Metáfora óptica e crítica à ciência nas autoras feministas: um ensaio

May 29, 2017 | Autor: Felipe Demetri | Categoria: Feminism, Postcolonial Feminism, Feminist Philosophy of Science
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METÁFORA ÓPTICA E CRÍTICA À CIÊNCIA NAS AUTORAS FEMINISTAS: UM ENSAIO

Felipe D. Demetri

Resumo: A partir da provocação de Donna Haraway, que nos convoca a mudar a metáfora óptica para produzir uma ciência mais objetiva, traço um breve percurso histórico do nascimento de um certo tipo de olhar científico, proposto e levado a cabo pelos grandes astrônomos da Renascença, enquanto ponto nodal de desenvolvimento da ciência e filosofia moderna. Tal visão demarcará as exigências de objetividade perante as nascentes ciências sociais. Depois, percorro as críticas feministas a esse modelo, notadamente a partir da própria Haraway, e outras autoras feministas que disputam a noção de universal, como Anzaldua, Rich e Butler. Por fim, há uma breve discussão acerca da "novidade" das pesquisas feministas.
Palavras-chave: Feminismo; Ciência; Metáfora óptica; Objetividade.

Introdução

A águia é um animal, o águia é alguém de visão aguçada. A cabeça é a parte do corpo, o cabeça é o líder. As autoras feministas, desde o século passado, vem progressivamente alargando os campos de batalha: direitos sociais, reprodutivos, trabalhistas, visibilidade, emprego, salários iguais, dentre outros. Mas existem campos de batalhas cujos atores e inimigos não são tão claros de pronto, e onde a luta acaba tomando dimensões simbólicas. É o caso da ciência. Com efeito, o discurso científico, aquele que distribui legitimidades, institui verdades e renega o que é falso, tem sua emergência em um determinado momento histórico, cumprindo funções específicas que se atualizam a cada nova exigência. A ciência ocupa o lugar deixado pelo vácuo da sacralidade no campo das relações simbólicas, e progressivamente age numa dinâmica de inclusão de determinados saberes(legitimados) e exclusão de outros. Essa cisão é um requisito interna corporis do movimento científico, que obrigatoriamente deve excluir alguns outros saberes para poder afirmar-se como detentor de uma verdade. Meu enfoque de problematização, nestas páginas que seguem, é opor dois modelos (metafóricos) de aparelho óptico, a saber, o discurso científico da modernidade, cuja visão se alarga com o desenvolvimento das tecnologias e a emergência do modelo óptico que permitem observar nosso universo próximo como impulsionador e metaforizador de um determinado tipo de ciência, e as críticas a esses modelos a partir de autoras feministas tomando como ponto de análise justamente essas mesmas metáforas ópticas e visuais. A lente é o objeto; o lente, segundo a gramática, é o professor. O campo de batalha aqui é a disputa pela metáfora.

