 878

. sobre a terra, pela terra (Jaa Torrano).

. sur la terre, la terre, à la terre (Paul Mazon).

. on the earth, to the earth, from the earth, over the earth (Glenn Most).

. on the earth, the earth, from earth, on land (878) (M. L. West).

187. Sobre a terra infinita, vivem as Ninfas, chamadas Freixos, nascidas da Terra fecundada pelos respingos de sangue do pênis do Céu. 346. Tétis pariu as Oceaninas que pela terra adolescem homens. 365. Oceaninas percorrem terra e águas profundas. 723. Distância igual entre Céu e Terra e entre Terra e Tártaro.

66



300, 334, 413, 483, 518, 571, 622, 720, 725, 731, 841

. na terra, da terra, da Terra (518) (Jaa Torrano).

. de la terre, sous la terre, sur la terre, du monde (518, 622), avec de la terre, (o verso 731 é considerado interpolado por Paul Mazon) (Paul Mazon).

. of the earth, from earth, above the earth, in the earth (Glenn Most).

. of the earth, from earth, below the earth, the earth. (M. L. West).





427

441

 456



720, 721, 723a, 728, 736, 807

. na terra (Jaa Torrano). . (o verso 427 é considerado interpolado por Paul Mazon) . on earth (Glenn Most). . in earth (M. L. West). . ao Treme-Terra (Jaa Torrano). . Ébranleur de la terre (Paul Mazon). . Earth-shaker (Glenn Most). . Shaker of Earth (M. L. West). . Treme-Terra (Jaa Torrano). . Ébranleur du sol (Paul Mazon). . Earth-shaker (Glenn Most). . Shaker of Earth (M. L. West). . sob a terra, da terra (Jaa Torrano). . de la terre, (o verso 721 é considerado interpolado por Paul Mazon), à la terre (Paul Mazon).

. down the earth, from the

earth, of the earth (Glenn Most). . below the earth, from the earth, of the earth. (M. L. West).

753. Quando a Noite percorre a terra, o Dia está dentro do palácio e vice-versa. 878. Os ventos de Tifeu sobram sobre mares e pela terra sem-fim. 300. Víbora vive sob covil da divina terra. 334. Serpente no covil da trevosa terra guarda maçãs de ouro. 413. Zeus concedeu a Hécate ter parte na terra e no mar. 483. Zeus foi escondido de seu pai sob o covil da terra divina. 518. Atlas sustém o Céu nos confins da Terra. 571. Hefesto plasmou da terra a primeira mulher. 622. Briareu, Cotos e Giges, doloridos, foram presos por seu pai sob a terra. 720 e 725. Distância igual entre Céu e Terra e entre Terra e Tártaro. 731. Zeus ocultou os Titãs nos confins da terra. 841. Luta entre Zeus e Tifeu, terra retumba e geme. Hécate partilhou de honra e privilégio na terra, no céu e no mar.

Referência a Posídon, a quem , junto a Hécate, os trabalhadores do mar fazem súplicas.

Nascimento dos filhos de Réia e Crono, referência a Posídon.

720, 721 e 723a. Distância igual entre Céu e Terra e entre Terra e Tártaro. 728. Por cima do Tártaro plantam-se as raízes da terra e do mar. 736 e 807. No Tártaro estão contíguos fontes e confins da terra trevosa, do Tártaro nevoento, do mar infecundo e do Céu estrelado.

67



818

. Treme-Terra (Jaa Torrano). . Ébranleur de la terre (Paul

Posídon fez de Briareu seu genro, por sua bravura .

. Earth-shaker (Glenn Most). . Shaker of Earth (M. L. West). . do Treme-Terra (Jaa Torrano). . du Ébranleur du sol (Paul

De Posídon e Anfitrite nasceu Tritão.

Mazon).

 930

Mazon).

. from Earth-shaker (Glenn Most).



