Metáfora e referenciação em nichos metafóricos

June 4, 2017 | Autor: Roberta Vieira | Categoria: Metafora, Referenciação
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A noção de metáfora conceptual será brevemente discutida mais adiante. Por enquanto, podemos antecipar que se trata da metáfora, de natureza cognitiva, que subjaz a nossa linguagem, estruturando nossa forma de falar, pensar e agir (LAKOFF & JOHNSON, 1980).
Texture is the basis for unity and semantic interdependence within a text. (Nossa tradução).
Cohesion occurs when the INTERPRETATION of some element in the discourse is dependent on that of another. The one PRESUPPOSES the other, in the sense that it cannot be effectively decoded except by recourse to it. (Nossa tradução, destaques no original)
As outras seriam: formas não-referenciais, formas remissivas não-referenciais presas e formas referenciais livres (KOCH, 1998: 33)
Tais como: nominalizações, expressões sinônimas ou quase sinônimas, hiperônimos ou indicadores de classe, formas referenciais com lexema idêntico ao núcleo do SN antecedente (com ou sem mudança de determinante) etc. (KOCH, op cit: 46,47)
Como discutiremos mais adiante, esse mesmo sintagma nominal possui uma carga conotativa que estaria fora do contexto linguístico em si. Há, aqui, uma avaliação do enunciador, que poderia ser, por exemplo, uma crítica ("a louca varrida") e não necessariamente uma expressão de compaixão (pobre coitada).
Função ideacional: ...[componente] mais diretamente relacionado à representação da experiência, ao 'contexto de cultura' (HALLIDAY & HASAN, 1976: 26).
...[Componente] que se ocupa das funções sociais, expressivas e conativas da linguagem, da expressão do 'ângulo' do falante: suas atitudes e avaliações, sua codificação dos papéis na situação e seu estímulo para falar, em primeiro lugar. ( HALLIDAY & HASAN, op cit: 26).
Retirados de páginas da internet, com base em Vereza (2000: 8)
Em: http//viagens.kazulo.pt Experiências
Em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/08/
"Tópico: é a porção não-metafórica de uma expressão metafórica... Veículo: é a porção metafórica de uma expressão metafórica" (SARDINHA, op cit).
Wladim Gramacho, Revista IstoÉ, 10 mar. 1999, p.27.
Licenciada por uma metáfora conceptual, de acordo com o paradigma cognitivista.
Por nicho, na ecologia, entende-se "como o sistema de espécies está organizado; como as várias espécies estão inter-relacionadas e se ajustam no todo, e o papel de cada espécie no funcionamento do todo [...]" (MATTAR; AUAD, 1997 apud VEREZA, 2007, p. 496).
Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2009.
Desdobramentos: tradução (na publicação traduzida de 2002) de entailments, termo utilizado por Lakoff e Johnson (1980 [2002]) para se referirem aos mapeamentos entre elementos específicos de domínios diferentes.
Em relação ao papel da metáfora na argumentação, alinhamo-nos a Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), que incluem a metáfora no campo da argumentação, retirando-a, assim, da esfera das clássicas "figuras de linguagem" com valor cognitivamente secundário. Segundo Alves, "Perelman diz que figuras de linguagem estudadas sem se levar em conta seu aspecto dinâmico, de figuras argumentativas, são como folhas secas num jardim, ou seja, elas não se integram numa pesquisa retórica – entendida como arte de persuadir e convencer – e acabam por se tornar meros ornamentos" (2005, p. 23).
Incluímos aqui a teoria dos espaços mentais como uma possibilidade, explorada em pesquisa em andamento (VEREZA, 2011), e por isso aqui não discutida, de enriquecer ainda mais o estudo da metáfora como recurso de referenciação. A proposta defendida por Fauconnier e Turner (2008) tem se mostrado relevante para essa abordagem.


Metáfora e referenciação em
nichos metafóricos
Solange Vereza (UFF)
Roberta Vieira (UFF)

Resumo

O objetivo do presente trabalho é demonstrar como o processo de referenciação, inserido em um dado co(n)texto de caráter figurativo, aqui abordado como nicho metafórico, (VEREZA, 2007, 2010) contribui para o efeito argumentativo em textos de natureza persuasiva. Serão feitas considerações acerca de como a articulação entre referenciação e metaforicidade asseguraria tanto o desenvolvimento e a organização internos de tais textos, por meio de segmentos semanticamente inter-relacionados, como a construção de objetos de discurso. Uma breve análise de exemplos do processo de referenciação de base figurada, em nichos metafóricos, retirados de textos argumentativos, ilustrará as questões aqui discutidas.

Palavras-chave: referenciação, metáfora, argumentação


Abstract

The aim of the present paper is to demonstrate how the referential process, in a co(n)text of figurative nature, which is here approached as a metaphorical niche (VEREZA, 2007, 2010), might contribute to render persuasive texts more cohesive and informative, besides contributing to their argumentative force. The means by which the articulation would ensure both the internal development and organization of these texts, through semantically inter-related segments, and the creation of discourse objects will also be discussed. A brief analysis of some examples of reference and metaphor niche taken from argumentative texts will illustrate the issues discussed in this paper.

