METÁFORAS QUE MATAM (METAPHORS WE DIE BY): O CASO DO ESTADO COMO FAMÍLIA OU EMPRESA

August 19, 2017 | Autor: R. García Fernández | Categoria: Metaphor, Metaphor in Economics
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METÁFORAS QUE MATAM (METAPHORS WE DIE BY): O CASO DO ESTADO COMO FAMÍLIA OU EMPRESA Fabiano Dalto - Huáscar Fialho Pessali - Ramón García Fernández1 Universidade Federal do Paraná

(Versão inicial – agradece-se não citar sem consultar os autores)

True, devices of rhetoric such as metaphors can be veils over bad arguments. Donald McCloskey (1994: 328) Every housewife knows… Margaret Thatcher 1. INTRODUÇÃO Um dos assuntos cruciais nas discussões sobre política econômica diz respeito à determinação do volume de gastos do setor público. Nos anos 80, discutia-se qual era o tamanho adequado e viável do déficit, e alguns poucos autores sugeriam que este fosse zerado. Grandes discussões também entravam em pauta, tentando determinar qual deveria ser o critério adequado para mensurar dito déficit, problema que estava também no centro das discussões com os organismos internacionais. O eixo na década de 1990 foi mudando, e agora o que se discute é quanto ao tamanho do superávit primário. Embora houve importantes modificações nos termos dessa discussão, sistematicamente os defensores de políticas austeras justificavam suas propostas sugerindo que uma boa administração das finanças públicas não é algo muito diferente da boa administração das finanças empresariais ou domésticas. Portanto, se todos sabemos que uma família ou uma firma não podem administrar suas finanças de forma irresponsável, o mesmo se aplicaria aos gastos públicos; ou seja, para explicar sua posição, os partidários da austeridade estão sugerindo uma certa equivalência entre elementos de dois âmbitos diversos. Esse recurso de explicar uma situação recorrendo a comparações com outra, um procedimento muito comum, significa construir uma metáfora. Ninguém duvida da importância das metáforas em termos estéticos, mas recentemente tem se enfatizado que esse procedimento seria algo mais do que um artifício literário; ao contrário, sugere-se que as metáforas estaria na base de todo nosso esquema conceitual. A relevância das metáforas no raciocínio econômico tem sido largamente reconhecida nos últimos 20 anos. Metáforas são empregadas na tentativa de entender melhor um objeto com o auxílio de algum outro objeto melhor conhecido. Para tanto, elas evocam as semelhanças entre as partes envolvidas. Mas essa virtude das metáforas não é gratuita. Há um custo envolvido, que está no que a metáfora esconde. Este artigo, então, inspirado nesta perspectiva, tenta discutir se é adequado, e até onde, discutir os gastos do governo comparando-os com os de uma firma ou os de uma família. Para discutir os limites da metáfora do Estado como família ou empresa, vamos contextualizar o seu uso e então falar um pouco de retórica e um pouco de macroeconomia. Não vamos, porém, repetir todas as posições existentes na teoria 1

Professores do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná. Além disso, os dois primeiros autores são alunos de doutorado em economia da University of Hertfordshire (Inglaterra) com bolsa da CAPES, instituição cujo apoio agradecem. E-mails, respectivamente: [email protected]; [email protected]; [email protected].

econômica sobre o assunto. Vamos tão somente usá-las de forma concisa para tentar chamar a atenção para o fato de que a metáfora do Estado como família ou empresa molda a percepção que se tem da natureza e das funções do Estado e, assim, molda o que a sociedade aceita ou não que um governo faça do e com o Estado em termos de políticas com implicações econômicas. No caso aqui estudado, o poder de persuasão da metáfora ajuda a legitimar políticas econômicas restritivas que, como qualquer política econômica, têm conseqüências, muitas vezes trágicas, sobre a vida das pessoas e das comunidades. Para estudar isso, estruturamos nosso trabalho da seguinte maneira. Inicialmente discutimos o papel das metáforas em nossas argumentações. A seguir, consideramos especificamente a maneira em que é construída a metáfora central para nossas preocupações. Depois entramos num terreno mais propriamente econômico, discutindo os argumentos teóricos que mostram méritos e fraquezas na metáfora analisada. Finalmente, apresentamos umas breves conclusões.

2. UM POUCO DE RETÓRICA: DETECTANDO A METÁFORA PELO ESTUDO DO ARGUMENTO Ao tentarem entender o que desconhecem, as pessoas procuram tecer comparações de aquilo que desejam compreender com as coisas já conhecidas. Já foi sugerido que explicar é reduzir o desconhecido ao conhecido (Alves, 1986: 45). Consequentemente, essas analogias são de alguma maneira o que nos permite entender o novo, traduzindo-o em termos da linguagem que já nos é familiar. Quando nosso médico quer nos fazer entender alguma coisa que ignoramos sobre nosso corpo, ele usará algum outro objeto que já conhecemos; se o problema for no sistema circulatório, ele explicará comparando-o com um encanamento ("Se continuar se alimentando assim, seus canos irão se entupindo"). Mas o corpo também serve como termo de comparação para explicar: o promotor tentará mostrar a importância especial de um certo criminoso dentro de uma banda apontando que ele era o cérebro de dita organização. Quando essa analogia adota uma forma concisa, se transforma em uma metáfora. Nesse caso, os termos de comparação ficam esquecidos: a própria linguagem estruturou-se em base a essa comparação e permite que prescindamos dela. Se um economista sugere que, dada a elevação de certos preços, a solução seria o congelamento, ninguém pensa que literalmente os preços podem passar flutuando por nossa janela ou que a proposta consiste em pegá-los e armazená-los numa câmara frigorífica. Poder-se-ia pensar que essas analogias e metáforas servem para desenvolver uma idéia (inclusive científica) quando ela está brotando, mas que quando ela amadurece a analogia se consolida, prescindindo da metáfora. Nesse caso as metáforas seriam andaimes que servem na construção do prédio mas que devem ser retirados no fim da construção, muletas que servem para sustentar corpo enquanto suas pernas estão fracas2. Mas até para expressar isso precisamos de metáforas! Por esse motivo, foi apontado o caráter onipresente das metáforas, pois estas seriam a base de nosso sistema conceitual. A afirmação de que os economistas trabalham normalmente com metáforas foi feita inicialmente por Deirdre McCloskey, para a qual os nossos habituais modelos são metáforas (1983:502)3. Essa idéia se insere numa reflexão mais ampla dentro da filosofia no último meio século. Com efeito, a esperança de conseguir uma linguagem completamente precisa (um sistema matemático) que motivou Russell e os filósofos do 2

Segundo Arida. “A metáfora atinge o máximo de eficiência retórica no início do debate ou na apresentação de certas proposições originais; no decorrer dos debates, tenta se prescindir de sua ajuda”. (2003: 40) 3 Ela disse isso inicialmente em seu seminal artigo de 1983, desenvolvendo a idéia numa vasta obra posterior. 2

Círculo de Viena foi sendo paulatinamente substituída pela convicção de que nossa linguagem é necessariamente ambígua, persperctiva que caracteriza as chamadas "guinada lingüística" e "guinada retórica" de nossa cultura (Harris, 1997: xii e ss). Nesse contexto, as metáforas dos cientistas passam de serem meras ornamentações a constituírem objetos inerentes a toda pesquisa. Como afirma Charles Clark (1992: 9), "As analogias e as metáforas desempenham um papel central na formação de teorias, pois é através da aplicação de analogias e metáforas de uma esfera (social ou natural) a outra que as teorias são desenvolvidas". Mesmo que essa reavaliação das metáforas as tenha trazido de volta ao centro da reflexão sobre o conhecimento, talvez seu papel seja ainda mais importante. Com efeito, pode se pensar que em realidade todo nosso sistema conceitual é basicamente metafórico. Essa proposta foi formulada por George Lakoff e por Mark Johnson em sua obra "Metaphors we live by". Segundo eles (Lakoff & Johnson, 1980: 3), as "... metáforas encontram-se difundidas na vida cotidiana, não apenas na linguagem, mas no pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual ordinário, em termos do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza (....) Se estamos certos ao sugerirmos que nosso sistema conceitual é basicamente metafórico, aquilo que vivenciamos e aquilo que fazemos diariamente é em grande parte uma questão de metáforas". Como instrumentos do raciocínio, as metáforas são então usadas para compor nossa percepção da realidade e formular idéias que são usadas diariamente na nossa interação com o mundo.4 Recorrendo mais uma vez a Lakoff & Johnson, “As metáforas não são apenas uma questão de linguagem, ou seja, apenas de palavras. Afirmaremos que , ao contrário, os processos de pensamento humano são em grande parte metafóricos” (1980: 6, grifos do original). Um aspecto interessante e inevitável das metáforas é que, por um lado elas em geral tentam estabelecer semelhanças entre entidades diferentes, ajudando na compreensão de uma delas com base na outra (Black 1993:38). Por outro lado, as metáforas evitam estabelecer aspectos divergentes dos objetos envolvidos (Lakoff & Johnson 1980:10). Aqui reside um problema muito sério para os economistas e outros cientistas sociais. Lakoff & Johnson (1980: 236) deixam isso claro: "Como todas as outras, as metáforas políticas e as econômicas podem esconder aspectos da realidade. Mas na area de política e de economia as metáforas importam mais, porque afetam nossas vidas. Uma metáfora num sistema político ou econômico, graças aquilo que esconde, pode levar à degradação humana". Recentemente, muitos economistas têm notado a importância das metáforas usadas na disciplina e se empenham em estudá-las.5 Isso está em grande parte vinculado ao interesse no entendimento da maneira em que os economistas argumentam, tentando persuadir uns aos outros e ao público em geral da validade de suas posições. Nesse esforço persuasivo, as metáforas são um elemento chave para construir e expressar o ponto de vista dos participantes nos debates. Cabe destacar que esse interesse na argumentação forma parte de um movimento mais geral nas ciências e na filosofia, o do fim da procura da certeza e conseqüentemente da 4