679



762, 790, 972

. Shaker of Earth (M. L. West). . terra (Jaa Torrano). . terre (Paul Mazon). . earth (Glenn Most). . earth (M. L. West). . a terra, por terra (Jaa Torrano). . la terre, de la terre (Paul Mazon).

. over the earth, around the earth, earth (Glenn Most). . earth, around the earth (M. L. West).

Terra retumbava durante a luta entre os Titãs e os Cem Braços.

762. O Sono, tranqüilo e doce aos homens, percorre a terra e o mar. 790. Íris corre pela terra, sob a terra, envolve a terra. 972. Boa Riqueza, filha de Deméter, anda sobre terra e mar e, a quem encontra, torna próspero.

(4)  em Os Trabalhos e os Dias: Termos 

Versos 11, 61, 160, 255, 487, 505, 548

Traduções . sobre a terra, à terra, na terra, pela terra (11, 61, 160, 255) (Mary Lafer).

. sur cette terre, de terre, sur le sol (505) (Paul Mazon). . upon the earth, earth, on the earth (Glenn Most). . on earth, earth, to the earth (M. L. West).

Situações 11. As duas Lutas: Há duas Lutas sobre a terra. 61. Prometeu e Pandora: Zeus ordenou a Hefesto terra e água misturar para criar Pandora. 160. As cinco raças: A raça dos heróis, chamados semideuses, é a anterior à nossa na terra sem fim. 255. Exortação da Justiça: Os gênios de Zeus vagam vestidos de ar onipresentes sobre a terra. 487. Os trabalhos dos campos: Três dias depois que o pássaro der seu primeiro aviso, reúnam-se os mortais sobre a terra sem limites. 505. Os trabalhos dos campos: As geadas que aparecem sobre a terra ao sopro do Bóreo. 548. Os trabalhos dos campos: Um vapor fecundante do céu sobre a terra.

68



32, 101, 121, 140, 156, 232, 508

. terra (32, 101, 121, 140, 156, 232) (Mary Lafer). . glèbe (32), terre (101, 232, 508), sol (121, 140, 156) (Paul Mazon). . earth, Earth (232) (Glenn Most).

. of the earth, earth, Earth (232) (M. L. West).



19, 70, 168, 551

. da terra (19, 70, 168) (Mary Lafer).

. du monde (19), dans la terre, de la terre, du sol (551) (Paul Mazon).

. of the earth, above the earth (Glenn Most).

32. As duas Lutas: Não há interesse em disputas e discursos para quem não tem seu sustento, o que a terra traz, o trigo de Deméter. 101. Prometeu e Pandora: Depois que Pandora abriu a tampa do jarro, a terra e o mar estão cheios de males. 121. As cinco raças: A terra cobriu a raça de ouro. 140. As cinco raças: A terra também cobriu a raça de prata. 156. As cinco raças: A terra também cobriu a raça de bronze. 232. Exortação da Justiça: A terra traz muito alimento a homens equânimes. 508. Os trabalhos dos campos: O vento frio faz gemerem a terra e os bosques. 19. As duas Lutas: Zeus pôs a boa Luta nas raízes da terra. 70. Prometeu e Pandora: Hefesto plasmou Pandora da terra. 168. As cinco raças: Zeus mandou os heróis para os confins da terra, para a Ilha dos Bem-Aventurados. 551. Os trabalhos dos campos: O vapor sobe da terra.

. earth’s, from earth, of the earth, above the earth 

162



228, 623

(M. L. West). . na terra (Mary Lafer). . sur le sol (Paul Mazon). . in the land (Glenn Most). . country (M. L. West). . sobre esta terra (228) (Mary Lafer). . sur leur pays (228), la terre (623) (Paul Mazon).

. on the earth, the earth

As cinco raças: Alguns heróis, na terra da Cadméia, pereceram na guerra. 228. Exortação da Justiça: Para os justos a terra nutriz traz os frutos. 623. A navegação: É o momento de não mais navegar seu barco, mas de trabalhar a terra.

(Glenn Most).