Key words: referential process, metaphor, argumentation








Introdução


Este artigo tem por objetivo discutir a articulação entre dois conceitos que, sob diferentes perspectivas teóricas, privilegiam a relação entre as palavras e seu contexto de uso: a referenciação e o nicho metafórico. Pretendemos demonstrar, neste trabalho, a forma como redes semanticamente coesivas podem colaborar para assegurar o desenvolvimento e organização internos de um texto argumentativo, de forma a acrescentar informações ou avaliações acerca de uma referência já introduzida anteriormente, por meio de expressões metafóricas.
Para tanto, nos apoiaremos, primeiramente, na noção de referenciação, tal como desenvolvida por Mondada e Dubois (1995), segundo a qual a relação entre linguagem e mundo deve ser entendida como um fenômeno sociocognitivo e interacional. Essa visão põe de lado a noção de que há uma relação direta entre as palavras e as coisas do mundo, para privilegiar "a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores" (MONDADA & DUBOIS, apud KOCH, 2005:103) .
Em segundo lugar, utilizaremos o conceito de "nicho metafórico", introduzido por Vereza (2007, 2010), como uma macrounidade para se investigar a metaforicidade em textos. O nicho metafórico pode ser definido como "um grupo de expressões metafóricas inter-relacionadas" presentes, com frequência, em textos argumentativos (VEREZA, 2007). Essas "cadeias ou redes figuradas", aliadas a metáforas conceptuais subjacentes, contribuiriam para a força argumentativa do discurso ao construir e reforçar a tese central de um texto. É nesse sentido, ou seja, investigar a metáfora como recurso de referenciação em nichos metafóricos de natureza argumentativa, que o presente trabalho se difere do de Leite (2007), que parte de uma perspectiva semiótica para propor o conceito de "metaforicidade textual", e o de Lima (2007), que trata da recategorização metafórica e humor. Apesar de sua contribuição específica, a presente abordagem compartilha com essas outras propostas a visão de que a metáfora desempenha um papel de grande relevância na referenciação e na dinâmica textual de um modo geral.
Por fim, apresentaremos, brevemente, a análise de exemplos de referenciação articulada à metaforicidade discursiva, em um texto de natureza argumentativa, a fim de ilustrar as questões aqui tratadas.


A Coesão Textual – algumas considerações

Partindo do pressuposto de que só nos comunicamos por meio de textos, orais e escritos, há que se garantir que esses textos sejam coerentes e coesos para que a comunicação se realize de forma satisfatória. No que tange à coesão textual, podemos ressaltar a sua propriedade de criar e sinalizar "toda espécie de ligação, de laço, que dá ao texto unidade de sentido ou unidade temática" (ANTUNES, 2005: 47). Dessa forma, podemos dizer que a função da coesão é a de promover a organização interna e o desenvolvimento do texto por meio de encadeamentos linguísticos, assegurando-lhe aquilo a que Halliday e Hasan (1979) se referem como "tessitura" (texture), ou seja, "a base para unidade e interdependência semântica em um texto" (CRANE, 2010). Entretanto, essas ligações não ocorrem somente na superfície do texto, ao contrário, para que aconteçam os encadeamentos superficiais, faz-se necessário que ligações semânticas estejam ocorrendo concomitantemente, de forma que se efetive a unidade de sentido. Em outras palavras, há coesão textual quando as relações semânticas vão se estabelecendo entre os vários segmentos.
Em sua obra clássica, Cohesion in English (1976), Halliday & Hasan argumentam que "a coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento no discurso é dependente da de outro. Um pressupõe o outro, no sentido de que não pode ser efetivamente decodificado a não ser por recurso ao outro" (HALLIDAY & HASAN, 1976:4) .
Para esses autores, a coesão se estabelece por meio de cinco mecanismos, quais sejam:
Referência
Substituição
Elipse
Conjunção e
Coesão lexical

Não vamos nos dedicar aqui à discussão de todos esses mecanismos, uma vez que já são bastante conhecidos e isso nos desviaria da proposta deste artigo. Nosso foco recairá no primeiro mecanismo mencionado, a referência, dada a sua relevância para este trabalho.
Koch (1998) define coesão referencial como
... aquela em que um componente da superfície do texto faz remissão a outro(s) elemento(s) do universo textual. Ao primeiro, denomino forma referencial ou remissiva e ao segundo, elemento de referência ou referente textual. (KOCH, 1998: 30 – destaques no original)

Segundo nos sugere a autora, a coesão referencial pode ser feita por meio de anáfora (remissão para trás) e catáfora (remissão para frente), como mostram os seguintes exemplos:

1 – A criança estava realmente assustada. Ela não sabia o que fazer naquela situação. (anáfora)
2 – Ele era a pessoa mais dedicada que conheci, o meu avô. (catáfora)

A autora também afirma que, em português, há diversas formas remissivas, segundo classificação de Kallmeyer et al (1974). Dentre elas, destacaremos as formas remissivas referenciais, que se caracterizam pelo fato de não trazerem somente instruções de conexão, mas também por fornecerem indicações no nível da referência. Elas se subdividem em diversas categorias, entre elas as expressões ou Grupos nominais definidos que, segundo Koch (1998) "trata[m]-se de grupos nominais introduzidos pelo artigo definido, que exercem função remissiva" (p.45). Podemos ilustrar o fenômeno com o seguinte exemplo:

1 – A mulher se descabelava diante da cena. A pobre coitada estava sem saída agora.