Posteriormente, estes autores desenvolveram mais estes insights, propondo uma a teoria segundo a qual todas nossas experiências são estruturadas como complexos de metáforas derivadas de uma série de metáforas primárias originadas das experiências sensoriais e motoras pelas quais passamos nos anos iniciais de nossas vidas (Lakoff & Johnson, 1999). 5 Alguns exemplos são Henderson (1982), Bicchieri (1988), Mirowski (1989), Klamer & McCloskey (1991), Shulman (1992), Hodgson (1993), Klamer & Leonard (1994), Cosgel (1996), Louçã (2001), e Dolfsma (2001). 3

aceitação de que o melhor que podemos fazer é apresentar argumentos plausíveis (Fernández: 2000: 598-601).Ou seja, se não podemos apresentar evidências lapidares que encerrem definitivamente o debate em nosso favor, o melhor que podemos fazer é apresentar nossos argumentos e construir nossos raciocínios tentando conseguir a adesão da audiência relevante (Fernández & Pessali: 2003: 210). Isso tem provocado o ressurgir no interesse no ramo de conhecimento que estuda a argumentação, a retórica, não apenas na economia mas também nas ciências em geral.6 Este trabalho é mais um esforço nesse sentido ao tentar mostrar, dentro de uma perspectiva retórica na economia, a importância das metáforas, , principalmente na popularização de um certo viés de política econômica. Sendo mais precisos, vamos discutir a seguir o quanto uma metáfora específica pode influenciar as opiniões e ações das pessoas. O poder de persuasão dessa metáfora aqui estudada tem ajudado a dar legitimidade a um certo curso de política econômica ao mesmo tempo em que oblitera a discussão de outras alternativas possíveis. Em particular, fazendo um contraponto com a afirmação de Lakoff & Johnson segundo a qual vivemos através de metáforas, nós tentaremos aqui analisar uma metáfora cujas conseqüências podem ser trágicas, ao impedir que os desejos coletivos de uma sociedade, que deveriam ser viabilizados através da ação do estado, venham a ser implementados. Essa metáfora é a que compara a administração das finanças públicas com a administração das finanças de uma família ou de uma empresa. Dada a gravidade de suas conseqüências, nós a denominamos “a metáfora que mata” (a metaphor we die by).

3. UM POUCO DE CONTEXTO: APRESENTANDO A METÁFORA QUE MATA Os calouros do curso de economia são em geral entusiasmados. Querem entender melhor o que se passa na economia brasileira, discutir as notícias dos jornais e saber como eles próprios se situam nessa história. Vários deles ficam admirados ao ver que o entendimento prévio que tinham sobre os fenômenos econômicos pode ser questionado, mas se admiram com contentamento. As explicações, para eles novas, alternativas, parecem um novo mundo. Vários deles vão querer repassar essas idéias para amigos, parentes, quiçá namorados. Mas o entusiasmo daria lugar ao espanto e à incredulidade na sala de aula se algum professor perguntasse (poucos o fazem!) “Vocês acham que o Estado pode ou deve gastar mais do que arrecada?” Os calouros se entreolham surpresos. Eles pensam que há algo errado com o professor ou que ele está fazendo uma piada. Para eles a questão não faz sentido. A simples idéia de que uma pergunta como essa pode ser feita soa absurda. Um aluno, querendo trazer o professor de volta à realidade, responde com um misto de surpresa e vontade de rir: “Não, professor. O Estado é como uma empresa ou como uma família. Se gastar mais do que arrecada ele vai falir.” Essa estranheza do aluno não deve nos surpreender. Com efeito, a metáfora do Estado como família ou empresa é usada de forma extensiva na tentativa de justificar superávits nos resultados operacionais de governos. Seu uso recente foi disseminado em governos conservadores como o de Margaret Thatcher no Reino Unido. No Brasil a metáfora foi especialmente empregada durante os dois mandatos do Governo Fernando Henrique Cardoso. O uso da metáfora se concentra em alguns pontos específicos, o que permite colocar a situação nos moldes de uma analogia. Uma analogia transfere, como numa 6

Não é possível discutir aqui a crescente literatura sobre retórica da ciência. Mencionamos apenas Bazerman (1988), Fuller (1993), Gross (1996), Myers (1990) e Prelli (1989) como obras básicas no assunto. A antologia editada por Harris (1997) é uma ótima introdução à área. 4

comparação mais extensa, relações existentes em um certo contexto para um outro. Um certo elemento “A” está para “B” assim como “C” está para “D.” A analogia entre o governo e a família ou a empresa busca fazer com que as pessoas enxerguem o Estado como uma entidade semelhante à sua família ou à sua empresa. Em outros termos, o que se parece querer é que a administração do Estado seja vista como a administração de um lar ou de uma empresa. Mais exatamente, o uso da analogia quer persuadir as pessoas de que o Estado, assim como o leitor em sua casa, não pode gastar mais do que recebe. Vê-se que a situação se encaixa facilmente na situação “A está para B assim como C está para D.” O orçamento do Estado (A) está para o Estado (B) assim como o orçamento do seu lar, ou da sua empresa (C), está para você ou sua empresa (D).7 Lakoff & Johnson (1980:5) dizem que “a essência da metáfora é entender e vivenciar um tipo de coisa em termos de outra.” Através da metáfora Estado como família ou empresa e mais especificamente da analogia que relaciona aspectos específicos das entidades envolvidas, estruturas e relações pertencentes a contextos diferentes da experiência de cada um de nós são feitas semelhantes. Em termos práticos, a analogia quer trazer à mente das pessoas que ao gastar mais do que recebe ou arrecada um governo levará o Estado necessariamente a elevar seu endividamento, o que por sua vez levaria a uma situação de desgoverno. O apelo é agressivo: isso é feito equivalente a levar uma empresa à insolvência ou à falência. Com o devido cuidado, porém, evita-se comentar o desfecho possível da família que se endivida. Uns dirão que para evitar a desagradável morbidez do epílogo. Outros porém dirão que aqui a comparação não é estendida porque poderia gerar uma sensação forte de desconforto, e em tal situação extrema a ordem sugerida pela metáfora poderia ser quebrada. Famílias, por estarem endividadas, não simplesmente deixam de existir. Ao contrário, elas reagem muitas vezes de forma não convencional. Por isso estender a ordem contida na analogia acabaria por expor detalhes importantes que a metáfora do Estado como família ou empresa oculta. Mas este é apenas um dos vários detalhes importantes que a metáfora deixa de lado.8 Oportunamente, é verdade que o endividamento familiar e empresarial parece ter crescido durante os anos de baixíssimo crescimento econômico que se seguiram ao Plano Real de estabilização de preços. As dificuldades para saldar essas dívidas também cresceram seja porque as famílias tiveram reduzidos seu emprego e renda, seja porque as empresas tiveram reduzidas suas receitas e vendas. É razoável imaginar que a ilusão monetária que se seguiu à queda dos índices de inflação tenha parte nisso como um motivador de gastos. Importante ou não, este fator parece pequeno diante dos níveis a que foram elevados os juros pagos pelos títulos públicos (encarecendo por seqüência o crédito interno) e da contenção irrestrita da desvalorização cambial (encorajando o crédito externo). Como resultado, atividades produtivas foram contidas e a dívida pública cresceu sem precedentes. A estagnação econômica gerou desemprego e endividamento privado. O endividamento deixou de ser um caso presente em cada 7

Em termos mais técnicos, os elementos da analogia que sustentam o raciocínio, C e D, são denominados o foro da analogia, enquanto que os termos A e B, que contêm a conclusão à qual se quer chegar, constituem seu tema. (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1969, seção 82). 8 De qualquer maneira, pode ser importante se perguntar se é a mesma coisa considerar o estado como uma família ou como uma empresa. Talvez aqui exista uma diferença que deva ser explorada no futuro. Como está dito aqui, empresas falem (logo morrem) e as famílias em princípio resistem mais. Também há que pensar, talvez, que assim como as famílias não se suicidam coletivamente (há um ou outro louco endividado que mata a família e se suicida depois, mas isso é um caso felizmente excepcional) as firmas muitas vezes são suicidadas por seus donos ou administradores que saem muito felizes do suicídio (às vezes com paraquedas dourados). E também temos que certamente o estado foi muitas vezes endividado para garantir a felicidade de quem contraiu essa dívida. 5