O olho de Deus

Um mundo infinito aguardando ser descoberto. Do Renascimento à Modernidade, a crise na filosofia e a novas exigências das ciências fizeram emergir um novo tipo de saber. A ideia de semelhança permite que tudo pode ser comparável, metaforizado; conceitos são intercambiáveis a partir de ciências diferentes, da astronomia para a medicina, da física para a filosofia. Os fenômenos naturais podem ser geometrizados, passíveis de quantificação. O conhecimento racional transformará a realidade por meio das revoluções das tecnologias. A filosofia moderna é marcada pelo racionalismo, reducionismo, semelhança, num contexto que se relaciona com o a passagem da ideia de Cosmos para o Universo Infinito. O desenvolvimento das tecnologias de observação expandiu o olhar científico, descentralizando a ciência herdeira do naturalismo socrático dos seus pontos fixos para radicalmente inverter a lógica, e tornar o observador irrepresentável. Como isso se sucedeu?
Para Boaventura de Souza Santos, o modelo do "Paradigma Dominante", a racionalidade da ciência moderna, começou a se constituir a partir do século XVI, período caracterizado por revoluções científicas. Esse modelo deverá ter o status de "modelo global de racionalidade", demarcando fronteiras entre o científico e o não-científico. "Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas" (SANTOS, 2006, p. 21). Os princípios que o regem são, em grande parte, tributários das teorias dos grandes observadores do céu, como Copérnico, Galileu, Newton e Kepler.
A emergência do modelo óptico e visual kepleriano, nesse sentido, e sua dispersão na filosofia moderna, quebra a tradição contemplativa e finita, própria do medievo. Na tradição aristotélica, a oposição entre lux e lumen servia para demarcar uma distância incomensurável entre o conhecimento do homem e o conhecimento de Deus; isto é, uma fenda intransponível entre a realidade das coisas (lux) e a reflexão resultante de sua apreensão (lumen). Kepler se distancia dessa noção propondo um novo modelo onde o eixo central passa a ser a própria luz, entendida agora como um fluxo imaterial, flexível, passível de ser representada através do modelo geométrico. Além disso, para Kepler, ao contrário do modelo medieval, em que o homem é incapaz de apreender o conhecimento divino, sendo a ele facultado apenas uma reflexão (errônea), o homem é perfeitamente capaz de apreender e compreender os desígnios divinos. O olho kepleriano, imerso no mundo representável geometricamente, dispondo de plenas capacidades de apreensão do real, é o resultado da concepção de olho como aparelho óptico. O olho, entendido agora como uma realidade ao mesmo tempo física e geométrica, é a via de acesso à arquitetura do mundo tal qual projetado pelo grande Criador. (CHAUÍ, , 1999, p. 56) Se o homem agora pode observar o mundo como Deus assim o estabeleceu, não é de todo errado afirmar que o olho kepleriano é, também o olho de Deus. Ainda nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico que permitiu os usos das lentes, como o telescópio e o microscópio, afasta ainda mais as noções antigas a respeito da visão e da representação. As imagens distantes, tanto para cima, como no espaço infinito, como para dentro, nas microestruturas, são apreendidas por esse olho móvel e flexível, sedimentando a noção kepleriana e, doravante, moderna, que "o movimento é mais importante que o ponto de vista" (CHAUÍ, 1999, p. 51. Grifo nosso).
Com efeito, as crises políticas, eclesiásticas e científicas, características centrais do que se denominou como Renascimento, convocaram os pensadores a reposicionar o lugar do saber. Para Koyré, trata-se de uma mudança profunda, de quadro de referência de pensamento, onde uma certa cosmologia de mundo finito e ordenado é progressivamente substituída pela ideia de infinitude do universo, percurso realizado em geral pelos astrônomos que, com suas lunetas e telescópios, realizaram essa revolução (KOYRÉ, 2006, p. 6). Esse período, argumenta Marilena Chauí (1984, p. 66), é caracterizado, entre outras facetas, pela noção de conhecimento ativo, em oposição à contemplação; pelo naturalismo, em oposição ao "divinismo"; além da defesa das hipóteses lógico-racionais como a via régia do conhecimento dos fenômenos naturais. Deus, pelo menos na aparência, estaria deixando de ser o fiador do conhecimento. Agora o próprio homem é responsável pelo ato de conhecer. É por meio destas mudanças filosóficas e cosmológicas que a filosofia moderna assentará suas bases, a partir do Renascimento. O universo é infinito; o espaço, geometrizado; a física é mecânica.