O que nos permite ativar instruções que remetem a pobre coitada ao grupo nominal a mulher é tanto o cotexto quanto o contexto extralinguístico. Ou seja, a cena criada a partir do primeiro período (a mulher que se descabelava) aponta, cotextualmente, para a pobre coitada. Em outras palavras, essas expressões efetuam uma "ativação parcial das instruções de referência contidas no conjunto das instruções dadas pelo elemento de referência que as precede no texto" (KOCH, op cit: 45).
A questão da coesão referencial é, sem dúvida, bastante complexa e, recentemente, tem sido alvo de reperspectivações, como aquelas propostas por pesquisadores que defendem que os "fenômenos referenciais, na qualidade de práticas discursivas, são um testemunho expressivo da relação mutuamente constitutiva entre linguagem e realidade" (KOCH, MORATO & BENTES, 2005:9). Na próxima seção, trataremos, mais detalhadamente, de algumas dessas novas tendências nos estudos da referência.

Da referência à referenciação

A questão da referência é um dos temas mais recorrentes nos estudos de linguagem e, dada a sua natureza complexa, tem atravessado áreas de conhecimento diversas. Sem dúvida, o assunto tem despertado a reflexão de inúmeros linguistas, filósofos, analistas do discurso, psicólogos, sociólogos etc., o que justifica a multiplicidade de quadros teóricos disponíveis, a partir dos quais a referência é concebida na literatura recente sobre o assunto.
Na sua visão tradicional, "a referência é concebida no interior de um modelo de correspondência entre as palavras do discurso e os objetos do mundo" (MONDADA, 2005: 11). Em outras palavras, de acordo com essa perspectiva, o universo dos signos linguísticos coincidiria com a realidade extralinguística.
Essa visão tem perpassado a história do pensamento ocidental e ainda conta com ferrenhos defensores na atualidade. Contudo, esse quadro vem sendo questionado, mais recentemente, em virtude da constatação de que as relações entre palavras e referentes mundanos são muito mais complexas do que se havia antes imaginado, o que levou alguns autores contemporâneos (MONDADA & DUBOIS, 1995; KOCH, 1999a, 1999b, 1999c; MARCUSCHI & KOCH, 1998; KOCH & MARCUSCHI, 1998) a argumentar a favor de uma "concepção segundo a qual os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas, versões públicas do mundo" (MONDADA & DUBOIS, 2003). Em outras palavras, desvia-se o foco da relação de equivalência entre as palavras e as coisas para o aspecto da construção simbólica perpassada por fatores psicossociais variados.
Em virtude dessa mudança de perspectiva, Mondada (2005) propõe duas alterações:
que o termo 'referência' seja substituído por 'referenciação';
que o termo 'referente' seja substituído por 'objeto-de-discurso'.
Nas palavras da autora:
A questão da referência .... foi historicamente posta como um problema de representação do mundo, de verbalização do referente, em que a forma linguística selecionada é avaliada em termos de verdade e de correspondência com ele (o mundo). A questão da referenciação opera um deslizamento em relação a este primeiro quadro: ela não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores.
No interior dessas operações de referenciação, os interlocutores elaboram objetos-de-discurso, i.e., entidades que não são concebidas como expressões referenciais em relação especular com objetos do mundo[...]: é no e pelo discurso que são postos, delimitados, desenvolvidos e transformados objetos de discurso que não preexistem a ele e que não têm uma estrutura fixa, mas que, ao contrário, emergem e se elaboram progressivamente na dinâmica discursiva. (MONDADA, 2001 In: KOCH, 2005: 34 grifos da autora)

Dessa forma, a referenciação é apreendida como atividade discursiva. Diante da diversidade de material linguístico a sua disposição, o sujeito, no ato da interação verbal, seleciona as formas linguísticas que melhor possam representar um estado de coisas, objetivando transmitir sua proposta de sentido, ou seja, o processamento de seu discurso é um processamento estratégico (KOCH, op cit). Nesse processo, o sujeito não só se refere ao objeto do discurso, como pode também ajudar o interlocutor na sua identificação, além de revestir tal objeto com significação de caráter avaliativo. Em outras palavras, a referenciação extrapola a função meramente ideacional da linguagem criando e recriando objetos sociodiscursivos, entrando no domínio interpessoal do discurso. Como argumenta Vereza (2000):

[...]quando a função expressiva (ou interpessoal) predomina no discurso, a correferência passa a admitir uma série de paráfrases que deixam vir à tona mais explicitamente o sujeito do discurso[...] a referência motivada pela função expressiva da linguagem ultrapassa seu valor puramente 'identificador', para poder desempenhar outros "atos ilocucionários", como criticar, elogiar, ironizar, ou até mesmo informar. Dessa forma, a identidade de referência que se manifesta na correferência ou na 'sinonímia textual' se reveste, muitas vezes, de um valor pragmático que vai além de seu papel coesivo. (VEREZA, 2000:8)