esquina para tomar por completo os quarteirões. O endividamento é fato tão presente no cotidiano de famílias e empresas que o uso da analogia por parte da Presidência e de Ministros de Estado parece não ter semelhante à altura para ajudar na justificativa de uma suposta política de déficit zero, ou, mais recentemente, de obtenção de altos superávits primários. A ironia, infeliz, ali contida é que do aperto de cada família brasileira se tem feito uma justificativa para que o Estado as aperte ainda mais. O uso da analogia por sucessivos governos serve na tentativa de delimitar a discussão. Ao dar um certo contorno ao debate, o Governo se esquiva de justificar outras questões também legítimas. Uma destas questões, por exemplo, é o porquê de romper certos contratos – como a provisão de educação e saúde para quem retorna dinheiro ao Estado via impostos – para que outros sejam cumpridos – como o pagamento da dívida mobiliária. Um aspecto disso é que, quando visto como uma empresa ou família, o Estado pode ser mais facilmente identificado com as hierarquias comumente presentes naquelas. O governo passa a ser o dono ou o chefe da família, o que em algum grau o transcende o que se tem por natureza democrática do Estado. Embora empresas e famílias possam apresentar diferentes graus de “democracia,” não é culturalmente incomum que gerentes ou chefes de família detenham elevados graus de discrição sem que seja necessário justificá-los com argumentos que não sejam o da própria existência de uma hierarquia. A moldagem dos problemas e a imposição das soluções, portanto, ficam facilitadas. Um outro aspecto é que o problema, tal qual apresentado nos moldes da analogia, parece não ter tratamento alternativo. Gastar apenas o que se ganha seria um princípio derivado coerentemente de leis econômicas. Como se deseja mostrar com o uso da analogia, tais leis econômicas não são leis daquelas feitas pelos homens para administrar sua convivência e, como tal, sujeitas a revisões e contextualizações. Tais leis parecem ser leis naturais, vindas de algum lugar no substrato essencial do universo9. O princípio de ação que se deriva logicamente de tais leis extrapola qualquer argumentação humana e se impõe por si mesmo. É uma voz da natureza que encontra saída nos modelos dos economistas. Não há o que discutir. O raciocínio é absoluto. Famílias e Estados recebem e gastam; famílias que gastam mais do que recebem entram em sérios problemas financeiros, enquanto que as firmas quebram, morrem, extingüem-se; logo, se o Estado gastar mais do que recebe quebrará, sucumbirá, e ele (e até o país!) deixará de existir. Não é preciso mencionar, mas uma implosão é certamente o oposto do que o senso comum deseja ao Estado. A princípio, a efetividade da analogia estudada pode convencer o cidadão tanto de que é legítimo para o Estado tentar arrecadar mais, quanto de que é preciso gastar menos. O argumento, resumidamente, passa a ser: o que importa é que seu governo gaste menos do que arrecada. Assim posto, a ação conduzida pelo governo recebe um molde de objetivo natural. Aproveita-se aqui para trabalhar o que Perelman & Olbrechts-Tyteca (1969) chamaram de argumentação ao redor de meios e fins. Segundo os autores (p. 274): “É assim útil mostrar que se, até o momento, nenhum sucesso foi obtido, a razão é a ignorância dos meios certos ou a negligência para usá-los.” Tal argumentação faz pleno uso da situação retórica prevalecente no primeiro mandato do Presidente Cardoso. Governos anteriores que não buscaram ou não conseguiram chegar ao déficit zero (muitíssimo menos no superávit primário) foram marcados por uma

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A história da procura dessas leis econômicas como se fossem leis naturais é desenvolvida por Clark (1992). 6

imagem de fracasso, e ao fracasso de tais governos se associa o fracasso generalizado de famílias, empresas, e por fim do país. O efeito maior do argumento, porém, está na discussão a respeito de meios e fins. O déficit zero é crescentemente visto como fim. É como se, uma vez que ele fosse alcançado, todos os outros problemas viessem a ser consertados de forma automática. Deixa-se de falar que o déficit zero seria apenas um dos meios imaginados, no qual alguns honestamente acreditam, para fazer funcionar melhor o Estado. Como também enfatizaram Perelman & Olbrechts-Tyteca (p. 271), a transformação de um meio em um fim torna maior a sua importância. Por outro lado (p. 275), ao nos darmos conta de que o que se tem como um fim é na verdade um meio, tendemos a ver depreciada a sua relevância. Afinal, um fim é algo único. Um meio é um entre possivelmente outros de igual ou melhor valor. Tal como apresentada à sociedade, a analogia parece completa e inquestionável. Ela foi anunciada por um governo que se dizia social-democrata, legenda que tendeu a ser valorizada nos anos 1990. No ministério de um governo anterior, a base de sua equipe econômica comandada por quem viria a ser presidente, conseguiu trabalhar com sucesso na quebra de um processo inflacionário. Com o argumento de autoridade, comum em vários tipos de situações retóricas (Perelman & Olbrechts-Tyteca 1969: 305; McCloskey 1998: 26), o que mais vier dali torna-se altamente respeitável, senão intocável. O respaldo conseguido com o plano antiinflacionário bem sucedido parece dar todas as garantias ao que mais vier. E a metáfora do Estado como família ou empresa parece mais uma grande sacada. Afinal, a lógica do silogismo que a sustenta é imbatível. Antes soubéssemos que se trata não de um silogismo, mas de uma entimême. Se não acordarmos a tempo, o paciente diabético, diagnosticado e tratado com insulina, vai entrar em choque hipoglicêmico. Uma entimême é um silogismo onde as premissas, em lugar de representarem uma verdade muitas vezes axiomática, são baseadas no provável (Aristóteles 1984:22; Lanham 1991:65). Muitas vezes cada raciocínio apresentado é incompleto ou baseado em relações passíveis de questionamento. Aí começam os problemas da metáfora do Estado como família ou empresa. A comparação axiomática deixa de lado diferenças descomunais nas qualidades dos comparados. A diferença mais óbvia é que o Estado Brasileiro não se chama Estado Brasileiro S.A. ou Estado Brasileiro Alves da Silva. O Estado Brasileiro não é nem empresa nem família, é uma entidade de natureza diferente. Ele não segue a mesma lógica daquelas instituições. Ele tem responsabilidades, propósitos diferentes. E mais ainda: ele tem recursos diferentes para lidar com problemas diferentes. Dificilmente poderíamos imaginar que um dia seria necessário argumentar que Estado, família e empresas são instituições diferentes. Mas eis o que os seres humanos que fazem a história nos impõem. Bem, que as instituições feitas semelhantes pela analogia são diferentes, todo marujo que não está sob o encanto da sereia já sabe. Mas isso é justamente o que a analogia quer deixar de lado. Isso não quer dizer que toda analogia é falaciosa, enganosa, mal intencionada, ou por princípio errada. Como apontamos acima, o pensamento baseado em analogias é rico e essencial para aprendermos coisas novas. Mas há um outro lado. Como em todas as construções humanas ela pode ser usada, propositadamente ou não, de formas ou em situações inadequadas. Esse é o caso da comparação entre Estado e famílias ou empresas. O que tentamos mostrar aqui é essa analogia em particular é pobre e parcial face à importância de suas conseqüências. Ela é pobre porque faz uma ou duas associações entre Estado e famílias ou empresas e, de repente, pára. Ela é parcial porque faz as associações que interessam a um certo propósito e deixa outras conflitantes de lado, sendo vinculada a um raciocínio que parece único. Além disso, o que se espera das metáforas científicas 7

é que elas possam ser trabalhadas, retrabalhadas até o cansaço, estendidas e questionadas. Como foi apontado por Philip Mirowski (1988: 137), ao contrário das metáforas poéticas, que podem trabalhar com analogias apenas parciais para atingir um impacto estético, temos que “...uma característica distintiva das metáforas científicas é o fato de que são consideradas falhas se concitam um impacto apenas temporário e não viram objeto de elaboração e explicação." A analogia que estamos analisando tem fragilidades que precisam ser expostas.

4. UM POUCO DE ECONOMIA: O ARGUMENTO ECONÔMICO QUE FALTA CONSIDERAR Toda argumentação tem um ponto de partida. Em geral esse ponto de partida é o de estabelecer uma plataforma comum entre os envolvidos no argumento, o orador e sua audiência. A metáfora do Estado como família ou empresa em si é um elemento de tal plataforma: “olhe, nós falamos a mesma língua, temos um mesmo problema e a mesma solução.” As premissas inclusas na analogia que se deriva da metáfora são simples e o raciocínio apela ao senso comum. O Estado, tanto quanto a família e a empresa, tem receitas. O Estado, tanto quanto a família e a empresa, tem gastos. Famílias e empresas sobrevivem se gastarem no limite aquilo que recebem, logo... Não, não chegue à conclusão nenhuma ainda. Na tentativa de acomodar suas necessidades básicas e interesses outros, o ser humano desenvolve tecnologias e instituições sociais. É com o auxílio destas tecnologias e instituições que o ser humano tenta no mínimo reproduzir a cada dia as condições materiais em que vive. De fato as formas de interação humana no esforço de sobrevivência podem ser muito complexas, e as instituições a lidar com as mesmas podem resultar sofisticadas e multifacetadas. Lembre-se, por exemplo, de uma solução social que se tornou tão habitual e difundida a ponto de tornar-se uma instituição - o dinheiro. Duas coisas importantes, e que interagem na história de forma quase indistingüível, devem ser lembradas aqui a respeito do dinheiro. A primeira é que a ele foi garantida (pelos estados e outras formas de autoridade) uma participação crescente nas trocas a ponto de, na sua forma de moeda, fazer monetárias a grande maioria das economias nacionais modernas. Nestas, a produção de bens e serviços é majoritariamente voltada para a troca por dinheiro. A segunda é que os estados nacionais modernos, tanto quanto impérios antigos, feudos medievais e outras entidades de autoridade central, ao entender o poder de tal instituição buscam monopolizar a sua criação e impor o seu uso. O poder do Estado em controlar a emissão de moeda é uma arma econômica muito importante. O raciocínio pode ser circular, mas como evitá-lo? Se o monopólio da função de emissor não fosse importante por que impérios, repúblicas e monarquias (e outras formas de governo ao longo da história) se importariam em tê-lo? Ou por que muitos incrédulos da atuação do Estado na economia gostariam de outorgar a um Banco Central supostamente independente do Estado tal função? O monopólio em emitir moeda que seja aceita por todo um país, não é o único fator a ser considerado. Quando, quanto e com que propósito emitir são questões relevantes que seguem em comunhão. Por isso muito se fala, por exemplo, na relação entre emissão de moeda e dívida pública, ou emissão de moeda e inflação, ou emissão de moeda e responsabilidade fiscal. Estas relações são parte importante do que vamos falar, pois são obliteradas da discussão econômica em função da persistência de muitos em não enxergar as simplificações feitas pela metáfora. As relações econômicas excluídas da discussão – não pela metáfora em si, mas pelos que dela fazem uso – parecem estar resolvidas. É como se a equipe econômica e simpatizantes que sustentam a metáfora fossem 8

oniscientes e estivessem falando de algo tão universalmente aceito quanto as leis da mecânica ou a tabela periódica dos elementos. Na verdade, várias relações econômicas não sugeridas pela metáfora estão longe de encontrar consenso entre os economistas. Mais ainda, os que se vêem discordantes da política econômica praticada no Brasil durante os últimos governos têm propostas alternativas. Mas o uso da metáfora do Estado como família ou empresa tem servido de escudo protetor. A situação retórica, porém, parece estar mudando. Se assim o é, talvez agora – antes tarde do que nunca – seja um bom momento para expor com alguma minúcia os argumentos que os defensores da metáfora estudada vêm evitando discutir.