Para Boaventura de Souza Santos, a mudança epistemológica é, essencialmente, uma mudança de visão do mundo e da vida (SANTOS, 2005, p. 25). Essa visão, no entanto, não diz respeito apenas à experiência sensorial imediata; aliás, era justamente contra esse tipo de visão que se insurgia a filosofia renascentista. Essa visão aludida, intimamente ligada ao senso comum, era ilusória e errônea; dizer que o homem é capaz de apreender o mundo tal qual se apresenta não significa ser levado imediatamente pelos estímulos sensórios, pois seria preciso, como Descartes se esforçaria em demonstrar pelo seu famoso reductio ad absurdum, se afastar da possibilidade de nossos sentidos nos conduzirem ao erro. É preciso, então, algum tipo de método privilegiado que supere as ilusões e as reflexões errôneas (ANDRADE, 2012, p. 17). Promulga-se, então, a divisão da mente e do corpo, do homem e da natureza; enfim, um binarismo que explicita uma certa ascese que entende o corpo, o natural, o terreno, enfim, como a morada do falso. Para superar as vicissitudes do corpo, aposta-se na certeza da "experiência ordenada" (SANTOS, 2005, p. 27). É por esta via que a matemática oferece subsídios importantes para as ciências da época, dispondo de um instrumentário lógico e representativo do mundo que reduz as complexidades às suas origens mais básicas e inteligíveis; para conhecer, é preciso quantificar e reduzir. A natureza, que na sua aparência mais exterior parece ser incompreensível, seria regida, como uma marionete e seus fios invisíveis, por leis simples, dedutíveis, quantificáveis, passíveis de serem descobertas; por trás dos fenômenos mais complexos podemos encontrar suas regularidades e repetições; podemos, enfim, prever os acontecimentos naturais, e então nos tornaremos senhores dominadores da natureza.
Boaventura de Souza Santos argumenta que a partir deste movimento científico da Renascença, aliado com as luzes das revoluções burguesas, emergiram as ciências sociais do século XIX, no positivismo oitocentista. Todas as ciências, para assim se denominarem, devem se adequar aos requisitos daquela verdade – a saber, a lógica formal da matemática e o empiricismo das ciências naturais –, e assim nascem as ciências sociais que, em essência, deveriam ser empíricas e mecanicistas. É nesse contexto que surgem os conhecidos experimentos de "física social", o exemplo mais notável da tentativa de reduzir os fenômenos sociais às regularidades das leis físicas. Também nesse período Durkheim propõe seu modelo de sociologia, que reduz os fatos sociais às suas dimensões observáveis (SANTOS, 2005, p. 35). Com efeito, em maior ou menor medida, a maioria das disciplinas acadêmicas e seus campos de estudos originam-se ou consagram-se a partir destes pressupostos apresentados, no seio do paradigma científico tributário do modelo mecanicista e objetivista. É no século XX que, com maior força, começam a surgir autoras e autores que questionam o edifício científico moderno, denunciando as limitações que tal modelo impôs. Algumas críticas queriam tão somente corrigir o percurso científico, desviado em algum momento; outras procuraram aboli-lo. Variando entre essas intensidades, as críticas feministas ora procuram uma ciência efetiva, longe de possíveis vieses, ora procuram propor modelos alternativos de saber. Percorro, a partir da proposta de Donna Haraway, alguns caminhos para compreender a crítica que empreende à objetividade científica, com inferências explicativas de outras autoras feministas que, importante frisar, podem ter marcos e objetivos teóricos bem distintos.