Podemos ilustrar essa multidimencionalidade da referenciação a partir dos seguintes exemplos:
1 – Câmeras flagram furto de carro e veículo é recuperado no Guarujá
2 - O problema agora era levar o carro até lá, pois já estávamos cansados de empurrar a lata velha. 
Podemos observar a aparente neutralidade do primeiro exemplo, uma manchete jornalística, em que o termo "carro", em um processo de correferenciação, com base em uma clara meronímia, é substituído pelo termo "veículo". Já no segundo exemplo, percebe-se que o uso da expressão "lata velha", para fazer referência ao carro em questão, está claramente relacionado ao posicionamento do falante perante o tópico. Ou seja, a atitude em relação ao carro, ou até mesmo ao dono do carro, não é neutra, o que aponta para a influência do contexto extralinguístico na construção da referência.
Na medida em que o sujeito seleciona, em função de seu "querer dizer", determinadas formas linguísticas e não outras, dentre as várias opções possíveis, para qualificar alguém, alguma coisa ou situação, a referenciação, em alguns casos, pode apresentar valor persuasivo. Ou seja, as palavras funcionariam como recursos para construir objetos de discurso a partir de rótulos avaliativos, frequentemente metafóricos, que teriam "o poder de orientar o interlocutor para determinadas conclusões" (Koch, op cit). Segundo Vogt e Figueira (1980) "todo o enunciado diz algo, mas o diz de um certo modo."
Dentro dessa perspectiva, exploraremos, neste trabalho, a hipótese de que a metáfora, em muitos casos, é utilizada como referenciação para causar efeitos de sentido que contribuiriam para a argumentação em um texto. Ou seja, a metáfora, no discurso, imprime um 'modo de dizer' específico que ressalta o caráter interpessoal de determinados textos.
Visto que o papel da metáfora, como ferramenta cognitiva e discursiva, tem sido amplamente investigado na contemporaneidade e que sua utilização como recurso argumentativo tem despertado o interesse de muitos estudiosos, apresentaremos a seguir uma breve discussão sobre suas teorias mais relevantes, dando ênfase à metáfora no discurso.

Visões da metáfora

Em virtude do interesse que a metáfora, nos últimos anos, tem despertado em inúmeros pesquisadores, das mais variadas áreas, mudanças significativas têm ocorrido em sua conceituação ao longo do tempo. De simples figura de linguagem com função meramente decorativa, a metáfora, mais recentemente, ganhou estatuto cognitivo, passando a ser tratada como figura de pensamento. Essa nova abordagem deveu-se, primeiramente, aos estudos realizados por I. A. Richards (1936), mais tarde, desenvolvidos pelo filósofo Max Black (1962), que revelou que "a metáfora possui um sentido novo que advém da interação entre o tópico e o veículo da metáfora" (SARDINHA, 2007). Para esses autores, não seria possível uma paráfrase literal da metáfora sem alguma perda de sentido, o que foi de encontro à visão tradicional que se apoiava na possibilidade de substituição plena. Essa ruptura estaria na base do que é hoje conhecido como a teoria interacional da metáfora, que ressalta a dimensão cognitiva e não apenas linguística desse tropo.
Entretanto, a contribuição que causou maior impacto nos estudos sobre a metáfora foi realizada por Lakoff & Johnson (1980, [2002]), com a introdução das bases epistemológicas do que viria a ser consolidada como a Teoria da Metáfora Conceptual (TMC). Esses autores argumentam que a metáfora, longe de ser uma figura de linguagem encontrada apenas em esferas discursivas específicas, como o discurso poético, faz parte de nossa linguagem cotidiana, regendo nossa forma de falar, pensar e agir. Segundo os autores:

A metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso da imaginação poética e um ornamento retórico – é mais uma questão de linguagem extraordinária do que de linguagem ordinária. Mais do que isso, a metáfora é vista como uma característica restrita à linguagem, uma questão mais de palavras do que de pensamento ou ação. Por essa razão, a maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente bem sem a metáfora. Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza.
(LAKOFF & JOHNSON, 1980, [2002]:45)



A Teoria da Metáfora Conceptual promoveu, assim, "uma revolução nas pesquisas sobre a metáfora, representando o lançamento de um programa inovador [...], com base na proposta central de que a sistematicidade das expressões metafóricas convencionais constitui uma importante fonte de evidências de que as pessoas pensam metaforicamente." (ZANOTTO et al :23-24)..
Mais recentemente, no entanto, a TMC tem sido alvo de críticas, sendo uma delas o fato de boa parte do material linguístico utilizado nas pesquisas nela fundamentadas consistir de exemplos inventados e não de linguagem autêntica, o que contribuiria para diminuir sua legitimidade e eficácia (GIBBS, 2006). Outra questão que tem sido levantada por teóricos contemporâneos é o fato de que os estudos gerados pela TMC deslocaram radicalmente o lócus da metáfora da linguagem para o pensamento, relevando o papel da primeira (e do discurso) a um nível epistemologicamente secundário.
Partindo da visão de que "a metáfora, mesmo como figura de pensamento, manifesta-se no âmbito da linguagem em uso, e é a partir do contexto discursivo que ela pode ser mais bem compreendida" (VEREZA, 2007: 490), um número significativo de estudiosos (LEESENBERG, 2001; SEMINO, 2008; ZANOTTO et al, 2008, entre outros) têm direcionado sua atenção à "metáfora situada", ou seja, a metáfora em uso. Entretanto, uma vez que estudar a metáfora no discurso, dada a sua complexidade, apresenta-se como um desafio para o pesquisador, surge a necessidade de desenvolver unidades de análise e/ou procedimentos metodológicos a fim de promover uma investigação mais aprofundada e analiticamente mais bem sustentada dessa figura. Discutiremos, brevemente, dois deles: a metáfora sistemática (CAMERON, 2008) e o nicho metafórico (VEREZA, 2007).

