Metodologia da pesquisa em estudos classicos

June 29, 2017 | Autor: Silvio Marino | Categoria: Classics, Ancient Philosophy, Classical Studies
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é professor e assessor do Curso de Filosofia da Universidade Católica de Brasília. Dedica-se no momento à realização de pós-doutorado em Filosofia na Universidade de Brasília, onde é pesquisador-colaborador, e na Universidade de Coimbra. É membro do Grupo Archai: as origens plurais do pensamento ocidental, do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília; e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Platonistas (SBP) e da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC). Atua principalmente nos seguintes temas: interfaces entre filosofia e literatura, trágico, fragmentação, literatura comparada e recepção da Antiguidade na literatura moderna.

COLEÇÃO FILOSOFIA E TRADIÇÃO

ESTUDOS CLÁSSICOS

II

Gilmário Guerreiro da Costa

ESTUDOS CLÁSSICOS

é professor de Filosofia Antiga do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília e Coordenador do Núcleo de Estudos Clássicos (NEC) da mesma Universidade. Editor da revista Archai , coordena a Cátedra UNESCO Archai: as origens plurais do pensamento ocidental. É também presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e presidente da International Plato Society. Suas pesquisas foram dedicadas à história da filosofia antiga, com especial ênfase nos pré-socráticos e Platão, e mais em geral à história do pensamento ocidental.

G abriele C ornelli G ilmário G. da C osta

Gabriele Cornelli

II UNESCO • ARCHAI - UNIV. BRASÍLIA • IUC • ANNABLUME

HISTÓRIA, LITERATURA E ARQ UEOLOGIA

Gabriele Cornelli Gilmário Guerreiro da Costa

UNESCO | CÁTEDRA UNESCO ARCHAI - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA | IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | ANNABLUME

RESUMO DA OBRA Muitas vezes se indagou dos motivos de persistirem os estudos clássicos ao longo da história, em geral, e em nossa época, mais especificamente. De onde proviria seu encanto e fascínio? A história da recepção dos textos clássicos antigos notabilizase por respostas percucientes a essa questão, entre as quais se destacam a amplitude das pesquisas e os planos múltiplos oferecidos no tratamento dos seus objetos de investigação. Mostra significativa desse movimento pode atestar-se neste segundo volume da coleção Filosofia e Tradição, que ora oferecemos aos nossos leitores, dando continuidade à publicação dos materiais produzidos no Curso de Especialização em Estudos Clássicos oferecido pela Cátedra UNESCO Archai. São trabalhos que articulam história, literatura e arqueologia. No desfecho, oferecemos uma seção dedicada a problemas metodológicos peculiares a essa área de pesquisa. Nossa expectativa é a de serem os textos aqui reunidos meio valioso de pesquisa e aprimoramento nos estudos clássicos, inspirando, esclarecendo e fortalecendo o ânimo dos seus leitores na dedicação a uma fonte abundante de reflexão e beleza.

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Gabriele Cornelli Gilmário Guerreiro da Costa (Orgs.)

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Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) em cooperação com a UNESCO. Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora.

© UNESCO 2013. Todos os direitos reservados.

Revisão técnica: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil Revisão: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil e Cátedra UNESCO Archai Projeto gráfico: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil Ilustrações: Fábio Vergara Cerqueira, Cora Dukelski e Paulo Faber Estudos clássicos II: história, literatura e arqueologia / organizado por Gabriele Cornelli e Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai, Annablume Editora; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. 190p. – (Coleção filosofia e tradição; 2). Incl. Bibl. ISBN: 978-85-7652-183-9 1. Filosofia 2. Ensino de filosofia 3. Filosofia da história 4. Estudos culturais 5. Civilizações antigas 6. História 7. Literatura 8. Arqueologia 9. Metodologia científica I. Cornelli, Gabriele (Org.) II. Costa, Gilmário Guerreiro da (Org.) III. Cátedra UNESCO Archai IV. Universidade de Coimbra

UNESCO Representação no Brasil Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar 70070-912 – Brasília/DF – Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 2106-3967 Site: www.unesco.org/brasilia E-mail: [email protected] facebook.com/unesconarede twitter: @unescobrasil

Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) Rua da Ilha, 1 3000-214 Coimbra, Portugal

Cátedra UNESCO Archai Universidade de Brasília Caixa Postal 4497 70904-970 Brasília/DF

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Impresso no Brasil pela Annablume Editora Impresso em Portugal pela Imprensa da Universidade de Coimbra

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Sumário

Apresentação ................................................................................................................9 Parte I: profa. dra. Sandra Lúcia Rocha Literatura grega ..........................................................................................................15 Capítulo I : Representações do amor na literatura grega .........................................17 Capítulo II: Ecos homéricos em representações da morte em Atenas .......................29 Parte II: prof. dr. José Luiz Brandão Literatura romana .......................................................................................................37 Capítulo III: A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial ..........39 Capítulo IV: Os césares segundo Suetônio: elementos dramáticos e novelísticos ..........67 Parte III: prof. dr. Fábio V. Cerqueira História grega .............................................................................................................83 Capítulo V: Sentimentos íntimos femininos vistos pela poesia imagética dos pintores de vaso: representação iconográfica do casamento e do amor matrimonial na cerâmica ática (séculos VI e V a.C.) .......................85 Capítulo VI: Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos, dos gregos aos modernos: desnaturalizando noções, diversificando a homo/heterossexualidade ........................................................................119

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Parte IV: profa. dra. Renata Garraffoni História romana ........................................................................................................147 Capítulo VII: Pensando conceitos para estudar a história de Roma ........................149 Capítulo VIII: O exército romano: diferentes maneiras de pensar sobre Roma e seus exércitos .....................................................155 Parte V: prof. dr. Pedro Paulo Funari Arqueologia ..............................................................................................................163 Capítulo IX: Arqueologia clássica: os inícios ..........................................................165 Parte VI: prof. dr. Sílvio Marino Metodologia da pesquisa em estudos clássicos ..........................................................173 Capítulo X: Questões introdutórias ......................................................................175 Capítulo XI: Problemas de interpretação dos textos antigos ..................................183

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Prof. dr. Sílvio Marino Universidade de São Paulo (USP)

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Capítulo X

Questões introdutórias

A questão do método, da metodologia a seguir para alcançar resultados desejados, não é uma questão moderna; o nome mesmo nos diz da origem grega desse conceito. O termo método é composto por duas palavras: meta (com, através) e hodos (estrada, rua) e indica o caminho que o saber, uma ciência o uma técnica tem que seguir para chegar a resultados “corretos”. Uma metodologia, podemos dizer, pertence a uma única ciência, ou seja, determinada metodologia deve referir-se exclusivamente a uma ciência. Isso significa que não estamos falando dos estudos clássicos como de uma “ciência”, o que me parece bastante desafiante, porque, diferentemente das ciências definidas exatas, a pesquisa sobre o passado não acaba em uma série de dados numéricos quantificados, mas chega a resultados que podem ser avaliados qualitativamente. Dizemos isso de dados que já têm um sentido por si mesmos, um significado e um horizonte de sentido que permitem uma visão mais ou menos geral do que se está estudando. O que quero dizer com isso? Quero dizer que estamos lidando com interpretações, ou, para dizer melhor, conforme Umberto Eco, estamos lidando com interpretações de interpretações. Se o filósofo x escreve um tratado sobre y – desde que tenhamos o texto –, ou o historiador z escreve sobre o fato p, isso significa que está dando uma própria interpretação de um fato (natural ou social) que observou e analisou. Já o trabalho do classicista, que lida com a filologia, a filosofia, a história, o pensa-