4.1. Sobre a natureza e atuação das entidades envolvidas: o que o superávit tem que o lucro não tem e vice-versa The government—which is what the state means in practice—by virtue of its power to create or destroy money by fiat and its power to take money away from people by taxation, is in a position to keep the rate of spending of the economy at the level required to fill its two great responsibilities, the prevention of depression, and the maintenance of the value of money. (Lerner 1947:314) Uma das atribuições do Estado é a de arrecadar impostos dos indivíduos e das firmas que operam num país. Esses recursos podem ser usados para pagar os bens e serviços que o estado compra (construção de hospitais e escolas, salários do funcionalismo público, etc). Suponha que num certo período os gastos sejam menores do que a arrecadação. O que o Estado vai fazer com o dinheiro que sobrar (se é que faz sentido dizer que sobra alguma coisa)? Qual seria o objetivo de se arrecadar mais do que se gasta? Não é gastar? Ao se gastar menos com saúde e educação hoje não parece sensato justificar a poupança feita ao dizer que ela se dirige a maiores gastos futuros com saúde e educação. Todo superávit é feito para se desmanchar no ar. Com isso não queremos dizer que um superávit deve existir para ser queimado numa fogueira de notas de cem reais ou guardado a sete chaves e esquecido no subsolo do banco central. Isso não faz sentido. Ao contrário, o que queremos dizer é que é lógico “torrá-lo” em prol do desenvolvimento econômico. Mas então por que gastar menos do que se arrecada? Aqui está um dos grandes problemas da analogia.10 Nos governos recentes, quando se fala em gastar menos do que arrecada a ênfase recai no chamado resultado primário das contas. Economistas, queremos crer, sabem o que isso significa, mas a maioria dos eleitores não (embora isso talvez esteja mudando). O resultado primário exclui o que se gasta com juros das dívidas. Só para enfatizar: para se obter o resultado primário das contas do governo, os gastos com juros ficam de fora da contabilidade. Se na analogia o Estado deve funcionar como uma empresa ou como um lar, vamos lembrar o que fazem empresas e famílias. Empresas e famílias, quando fazem empréstimos ou entram no cheque especial, também pagam juros. Tanto firmas quanto famílias estão preocupadas em pagar todos os seus gastos incluíndo os juros. Eles sabem que se não pagarem os juros este mês, terão mais para pagar no mês que vem. Aritmética simples (mas juros que podem ser compostos). José e Maria não saem anunciando para os filhos que ficaram no azul se na verdade não conseguirem 10

Em realidade, os governos podem gastar menos do que arrecadam, mas isso normalmente gera recessões nas diversas economias que aplicam essas políticas. Wray (1999) mostra que todas as tentativas de liquidar a dívida pública dos EUA, por parte de diferentes governos austeros que consideravam vergonhosa a existência da mesma, foram seguidas por fortes recessões das quais se saiu aplicando políticas em sentido oposto . 9

liquidar os juros (e a dívida). A mesma coisa ocorre com as empresas. Os governos recentes, porém, têm se concentrado em falar de resultados primários superavitários e falam bem menos dos juros que fazem parte da dor de cabeça diária de famílias e empresas. Embora tanto a classificação das contas nacionais quanto o balanço das empresas (e o extrato bancário das famílias) permitam separar o resultado financeiro nas duas partes em questão, a dimensão em que o resultado primário é sublinhado pelo governo em comparação com o que fariam empresas e famílias parece por si só uma grande aberração dentro da própria analogia. O resultado primário (o saldo entre gastos e arrecadação correntes do governo) é apresentada como a parte suscetível a alterações. A outra parte é o chamado resultado nominal, onde o balanço das contas do governo é finalizado com a subtração (e adição) dos juros correspondentes a gastos não liquidados pelo governo (e por seus devedores). Esta é a parte em que cifras vermelhas em negrito não param de subir. Mas é justamente esta a parte definida pelo governo como sendo indiscutível, e como tal não deve ser enfatizada. Mas aqui chegamos ao contrasenso maior da analogia oficial. O que as pessoas em geral fariam ao ver sua família atolada em dívidas e nos juros decorrentes? Deixariam inquestionado o montante de juros que pagam todo mês e sairíam cortando escola, alimentação, moradia e saúde a ponto de fragilizar sua própria situação familiar? Ou elas procurariam com insistência o seu credor para renegociar a dívida, torná-la pagável (em lugar de deixá-la como sangria eterna), reduzir os custos do refinanciamento, etc... para manter sua família num patamar digno de sobrevivência, dar-lhe condições mínimas de empregabilidade e de se tornar uma potencial fonte de mais rendas? Para as pessoas não é difícil deduzir: a sobrevivência digna da sua família é mais importante. Em situação de endividamento, embora agindo com sensatez nos “resultados primários” ao evitar gastos supérfluos, o alvo principal do ajuste é a dívida para com terceiros. Quantas vezes as pessoas devedoras não devem mesmo chegar a pensar em não pagar mais? Às vezes é o que se faz, quando pouco ou nada resta. Assim em geral também “pensa” a empresa, ou um empresário sensato. Há diferenças, sim, entre empresas e famílias – principalmente no que tange aos arranjos financeiros disponíveis a ambas. Mas uma empresa que se interessa em produzir e se vê envolvida com dívidas e juros vai estar sempre disposta a tirar o maior proveito possível dos credores e, portanto, salvaguardar os investimentos produtivos já feitos. Mas o que parece ter sido ser feito ultimamente pelo governo brasileiro ao administrar o orçamento “familiar” do Estado é aparentemente o contrário. Com credores não se negocia: paga-se o que está no contrato. O que se pode negociar é o quanto a família pode comer, se a família pode ou não ter um teto para morar, se a família pode ter acesso à saúde, se a família vai poder estudar, etc. Sabendo que boa parte da família já não come, mora, vive sã e se educa bem há algum tempo, um(a) bom(a) chefe de casa deveria estar indo ao Procon reclamar dos juros escorchantes e testando a paciência do gerente do banco credor. Sabendo que a firma começa a ter problemas com fornecedores, ou que precisa renovar o maquinário ou treinar a mãode-obra, seu dono ou presidente vai acionar o setor financeiro para tentar de todos os modos negociar com o banco credor. Se preciso for, vai acionar também o setor jurídico. Se preciso for, ele vai negociar pessoalmente. Se isto parece razoável, em que medida se pode ver ação semelhante por parte do governo que diz querer administrar o Estado brasileiro como se fosse uma firma? Ele quer gastar menos (com a manutenção do Estado, investimentos públicos e seguridade social) do que arrecada para gastar mais (em juros). Novamente queremos crer que estamos sendo enjoadamente repetitivos para os economistas brasileiros. Mas já conhecemos alguns que esquecem disso quando mergulham na analogia. A importância que se confere ao pagamento das dívidas também se relaciona à maneira dos credores as executarem. Há bastante evidência de que as pessoas que têm dívidas de drogas ou com mafiosos precisam priorizar o pagamento destas acima 10