3.1. Metáfora Sistemática

Dentro da abordagem discursiva da metáfora, ou estudos da metáfora em uso, o conceito de metáfora sistemática foi introduzido pela pesquisadora inglesa Lynne Cameron (2005). A autora define metáfora sistemática como um grupo de termos ligados semanticamente (em conjunto com seus sentidos e conotações) pertencentes a um domínio de Veículo (fonte) e que são usados para falar sobre um conjunto de ideias Tópico, durante um evento discursivo (CAMERON, 2005 p.1).
Diferentemente do que propõe a Teoria da Metáfora Conceptual, em que há a primazia da representação mental sobre as suas instanciações linguísticas, o enfoque dessa abordagem é a metáfora em uso, ou seja, as expressões metafóricas encontradas em textos diversos. Segundo os defensores dessa última abordagem "... antes de tudo, é preciso uma ocorrência sistemática de metáforas linguísticas para [poder-se] alegar que alguma metáfora mental está em jogo em determinado contexto" (SARDINHA, op cit: 38).
Para ilustrar a metáfora sistemática, o autor analisa um texto (Acabou a Festa) em que há um grande número de expressões metafóricas ( comissão de frente, turma da bateria, samba, integrantes, ala, avenida, desfile, quesito, etc.) usadas pelo escritor para estabelecer uma analogia entre os domínios 'governo' e 'carnaval', possibilitando a interação entre os elementos de um e de outro. Entretanto, em nenhum momento, a metáfora governo é carnaval, subjacente a todas as expressões metafóricas identificadas, é explicitada no texto. Mesmo assim, as metáforas específicas utilizadas criam uma rede de sentido que remete a uma única metáfora cognitiva (a metáfora sistemática governo é carnaval), estruturando sistematicamente o texto e contribuindo para sua coerência semântica e força argumentativa.
As metáforas sistemáticas podem ser instanciadas linguisticamente ao longo de um texto por marcas distribuídas mais ou menos espaçadamente do que as apresentadas no texto acima. Cameron (2010), por exemplo, analisa um discurso do ex-Primeiro Ministro inglês Tony Blair, em que identifica uma metáfora sistemática específica, cujas marcas aparecem em várias passagens do texto. Quando essa rede de metáforas ocorre em um único trecho do texto, ou até mesmo no texto inteiro, mas representando uma unidade semântica e discursivamente unificada, formando uma cadeia textual que, em si mesma e, como um todo, é de natureza metafórica, estaríamos diante de um "nicho metafórico", discutido a seguir.

3.2. Nicho Metafórico

Na visão de Vereza (2006), a metáfora nova, ou seja, a metáfora criativa, ao ser utilizada, por meio de uma série de desdobramentos ou novos mapeamentos, textualmente coesivos, contribuiria para aumentar o grau de persuasividade e a força de um determinado texto. Essa contribuição se daria tanto no âmbito linguístico como no cognitivo e no pragmático.
A autora refere-se a essa série ou 'cadeia metafórica' como 'nicho metafórico', definindo o conceito da seguinte forma:

um grupo de expressões metafóricas, inter-relacionadas, que podem ser vistas como desdobramentos cognitivos e discursivos de uma proposição metafórica superordenada normalmente presente (ou inferida) no próprio co-texto. (VEREZA, 2007, p.496).

O termo nicho é apropriado pela autora a partir do domínio da ecologia. Entretanto, dada sua natureza metafórica neste contexto, a autora esclarece as noções que devem ser mapeadas do domínio-fonte (ecológico) para o domínio-alvo (metafórico-discursivo), quais sejam, inter-relacionamento, funcionamento e ajuste no todo.
À guisa de ilustração, propomos abaixo um exemplo de nicho metafórico, encontrado em um segmento de um texto de gênero argumentativo.

TEXTO I

Quase todo cineasta, confesse ou não, tem um complexo de Deus. Os que criam pequenos mundos e decidem o destino de pequenos personagens o têm. Os que criam grandes mundos e os povoam, batizam suas criaturas e dão a elas uma história costumam achar que não se trata de complexo, mas de fato objetivo. Entre esses, James Cameron é o deus dos deuses – por determinação própria e também porque é recordista aparentemente imbatível de bilheteria (1,8 bilhão de dólares por Titanic), e em Hollywood isso basta para autenticar a natureza divina. Cameron, porém, é um Deus de Velho Testamento, colérico e implacável, e ainda mais duro que o original, já que não quer saber de descansar no sétimo dia nem deixar que os outros descansem. Há quatro anos, ele comanda com raios e vaticínios – além da promessa de vida eterna nos créditos de um filme seu – uma equipe gigantesca, na missão de criar mais um mundo: o mundo luxuriante e vertiginosamente tridimensional de Avatar.
(Revista VEJA, edição 2143, ano 42, n. 50, 16 dez. 2009)

No exemplo anterior, percebemos que o nicho metafórico cria uma rede argumentativa por meio dos mapeamentos que vão sendo estabelecidos entre domínios diferentes, no caso acima, CINEASTA e DEUS. Dessa forma, uma analogia entre cineastas de uma forma geral, e James Cameron especificamente, e Deus é feita, por meio de palavras e expressões metafóricas que colaboram para a tessitura do texto e conferem sua unidade.
As expressões metafóricas criativas principais do texto seriam: CINEASTA É DEUS (ambos criam mundos e os povoam) e, mais especificamente no texto, JAMES CAMERON É DEUS DO VELHO TESTAMENTO (ambos seriam coléricos, implacáveis e duros). As outras expressões metafóricas do texto aparecem como desdobramentos das metáforas principais, formando uma cadeia semanticamente inter-relacionada que dá suporte à tese central, contribuindo, assim, para a argumentatividade do texto.
O mapeamento a seguir ilustrará nossa discussão.