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mento político e científico, é interpretação do texto do autor x, ou seja, é essencialmente uma interpretação de uma interpretação. A interpretação de segundo grau (do classicista) se torna, então, uma perspectiva acerca de uma perspectiva de pesquisa (aquela do autor x). No entanto, a interpretação que fazemos depende do texto ou de nós? Não quero dar uma resposta a esse aspecto, que nos levaria muito longe, sendo essa a questão decisiva da hermenêutica textual. Com essa pergunta quero simplesmente destacar que as interpretações das interpretações – o que dizemos sobre o pensador x –, embora recortem um âmbito muito pequeno do mundo antigo, de qualquer maneira estão já inseridas em um campo de sentido preciso, que depende da pergunta que nós fazemos ao texto e da perspectiva pela qual queremos ver o passado. Certamente, nem todas as interpretações podem ser corretas, e por isso é preciso utilizar uma metodologia que possa indicar os passos a tomar para que não se caia na tentação de especular ad libitum sobre as doutrinas dos pensadores da Antiguidade – prática muito usual entre os pensadores contemporâneos que remetem aos antigos. No entanto, pode-se perguntar: há uma única metodologia para o estudo da Antiguidade? A unidade do método é uma certeza? Parece-me mesmo que não. E me parece que não porque a unidade do método teria que pressupor a unidade do objeto, e então teríamos de nos perguntar antes: os estudos clássicos são um sujeito unitário ou não? Definição do objeto histórico O que são os estudos clássicos? Eles representam disciplinas também muito distantes entre si; pensemos na história do pensamento político clássico, na especulação filosófica, na correção de um texto ou na arqueologia. Nesse âmbito tão grande não se pode traçar um perfil, e ainda por cima em poucas páginas, de uma metodologia que possa ser adequada a todos os âmbitos. Gostaria de lembrar que cada disciplina tem suas próprias metodologias e próprios procedimentos, que não podem ser comparados aos das outras disciplinas. O que se pode oferecer é um sentido geral para a reflexão sobre os antigos. O que eu gostaria fazer aqui é dar alguns conselhos para quem estuda o mundo antigo, para explicitar conceitos que precisamos ter em conta. Em primeiro lugar, para começar uma pesquisa em qualquer campo, temos que definir o nosso “objeto de pesquisa”, ou seja, o “objeto histórico” com o qual entraremos em contato. Definir no sentido latino de “traçar confins” – ou, como querem os gregos, horizesthai-diorizesthai –, delimitar o campo que queremos

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“cultivar”. Para fazer isso teremos que entender o quê e quem tencionamos estudar, qual aspecto do pensamento de um autor queremos destacar e porque nos parece necessário nos envolvermos em uma pesquisa. A primeira coisa que é preciso estabelecer é o problema que desejamos resolver, e em seguida circunscrevê-lo e identificar as questões que estão em jogo. Para fazer isso é preciso explorar a bibliografia referente ao objeto de pesquisa. Claramente a categoria estudos clássicos poderia ser entendida como abarcadora de todas as conceituações antigas. Contudo, podemos verdadeiramente compreender sob uma única categoria as produções intelectuais ou artísticas antigas da China, da Índia, da Babilônia? Talvez sejaexagero pretender tudo isso, embora possa ser interessante, sem dúvida, e embora haja importantes pesquisadores que se ocupam ao mesmo tempo e comparando entre si aspectos da Grécia e das culturas orientais (Geoffrey Lloyd é o exemplo mais famoso hoje em dia). Precisamos, todavia, sempre ter claros os pontos de contato e de alteridade entre as diversas civilizações, e não somente, por exemplo, entre a grega e a chinesa, mas também entre civilizações muito mais próximas, tal como a grega e a romana. É preciso compreender onde, entre uma cultura e outra, haveria um continuum, e onde não. Isso é um discurso, para o nosso campo de estudos, que pode, por exemplo, interessar a antropologia histórica, âmbito por muitos invocado, mas poucas vezes desenvolvido verdadeiramente. Por outro lado, como se faz para criar um objeto de pesquisa? Claramente o ponto de partida é o texto, qualquer tipo de texto, seja ele tratado, diálogo, poema, carta, testemunho sobre um autor, imagem pictórica, estátua etc. Cada um desses tipos de texto terá uma metodologia diferente de pesquisa, sendo diferente do tipo de texto em que o pensamento do nosso autor x se expressa. Como primeira coisa, o texto! No entanto, os estudos clássicos são feitos a partir de duas línguas, o grego e o latim, que é preciso conhecer para começar uma pesquisa. Assim, a segunda coisa importante a se ter em conta é a língua. Porém a língua, especialmente a grega, não foi sempre a mesma ao longo de sua vida; os significados das palavras podem mudar, pode haver termos que em um âmbito significam uma coisa e, em outro, outra. Precisamos estar cientes de que a língua grega escrita teve uma vida muito mais longa do que a das nossas línguas “vulgares”, uma vida que vai do século VIII a.C., mais ou menos, até os desdobramentos bizantinos: uma vida de mais de dois mil anos! Claramente temos todos os instrumentos para não