A crítica feminista

Para Haraway, discutir a objetividade, requisito fundamental das ciências tradicionais, apresenta um problema com soluções radicais e, em geral, excludentes. A objetividade traduz-se, em termos científicos modernos, na ideia de redutibilidade. Como já vimos, é possível enxergar um tecido orgânico até suas estruturas mais fundamentais, as células, e daí extrair leis, relações, funcionamentos. Essa visão chega a nós com a permanência de pressupostos científicos que permanecem válidos/validados e que, em geral, servem para excluir saberes que não são considerados científicos, cenário no qual as teorias feministas tendem a ser alvo fácil dos críticos. Percorrendo a indagação de Haraway, o problema se apresenta da seguinte maneira: de um lado, há o que ela chama de construcionismo social, perspectiva que teria demonstrado como a ciência é mero jogo de poder e ocultação; do outro, há o recurso a um certo empiricismo feminista, que teria como objetivo descobrir efetivamente verdades livres de possíveis vieses (androcêntricos, em especial). Se de um lado denuncia-se o caráter comprometido com determinados regimes de verdade e exclusão, por outro ainda precisar-se-ia de instrumentos capazes de atestar algum tipo de verdade para satisfazer as demandas e exigências da militância e da teoria feminista. Para ela, então, a via de enfrentamento feminista na seara da ciência depende necessariamente de mudar a metáfora. (HARAWAY, 1995, p. 17).
Isso é mudar como se vê, como se enxerga?, perguntariam alguns. A visão, com razão, soa mal nos ouvidos feministas. É imediatamente remetida à objetividade científica, branca, masculina, elitizada. Este processo sensorial que captura o mundo está inscrito na nossa sociedade científica, de forma dissimulada ou não, como a via privilegiada de conhecimento dos fenômenos. Como vimos, o notável desenvolvimento da astronomia aumentou as exigências sobre as outras ciências, que tomaram de empréstimo seus modelos aplicados e, mais importante, o olhar empreendido. O problema, como indica Haraway, não reside exatamente na visão, mas nas metáforas que se casaram com determinados regimes de verdades que fincaram o poder e a dominação branca e masculina contra outros saberes. A questão seria, então, pensar o instrumento sensorial das mulheres elas mesmas; ou seja, tentar evitar o que se chama de visão geral sobre os fenômenos, que tende a desconsiderar questões políticas importantes, para apostar na localização, na possibilidade de verdade resultante de cada substrato sensorial e situacional de mulheres em posições diferentes, posições essas que interferem no próprio funcionamento deste aparelho sensorial. O radical uso dessa "visão masculina" levou a feitos extraordinários e perversos: é a mesma lógica que permite pensar um aparelho de ressonância magnética e, ao mesmo tempo, táticas de controle calcadas em câmeras e vigilância ostensiva do cidadão comum (idem, p. 19). Podemos tomar de empréstimo, da literatura, duas personagens que representam essa visão: o olho de Sauron, na novela fantástica de Tolkien, e o Grande Irmão, no romance distópico de Orwell.
A proposta de Haraway é, em alguma medida, poder dar um outro uso metafórico para a visão, evitando cair na armadilha de ser inocente ao relação a seus usos até agora. É a visão como específica ao ser vivo, e não uma visão transcendente. "A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva" (idem, p. 21). A aposta de Haraway passa pela ressignificação da objetividade, des-metaforizando para re-metaforizar: sair da visão abrangente, infinita, que nos aprisionou como regime dominante de ciência, e propor uma objetividade limitada, localizada, restrita aos saberes locais. Não há aqui intenção de recondução à "ciência propriamente dita"; talvez funcione mais como um requisito contingente para fundamentar algum tipo de investigação local. Trata-se de matizar a visão com as vicissitudes da carne, da cor, das limitações. Haraway parece sugerir que o modo como se constitui a divisão corpo/mente, no seio do edifício científico moderno, compõem-se de narrativas alegóricas que produziram uma forma específica de ver o mundo; nesse sentido, o modo como os detalhados mapas de guerra são constituídos, captados por meio de câmaras e satélites, não são descrições passivas do mundo, mas produções ativas; em outras palavras, essas representações também são criações, produtoras de novas narrativas, derivadas de uma forma muito específica de ver o mundo que se constituiu a partir do advento do cartesianismo e seu casamento com as ciências da astronomia (idem p. 22).
