Metapsicologia militante: estratégia e motivação da pesquisa

June 16, 2017 | Autor: Gabriel Tupinambá | Categoria: Psychoanalysis, Plato, Jacques Lacan, Sigmund Freud, Alain Badiou, Psicanálise, Platão, Psicanálise, Platão
Share Embed


Descrição do Produto

VIII Encontro da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP): Psicanálise e as Formas do Político

Metapsicologia militante: estratégia e motivação da pesquisa Gabriel Tupinambá [email protected]

§1 Tomemos como ponto de partida a ambiguidade contida no próprio título: a expressão “metapsicologia militante” poderia tanto fazer referência a um estudo que, partindo da metapsicologia freudiana, se debruçaria sobre a militância, a organização coletiva e os processos políticos, quanto introduzir uma investigação sobre a própria metapsicologia, interrogada do ponto de vista do engajamento do analista com a própria psicanálise. Em outras palavras, “metapsicologia militante” poderia tanto ser o título de um trabalho que se ocuparia dos ideais políticos a partir da crítica psicanalítica quanto de um trabalho que examinaria a psicanálise do ponto de vista do compromisso do analista com a inscrição da hipótese do inconsciente no mundo, ou seja, seu engajamento com uma ideia. Acontece que este trabalho não irá nem por um nem pelo outro caminho. O que vamos fazer é tentar nos concentrar na diferença entre eles, isso é, na diferença entre os ideais e as ideias. Mais especificamente, buscaremos introduzir uma estratégia geral - apenas as primeiras linhas de demarcação - para que tal distinção possa ser articulada de maneira intrínseca ao pensamento psicanalítico. Isso porque defenderemos aqui a seguinte posição: há um déficit conceitual na psicanálise cujo principal efeito é promover uma relação precária, ainda que necessária, com outros campos do pensamento - como a arte, a ciência e a política. Retornaremos mais a frente a esse ponto. A estratégia que vamos apresentar aqui, como todo plano, pode ser definida por três pontos. O primeiro, mais complicado, diz respeito à ontologia e à natureza, pois a distinção entre ideia e ideal esbarra, antes de mais nada, nos pressupostos ontológicos da psicanálise. O que está em jogo aqui é a questão: a indeterminação é uma propriedade exclusiva do ser falante? A resposta corriqueira é que “sim”: o significante introduz a falta no mundo, a falta constitutiva do desejo, e o desejo é aquilo que é próprio ao ser falante. A significação dessa falta, lá no modelo freudiano de Psicologia das Massas, é operada pelo par “ideal do eu” e “eu ideal”. Lacan, mais tarde, suplementa esse modelo com seu avesso: se o ideal localiza a falta a partir da identificação, o superego, aquilo que emerge quando o ideal não consegue distribuir o que é do “eu” e do “outro”, vai operar pela via da angústia e da demanda de sentido. Pois bem, o que nós vamos propor aqui, sem prejuízo para a teoria do ideal, é que não é possível deduzir da tese, fundamental à psicanálise, de que há algo de faltoso no ser falante o corolário de que só há indeterminação no desejo humano. Pelo contrário: para superarmos “a filosofia espontânea da psicanálise”, que está mais para uma teologia, um imperativo que diz “não perguntarás sobre a origem do significante”, o que precisamos é menos uma teoria da excepcionalidade do ser humano, e mais uma teoria da precariedade do mundo e da natureza. Ou seja, uma ontologia que dissemine a indeterminação no ser, ao mesmo tempo generalizando uma certa dimensão da metapsicologia para além de seus confins atuais e nos convidando a “mais um esforço” para distinguir a região singular do mundo que é o desejo humano.

!1

VIII Encontro da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP): Psicanálise e as Formas do Político