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nos perdermos nesse mare magnum, mas desses instrumentos vou falar brevemente na segunda aula. O que queria fazer era indicar, imediatamente, quanta atenção temos que prestar quando entrarmos em contato com um texto distante de nós mais do que dois mil anos. Clássico e antigo Falamos de definir e de definições. Precisamos, por isso, ser um pouco mais precisos nesse assunto. Demos, en passant, uma definição do termo metodologia por meio de uma imagem que coloquei, a da estrada, do caminho por um lugar que afinal leva ao destino, um caminho que tem etapas. Gostaria de falar brevemente do conceito de antigo, introduzindo-o com uma anedota. Certa vez, quando era doutorando e estudava em Paris, me aconteceu de sair com os meus amigos e outros pesquisadores que nunca havia encontrado antes. Na Rue de Rivoli, perto do Hôtel de Ville, converso com uma doutoranda que estudava paleografia. Em certo momento, ela me pergunta o que eu estudava, e claramente lhe digo que estudava filosofia antiga. A essa altura, ela me pergunta à queimaroupa: “Mas ‘antiga’, quanto?”. Fiquei um pouco confuso por uma pergunta tão ingênua, de modo que pensei que ela queria tirar sarro de mim. Seja como for, também a ingenuidade da pergunta me empurrou a dar uma resposta e, para não parecer soberbo, lhe disse laconicamente: “Estudo Platão”. Porém, a pergunta poderia se especificar neste sentido: “Quão ‘antigo’ é Platão?”. Felizmente ela não a fez! Isso me impele, agora, ao problema de propor uma resposta: o quão antiga é a filosofia antiga? Podemos dizer que antigo pode significar também velho, e nesse sentido não há dúvida de que a filosofia antiga seja uma coisa muito velha. Entretanto, antigo leva consigo também outros significados, como clássico e fundamento, e talvez a resposta esteja nesses dois conceitos. Comecemos pelo segundo. Antigo, no sentido de fundamento, pode dar significado a tudo o que veio depois, na história da cultura, e apoia o próprio ser sobre o que a Antiguidade já disse. Nesse sentido, as discussões dos filósofos, dos historiadores, dos cientistas sucessivos são construções na base das quais há toda a especulação antiga. Não poderíamos entender, em resumo, o aristotelismo e o antiaristotelismo da época moderna sem Aristóteles, ou a teoria copernicana, ou ainda o hipocratismo na medicina, que chega até o século XIX, sem conhecer os autores antigos.