Para Haraway, a visão do subjugado oferece pistas para poder constituir o que ela chama de visões mais objetivas. Entretanto tal uso não deve operar de forma acrítica. O saber subjugado, poderíamos dizer o saber localizado, ele também pode não ser "inocente", por vezes resistindo justamente por não questionar o núcleo duro do pensamento dominante; isto é, ele pode também estar comprometido com a manutenção de determinados regimes de poder e de saber. Talvez, como veremos mais adiante, quem melhor aponte essa relação é Gloria Anzaldua (1999) ao descrever as relações conflituosas e contraditórias sobre quem vive na fronteira geográfica entre EUA e México, habitando um terreno híbrido que conjuga, também, epistemes contraditórias e distintas visões de mundo. "Sujeição não é base para uma ontologia; pode ser uma pista visual" (HARAWAY, 1995, p. 26). A ciência e seu Olho de Deus, ciclope, é ela própria uma contradição em termos; isto é, a objetividade só é possível com algum nível de parcialidade. A pretensão científica moderna, proclamando a visão/o olho que tudo vê, é uma proposta, segundo Haraway, essencialmente irracional e anti-científica, tomando uma única visão como verdadeira: o seu próprio reflexo. É por isso que o Grande Olho é incorpóreo e móvel, assim como Kepler propõe, pois ele deve ser suficientemente flexível para capturar todos os objetos que deve poder enxergar. Isso, em contrapartida, faz com que ele seja inexato, auto-referenciado. Para atingir essa outra pretensão de objetividade que Haraway advoga é preciso encaixar, no seio dessa metáfora, a noção de posição, pois não existe relação de objetividade sem considerar a posição de quem olha (HARAWAY, 1995, p. 27). Isso não é necessariamente uma novidade em termos de debate sobre a ciência, mas, como diz Haraway, não é preciso começar do nada.
"Nos ataques politicamente engajados feitos a vários empiricismos, reducionismos ou outras versões da autoridade científica, a questão não deveria ser relativismo e sim posição" (HARAWAY, 1995, p.30). Mas que posição? Para Haraway, quando falamos de feminismos, a questão deve começar no próprio corpo. Não devemos cair na tentação, própria da modernidade científica, de reificar o corpo a partir de uma ideia da mulher ontológica, mas sim se deter nas inúmeras inflexões e próteses que esse caminho pode tomar; como os estudos de gênero formam um corpo "estruturado e estruturante", devemos pensar justamente em termos de processo a partir da localização deste corpo, explorando territórios múltiplos
Podemos pensar, aqui, na contribuição de três feministas diferentes, com marcos teóricos distintos, mas que problematizam, por vias excêntricas, a questão da localização desse corpo, desse aparelho sensorial. Adrienne Rich (2002) defende uma luta a partir da responsabilização. O localização começaria não num continente ou país, mas pelo que há de mais próximo – o próprio corpo. E o corpo é passível de ser explorado a partir de teorizações prévias, como estudos sobre sexualidade feminina, aborto, prostituição, heterossexualidade compulsória. Todos esses assuntos lidam mais ou menos diretamente com esse corpo implicado numa trama de afetos e investimentos políticos. Se os estudos marxistas – que influenciaram vários campos do feminismo – informam que é preciso começar a partir do que é material, é buscando a materialidade do corpo da mulher que se reivindica uma autoridade para falar sobre a experiência de ser mulher. Esse movimento é uma insurgência contra a "abstração arrogante e indesejada" (RICH, 2002, p.18). Talvez aqui Rich se refira à ciência, ao patriarcado, à própria linguagem, mas isso não é exatamente importante, porque todos os campos são campos de batalha. Mesmo quando falamos "o corpo" não podemos cair na tentação de buscar generalizações; isto é, mesmo estudando genericamente, por exemplo, a questão do aborto numa determinada população, isso nunca esgotará a miríade de experiências e diferentes atravessamentos que se interpõem na vida daquela população estudada, e quem dirá então em outro país, outro continente. É presunçoso, senão violento, reforçar conclusões genéricas que neutralizam particularidades de outras mulheres, povos, raças, etnias. A política de localização, que Adrienne Rich sugere, diz que seremos invariavelmente tratados a partir de nossa superfície corpórea – por exemplo, eu, homem branco, desde nascença fui tratado de acordo com essa realidade – e que isso define, em alguma medida, a permissão (ou negação) de ocupar determinados lugares. (idem, p. 20).