de qualquer outro gasto, sob risco de morte. Todavia, depois que a Doutrina Drago estabeleceu no direito internacional que os países credores não podem iniciar ações de guerra contra os devedores, gostaríamos de pensar que, conforme a metáfora que estamos focalizando, a analogia mais adequada para a dívida pública é a de uma empresa que deve para um fornecedor ou a de uma família que estourou o cartão de crédito, e não a de um dependente que deve ao traficante. Neste caso, porém, a “analogia oficial” passa a segundo plano, e o Estado, em lugar de agir como um pai ou de um empresário orgulhoso de sua família ou firma, e ciente de suas responsabilidades, entra em pânico como um usuário de drogas endividado, disposto a fazer qualquer loucura para salvar sua pele. A analogia, porém, continua sendo usada quando alguma discussão dos resultados nominais do governo vem à tona. Ela vem acompanhada de argumentos aritméticos lineares e vagos. Diz-se que o superávit primário é necessário para que se pague a dívida existente, fazendo com que ela eventualmente diminua e se torne mais fácil de administrar. Ou, ao contrário, argumenta-se que em caso de déficits primários, o governo precisa tomar recursos do sistema financeiro para se financiar. Logo, sua dívida mobiliária é uma função crescente dos déficits primários. Esse argumento é sustentado mesmo diante de evidências contra-factuais importantes. Podemos, por exemplo, verificar se na história recente o argumento de que gastos maiores do que a receita provocaram aumento do endividamento do Governo. Diversos dados mostram o crescimento da dívida mobiliário do Governo Federal desde o Plano Real: verifica-se que a dívida do Tesouro Nacional cresceu sete vezes no período, ou 853%. De acordo com o argumento de que déficits primários são responsáveis pela elevação da dívida do Tesouro Nacional, devemos esperar um crescente déficit do governo no período. Os dados porém apontam no sentido contrário. Desde o início do Plano Real, o governo só incorreu em déficits nominais durante dois anos. Os demais seis anos foram de casamento das contas ou de superávits nominais. Vale notar que os superávits sempre foram significativos, enquanto os déficits foram relativamente baixos. Exploremos mais o argumento. Suponhamos que as pessoas que acreditam que a dívida é causada pelo déficit público e que este, por seu turno, é devido aos excessivos gastos com pessoal das universidades, hospitais, estradas, deputados, judiciário, máquina administrativa, aposentados e etc, digam que a política de gastos que leva ao endividamento público reduz o dinheiro disponível para o setor privado gastar e aumenta o custo dos empréstimos. Para recursos escassos, um aumento na demanda gera elevação nos preços. O problema com o argumento é que qualquer elevação de gastos, mesmo de investimentos privados, teriam de provocar o mesmo efeito. Dito de outro modo, em pleno emprego dos recursos produtivos, mesmo com déficit público zero, se houver aumento de investimento da parte de alguns empresários isso pressionaria as taxas de juros e deslocaria o investimento de outros agentes privados. Ou seja, o investimento líquido seria nulo. Alguém poderia argumentar que isso não ocorreria se as famílias resolvessem poupar mais de suas rendas. Aqui o problema é saber se os empresários se disporão a investir mais quando observam que suas vendas estão se reduzindo, e com elas seus lucros. Embora os economistas tipicamente possam supor que os empresários sempre vendem o que produzem, bastando reduzir seus preços, do ponto de vista dos empresários isso pode representar dificuldades de honrar compromissos financeiros assumidos ao iniciar o processo produtivo. E, como notou Irving Fisher, uma tentativa geral dos empresários de vender seus produtos através de reduções generalizadas de preços levaria a crises de solvência do sistema como um todo. Por outro lado, as compras de governos geram receitas múltiplas para todos os setores da economia. Receitas se transformam em lucros nas firmas. Com lucros, as firmas se habilitam a realizar novos investimentos com capital próprio e também a 11

alavancar recursos de terceiros. Quando o governo realiza gastos o faz, em geral, usando o sistema bancário. Isto é, o governo manda uma ordem de pagamento para o banco de quem o vendeu a mercadoria ou prestou-lhe serviços. Quando o governo realiza gastos, os bancos têm suas reservas elevadas para fazer frente a demandas de crédito. Mesmo que se pense que o governo deva emitir títulos de dívida para reduzir o excesso de reservas nos bancos, é importante notar que não foram os gastos diretamente que levaram ao aumento da dívida e eventual elevação da taxa de juros, mas uma decisão do Banco Central em evitar o crescimento “excessivo” do crédito bancário. Vejamos outra possibilidade. Suponha que, como muitos pensam, o governo emita títulos de dívida de forma a evitar que seus excessivos gastos elevem a taxa de inflação, assumindo que seja a demanda por recursos escassos, financiada por emissão monetária, o fator causador da inflação. Isso significa que o nível de emprego dos recursos produtivos da economia está muito próximo do ou em seu máximo. Qualquer novo gasto demandará recursos já previamente empregados. Para liberar esses recursos de seu emprego anterior o gastador deve fazer ofertas maiores ao proprietário do recurso. De fato, quando a economia se encontra nesse patamar, qualquer novo gasto elevaria as taxas de inflação. Isso significa que mesmo gastos privados, como investimentos, elevariam as taxas de inflação. Mas como elevar as taxas de crescimento da economia sem novos investimentos, ainda que privados? Nesse sentido, o governo estaria até fazendo um bem à sociedade emitindo títulos para evitar a queda da taxa de juros e o possível aumento dos investimentos daí decorrentes? De qualquer maneira, a dívida pública ainda não implicaria em gastos com juros, e daí uma possível elevação da quantidade de moeda para os recebedores de juros? O problema com essa última estratégia é que o aumento de moeda provocado pelo pagamento de juros não leva a um aumento dos investimentos porque, por hipótese, os poupadores (recebedores de juros) não gastam (não investem). Porém, devemos reconhecer, os rentistas, aqueles que recebem os juros, são, por definição, não gastadores ou, no mínimo, sua propensão ao gasto é bem menor do que o resto da economia. Assim, devem pensar os formuladores da política econômica, gastos do governo para pagar rentistas não geram pressões inflacionárias.No entanto, numa economia com menos do que a totalidade de seus recursos produtivos disponíveis empregados, a realização de investimentos poderia aproveitar tais recursos para favorecer toda a comunidade. E, enquanto existem recursos produtivos ociosos é possível comprá-los ao preço dos demais já empregados, isto é, sem elevar os preços porque não se está concorrendo com outros compradores por tais recursos. Em geral, em termos dos resultados produzidos pela política econômica seguida a inconsistência da analogia é justificada com argumentos de comparação a uma situação futura. Como explicam Perelman & Olbrechts-Tyteca (1969:245): “em geral, imagens de uma era dourada, no passado ou no futuro, de um paraíso perdido ou desejado – seja isso uma questão de bons velhos tempos ou de felicidade a se encontrar num outro lugar – trabalham em prejuízo do momento ou do país em que se vive atualmente.” Fabio Erber (2003), por exemplo, identificou a formulação e condução das políticas econômicas nos anos 90 em termos de seu conteúdo mítico, notando que o mito da travessia do deserto parece sempre presente. Resultados negativos em sucessão são o sofrimento natural da árida caminhada rumo a um destino prometido (crescimento econômico, emprego, justiça social, etc.) e resultam de forças externas às quais todos estão sujeitos e sobre as quais os guias da travessia não podem agir (globalização). O futuro é, portanto, onde está o paraíso prometido por políticas econômicas restritivas. A repetição da analogia, portanto, reforça a crença do sacrifício presente para um benefício vindouro. Enquanto houver esperança, políticas econômicas restritivas e concentradoras de renda podem conduzir todos a uma situação melhor. O 12

problema de lidar no dia-a-dia com estatísticas e resultados contábeis fortemente contra-factuais é tratado com a ajuda da analogia e do mito da travessia, que jogam o debate para as conseqüências futuras com idéias de austeridade e responsabilidade fiscal no presente. Várias questões do debate teórico em macroeconomia e do debate do papel das finanças públicas são ignoradas no presente enquanto for possível colocar a cenoura à frente do burro. Por exemplo, resultados superavitários como os apresentados indicam que a princípio não há necessidade de financiamento do gasto público. Em tal situação, por que teria o governo lançado tanta dívida? Onde foram parar as “poupanças” do governo, mesmo as de antes do Plano Real? Será que governo faz “poupança?” Será que o governo se financia com a emissão de Letras do Tesouro Nacional? Como explicar os dados com um pensamento baseado na veiculada analogia? Gostaríamos então de voltar a debater certos argumentos macroeconômicos que têm sido varridos para baixo do tapete com ajuda da analogia.

4.2. O Estado como poupador de última instância? Demanda efetiva versus poupança como indutores do crescimento econômico Imagine a seguinte situação, sempre lembrada por economistas e políticos que recorrem à analogia: 1) Algumas famílias e empresas passam a poupar mais, guardando dinheiro nos bancos. (A contrapartida, nem sempre lembrada, é que vão consumir e investir menos do que poderiam). 2) Os bancos têm portanto maior quantidade de dinheiro e podem emprestar mais. 3) O aumento da oferta de crédito faz seu preço (os juros, grosseiramente falando) cair. 4) Outras famílias e empresas, vendo créditos baratos, tomam empréstimos para poderem gastar (consumir e investir) mais. 5) Maiores gastos e investimentos por parte destas famílias e empresas geram empregos e levam ao aumento da produção de bens e serviços (crescimento econômico). O raciocínio encontra um problema por não considerar as expectativas dos agentes: por que teriam eles, no momento 1, sido levados a gastar ou investir menos? E no momento 4, por que empresas gostariam de produzir mais se as famílias e outras empresas dão sinais de que estão poupando, e não consumindo, mais? Um dos motivos pelos quais, diante de uma mesma renda, gastamos ou investimos menos é porque vemos no rendimento financeiro uma possibilidade melhor para aplicar o dinheiro do que comprar bens, serviços e capital produtivo. Mas às vezes gastamos ou investimos menos porque simplesmente não estamos interessados em comprar mais coisas num determinado momento. O leitor poderia certamente adicionar outros vários motivos, mas o economista gosta de se deter ao primeiro. De toda forma, quando gastos e investimentos se reduzem temos que tirar duas lições bem simples. A primeira é que as famílias, de forma agregada, receberão menos rendas na forma de salários e não poderão manter ou aumentar o seu nível de consumo, a menos que contraiam dívidas. Mas, isso é o que menos desejariam os crentes na Lei de Say. A segunda é que as firmas, por algum motivo, não podem ou não estão dispostas a aumentar a capacidade produtiva existente, ou mesmo continuar operando no atual nível de atividades. Elas muito provavelmente não acreditam que a demanda por seus bens e serviços vá crescer (ou se manter) a ponto 13