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Entretanto, o conceito de antigo como clássico indica também uma outra perspectiva, que age mais por dentro das coisas e no nosso modo de entender a cultura. Considerar o antigo como clássico significa que o pensamento que gregos e romanos expressaram funciona como um paradigma, um código genético que a literatura, a filosofia e a política têm por dentro de si, como uma espécie de impostação que, também no mudar das doutrinas e das correntes de pensamento, nunca desaparece. A esse ponto se põe a pergunta acerca do conceito de clássico e do uso que desse conceito os modernos, nós mesmos, fazem, porque podemos ter muitos usos de clássico também irreduzíveis uns aos outros. Para ficar no século XX, pensemos na escultura da Rússia soviética, em que a estatuária se inspirava em cânones gregos para propor um novo modelo de homem. Ou pensemos no classicismo dos anos 1920 e 1930 da Alemanha nazista, em que o modelo grego era considerado uma chave nacional-socialista para operar uma regeneração, uma palingénesis do povo alemão – pensemos no fato de que os nazistas, em sua propaganda, se referiam muitas vezes à “República” de Platão para se propor como os guardiões do novo Estado regenerado. Pensemos também no fascismo na Itália, que não foi um movimento só político, mas interessou pelos mais importantes aspectos da cultura, como a arquitetura; pensemos, enfim, no pós-moderno e nas colunas dóricas dos locais dos anos 1980! Claramente o “clássico” serviu para justificar conceituações da arte, especulações filosóficas e também visões da vida e da política. Nesse sentido, a categoria de clássico atravessa toda uma cultura e um tempo e, se pensamos na nossa época “democrática”, não podemos não notar o quanto a propaganda da democracia “exportada” se refere ao exemplo grego! Somente após a devida reflexão é possível descobrir que a democracia dos antigos não era mesmo o que quereriam mostrar os sustentadores da “democracia em todos os países”. É preciso, portanto, prestar muita atenção quando a categoria de clássico está sendo utilizada sem uma reflexão adequada sobre as conceituações antigas, porque poderíamos perceber que os “clássicos” dos quais estamos falando na verdade são “muito modernos”. O trabalho do classicista é também o de refletir sobre as interpretações modernas acerca do mundo antigo. O clássico se torna, assim, uma macrocategoria capaz de incluir coisas que não podem ser próprias do mundo clássico. Nesse sentido, clássico indica uma coisa que é um ponto firme, uma perspectiva privilegiada com que observar a cultura em suas mais diversas manifestações. Aqui, todavia, vamos além dos limites da nossa matéria, porque clássico indica uma coisa que é um ponto de referência, não importa

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o quão “velho” seja. Italo Calvino, em “Perché leggere i classici”, nos diz que o clássico é um texto que nunca deixa de nos falar, que nos indica sempre perspectivas novas; clássico é um texto em que notamos, cada vez que o lemos, coisas que antes nunca achamos. Um clássico pode ser, e com certeza é, o “Dom Quixote”, mesmo não tendo sido escrito por um grego ou um latino. Temos que tentar mediar essa linda sugestão com o dado da história, e dizer que antigo tem uma data de nascimento e uma de morte. Podemos dizer que o mundo clássico nasce na Grécia e nas colônias da Ásia Menor e da Magna Grécia por volta do século VIII a.C. e termina com a data símbolo do 529 d.C., ano do encerramento da Escola de Atenas pelo imperador Justiniano, ou seja, com o que se chama de época tardo-antiga, em que o pensamento pagão (grego e romano) se confronta cada vez mais com o pensamento cristão – pensemos em Agostinho, por exemplo. Nesse sentido, antigo deve ser entendido como Período Antigo, que vem antes da Idade Média. No entanto, essas são distinções temporais que interessam também à história propriamente dita, e indicar uma data se torna bastante arbitrário, porque, falando de literatura ou de filosofia, temas, estilos e métodos de pesquisa que podemos chamar de antigos se encontram deste lado e além desta data. Como conselho a todos, digo para ler um bom manual de história antiga para compreender um pouco melhor o que acontece na história desse período, porque a pesquisa sobre o pensamento antigo não pode abster-se da história geral em que esses pensadores, poetas e artistas viveram, nem das suas condições materiais. Para os especialistas de uma disciplina, talvez o problema principal seja o de fazer dialogar o próprio âmbito específico com os outros que se ocupam do mesmo período histórico. Por exemplo: a filosofia antiga foi, talvez mais do que outros campos da Antiguidade, a que mais sofreu de leituras modernas que alteraram sua fisionomia. Também porque falar de filosofia antiga significa remontar às origens mesmas da filosofia. A pergunta sobre a origem da filosofia teria que ser: “O que era a filosofia antiga para os antigos?”157. Há uma posição, proposta por vários estudiosos, pela qual a filosofia começa com Sócrates, por ser ele o “primeiro” a fazer da ética um âmbito próprio de pesquisa. Contudo, para sermos fiéis ao princípio da aderência textual, encontramos a primeira ocorrência do termo filosofia, com o sentido de especulação peri physeos, ou seja, a pesquisa sobre a natureza! O 157. Cf. CASERTANO, 2007.