MARCAS LINGUÍSTICAS

Domínio cineastaPapel em HollywoodColéricoDirige uma equipe com autoridadeCria AvatarDomínio DeusNatureza divinaColéricoComanda com raios e vaticíniosCria o mundo FONTE: ALVO:
Domínio cineasta
Papel em Hollywood
Colérico
Dirige uma equipe com autoridade
Cria Avatar
Domínio Deus
Natureza divina
Colérico
Comanda com raios e vaticínios
Cria o mundo











Poderíamos sugerir que a metáfora cognitiva subjacente 'cineasta é Deus' seria um caso especial de uma metáfora conceptual mais geral, qual seja, HOMEM É DEUS, que se reflete em expressões linguísticas como as que se seguem: (i) brincar de ser Deus; (ii) ele é um Deus; (iii) endeusar alguém; e (iv) a deusa do(a)...
Dentro da lógica metafórica criada no texto, a argumentação central/tese (Cameron é autoritário, "workaholic" e muito criativo/produtivo) não só é ilustrada como reforçada em seu poder de persuasão. As metáforas desempenham o papel retórico de persuadir o leitor a aceitar a tese que está sendo desenvolvida pelo autor. Nas palavras de Vereza (2007, p.502), "desenvolver argumentativamente essa tese por meio de metáforas evidencia, assim, a inseparabilidade entre cognição e pragmática".
Para finalizar, não obstante a inquestionável relevância do trabalho de Lakoff e Johnson (1980 [2002]), que elevou o estatuto da metáfora de simples ornamento da linguagem para um fenômeno cognitivo, estudos posteriores vêm demonstrando que as manifestações discursivas da metáfora, assim como seus aspectos cognitivos, são, igualmente, merecedores de maiores investigações que possam esclarecer a forma como a metáfora no pensamento e a metáfora na linguagem interagem entre si.
A nossa hipótese é a de que o nicho metafórico, por criar uma cadeia semântico-discursiva de base figurada, pode se valer da referenciação para estabelecer elos explicitamente coesivos ou inferenciais entre as diferentes camadas do texto. Dessa forma, a referenciação de natureza metafórica pode ser vista como um importante componente no desenvolvimento do argumento em um nicho metafórico.

Referenciação e metáfora

Em uma visão mais tradicional, a metáfora, como um elemento de coesão, pode ser tratada como um recurso textual que estabelece um determinado tipo de coesão lexical com um referente anterior, ou objeto previamente introduzido, em um processo de anáfora direta. Esse processo se dá, segundo Prince (apud KOCH, 2004) de uma forma ancorada, ou seja, quando o objeto é introduzido sob um outro já presente no cotexto ou no contexto sociocognitivo.
O uso da metáfora, na grande maioria dos casos, implica uma recategorização, que, de acordo com Koch e Elias poderia ser concebida como:

um tipo de refocalização da informação precedente através do aporte de novas predicações; funciona como uma forma híbrida de operação lexical dupla: trata-se de uma retomada anafórica com função predicativa e veiculadora de informação nova[...] sendo codificada por meio de expressões atributivas. (KOCH; ELIAS, 2006, apud RONCARATI, 2010, p.52).

De acordo com as categorias propostas por Roncarati, esse uso da metáfora seria classificado como "remissão por (re)categorização predicativa" (2010, p.147). No entanto, expressões linguísticas metafóricas podem concorrer para o processo de referenciação sem remeter, explicitamente, a algum objeto introduzido anteriormente, como em casos de anáforas indiretas, em que "não ocorre uma retomada de referentes, mas sim uma ativação de novos referentes", tendo, no entanto, "uma motivação ou ancoragem no universo textual" (MARCUSCHI, 2005, p.53). Na classificação de Roncarati (2010), esse seria um caso de "ativação ancorada por anáfora indireta e associativa", sendo essa última a introdução de um novo objeto de discurso a partir de algum tipo de relação meronímica com outros objetos presentes no contexto (RONCARATI, 2010, p.148).
Como já discutido anteriormente, em uma perspectiva não representacional de referenciação, essas diferentes formas de anáfora não se restringem a organizar o texto do ponto de vista referencial, mas desempenham um importante papel na orientação de pontos de vista. Como sugere Koch, após discorrer sobre diferentes tipos de anáfora:

As formas anafóricas aqui descritas encerram, na absoluta maioria dos casos, valor persuasivo, isto é, os rótulos (avaliativos), frequentemente metafóricos, mobilizados para construir os objetos-de-discurso, têm o poder de orientar o interlocutor para determinadas conclusões (KOCH, 2005, p.40).

Apresentamos, a seguir, uma breve análise que visa a ilustrar como essas diversas possibilidades de uso da metáfora na referenciação, ou no desenvolvimento de cadeias referenciais, adquirem importante papel na argumentatividade em nichos metafóricos.