563

. about the land, in the earth (M. L. West). . la terre (Paul Mazon). . Earth (Glenn Most). . Earth (M. L. West).

Os trabalhos dos campos: Cuide bem e ponha-se sempre de acordo com a duração dos dias e das noites, até que o ano feche seu

69

curso e a terra, mãe de todos os seres, traga de novo seus múltiplos frutos.

3.1. Estudo de algumas ocorrências deem Hesíodo: Façamos uma observação preliminar. O termo “” e seus derivados, tais como empregados por Hesíodo, como se pode notar pelos quadros acima, são um grande desafio para os tradutores. O termo significa, em geral, uma atividade. Mas pode referir-se à habilidade para o exercício de uma atividade (“eles são excelentes para a função” 189), à necessidade de praticar uma atividade (“quem negligencia sua tarefa, não enche seu celeiro”190), à atividade em exercício (“o coração todo em sua obra”191), ou ao resultado da atividade (“cobrindo os [campos] cultivados dos felizes deste mundo”192). A atividade referida pode ser uma atividade com palavras (“perfazem as reparações facilmente, a persuadir com brandas palavras”193), ou ações físicas (“aos que lavram o mar de ínvios caminhos”194). Pode referir-se a ações guerreiras (“Ambos os lados mostravam obras braçais violentas”195) ou eróticas (“ainda ignorante dos trabalhos de Afrodite”196). Parece-nos que o fundamental, no entanto, é observarmos como Hesíodo vai construindo em seus poemas a idéia de que cada um tem uma atividade própria, ou seja, a idéia de que se conquista “o próprio”, isto é, uma identidade, em, e através de, uma atividade. Ao longo da dissertação traduzimos “” por diversos termos: “trabalho”, “função”, “obra”, “tarefa”, “ação”, “atividade”. Entretanto, agora que pretendemos mostrar, através de algumas passagens, como a noção de “” é desenvolvida por Hesíodo e desempenha um papel fundamental em seu pensamento, decidimo-nos pelo termo “trabalho”,

189

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 439. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias vv. 411-412. 191 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 445. 192 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias vv. 549-550. 193 HESÍODO. Teogonia. vv. 89-90. 194 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 440. 195 HESÍODO. Teogonia. v. 677. 196 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 521. 190

70

respeitando assim a tradição que nos legou uma obra intitulada (isto é, cujo título é traduzido por) Os Trabalhos e os Dias. 3.1.1. Trabalho e Luta: Os Trabalhos e os Dias, versos 20-23. ·  ,  ' · Esta desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e a casa beneficiar;197

Hesíodo estabelece, aqui, a relação entre luta e trabalho. A boa luta provoca o desejo de trabalho. A má luta afasta o peito do trabalho. O indolente ( ) precisa acordar para o trabalho e, nisto, o trabalho de um outro em benefício de sua própria casa, pode ajudar. Um homem acorda () para a necessidade de ser um homem, para a necessidade de buscar a sua parte, medindo-se com outro homem. Quando o outro é justa medida, é rico ( )

de si mesmo, ou seja, quando o outro, em sua labuta, aparece como exemplo do

movimento de conquista de identidade, de participação no todo, exemplo que precisa, então, ser seguido, aí, acorda um homem. O que acorda é um desejo (), impulso em direção ao trabalho, força de realização. Assim, o trabalho não é, para o desperto, um fardo; o desperto quer trabalhar, quer ser um homem entre os homens, quer cuidar do que é seu: semear (), plantar, cultivar () e a casa beneficiar, bem estabelecer (). O trabalho é, pois, em benefício, isto é, com vista ao bem da casa (), é uma , como sugere Solmsen198. A casa ( )

é o lugar do próprio, a propriedade. Semear e cultivar para o bem do próprio é, para

Hesíodo, o impulso de trabalho do homem desperto pela boa luta. 3.1.2. Trabalhos e Bens: Os Trabalhos e os Dias, versos 308-311. ' ' , 197