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texto é um dos tratados mais importantes do ponto de vista científico do “Corpus Hippocraticum: Antiga Medicina” (fim do século V a.C.), que no capítulo XX associa a filosofia à pesquisa peri physeos (sobre a natureza). Sócrates, que não quis pesquisar sobre as realidades físicas – conferir a segunda navegação do “Fédon” –, por isso não era um filósofo? Ou temos que dizer que não existe a filosofia, mas que, também em seu começo, como na época moderna e contemporânea, havia sistemas de pensamentos diferentes que foram chamados de filosofia? Talvez essa última resposta seja a mais correta, porque capaz de abranger um campo mais vasto de pensadores que, seja como for, foram chamados de “filósofos”. Esses “sistemas de pensamento” diferentes podem ser conduzidos sob uma única metodologia? Acho que não; acho que, em vez disso, cada um pode ter coisas a dizer para cada setor disciplinar e acho que temos de nos esforçar para compreender o que pode e o que não pode ser utilizado, tomando de tudo o que a tradição antiga foi guardando para dar um quadro o mais completo possível. O que significa isso? Significa um terceiro ponto, se quisermos dar conselhos para uma metodologia da pesquisa em estudos clássicos, a interdisciplinaridade. Esse terceiro ponto me parece muito fecundo e capaz de envolver os primeiros dois: a aderência ao texto e a atenção para a língua. Quando lemos um texto, qualquer texto, temos que levar em conta que foi escrito em um determinado tempo e em um determinado lugar, e que, por isso, para entender sua riqueza, temos também que considerar o contexto em que foi escrito e quais eram os outros sistemas de pensamento, as outras disciplinas com as quais o texto compartilha o horizonte histórico. Fazer dialogar o texto que é objeto de estudo com os outros aspectos da cultura na qual ele foi produzido significa abrir o texto ao próprio contexto. E isso é tanto mais importante na medida em que os autores clássicos, como os modernos e contemporâneos, nutrem-se das pesquisas e das descobertas de outros âmbitos de saber. Por exemplo, é quando pensamos no valor da geometria e da medicina para Platão, ou na atenção que Aristóteles e seus alunos prestam ao estudo dos animais e das plantas. É preciso, portanto, levar em conta a discussão científica, moral e artística, e colocar um determinado texto em um campo o mais preciso possível. E isso de modo que o texto em objeto não pareça ter surgido do nada, como um anjo caído do céu portador de quem sabe quais verdades absolutas. O saber, se é verdadeiramente saber, e por isso controlável e falsificável, é sempre humano, produzido pelos homens; com eles compartilha a sorte, ou seja, o horizonte histórico em que nasce,

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cresce e morre. Porém, esse terceiro ponto, a interdisciplinaridade, nos leva – por assim dizer – a um último ponto que precisa da nossa atenção, a saber, o da historicidade do saber. Procurando oferecer uma metodologia para quem quer estudar a filosofia antiga, a questão da historicidade é de grande importância. O que significa dizer que um saber é histórico? Como todas as produções humanas, também o saber tem características determinadas pelo espaço e pelo tempo em que nasce. Dessas características temos que estar cientes. Quem estuda o mundo clássico necessita prestar muita atenção ao interpretar os antigos, para não tentar analisar suas doutrinas com instrumentos que eles não possuíam e, portanto, para não operar anacronismos nos dois sentidos da história: nem levar categorias modernas ao antigo, nem projetar categorias antigas no moderno. Para recapitular, gostaria simplesmente de lembrar os pontos que coloquei para conceber uma metodologia da pesquisa em estudos clássicos: a) aderência ao texto; b) conhecimento da língua e consciência da evolução histórica da língua em que um texto está escrito; c) interdisciplinaridade; d) consciência da historicidade dos textos e dos autores que nós estudamos. Com esses poucos pontos não quero ser exaustivo; quis somente dar, nos limites deste pequeno texto, algumas indicações que me pareceram fundamentais.

Bibliografia CASERTANO, Giovanni. La nascita della filosofia vista dai Greci. Con in Appendice: Può ancora Talete essere considerato il “primo filosofo”? Pistoia: Petite Plaisance, 2007.

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