TEXTO II

A Internet deixou de ser uma cidade tranquila, em que era possível passear sem medo desde que você evitasse determinados becos e ruas desconhecidas. Hoje os cibercriminosos conseguem inserir códigos maliciosos em páginas tão insuspeitas quanto os sites da ONU ou do governo britânico. Os antigos esculhambadores de sites se transformaram em organizações criminosas virtuais espalhadas por todos os continentes[...] Nessa cidade de caminhos tortuosos..., os cibercriminosos no Brasil estão livres para fabricar todo o tipo de armamento e apontá-lo para suas vítimas, mas só poderão ser punidos depois que uma delas entregar a carteira, ainda que virtualmente.
"Eu costumo pensar que a Internet é como as ruas de uma cidade", diz Dave Cole, desenvolvedor sênior de produtos da Norton. "Existem as avenidas iluminadas em que podemos nos sentir seguros, como a Microsoft ou o Gmail. E os becos, escuros e perigosos, que são os sites menores. Visitar essas ruelas sem luz é uma escolha sua."
(Revista Galileu, n. 221, p. 53-56, dez. 2009)



A argumentação, desenvolvida no texto para promover a tese central de que a Internet se tornou um território lucrativo para criminosos, está construída em cima de dois domínios: um domínio temático, a Internet, ancorado, numa perspectiva metafórica, em outro domínio, de caráter auxiliar, uma cidade. Por meio da referenciação textual (linguisticamente explícita) e inferencial, o autor estabelece mapeamentos nesse nicho metafórico, tecendo a analogia entre os dois domínios.
Percebe-se, claramente, que a seleção de palavras é motivada pela associação que o autor criou entre esses dois eixos, possibilitando a interação entre os itens lexicais provenientes de cada um. A tese é metaforicamente construída, na medida em que o autor recorre à analogia entre a Internet e uma cidade para promovê-la. Assim, o texto é iniciado por uma introdução referencial (internet), que é imediatamente recategorizada por uma predicação metafórica (uma remissão por recategorização predicativa): a internet. Cabe ressaltar que a recategorização encontra-se tanto no nível textual (cidade) como no inferencial, uma vez que a premissa que subjaz à oração (6)

(6) A Internet deixou de ser uma cidade tranquila

é a de que ela é uma cidade. Dessa forma, as anáforas associativas becos e ruas, termos provenientes do domínio-fonte cidade, por serem linguística e sociocognitivamente compartilhados, constituem mapeamentos que reforçam a recategorização metafórica da Internet. No entanto, esse processo não traz apenas uma "nova forma de pensar a internet", mas, pelo fato das formas referenciais becos e desconhecidas implicarem conotações de periculosidade, já conferem um novo atributo ao objeto: uma cidade potencialmente perigosa. Em apenas uma oração, constata-se a formação do objeto de discurso internet em direção à persuasão, que vai se solidificando por meio da figuratividade textual.
A introdução referencial dos cibercriminosos já é, portanto, inserida em um enquadre cognitiva e textualmente construído: a cidade internet não é mais tranquila: becos e ruas desconhecidas escondem criminosos que atacam os cidadãos (usuários da internet), suas vítimas, com todo o tipo de armamento (sabendo que esse novo objeto, uma anáfora indireta, insere-se como elemento do domínio-fonte, o mapeamento é cognitivamente inferido: no domínio-alvo, ele toma, inferencialmente, a forma de invasões de hackers).
O autor prossegue com a descrição da cidade-internet, afirmando que, além das avenidas iluminadas (sites confiáveis, no domínio-alvo), há também as ruelas sem luz (sites menores, no domínio-alvo). Nesse caso, o mapeamento é diretamente estabelecido, pois, no início deste parágrafo, a analogia internet-cidade aparece na forma de símile (7):