Atravessada essa tarefa hercúlea, o segundo ponto no nosso plano de trabalho pertence mais ao campo da epistemologia e, até por isso, é um pouco menos polêmico. Munidos agora do espaço para afirmar que a alteridade não é propriedade exclusiva da relação do homem com o mundo e consigo mesmo, cabe a nós então reconstruir o modelo freudiano da massa primária, que serve de base para a teoria dos ideais na psicanálise, a partir dessa afirmação. Lacan já fez boa parte do trabalho para nós ao retornar à noção de “traço unário”, encontrada na obra de Freud, elevando-a à categoria de conceito. Esse trabalho conceitual é essencial não só por ter encontrado ali a chave para a relação entre o gozo e a identificação - esclarecendo o que está em jogo no “je ne sais quois” do líder, por exemplo - mas também por ter articulado esse retorno em termos da dialética do Um e do Outro. Trata-se de uma reformulação importante, que nos permite pensar o esquema que liga o “objeto externo” ao “objeto ideal”, ao “eu ideal” e ao “ideal do eu” em termos das operações de composição, oposição e divisão que também estão em jogo em nossa teoria das ideias. Uma vez apresentada a teoria freudiana do ideal nesses termos mais gerais, e munidos de uma hipótese adicional a respeito da indeterminação no mundo, proporemos finalmente uma cisão no conceito de “objeto externo” proposto por Freud. Defenderemos que, se o objeto externo é apreendido naquilo que ele tem de um, temos a operação do ideal, e no que tem de vazio, temos uma operação suplementar, que relaciona o desejo e a ideia. Por sorte - e esse é o nosso terceiro e último ponto - não é necessário tirar esse esquema alternativo da cartola. O filósofo Alain Badiou, que se auto-intitula apropriadamente um “platonista do múltiplo”, propõe uma teoria da ideia que, diretamente condicionada pela psicanálise, faz uso justamente de uma ontologia da indeterminação, na linha daquela que introduzimos aqui. As ideias, para Badiou, expõem o ser falante àquilo que é indeterminado na própria tecitura das situações. Ao invés de distribuir o mundo, como é tarefa do ideal, de acordo com os “complexos do eu” e do “outro”, para citar o Freud do Projeto de uma Psicologia Científica. As ideias orientam a construção de um trajeto que, não produzindo nenhuma totalização desses dois complexos, nenhum princípio fusional, no entanto não pode ser classificado nem como pertencendo ao eu, nem ao outro. Notem, no entanto, que a novidade aqui não é tanto que haja algo que se subtrai à divisão entre o dentro e o fora: a teoria da ideia badiouiana tem muito a ver com a teoria psicanalítica do objeto a, a novidade é pensar essa subtração em termos de uma trajetória, de uma continuidade, e não apenas da ruptura ou da causa. Ou, como Badiou nos desafia, trata-se de pensar o real não apenas como causa, mas também como consistência. Resumindo. Primeiro, o problema da falta-a-ser - seria a indeterminação propriedade do que é extraordinário ou do que é ordinário no desejo? Em seguida, a teoria do ideal - ou seja, a reconstrução do esquema da massa primária na obra de Freud a partir do conceito de traço unário de Lacan. Por fim, a teoria da ideia - que é quando, retomando a hipótese ontológica da indeterminação, vamos buscar na obra de Alain Badiou alguns recursos para esquematizar um novo operador metapsicológico. §2 Entendendo um pouco melhor o caminho que nos aguarda, e suas enormes dificuldades, é importante voltarmos, por um momento, às nossas considerações iniciais. Sem uma boa razão, acessível a todos, é difícil encontrar fôlego tanto para empreender essa tarefa, quanto para perturbar os pressupostos atuais da psicanálise. Assim, concluindo nossa introdução, gostaria de apresentar as duas principais motivações por trás desta linha de pesquisa. A primeira diz respeito ao que acontece !2

VIII Encontro da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP): Psicanálise e as Formas do Político