Lugares geográficos. Com Anzaldua entendemos um pouco melhor o que significa a interseccionalidade, isto é, como é possível complexificar os estudos feministas sobre variadas dimensões de poder. Sua reflexão parte de um local muito específico: la fronteira/borderlands entre México e EUA. Além de ser uma linha que divide um lá e um cá, a fronteira também é em si um lugar de contradições, uma ferida aberta que sangra (ANZALDUA, 1999, p. 25). São contradições exploradas a partir de mundos que se chocam: o primeiro e o terceiro mundo, a cultura branca, a cultura mexicana, enfim, a cultura mestiza. Quem vive na fronteira acaba correspondendo a uma cultura específica, quase híbrida, intersticial. A mulher mexicana não está segura no seu país de origem, mas também não estará nos Estados Unidos após cruzar a fronteira. Fazendo grandes sacrifícios, como vender suas posses mais estimadas, a mexicana paga cerca de quatro mil dólares para um atravessador que garante a viagem. Mas ele pode estuprá-la, abusá-la. Ela não está segura, em nenhum lugar. Feita a passagem, encontra-se segregada por uma carga histórica e cultural de racismo e xenofobia. Mais ainda, ao mesmo tempo que se submeterá a empregos precários, estará também preocupada com sua família no México. Essa mulher tem poucas condições de ter uma vida saudável (ANZALDUA, 1999, p. 34). Está vulnerável nos EUA e em todos os lugares que conhece, porque vive num emaranhado de jogos de força, aqui e lá, cá e acolá. Questionando sua própria cultura e a cultura branca dominante, Anzaldua nos localiza nessa mulher (em alguma medida ela mesma) que transita em mundos diversos, mas que já não pertence propriamente a nenhum deles (ANZALDUA, 1999, p. 42). A fronteira é lugar geograficamente localizado, e também podemos tomá-la como metáfora para entender que esse corpo viajante entre espaços é suscetível a várias dimensões diferentes, sobrepostas e/ou horizontais, de jogos políticos de força. Aqui capturamos um pouco da pista visual que Haraway faz referência, localizando a objetividade.
Judith Butler se posiciona em sentido semelhante. As teorias parecem sempre postular pré-condições metafísicas implícitas, um núcleo duro, mesmo quando isso busca ser evitado por teorias mais "contestadoras". Sendo uma teoria constituída dessas bases ditas sólidas, como condição interna corporis para poder figurar na posição de ciência, não seriam elas mesmas constituídas mediante uma exclusão, cuja suposição é em si contestável? O quê ou quem se exclui? Fazer um apelo a determinados fundamentos é, segundo Butler, insistir num núcleo de inquestionabilidade. Ora, não deveria ser a produção de conhecimento, ela mesma, contestadora? A partir dessa ideia é possível compreender melhor a crítica de Butler ao Universal. Para Butler, podemos observar essa noção na guerra do Iraque (1990, mas talvez o mesmo valeria para as atuais) onde o árabe é entendido como "fora" do plano universalizante, devendo ser trazido à força para a dinâmica inclusiva/excludente do Ocidente. Butler quer apresentar o Universal não como algo estático, mas dinâmico, campo de disputa de batalha permanente. Ela e Haraway, não à toa, utilizam o militarismo como metáfora para explicitar a visão do ocidente, tributária do movimento científico moderno. A guerra do Iraque, com suas meticulosas previsões, mapas e saberes produzidos sobre aquele território alienígena, reforça a posição do eu/sujeito universal e masculinizado do Ocidente. A crítica do sujeito, a partir das teorias feministas, é a recusa de entendê-lo como algo dado de antemão a partir de uma substância universal, buscando vias de interrogar sua construção/produção (localizada). Daí a necessidade de percorrer outras possibilidades de constituição subjetiva, movimento no sentido de colocar em cheque as universalizações ocidentais, ou de colocá-las em permanente disputa política (BUTLER, 1998, p. 17).
Como a disputa pelo Universal se traduz na prática? Em termos de luta feminista, atuar politicamente exige que se opere dentro dos termos identitários das "mulheres". Mas Butler descreve que a necessidade de evocar a "mulher" como sujeita de direitos exige uma conciliação com a discussão interna acerca de quem se abarca com tal denominação, pois toda luta identitária é uma luta exclusiva. No contexto da década de 1980 nos EUA, as feministas negras apontaram que aquela mulher do feminismo tradicional parecia descrever apenas mulheres brancas, ricas, com ensino superior e heterossexuais. Enquanto o corpus teórico feminista foi produzido apenas por feministas brancas e de classe média, é seguro dizer que elas não eram capazes de enxergar visões outras acerca das opressões e suas multidimensionalidades. Daí o que ela chama de "fundamentos contingentes": o feminismo como teoria e práxis que não se assentam em bases sólidas, mas sim corpos fugazes. Condição essencial para qualquer luta politicamente engajada seria tomar, então, essa contingência como condição de possibilidade de uma crítica eficiente aos fundamentos do Masculino e da Ciência. O "fundamento infundado" da teoria feminista são os próprios rachas acerca de qual mulher se fala (BUTLER, 1998, p. 24).