(7) Costumo pensar que a Internet é como uma cidade

ou seja, uma comparação explícita, talvez sem a força cognitiva da oração de abertura em (6), que é colocada, na superfície, como uma predicação factual. O leitor que não soubesse o que é a internet, poderia achar que esse fosse o nome de uma cidade real. Entretanto, o autor conta, certamente, com o conhecimento amplamente compartilhado para, através de estratégias de referenciação, realizar o jogo metafórico que conduz a sua argumentação.
Vemos, dessa forma, o nicho metafórico sendo utilizado como um recurso cognitivo-discursivo, na medida em que os desdobramentos vão tecendo a argumentação, criando redes metafóricas entre o domínio-fonte (cidade) e o domínio-alvo (internet), fazendo com que o segundo seja compreendido em termos do primeiro na orientação proposta pelo autor. Esse processo, em que o ponto de vista é metaforicamente desenvolvido em um texto, fundamenta-se na propriedade da metáfora de iluminar determinados aspectos do domínio-fonte e esconder outros (LAKOFF; JOHNSON, 1980 [2002]). Ou seja, o enquadre CIDADE possui, sociocognitivamente, uma afinidade de atributos, mas só alguns irão ser selecionados na condução do fio argumentativo.
Além disso, ao utilizar a expressão os antigos esculhambadores de sites para se referir aos cibercriminosos, em um processo de recategorização, o autor emite um julgamento de valor, o que permite que o leitor tenha acesso as suas opiniões, crenças e atitudes sobre o referente. O mesmo acontece com caminhos tortuosos e ruelas sem luz, recategorizações de caráter claramente avaliativo que contribuem para consolidar os mapeamentos, construtores dos objetos-de-discurso, e, ao mesmo tempo, fortalecer a argumentação proposta (uma crítica aos cibercriminosos e um alerta, potencialmente de forte efeito, para os leitores alvos-usuários da internet, que, muito provavelmente, compartilham conhecimentos do mundo sobre cidades e violência urbana).
Dessa forma, a força argumentativa do texto reside, em grande parte, no fato de o nicho metafórico promover, por meio dos recursos de referenciação, a conexão entre eixos, a princípio, díspares, possibilitando ao leitor a participação na construção de significados e o acesso às visões do autor que, de outra forma, talvez não tivessem um poder de persuasão tão claro.
Na medida em que um texto deve ser concebido não como uma unidade gramatical, mas sim como uma unidade semântica (HALLIDAY; HASAN, 1976), podemos perceber a contribuição das redes metafóricas do nicho que promovem a coesão e a coerência semânticas necessárias para garantir sua textualidade. Em outras palavras, o nicho metafórico proporciona ao texto as relações de sentido que o definem como texto em primeiro lugar. No contexto/cotexto do nicho metafórico, a construção dos objetos de discurso se dá pelos mapeamentos cognitivos viabilizados pelas estratégias de referenciação. Assim, como em inúmeros casos, se não em todos, no âmbito da linguagem em uso, a (socio)cognição se mostra indissociável de aspectos textuais, e vice-versa. No nicho metafórico essa inseparabilidade entre texto e (socio)cognição parece se mostrar ainda mais nítida, pelo fato da referenciação se dar, primordialmente, por meio de mapeamentos, e, ao mesmo tempo, por essas analogias serem textual e cognitivamente construídas por processos de referenciação.
Além disso, como argumentado em Vereza (2007), o nicho metafórico explicita, também, a relação entre instâncias cognitivas mais estáveis, como frames e metáforas conceptuais, e as mais (con)textualmente dependentes (ou locais) e, portanto, mais instáveis, as quais, entre outros fatores, criam objetos de discurso. A metaforização discursiva desenvolvida cognitiva e linguisticamente no texto acima se articula, por exemplo, à metáfora conceptual CIDADE É REDE (que tem como marcas linguísticas expressões como rede urbana, malha urbana e suas "sub-redes": rede de transporte, rede de esgoto, rede elétrica, etc.). Essa metáfora, tão central para o desenvolvimento do nicho acima, pode ser assim compreendida:
Com o desenvolvimento das redes materiais, quer sejam de transporte, de eletricidade, água, saneamento e telecomunicações, passou-se a ter uma maior consciência da realidade reticular que sustenta a vivência social. Contudo, de um modo quase paradoxal, essas redes, graças ao desenvolvimento tecnológico e consequente eficácia, passaram a ganhar transparência, ou seja, elas são fatores determinantes de organização social e de bem estar. [...] Este processo é valido, quer em nível das redes materiais, ou seja, das suas infra-estruturas, quer ao nível das redes imateriais como os fluxos econômicos e culturais. A cidade moderna foi se tornando, de uma forma cada vez mais complexa, uma rede de redes. (SILVA, 2003, p. 59).

A metáfora como recurso de referenciação, portanto, gera efeitos de sentido que reforçam pontos de vista na argumentação e conduzem encaminhamentos discursivos criando, assim, objetos de discurso. Esses, por sua vez, apoiam-se não em objetos do mundo, próprios de uma realidade independente do sujeito, aos quais podemos fazer "referência", mas em estabilidades ou perspectivações sociocognitivamente compartilhadas, como no caso de metáforas conceptuais.

Considerações Finais

A discussão e a breve análise aqui propostas objetivaram demonstrar a forma como a metáfora, aliada ao processo de referenciação, contribui para a construção de sentidos, de um modo geral, e, mais especificamente, para a argumentatividade de um texto.
Primeiramente, o nicho metafórico se configura por meio de redes lexicais que agem como mapeamentos figurativos, atuando como recursos coesivos, ao estabelecer ligações ou laços entre seus diferentes segmentos, contribuindo para a articulação de suas partes. Dessa forma, o nicho confere ao texto o estatuto de macrounidade semântica, garantindo a progressão discursiva.
Além disso, no nicho metafórico, os mapeamentos são responsáveis, em grande parte, pelos processos de referenciação. Anáforas diretas e/ou indiretas e recategorizações, efetivadas por meio da metáfora e de seus desdobramentos, seriam dispositivos explorados pelo autor na construção de objetos de discurso, contribuindo, assim, para o desenvolvimento argumentativo. As redes semântica e discursivamente tecidas pela metaforização direcionam as possíveis leituras para o ponto de vista a ser promovido pela argumentação. A teia argumentativa pode se tornar, potencialmente, ainda mais eficiente ao ser constituída pelos fios da metáfora, já que essa cria molduras cognitivas sustentadas pela aparente "lógica" resultante dos mapeamentos.
Finalmente, a referenciação característica dos nichos metafóricos torna ainda mais nítida a relação entre as estabilidades sociocognitivas e as instabilidades características do discurso em pleno acontecimento. As metáforas e seus desdobramentos cognitivos e discursivos, a princípio "criativos", ou inéditos, não promoveriam os efeitos de sentidos que promovem se não fossem produzidas pelo "sujeito envolvido social e culturalmente ancorado" (MONDADA; DUBOIS, 1993, p.49) que compartilha, cognitivamente, estabilidades linguísticas e culturais, como visões de mundo, frames e metáforas conceituais, entre outras.
O estudo sistemático da metáfora no discurso é uma área de estudos recente, mas certamente profícua, tendo muito a se beneficiar de uma abordagem interdisciplinar. Neste breve estudo, pudemos constatar como uma articulação entre a Linguística Textual e a Linguística Cognitiva se apresenta como um campo bastante fértil para investigar essa área teórica e analiticamente tão promissora.








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