de exigir a ampliação da capacidade (ou a manutenção do nível de utilização da capacidade existente). Ou, mesmo que o aumento da demanda seja possível, julgam que seria comparativamente muito caro tentar acompanhá-lo. Quando as firmas mostram tal “indisposição” para aumento de seus gastos, elas estão de certa forma mandando sinais para todas as indústrias adjacentes. Algo como “não vou investir, portanto não aumentarei minhas compras de insumos,” ou então “vou reduzir a produção, portanto diminuirei minhas compras de insumos.” Quando as firmas observam que consumidores estão gastando menos (e individualmente poupando mais) elas então se sentem plenamente justificadas em suas decisões de não investir ou de reduzir a produção e o emprego de pessoas. Pois bem, mesmo que os juros de empréstimos se tornem mais baixos, quem é que gostaria de pegar dinheiro emprestado para ampliar a capacidade produtiva existente sabendo que consumidores não estão dispostos a gastar mais? Por outro lado, por que consumidores que têm recursos poupados vão se propor a tomar empréstimos mais caros do que seu próprio dinheiro poupado? Para que o circuito de 1 a 5 funcione, é necessário haver um balanço perfeito entre o quanto certas pessoas e empresas poupam e o quanto outras pessoas e empresas querem pegar emprestado para consumir e investir. O pessimismo nas expectativas de certas empresas tem que ser exatamente contrabalanceado pelo otimismo nas expectativas de outras. Esse é um balanço que somente alguns economistas conseguem imaginar e acreditar que sempre exista. Mas não havendo tal “otimismo” ou uma efetivação de gastos aumentados por parte destas outras empresas, de nada adiantou poupar. O circuito na verdade começa em 5. Mas o que tem isso a ver com a analogia do Estado-empresa? O Estado é um elemento-chave no ritmo que pode ser deflagrado por 5. Ele, ao poder emitir dinheiro e títulos (ao contrário das empresas que só podem emitir títulos) pode: 1) sancionar ou não as decisões de gasto das empresas com a criação de liquidez; 2) ser ele mesmo o criador de demanda efetiva.

4.3. Para uma velha máxima, outra: o pouco emprego e o papel dos gastos do governo Government should adjust its rates of expenditure and taxation such that total spending in the economy is neither more nor less than that which is sufficient to purchase the full employment level of output at current prices. If this means there is a deficit, greater borrowing, "printing money", etc., then these things in themselves are neither good nor bad, they are simply the means to the desired ends of full employment and price stability. (Lerner 1943:354) Tal qual implicado pela lógica que compõe a analogia, o problema é simples: gastos maiores do que a arrecadação têm que ser financiados. Essa tem sido a justificativa dos governos recentes para os cortes de verbas em várias áreas de atuação do Estado. Financiar, ali, é feito sinônimo de endividar-se. E associar Estado Brasileiro e endividamento é, de longa data, causa de arrepios ao eleitor-cidadãocontribuinte. Ironia ou não, estes governos recentes que enfatizaram a austeridade e a responsabilidade foram recordistas na multiplicação da dívida mobiliária do Estado brasileiro. A defesa, porém, da política econômica de contenção de gastos sempre se dava com uma variante do argumento de desenvolvimento ilimitado. De acordo com Perelman & Olbrechts-Tyteca (1969:287), o argumento de desenvolvimento ilimitado “insiste na possibilidade de continuar numa certa direção sem que se possa prever um limite para isso.” No caso, a direção de política econômica restritiva é defendida com a 14

idéia de que os resultados poderiam ser muito piores – não haveria limites para o endividamento caso o Estado continuasse operando com déficits primários. Mais uma vez, a lógica que opera a analogia não permite ver que, para o Estado, o financiamento via endividamento é uma das opções possíveis, enquanto para as famílias e empresas essa é a opção única. Firmas, é verdade, podem mudar a forma de tal endividamento (através de instrumentos de financiamento como ações, debêntures, uso de créditos bancários, etc...) mas todas envolvem a promessa de retorno monetário no futuro. Ao Estado reserva-se uma outra opção: emissão de moeda. Muitos, dos poucos, que se lembram que o Estado pode emitir moeda para financiar seus gastos, acabam de se espantar. Para eles a máxima monetarista da neutralidade da moeda sobre as atividades produtivas revela o mandamento do “não emitirás mais do que a taxa de crescimento da economia.”. Em tal ótica, emitir moeda é simples e automaticamente fazer com que os preços subam na mesma proporção. Aos que já se recuperaram do susto lembramos: esta é uma hipótese teórica com fracas evidências empíricas. Por exemplo, o governo brasileiro tem tido superávits primários e, assim, evitado a princípio a necessidade de endividar-se. Ao mesmo tempo a dívida mobiliária existente tem sido renovada e não paga em espécie. Os índices de inflação, porém, não parecem obedecer a teoria monetarista nesse momento. Embora isso não necessariamente exclua a possibilidade da emissão de moedas causar inflação, mostra que há outras causas sendo esquecidas. Então como fica a participação da emissão de moeda na inflação? Bom, segundo a teoria monetarista, a causalidade simples e automática é supostamente aplicável para economias em pleno emprego de seus fatores produtivos. Mas e se há desemprego de fatores? Esse é um mundo não imaginado pelos teóricos monetaristas, de tal modo que nada se diz a respeito. A verdade é que tal suposição causal perde sustentação. Imagine que em uma economia haja três participantes: João, Maria e o Estado. O Estado emitiu R$ 1 para comprar de João um saco de cimento, produzido com o pleno emprego de suas habilidades, instrumentos e recursos. João, com R$ 1, gostaria de comprar de Maria uma caixa de laranjas, mas tem que pagar impostos. Se o Estado não comprasse aquele saco de cimento de João, João não teria dinheiro para pagar impostos. Isso vai garantir também que o Estado precise emitir menos dinheiro se quiser comprar de João outro saco de cimento. Mas o imposto não poderia ser tão elevado quanto o valor da produção de João, pois senão João viraria escravo do Estado. Quanto menor o imposto sobre João, mais João acumula do R$ 1 que o Estado pagou para ele. João, se produzindo numa economia de mercado, é incentivado a produzir mais. O Estado fica com um déficit se o imposto não é tão elevado quanto o valor da produção de João. Logo, numa economia onde só existe João e o Estado um dos dois deve entrar em déficit para o outro ter superávit. Se o Estado sempre for superavitário, João perecerá ou tentará sonegar impostos para sobreviver. Até agora Maria está excluída das relações monetárias de troca. Ela poderá até produzir para auto-consumo, se houver alguma dotação inicial de recursos em seu favor, mas caso contrário continuará sem fonte de recursos e, portanto, de sobrevivência. Se o Estado, por qualquer motivo, tem necessidade de uma caixa de laranjas vai poder usar R$ 1 para incentivar Maria a produzi-lo e vendê-lo ao Estado. João, porém, não terá recursos ou incentivos para produzir e vender o próximo saco de cimento. O desemprego se perpetuará. Mas não se o Estado resolver comprar tanto o saco de cimento quanto a caixa de laranjas, fazendo com que haja, agora, R$ 2 em renda nacional. Isto permite a compra a compra de um saco de cimento e de uma caixa de laranjas, e também que Maria e João possam pagar seus impostos e 15

continuar a produzir. Se houver mais pessoas em condições de trabalhar ou vender algo para o Estado em troca de Reais, o Estado poderá comprá-los. Tais pessoas podem também querer vender seus produtos para João e Maria em troca de Reais e, assim conseguir Reais para pagar impostos ao Estado. Daí temos duas conclusões. Mais impostos serão arrecadados se João e Maria resolverem produzir mais cimento e laranjas e, para isso, tiverem de comprar coisas de outras pessoas que, digamos, estavam fora do mercado mas pretendem nele entrar ao ver que João e Maria estão ficando mais prósperos. As pessoas que receberem Reais com as vendas para João e Maria podem pagar impostos ao Estado. A segunda conclusão é que se o Estado não comprar o cimento e as laranjas de João e Maria, nem João e Maria nem os demais novos entrantes conseguiriam pagar os impostos.11 Isto é, sem o Estado ter comprado com Reais por ele emitidos os produtos de João e Maria, nenhuma receita de impostos existiria. Por outro lado, não há motivo para que os preços subam: há duas unidades monetárias, dois produtos, e uma pessoa ou mais antes sem ocupação agora trabalhando. Claro, a simplificação é rude. Mas se você for olhar os modelos que sustentam o raciocínio anti-financiamento via emissão de moeda vai encontrar agressões ao bom-senso tão ou mais graves do que essa. O argumento econômico pró-financiamento via emissão de moeda, porém, não tira seus pés do chão. Em toda economia há gargalos mais ou menos sérios, setores com maior ou menor grau de utilização da capacidade existente, maior ou menor potencial de expansão, melhor ou pior servidos de mão-de-obra qualificada, etc... Há, portanto, diferenças na qualidade do gasto feito pelo Estado. Pressionar a demanda de produtos de setores ou economias locais em pleno emprego, por exemplo, pode ter resultados piores sobre os preços do que trabalhar na expansão da capacidade primeiro. A modalidade da transação também é relevante. Quando o Estado se propõe a gastar em algo, ele não precisa esperar que uma concorrência determine o menor preço. Ele pode leiloar sua compra de forma aberta, ou então fixar o preço máximo ao qual comprará. Se os recursos do Estado se esvaem com compras superfaturadas, comissões estranhas, desvios de verba, etc..., o problema não é que o Estado gasta, mas sim que o Estado funciona de forma corrupta. Além de tudo isto, pagar contas com emissão de dinheiro contorna em parte o tipo de relação com o circuito financeiro em que o Estado tem se afundado. Pagar sem ter que recorrer a empréstimos de bancos privados aumenta a autonomia do Estado. Ao mesmo tempo os recursos disponíveis aos bancos privados não necessariamente diminuem. Fornecedores do Estado voltarão aos bancos para depositar o dinheiro obtido. Duas diferenças importantes surgiriam em tal situação. Uma delas é que o multiplicador bancário funcionaria de um outro modo. Ele não mais se basearia na promessa de pagamento futuro de um grande devedor, o Estado, cujo funcionamento expõe a riqueza monetária a vazamentos e assim reduz a criação da riqueza real. O multiplicador bancário teria como base os depósitos à vista dos fornecedores do Estado, provindos da criação anterior de riqueza real. Outra diferença é que os bancos vão ter que procurar outros tomadores de empréstimos que não o Estado. Talvez aí esteja uma oportunidade de incentivar o crédito produtivo. Os bancos deverão 11