Tradução de Mary Lafer. Cf. SOLMSEN, F. “Hesiodic Motifs in Plato”. Hésiode et son Influence. (p. 176)

198

71

'  [· ]. ' , ' . Por trabalhos os homens são ricos em rebanhos e recursos e, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. o trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é.199

Hesíodo fala, nestes versos, das relações entre a riqueza e o trabalho, entre o trabalho e o bem-querer dos imortais e entre o trabalho e a honra. É um elogio completo dos benefícios do trabalho. Diante de homens e de deuses é melhor o homem que trabalha. O último verso “o trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é” é citado por Platão no Cármides200. Crítias diz, neste diálogo, como vimos anteriormente201, que aprendeu com Hesíodo que trabalho () é aquilo que é feito com vistas à beleza e à utilidade. Ou seja, o trabalho não é qualquer atividade. O trabalho é útil, torna próspero (), e é belo, tornanos amigos () dos imortais e protege-nos da vergonha () entre os homens. 3.1.3. A Maturidade do Trabalho: Os Trabalhos e os Dias, versos 441-445. '  , , ' ' , ' , '  · Que eles sejam seguidos de um homem robusto, de quarenta anos, que haverá comido de um pão quatro pedaços de oito porções e que, preocupado com sua obra, empurrará direito seu sulcor, sem procurar olhar os camaradas, O coração em sua obra.202

O homem desperto pela boa luta já está, nestes versos, maduro, tem quarenta anos. Ele conhece a sua parte, come de oito quatro porções, e é, então, movido pelo próprio trabalho, não olha mais para o outro. Diz Hesíodo que, quando jovem, o homem vaga em busca de camaradas203. Para o homem maduro, entretanto, sua metade é seu todo. O homem é, então, justo, seu coração () habita, veste, tem e é tido por () seu trabalho.

199

Tradução de Mary Lafer. Cf. PLATÃO. Cármides 163b. 201 Cf. nota 93 desta dissertação. 202 Versão a partir da tradução de Paul Mazon. 203 Cf. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias vv. 447-448. 200

72

Um coração que habita seu trabalho próprio é, também para Platão, o coração de um homem justo. O coração (), ligado à parte irascível () da alma (), tem uma papel fundamental na ética platônica. A parte irascível da alma, que se encontra entre a concupiscível () e a racional (), é responsável pela censura da primeira e a aliança com o governo da segunda204. A harmonia entre as partes da alma, a justiça na alma, depende, então, de que o coração () ajude o pensamento () a governar o ventre ( ).

O justo, de alma harmoniosa, realiza seu trabalho próprio e promove a justiça na

cidade. 3.1.4. O Trabalho de Animais e Coisas: Os Trabalhos e os Dias, versos 453-454. · "·" ' · "['] ." Fácil dizer: “Dê-me teus bois e teus arados.” Fácil também responder: “Meus bois têm seu trabalho”.205

Até aqui consideramos a necessidade do trabalho como o que torna homem o homem. O trabalho é o castigo de Zeus para os homens. Mas, nestes versos, Hesíodo nos fala de trabalhos de bois e arados. Bois e arados são animais e coisas. Eles também têm seu trabalho. Mas seu trabalho está ligado ao trabalho do homem. Na abertura do episódio de Prometeu, diz Hesíodo: Oculto retêm os deuses o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por uma ano, podendo em ócio ficar; acima da fumaça logo o leme alojarias, trabalhos de bois e incansáveis mulas se perderiam.206

Os trabalhos dos animais se perderiam se o homem não tivesse que trabalhar, o leme ficaria ocioso. Com isto, estaria Hesíodo dizendo que o trabalho dos animais e das coisas é servir ao homem? Ou será que é servir ao trabalho do homem? Mas o trabalho do homem não é servir ao bem dos animais e das coisas com as quais ele se ocupa? Quem manda então? Será o homem hesiódico “o senhor da natureza” moderno? Não, certamente não.