Pistas para a produção científica

Qual seria a solução para a produção científica feminista, ou comprometida com o feminismo? Como não repetir os erros do passados? Como evitar falar a partir da visão especular masculina que dominou/domina a ciência, ou melhor, que criou a ciência? Harding observa que as críticas feministas, inicialmente, demonstraram uma ciência em geral mal conduzida, e nesse sentido o objetivo não seria a substituição de um gênero na ciência por outro, isto é, da ciência fundamentada na masculinidade hegemônica para uma "ciência feminista", mas sim uma ciência de gênero neutro. Para tal intento, a epistemologia empirista cumpre o papel de uma "ferramenta" para contribuir com uma ciência não-androcêntrica. Dentro dos próprios pressupostos dessa ciência, esse tipo de viés é completamente inaceitável. A aplicação da ciência tradicional, então, centrada a partir da perspectiva do homem hétero, branco, cis, põe em suspeição sua utilização por parte das teóricas feministas, sob o risco de reproduzir os mesmos padrões opressivos já denunciados. O pensamento feminista demonstra que não existe o "homem" genérico e universal, assim como também não há a "mulher" universal – o que existem são múltiplos corpos, de diferentes classes, raças, etnias. (HARDING, 1988, p. 22; HARDING, 1993, p. 8) As críticas feministas iniciais atacavam visões distorcidas e teorias incompletas, com uma finalidade, mesmo que implícita, de mostrar uma realidade mais apurada. Aqui fica mais claro, então, a advertência que Sandra Harding faz em relação a "visão patriarcal" da ciência: não exatamente o "conteúdo" do conhecimento produzido é patriarcal (mas também pode sê-lo); também a própria forma de produzir ciência está cada vez mais sendo entendida como patriarcal. A relação de conhecimento perante o objeto resguarda em si uma dominação implícita deste. (HARDING, 1993, p. 10)
Harding defende que as categorias feministas são instáveis, em alguma consonância com os fundamentos contingentes de Butler; mas isso não deve ser visto como um empecilho, e sim como recurso válido para a pesquisa. Essa visão está presente nas características que Harding encontra nas pesquisas feministas mais relevantes. São elas:
1) A experiência das mulheres: Para a filosofia da ciência tradicional, a origem dos problemas de pesquisa é irrelevante, mas para os estudos feministas isto é fundamental. A ciência tradicional construída por homens e brancos corresponde a uma visão parcial dos fenômenos, de tal forma que é importante, para os estudos feministas, partir da experiência das mulheres como "sujeitas do conhecimento"; 2) Estar a favor das mulheres: A partir dos problemas da perspectiva das mulheres, os resultados das pesquisas devem necessariamente atender aos problemas das mulheres, no sentido de oferecer explicações acerca de suas realidades. A ciência tradicional, por outro lado, tem estado "em favor dos homens"; 3) Situar o/a pesquisador/a no mesmo plano crítico que o objeto explícito de estudo: esse enfoque começa a se delinear a respeito dos problemas e das experiências das próprias mulheres, num movimento que Harding chama de "de baixo para cima". Uma forma de pesquisa diferente da tradicional exige que não apenas que o objeto a ser investigado esteja submetido a um exame crítico que esclareça vetores de poder – raça, classe, gênero –, mas também que a própria investigadora se submeta a esse escrutínio. Assim, evita-se a voz impessoal e autorizada do dito "observador neutro". Isso demonstra que a perspectiva invariavelmente influencia nas respostas, assim como vem influenciando há muito tempo a ciência tradicional androcêntrica.. Esses três recursos juntos são responsáveis, segundo Harding, pelas melhores pesquisas feministas. (HARDING, 1988, p. 25)
Para Harding, o modelo do cientista "artesanal" como figura isolada que testava hipóteses, formulava problemas e apresentava soluções foi substituído pelo modo industrializado de produção científica, nas ciências naturais e mesmo nas ciências humanas. Entretanto, as mais interessantes pesquisas feministas parecem derivar justamente desse método tradicional. Essa é a provocação, quiça enigmática, de Harding: não seria a pesquisa relevante feminista uma "herdeira bastarda", digamos assim, da ciência de Copérnico e Newton? (HARDING, 1993, p. 27)