A menos, é claro, que o Estado aceitasse impostos na forma de mercadorias. No entanto, isso significaria ou que o Estado teria de aceitar toda e qualquer mercadoria como meio de pagamento dos impostos ou que tivesse que adotar uma delas como medida de valor das demais. A primeira hipótese nos deixaria com o problema de definir se 10% da produção de laranjas se equivale a 10% da produção de cimento, e assim por diante. A segunda, equivaleria dizer que o Estado deve escolher algum produtor para ser o produtor do meio de pagamento de impostos. É claro que qualquer um produtor gostaria de estar nessa situação, na medida em que isso garantiria um mínimo para a demanda de sua produção. Um mínimo equivalente ao imposto sobre a produção dos demais produtores. 16

procurar firmas e famílias para financiar produção e consumo. E por terem que correr atrás de novos clientes ou que se esforçar para emprestar mais aos mesmos, quem sabe não emprestarão a juros menores? E ao haver maior quantidade e menor preço de crédito, quem sabe não haverá maior produção e consumo, i.e. crescimento econômico? Tal círculo virtuoso pode ter ainda melhores efeitos sociais em uma economia com desemprego e sub-emprego elevados. Havendo melhores oportunidades de crédito e emprego legais espera-se que haja, em algum grau, um concomitante incentivo ao emprego e às atividades empresariais não criminosos. Resta saber se o governo, que esquece a possibilidade de usar bem o seu poder exclusivo de emitir moeda, estaria interessado em sair da ciranda financeira. Alguma preocupação pode surgir em relação ao processo inflacionário por vias externas. Isto é, alguns economistas têm argumentado que os gastos do governo ao elevar a renda da sociedade poderiam aumentar as importações e pressionar a taxa de câmbio. A taxa de câmbio, por sua vez, pressionaria os preços internos, seja porque alguns produtos precisam de insumos importados para serem produzidos, seja porquê alguns produtores aproveitariam o encarecimento dos produtos importados concorrentes para aumentarem os preços de seus próprios produtos. Haveria, ainda, o risco de num mundo de livre movimento de capitais ocorrer uma fuga de capitais de um país que não seguisse as regras de bom comportamento. O primeiro argumento, deve-se reconhecer, é válido para qualquer tipo de elevação de gastos e não só os do governo. Mesmo supondo que só as empresas privadas (ou qualquer outro agente) realizassem investimentos, ainda que com déficit fiscal zero, a renda cresceria e a demanda de bens importados elevaria a taxa de câmbio. Esse é um problema sério que deve ser enfrentado pela economia brasileira para poder crescer novamente, mas não pode ser considerado um argumento exclusivo contra o aumento da quantidade de moeda. Quanto ao segundo problema, poderia-se argumentar então que a solução seria seguir políticas consideradas sadias pelos investidores internacionais para que se garantisse a necessária entrada de capitais que financiaria o crescimento econômico. Isso pode ser verdade tanto quanto se o financiamento se desse por gastos do governo. Não é lembrado pelos economistas que para cada dólar que entra na economia nacional, uma certa quantidade de moeda nacional deve ser emitida (dependendo da taxa de câmbio). Mas, se assumirmos que qualquer emissão de moeda é inflacionária, deveríamos repudiar o capital internacional assim como se repudia o gasto do governo. Claro, ninguém em sã consciência faria isso. Muitas vezes o capital internacional entra vinculado ao financiamento de importações de empresas nacionais. Isto é, empresas que compram máquinas, equipamentos, etc... do exterior também financiam suas compras junto a bancos internacionais ou junto ao próprio vendedor dos produtos no exterior. Porém, a experiência recente têm mostrado que esses capitais entraram em volume mais elevado do que as necessidades de financiamento das importações. A maioria entrou em busca de elevadas taxas de juros. ou de valorização especulativa de ativos nas bolsas. Como pode ser visto nos dados das contas públicas, a manutenção de elevadas taxas de juros implica em um elevado endividamento público. Assim, nada garante que os capitais que entrem vão financiar novos investimentos. Eles podem simplesmente se destinar à compra de títulos públicos ou privados a preços baixos. Vale enfatizar novamente que o investimento internacional tem os mesmos efeitos do que os gastos públicos: a) eles aumentam a quantidade de moeda nacional em circulação; ou b) eles aumentam a dívida pública em títulos. É possível argumentar, ainda, que o crescimento econômico financiado com recursos vindos do exterior têm a vantagem de não gerar pressões cambiais sobre custos e, adicionalmente, impingiriam uma forte competição para produtores nacionais que tentassem elevar em excesso seus preços. Esse é um fator importante que 17

mostra que a entrada de capitais não é, em si, indesejável, antes o contrário. Todavia, o excesso aqui pode ser tão problemático quanto a sua falta, embora os problemas possam ser de natureza diferente. Mesmo que os investimentos internacionais entrem para montar novas empresas não está garantido que eles vão gerar renda em moeda estrangeira suficiente para pagar as importações que crescerão com o crescimento da renda por eles provocado. Ainda que eles consigam gerar renda em dólares suficiente que paguem as importações por eles direta ou indiretamente geradas, o país enfrentaria um problema de insolvência externa no futuro, porque lucros e juros devem ser repatriados em moeda internacional. Um cálculo bem simples pode ilustrar o afirmado. Suponha que todo o investimento de uma certa economia seja financiado com recursos externos. Assim, fica garantido que para cada R$ 1 de renda existe alguma proporção fixa de dólares. Se a cada ano entram investimentos da ordem de 10% da renda nacional e as firmas obtém uma taxa de lucros média de 10%, em cerca de 7 anos toda a renda nacional poderá ser repatriada na forma de lucros e juros. A conclusão pode ser aterradora para os internacionalistas, mas a realidade dura da economia é que ela só pode crescer no longo prazo, sem se envolver em fragilidade externa, se houver investimento nacional. A outra dura conclusão é que de alguma forma o país deve evitar receber mais recursos do exterior do que suas necessidades de financiamento da conta corrente. Muitas políticas podem ajudar a gerar superávits em conta corrente, uma delas é não valorizar a taxa de câmbio. A regulação do movimento de capitais também deve ser considerado no rol de políticas que visem retomar a capacidade da economia crescer sem que sua renda se esvaia pela via das contas externas. Obviamente não se trata de evitar todo e qualquer investimento externo, mas de o considerar em complemento ao investimento nacional. Garantido esse não vazamento, voltemos à discussão dos gastos internos geradores de rendas. Apesar de ver as boas possibilidades do financiamento do gasto via emissão de moeda, há muitos que ainda receiam os possíveis efeitos inflacionários. A preocupação é legítima, havemos de entender. Afinal, não temos vivência suficiente de baixa inflação para não vermos a ameaça de uma hiperinflação à espreita em cada esquina. A isso temos também que somar os descuidos a que somos expostos, como aquele em que alguém esquecido resolveu na noite entre-mandatos reajustar o preço das moedas estrangeiras em quase cem por cento. Aos ainda muito preocupados sugerimos um esforço em identificar o não-problema da pouca inflação. O aumento de preços do produto à venda por uma empresa ou pessoa funciona também como um estímulo à produção. O movimento de preços é algo esperado dentro de uma economia monetária, da mesma forma que uma certa quantidade de gorduras é essencial ao organismo humano. Isso não significa negar que qualquer movimento de preços resulta em benefícios e prejuízos a diferentes pessoas e que excessos são, sem dúvida, problemáticos. O que se alega é que baixa inflação ou até mesmo reajustes setoriais mais volumosos podem trazer resultados gerais favoráveis ao crescimento econômico. Não se está sugerindo com isso que inflação é algo salutar, assim como ninguém sugeriria que recessão o é. Mas chamamos a atenção de algo que preocupa boa parte do mundo atual que é a deflação de preços e suas conseqüências também ruinosas para a capacidade da economia crescer e gerar empregos. Deflações fazem mais difícil a obtenção pelas empresas de receitas que sejam suficientes para pagar dívidas assumidas, seja para elevar a produção seja para realizar investimentos.