204

Cf. PLATÃO. República 439c-444a. Versão a partir da tradução de Paul Mazon. 206 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias vv. 42-46. Tradução de Mary Lafer. 205

73

Parece que o trabalho do homem realmente orienta o trabalho das coisas e dos animais que com ele trabalham: Hesíodo diz “meus bois”, “meus arados”. Entretanto, o trabalho do homem - a sua participação - obedece à ordem do todo (articulação da multiplicidade em um sentido), obedecendo, pois, ao que pode (à possibilidade de articulação de) cada coisa e cada animal: eles têm “o seu trabalho”. O trabalho do homem dá sentido ao trabalho das coisas e dos animais: é porque o homem trabalha que não se perdem trabalhos de animais e coisas. As coisas e os animais aparecem em seu poder fazer, quando os homens, por seu fazer, proporcionam a eles seu lugar, obedecendo a medida de cada um. 3.1.5. Trabalhos e Dias: Os Trabalhos e os Dias, versos 826-828.  , . Felizes e afortunados aqueles que, sabendo tudo o que concerne aos dias, fazem seu trabalho sem ofender os Imortais, consultando os avisos celestes e evitando todo erro207.

O trabalho deve estar de acordo com o dia, de acordo com os avisos do céu, de acordo com o ritmo da terra. Este verso encerra a série de informações sobre os melhores e piores dias para cada atividade. E diz será feliz () o homem que cuidar do trabalho a seu tempo. A ligação entre o tempo e o trabalho aparece, então, claramente. Cada trabalho (  )

tem sua ocasião (), e a “ocasião”, diz Hesíodo, “é em tudo a qualidade suprema”208.

Esta ocasião vem àquele que está disponível, em espera ativa, como o tempo do canto veio para aquele que pastoreava. Mas “se a estação passa, perde-se o trabalho”209. As estações, os dias, a maturidade do trabalhador e dos animais, o tempo das coisas com as quais trabalha o trabalhador, tudo isto é ritmo da terra, “de todos sede irresvalável sempre”210. Portanto, vejamos agora como Hesíodo mostra, em alguns versos, a nossa intimidade com esta deusa e a necessidade de que nosso trabalho ouça seu ritmo, dando-lhe forma, sentido.

207

Versão a partir da tradução de Paul Mazon. Cf. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 694. Versão a partir da tradução de Paul Mazon. 209 Cf. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 409. Versão a partir da tradução de Paul Mazon. 210 Cf. HESÍODO. Teogonia v. 117. 208

74

3.2. Estudo de algumas ocorrências deem Hesíodo: 3.2.1. Terra e Luta: Os Trabalhos e os Dias, versos 17-19.    A outra nasceu primeira da Noite Tenebrosa e a pôs o Cronida altirregente no éter, Nas raízes da terra e para os homens ela é melhor.

A boa Luta, a outra () no verso acima, nasceu primeiro () da Noite. Ela é, pois, mais fundamental que a má Luta. Diz o poeta que Zeus a pôs nas raízes da terra (  ).

Paul Mazon traduz “” por “monde” e

se justifica interpretando a

expressão “nas raízes da terra” como significando que a boa Luta é tão velha quanto o mundo211. Como a Terra é um dos quatro deuses primordiais, na Teogonia, dizer que a boa Luta está em suas raízes, isto é, em suas origens, pode mesmo querer dizer que ela é muito arcaica. De todo modo, estar nas raízes da terra é poder brotar, se cultivada. Para que a boa Luta brote, como vimos há pouco, é preciso que um homem semeie, plante, trabalhe. O trabalho do homem rico que quer beneficiar a sua casa é o que faz surgir, da terra, a boa Luta, a que desperta o indolente para o trabalho. As duas Lutas estão “sobre a terra” 212, mas a boa Luta está também em suas raízes, à espera de que o trabalho a desperte para que ela possa despertar mais trabalho. 3.2.2. Terra e Corpo: Os Trabalhos e os Dias, versos 59-63. ', ' · '  , '  ,  · Disse assim e gargalhou o pai dos homens e dos deuses; ordenou então ao ínclito Hefesto muito velozmente terra à água misturar e aí pôr humana voz e força, e assemelhar de rosto às deusas imortais esta bela e deleitável forma de virgem;

211 212

MAZON, Paul. Notas à tradução da Teogonia. nota 4. (p. 86). HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v. 11.