Conclusão

A ciência moderna, a legítima autoridade que outorga a qualidade de verdade indubitável, está assentada, desde a sua origem, num tipo específico de olhar. Esse olhar, em determinado período histórico, era importante para poder atingir grandes descobertas no campo da astronomia; depois, metaforizado, acabou influenciando os caminhos ulteriores da ciência. O olho, compreendido como aparelho óptico por Kepler, libertou-se da morada da falsidade; sua imagem era projetada tal qual uma câmara escura, portanto, estava equipado para apreender a realidade. O telescópio e o microscópio foram próteses tecnológicas que alargaram o escopo desse tipo específico de olho/olhar. Entretanto, ainda haviam desafios: e se a imagem que eu recebo for falseada por algum tipo de demônio traiçoeiro? A partir do reductio ad abusrdum de Descartes é proposto um método que separa definitivamente o corpo e a mente; preciso me desligar das inclinações sensoriais para ascender ao reino do conhecimento puro: estava resolvida a questão. A ciência, responsável por extraordinários acontecimentos, também revela-se aliada dos regimes de dominação. Ela sempre esteve casada com o androcentrismo, numa forma de produção de saber que corroborava a opressão feminina; ainda, a ciência também foi responsável, a partir do olho de Deus, pela criação das mortíferas máquinas de guerra.
Como fazer ciência feminista, se esse próprio tipo de saber está/esteve tão comprometido com causas tão estranhas ao feminismo? O caminho percorrido foi o da proposta de Haraway, o de mudar a metáfora. Denunciando a visão androcêntrica e masculina da ciência, uma mudança radical passaria necessariamente por começar mudando de onde e como se vê. A visão cientifica não poderá mais depender desse olhar universalizante; ao contrário, deverá necessariamente considerar os diferentes substratos sensoriais donde parte. De certa forma, aposta-se ainda na o olho enquanto aparelho óptico: ele apreende uma realidade. O que talvez deva ser afastado é o método cartesiano/positivista, que advoga a separação corpo e mente. Aqui o corpo é constitutivo da visão parcial que procuramos conhecer. É um corpo marcado pelos diferentes investimentos políticos ao qual é submetido. Isso significa que a visão dos oprimidos é a melhor, a derradeira, para denunciar os regimes de dominação? Não necessariamente; ele nos aponta e oferece pistas privilegiadas para nossas investigações. Outras autoras feministas tem apostas parecidas: Butler e os fundamentos contingentes; Harding e a instabilidade das categorias; Anzaldua e o corpo mestiço; Rich e a política de localização, etc. De pontos excêntricos, essas autoras exemplificam um pouco do que significa uma visão diferente, numa luta que poderia ser descrita, talvez, como uma luta contra o universal. Tal intento só poderá ser levado a cabo com muita experimentação, num tipo de movimento que talvez deva resgatar um certo pioneirismo dos grandes observadores do céu...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: the new mestiza. San Franciso: Aunt Lute Books, 1999.

ANDRADE, Érico. O sujeito do conhecimento. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo. Tradução de Pedro Maia Soares. Cadernos Pagu, Nº 11: Campinas, 1998.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia moderna. In: CHAUÍ, Marilena et. al. Primeira filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

_____. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: Cadernos Pagu Nº 5: Campinas, 1995.
HARDING, Sandra. A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista. In: Revista de Estudos Feministas, vol.1, nº.1, Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ. 1993.
_____. Existe un método feminista? Tradução de Gloria Elena Bernal. In: Feminismo e Metodologia. Bauru: EDUSC, 1988.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

RICH, Adrienne. Notas para uma política da localização in: Ana Gabriela Macedo (org.). Género, identidade e desejo: Antologia crítica do feminismo contemporâneo. Tradução de Maria José da Silva Gomes. Lisboa: Edições Cotovia, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2005.


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