4.4 A regra de justiça que fortalece a analogia: tratamento igual aos desiguais?

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Nem sempre o que vale ou soa razoável para uma parte pode valer ou parecer razoável para o todo ou para outras partes de um sistema. No entanto, é comum que justifiquemos a aplicação de uma idéia que funciona em certas entidades do sistema econômico para todas as demais entidades do sistema econômico ao dizer justamente que a idéia funciona em certas partes. A analogia do Estado como família ou empresa parece se utilizar desta forma de argumento. A analogia funciona como um argumento de homogeneização ou equalização de valores (Perelman & Olbrechts-Tyteca 1969:126-9). Estado, firmas e famílias estão sendo assemelhados. É comum na teoria econômica o argumento de estrutura da realidade em que, numa economia fechada, Estado, firmas e famílias são os três componentes do sistema econômico (numa economia aberta, incluir-se-ía os mesmos componentes do resto do mundo). A partir daí, fica mais fácil utilizar o argumento quase-lógico de transitividade que se acopla à analogia: o que vale para uma ou mais das partes (firmas e famílias) vale também para o todo; e o que vale para o todo, vale para todas as partes (firmas, famílias e o Estado). Fica ainda mais fácil aplicar às entidades o que Perelman & Olbrechts-Tyteca chamam (idem:218) de “regra de justiça.” Segundo a regra de justiça, entidades de um mesmo tipo devem ser tratadas de modo idêntico. Quando firmas, famílias e Estado são vistos como entidades que, em essência, recebem e gastam, a aplicação da regra de justiça é quase imediata no que se refere à administração das duas atividades. A regra de justiça não deve nunca ser subestimada. Um empresário ou dono de empresa, por exemplo, pode facilmente utilizá-la na leitura da analogia em questão já que a regra faz transitivas as virtudes de sua própria atividade profissional. A mesma coisa acontece com a família. É mais fácil conhecer um objeto com o qual não se tem intimidade a partir dos conceitos que se conhece. Ou seja, é mais fácil para empresários e famílias achar que os princípios de funcionamento de X são um bom modelo para o funcionamento de todo o sistema Y (inclusive da entidade G) porque o funcionamento de X lhes é conhecido. Dizer que G deve funcionar de forma diferente exige a compreensão das diferenças, o que é mais trabalhoso. Outro aspecto relevante é perceber que, uma vez notadas as semelhanças, qualquer diferença parece uma aberração. Quando se fala no direito do Estado de emitir dinheiro, o empresário logo procura a semelhança e se pergunta se o mesmo é válido para a empresa. Se afirmativo, então a idéia passa a ser mais simpática. Se negativo, então o Estado também não deve ter o direito ou deve ser rigidamente restrito em tal atividade. Perelman & Olbrechts-Tyteca (idem:219), ao estudarem o repetido uso da regra de justiça, notam que tal regra não ajuda a definir a semelhança dos objetos envolvidos, e muito menos qual das muitas ações que podem se aplicar a qualquer um dos objetos envolvidos deve ser transitiva. Pode-se concluir, por exemplo, que firmas e famílias são entidades semelhantes porque se esforçam muito mais em reduzir gastos com juros do que em reduzir gastos com atividades que geram renda futura. A analogia ajudaria a fazer do Estado uma entidade semelhante a firmas e famílias e a regra de justiça, aplicada à nova situação, ajudaria a fortalecer uma direção de política econômica diferente.

4.5. Gastar e gastar: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa Os limites da analogia são ainda mais evidentes quando há a chance de discutir a ação de “gastar.” Já discutimos que, diferente de empresas e de famílias, o Estado tem o recurso à impressão de moeda para financiar suas despesas. Isso 19

bastaria para questionar a solidez de todos os ossos das pernas do argumento derivado da analogia. Mas um dos papéis da analogia é justamente impedir que a discussão sobre este assunto seja aberta. Como o intuito deste trabalho é tentar reabrir tais discussões, é preciso ver até onde a ação “gastar” tem paralelos na comparação entre as entidades envolvidas. Não vamos enveredar por assuntos como corrupção ou outros tipos de “vazamentos,” apenas com comportamentos do senso comum. Não exploraremos comparações como as diferenças entre os entes na capacidade e possibilidade de desviar recursos do sistema.12 Famílias e empresas, em geral, estabelecem prioridades em seus gastos. Em situação de falta de liquidez, famílias e empresas em geral “apertam o cinto.” Essa é a idéia a ser transmitida na analogia para o funcionamento do Estado. Uma diferença popularmente explorada neste raciocínio é a capacidade de alguns membros do Estado (e.g. no poder legislativo) de decidirem o quanto ganham. O choque com a lógica da analogia é óbvio. Por que os “acionistas” não são consultados a respeito dos ganhos dos “diretores?” Na família, não há sequer como montar um raciocínio paralelo. Mas em termos de argumentação econômica, o problema tem uma dimensão muito maior. A discussão a ser reaberta é a da qualidade dos gastos do governo. A escolha do superávit primário como objetivo maior de política econômica implica numa certa decisão sobre a qualidade do gasto. Como tem se tornado popularmente mais claro, a decisão é a de que a dívida mobiliária para com bancos e outros agentes financeiros é mais importante do que outros gastos. Quando se expõe os limites da analogia do Estado como família ou empresa, porém, a discussão sobre a qualidade dos gastos estatais é ampliada. As alternativas que se oferecem não implicam defender a idéia de “gastar por gastar” ou de que déficits operacionais ou nominais são por princípio benéficos ao crescimento econômico. Trata-se de argumentar tão somente que eles não são um mal em si. Novamente, são o nível de emprego e o de bem-estar da sociedade que devem ser o fiel da balança. Como já discutido, diferente de famílias e empresas, é possível ao Estado gastar mais do que arrecada sem que se recorra ao endividamento. O Estado pode criar moeda para pagar por suas compras. O argumento de que qualquer emissão de moeda é inflacionária sempre vem à tona, mas nunca se discute sua validade em situações de alto nível de desemprego. Nunca se discute a capacidade do Estado de usar sua posição de monopsonista ou oligopsonista principal em vários setores de atividade para criar uma liderança por preços (inclusive no mercado de trabalho). Em se considerando tal aspecto do poder econômico do Estado, novas formas de gasto não inflacionário podem ser discutidas. Nenhuma delas precisa ser tomada por regra geral e sem limites. Por exemplo, o Estado pode determinar o preço de compra nas suas licitações e forçar os mercados a se ajustarem à sua capacidade de pagamento. Assim como vendas do Estado podem ser feitas através de leilões, também compras o poderiam a partir de um preço de reserva não inflacionário. Compras em maior escala (gastos maiores num certo ano orçamentário) podem incentivar a produção de bens e serviços, além de poder induzir redução de preços unitários. No caso de bens estocáveis, o Estado pode se tornar um competidor no varejo com o intuito de afetar preços finais. 12

Tal exercício poderia ser levado a cabo com uma análise institucional mais detalhada, onde seriam exploradas as diferenças de objetivo e comportamento dos indivíduos ou grupos dentro de organizações diferentes, como a família, a empresa e o Estado. 20

Políticas industriais podem detectar setores ociosos ou ausentes que podem utilizar trabalho e outros recursos em desemprego. O gasto pode ser feito de forma direta ou por intermédio de crédito a empresas para utilização em fins específicos e com controle sobre a utilização do crédito. Vale ressaltar que tomamos por hipótese que o Estado gastará mais num determinado ano do que recebeu no ano anterior, caso existam recursos produtivos ociosos. Isso implica em dizer que à medida que o nível de emprego dos recursos ociosos for aumentado ao longo dos anos, o mais provável é que o Estado passe a operar com superávit em suas contas. Isso se dá através do conhecido multiplicador de gastos. Cada R$ 1 que o governo gastar e gerar em renda levará a um aumento do gasto do recebedor da renda. Ao longo de alguns períodos, um gasto inicial de R$ 1 terá gerado mais do que apenas R$ 1 de renda. Logo, embora o governo tenha gasto apenas R$ 1, suas receitas de impostos virão de uma renda maior do que R$ 1. Se, por exemplo, supusermos que cada recebedor de renda gasta 75% dela em média, o gasto inicial do governo de R$ 1 gerará ao longo do tempo uma renda total de R$ 4. Supondo uma carga tributária de 25% do PIB, nota-se que o governo terá arrecadado, no fim do período de atuação do multiplicador de renda, o equivalente ao que gastou inicialmente. Finalmente, se o setor privado começar a demandar mais os recursos antes ociosos e agora utilizados pelo Estado, o Estado poderá, para não pressionar os preços, vender os recursos a preços fixos para o setor privado. Novamente, haverá uma pressão superavitária nas contas do governo. O acima descrito se ajusta completamente aos argumentos de equilíbrio fiscal a longo prazo. Além disso, dá uma explicação de como tal equilíbrio é operacionalizado ao invés de supor a necessidade de tal equilíbrio. De fato, o tal equilíbrio das contas públicas torna-se uma decorrência do funcionamento de uma economia saudável, onde os recursos produtivos são utilizados em sua plenitude sem desperdícios.13 No entanto, esse equilíbrio torna-se inalcançável quando o governo adota um viés fiscal superavitário.

5. UM POUCO DE RESPONSABILIDADE E BOM-SENSO: CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos ter chamado a atenção do leitor para os efeitos da metáfora do Estado como família ou empresa sobre o rumo da política econômica no Brasil dos anos 1990 e suas conseqüências sobre a vida dos brasileiros. A metáfora foi e continua sendo utilizada para moldar a percepção que se tem da natureza e das funções do Estado. Em outras palavras, ela ajuda a moldar o que a sociedade aceita ou não que um governo faça do e com o Estado. O poder de persuasão da metáfora em estudo se deve grandemente aos seus elementos de senso comum e à sua adequação à situação retórica com que os governos brasileiros recentes têm se deparado. A metáfora tem sido capaz de auxiliar tais governo na legitimação de políticas econômicas restritivas. Como qualquer política econômica, essas políticas restritivas têm tido conseqüências sobre a vida das pessoas, favorecendo ou prejudicando mais algumas do que outras. A grosso modo, aspectos de semelhança foram evidenciados pela metáfora do Estado como família ou empresa de tal modo que políticas fiscais e monetárias foram supostamente dirigidas a um objetivo de déficit zero ou de superávit primário. A isto se comparava a administração racional de orçamentos tanto de famílias quanto de 13

Os índices elevados de desemprego da economia brasileira atual é mostra suficiente de desperdício de recursos. Para um exemplo mais alarmante de tal desperdício, vide o quanto de mão-de-obra altamente qualificada deixa de ser utilizada. 21

empresas. Diferenças importantes de natureza entre aquelas instituições foram deixadas de lado pelos simpatizantes da metáfora, prejudicando a discussão de políticas alternativas. Nossa posição é a de que os limites da metáfora e suas implicações devem ser discutidos abertamente. Isso pode contribuir para a reorientação de políticas econômicas de forma que algumas mortes anunciadas possam ser evitadas.

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