75

A terra faz parte da composição da mulher. Mas também os homens, segundo algumas tradições gregas, são feitos de terra213. Se o corpo da mulher é de terra, o corpo guarda a potência da terra para gerar e, também, seus tempos. O corpo como a terra é capaz de esconder e mostrar. A ambigüidade de Pandora é também a ambigüidade da Terra que gera os pais de Zeus, que alimenta Zeus, mas que gera também Tifeu. A Terra como o corpo precisa de medida, medida dada pelo trabalho que respeita seu tempo. 3.2.3. Terra e Mudança: Os Trabalhos e os Dias, versos 120-122. ,  , , , Mas depois que a terra a esta raça cobriu, eles são, por desígnios do poderoso Zeus, gênios corajosos, ctônicos, curadores dos homens mortais.

A terra move, promove a mudança. Foi na Terra que o Céu escondeu seus filhos, não os deixando virem à luz. Mas a Terra armou um plano para libertá-los. Depois foi a Terra que abrigou e nutriu Zeus quando ele precisou superar Cronos. Foi ainda a Terra que aconselhou os deuses a tornarem Zeus rei, quando ele venceu os titãs e Tifeu. A Terra é promotora, sua ação marca os ciclos. Foi ela também que cobriu as raças de homens que se sucedem. Da Terra vem tudo, à Terra todos voltam. 3.2.4. Terra e Cidade: Os Trabalhos e os Dias, versos 225-231.   , , ' · ' , '  · Aqueles que a forasteiros e nativos dão sentenças retas, em nada se apartando do que é justo, para eles a cidade cresce e nela floresce o povo; sobre esta terra está a paz nutriz de jovens e a eles não destina penosa guerra o longevidente Zeus.

213

Na República, segundo a versão socrática do “mito das raças”, todos os cidadãos nascem da terra e têm terra em sua composição. Cf. PLATÃO. República 414d-415d.

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A terra é também o “território” da cidade (). A cidade que floresce () é aquela em que a terra está em paz (). O modo como os homens habitam a terra é marca da justiça na cidade. As sentenças () retas trazem prosperidade e paz. Não podemos esquecer que os reis que dão retas sentenças são aqueles inspirados por Calíope, cujo trabalho () é dar as reparações214. O trabalho dos reis justos mantém a cidade e a terra em paz: soa platônico, não?215 3.2.5. Terra e Dias: Os Trabalhos e os Dias, versos 561-563.    Vele bem e ponha-se sempre de acordo com a duração dos dias e das noites, até que o ano feche seu curso e a terra, mãe de todos os seres, traga de novo seus múltiplos frutos.

A terra é mãe () de todos (), ela é pródiga de frutos (). Mas é preciso para ser um, íntegro, são, velar () pela justiça de Zeus, dias e noites ( ),

conquistando, dos frutos da Terra, sua própria metade (), através do

trabalho () que lhe cabe. O trabalho deve ouvir a terra, guiar-se por ela, mas não deve querer dela tudo, só a sua justa parte.