quando não temos uma teoria da ideia na psicanálise, a segunda, ao que poderíamos fazer caso elaborássemos uma. Comentamos anteriormente que um certo déficit conceitual é visível na forma dos laços que a psicanálise estabelece com outros campos do pensamento. Conceitos como o de “sublimação”, de “transmissão integral”, de “práxis”, todos eles utilizados para navegar a forma social do gozo, seja pela via da singularidade das produções do desejo, de sua estrutura formal ou de seu encaminhamento clínico, fazem uso de um procedimento comum: são importações advindas não da arte, da matemática e da política, mas da filosofia da arte, da ciência e da filosofia política, e que, em seguida, são utilizadas como argumento contra a própria filosofia, “jogando fora” a escada pela qual subimos, por assim dizer. O que acontece então é que, por causa dessa distorção do papel da filosofia, acabamos por tomar a concepção de arte, de ciência e de política apresentada por uma filosofia específica pela própria expressão do pensamento artístico, científico ou político: 1. Quem importa teorias sobre a sublimação e a tragédia através da filosofia heideggeriana, sem reconhecer as consequências dessa aliança, acaba silenciosamente assumindo que a ideologia da abertura poética, do confronto com a finitude, etc, é uma consequência intrínseca ao pensamento analítico, e não a ideologia de um período específico do pensamento filosófico sobre a arte - não se tratando nem mesmo de um operador propriamente artístico. 2. Se a gente simplesmente aceita que a epistemologia desenvolvida na França dos anos 60 exaure o que é a ciência moderna, fica difícil separar lógica e matemática, o que é um traço fundamental do desenvolvimento matemático recente, ou separar matematização e mecanicismo, e aí não podemos entender os avanços reais da biologia contemporânea. 3. E por fim, se a gente tira do contexto histórico o violento rebaixamento da política programática frente à autenticidade das práticas localizadas - resposta abrupta da política revolucionária ao período pós-estalinista - aí então fica dificílimo imaginar a legitimidade de qualquer programa de política emancipatória hoje - ainda que apareça, de dentro do próprio campo marxista, uma visão política que acolha as críticas legítimas à normatividade realizadas nos anos 60 e 70. Chegamos assim à situação paradoxal em que o campo que mais tomou conceitos de empréstimo de outros se arvora o direito de não conhecê-los efetivamente por causa dessas mesmas importações. Essa situação chega ao limite do absurdo no caso da filosofia, pois esse uso particular que fizemos do pensamento filosófico é, em seguida, considerado inerente à própria estrutura da filosofia: não fomos nós, analistas, que usamos a filosofia para “tapar buracos” da teoria analítica, é a filosofia que tem essa obsessão de sair por aí, sem ser chamada, tapando os buracos do universo! Isso nos leva à segunda razão que eu gostaria de mencionar antes de seguirmos em frente. Se tudo isso acontece por conta da forma com que a psicanálise realiza esses trâmites conceituais, a gente tem que se perguntar, afinal, o que esses aportes estão vindo suprir - e mais, por que a gente preferiria estabelecer esse tipo de relação atravessada com o pensamento não-psicanalítico ao invés de promover, se possível, a inovação em torno desse déficit de maneira mais imanente à própria psicanálise. Mencionei en passant que tanto a sublimação, que oferece uma espécie de teoria da passagem entre o sexual e o assexual, quanto a teoria da formalização como transmissão integral e a concepção de práxis como “tratamento do real pelo simbólico”, têm algo a ver com a “forma social do gozo” - o !3

VIII Encontro da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP): Psicanálise e as Formas do Político

que é evidentemente uma expressão meio complicada, já que o gozo, não servindo pra nada, promoveria justamente um empuxo à singularização, subtraindo a gente dos universais, das comunidades, etc. Mas aceitando a premissa de que o modo de gozo de cada um é radicalmente singular, a gente cai em três perguntinhas difíceis de responder: como é que pudemos reconhecer a existência daquilo que não participava, até nós psicanalistas aparecermos, da esfera do reconhecimento? Como que pudemos afirmar a singularidade de algo se só temos meios universais ou particulares de afirmar qualquer coisa? E, por fim, como uma prática pode intervir na singularidade sem ofuscá-la, aplicando padrões normativos de atuação e verificação? Nos três casos, o que está em jogo não é apenas explicar como inscrevemos socialmente aquilo que é, em algum sentido, associal, mas também dar conta do tipo de procedimento que foi capaz de organizarse em torno daquilo que não tinha lugar no mundo até essa mesma organização surgir. Ou seja, não se trata apenas da expressão do inconsciente na clínica, mas de pensarmos as condições que levaram a psicanálise a organizar um espaço para a “atualização” do inconsciente, uma vez que não podemos nem reduzir a constituição da clínica psicanalítica à contingência dos processos culturais que a precederam, nem podemos aderir ao mito romântico do médico vienense que teria suportado solitariamente as consequências de escutar, pela primeira vez, o que diziam as histéricas. Nos falta justamente um nome para (1) a dimensão cultural da não-relação sexual, que (2) circula de maneira universalmente transmissível, e (3) orienta a prática clínica para além da reprodução das identificações, rumo a algo novo. Pois bem, se convidássemos um filósofo para intervir aqui com mais do que “sua touca de dormir”, certamente nos seria sugerido que o nome dessa falta é ideia. Isso nos traz, finalmente, ao cerne desse segundo problema. Sem uma compreensão intrapsicanalítica da operação que implica o psicanalista na inscrição da hipótese do inconsciente no comum da cultura, ou, como define Badiou, “projeta a exceção no comum das existências”, o que sobra é um debate improdutivo e ao mesmo tempo insuperável. Ou bem a psicanálise é emancipatória, por não esperar nada da cultura, ou é normativa e alienante, por reproduzir padrões culturais específicos. Para nos subtrairmos desse debate estéril, precisamos de uma psicanálise que se preocupe menos com ter um ideal de ciência, ou com ser um ideal para a ciência, e mais com afirmar e inscrever a ideia de psicanálise no mundo. Parece meio simplista, mas é quando reconhecermos esse movimento dentro de nosso próprio campo de pensamento que seremos capazes de reconhecê-lo, por exemplo, na dimensão subjetiva da militância política, da criação artística ou científica. Mas seria viável uma teoria da ideia compossível com o inconsciente? Quem diz “inconsciente” diz “sem ideia”?

!4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.