214

Cf. HESÍODO. Teogonia vv. 80-92. Um trabalho interessante que discute esta questão é o artigo de André Laks. “Le double du roi. Remarques sur lês antecédénts hésiodiques du philosophe-roi”. Le Métier du Mythe : Lectures d’Hésiode. (p. 83-91). 215

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4. Conclusão: O enigma que deu origem a este trabalho, impossível que possa parecer a olhos treinados pela lógica, “desde que Aristóteles a fundou”216, é uma articulação possível. O que não sabem os néscios é justamente a natureza desta articulação entre metade e tudo.  Néscios, não sabem quanto a metade vale mais que tudo217

O não-saber dos néscios repousa, porém, sobre um já saber que é um contar com. Os néscios “já sabem” que “tudo” é a totalidade de coisas que se pode ter ou ser. Calculam, então, o valor da metade por tudo e concluem que tudo vale mais, duas vezes mais. Os néscios esquecem, no seu saber, que existe uma articulação prévia à possibilidade do cálculo. Tudo, isto é, as múltiplas coisas só podem ser uma totalidade e servir, pois, de medida, se algo as reúne, se elas se dão, se aparecem em um mesmo horizonte de sentido. Este esquecimento é o que chamamos, acima, “contar com”. Os néscios contam com a articulação de sentido das múltiplas coisas. E, por isto, podem calculá-las sem se perguntar por medidas. Perses quer todos os bens paternos porque ele conta com o valor que valora os bens, ele conta com a medida que diz que os bens são bens. Perses não se pergunta: o que faz estas coisas aparecerem reunidas como aquilo que é o mais desejável? Assim também os reis “comedores de presentes” não se perguntam: o que são “os presentes” que valem mais do que retas sentenças? Hesíodo seria também néscio se apenas substituísse os bens de Perses e os presentes dos reis pelo trabalho e pela justiça. Se o verso fosse uma versão de uma máxima moral tradicional, o poeta seria mais conservador que seu irmão, não mais sábio. O caráter enigmático da formulação, no entanto, produz desconcerto e nos faz duvidar de um moralismo conservador de Hesíodo. Aceitamos o desafio de interpretá-lo porque, reconhecendo-nos néscios, vimo-nos frente à tarefa de descobrir por que tudo não é medida para medir a metade. O primeiro passo que demos foi, pois, distinguir dois sentidos de totalidade, “tudo” e “todo”. “Tudo” não pode ser medida para a metade porque “tudo” é indeterminado e, portanto, não realiza aquela articulação dos muitos em um sentido que dissemos ser condição 216

ROSA, João Guimarães. “Desenredo”. Tutaméia. (p. 74). HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias v.40. Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer, um pouco modificada, conforme a interpretação proposta nesta dissertação. 217

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para valorar a metade. Esta articulação estaria guardada na totalidade compreendida como “todo”. O problema não se resolve, todavia, porque, ainda que sejamos néscios, replicamos a Hesíodo que, quando algo, mesmo que múltiplo, aparece como valoroso, como desejável, é porque já está articulado em um sentido. Porque aparecem como bens as muitas coisas são desejadas por Perses. Sempre que alguém quer tudo, quer uma totalidade de algum modo determinada. Se a medida são os bens, valem mais todos os bens (tudo) do que metade deles; se a virtude é a medida, vale mais toda a virtude (tudo) do que metade dela; se a força é a medida, vale mais toda a força (tudo) do que metade dela. Pois é aí que aparece o nosso não-saber mais radical, é aí que precisamos desconfiar do que sabemos. O que não sabemos é por que a medida pode aparecer como bens, virtude ou força. O que não perguntamos, em nosso não-saber, é como o que quer que seja pode ser valor. Em outras palavras, não perguntamos pela possibilidade de articulação de múltiplas coisas em um sentido. Mas Hesíodo pergunta. E é por isso que ele não é um moralista conservador. A pergunta que Hesíodo faz é a mais radical pergunta que pode ser feita: onde será que tudo começa? A pergunta, entretanto, abrindo um abismo e reunindo “tudo”, é doadora de sentido. A origem é sempre já uma articulação. A origem de tudo, em Hesíodo, é articulação de quatro princípios cosmogônicos: abertura, atração, sede e abismo. A origem da ordem do todo é articulação: Zeus harmoniza pela divisão dos lotes. A origem da pergunta pela origem é articulação: a palavra das Musas reúne-se ao trabalho do pastor. Se a própria pergunta pela possibilidade de articulação depende de um encontro com as Musas, Hesíodo não é um moralista, mas um homem inspirado e piedoso? Sim e não. A inspiração de Hesíodo e sua piedade não lhe fornecem valores que substituam os bens que Perses quer. O que as Musas revelam a Hesíodo, e é o seu dom, é que qualquer articulação, mesmo a divina, mesmo a cósmica, já é sempre ação, obra, trabalho. Esta é a revelação que a palavra inspirada de Hesíodo traz para nós, néscios. A articulação de múltiplas coisas em um sentido, com a qual a gente sempre já conta, é trabalho a realizar e não coisa dada. Os bens só serão bens para Perses se ele trabalhar para conquistar o sentido que torna os bens, bens. Ele tem uma herança a conquistar. Se os reis não

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trabalharem para conquistar o sentido das justas sentenças, eles jamais poderão saber se elas valem mais ou menos do que os presentes. Medir exige trabalhar para descobrir a medida. Então o que Hesíodo está dizendo é que cada um deve encontrar a sua medida, produzir seus valores por si mesmo, que não há sentido prévio? Hesíodo é um relativista? Não. O homem é medida à medida que trabalha respeitando a medida. O trabalho mesmo é dom e como dom doa sentido. Zeus doa ao homem a necessidade de trabalhar para viver. As Musas doam suas palavras para o cantor. A Terra doa-se através de Zeus e das Musas, e também no corpo que trabalha e no solo que dá frutos, quando cultivado. A possibilidade do trabalho é, em Hesíodo, graça da Terra, eterno doar-se e recolher-se. O trabalho que é conquista de valor, que é participação na articulação do todo, precisa guardar os tempos da Terra e seguir a ordem de Zeus: a cada um o que lhe cabe. No entanto, a prodigalidade, representada pela Terra, às vezes, produz o esquecimento. Perses esquece a origem do valor dos bens paternos. Os reis esquecem a origem do valor dos julgamentos. Os pastores esquecem o sentido do pastoreio. O ocioso, tomado pela má luta, esquece a origem da prosperidade do vizinho. A mulher que se comporta como o zangão esquece a origem da parceria matrimonial. O poeta esquece a verdade. O esquecimento do que é essencial produz desarticulação, desmedida, revolução, fome. Aí nada mais pode medir-se, nenhum valor vale, instaura-se a idade de ferro. Os néscios, então, acham que já têm medida para medir a metade e erram. A metade que vale mais é a metade que cabe conquistar e ela vale mais que tudo o que for suposto como já articulado. Quando Hesíodo diz a Perses que ele precisa ser metade - mortal e não imortal, irmão e não filho único, filho para seu pai, homem para quem vem a mulher, pai para seus filhos – o que ele diz é que ser inteiro, íntegro, um, todo, só pode quem, assumindo a parte que lhe cabe, perfaz, pelo trabalho, a articulação de uma multiplicidade em um sentido. A metade que cabe a cada um conquistar já está sempre, assim, determinada por um outro, por um antes, pelas possibilidades doadas. Mas o sentido do antes sempre só será decidido depois, pelo futuro em vista do qual o trabalho é realizado. Todo trabalho é, então, parte e todo. É parte porque vem de antes para um depois. É todo porque cada trabalho, ao se fazer, articula tudo em um sentido, sustentando o tempo do antes e do depois.

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Pastorear, cantar, plantar, governar são trabalhos. Filosofar é trabalho. Dissemos, na Introdução, que podíamos filosofar com Hesíodo porque ele responde às perguntas kantianas. Ainda sem saber quem é Hesíodo, isto é, ainda sem conquistar a medida que nos permitiria saber se são filosóficas ou poéticas as suas respostas, com elas concluímos: (1) O que posso saber? Que devo fazer e que me é lícito esperar. (2) O que devo fazer? O fazer (3) O que me é lícito esperar? A espera. (4) O que é o homem? Pergunta reposta.

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