MEXICAS E MEXICANOS: A MORTE COMO IDENTIDADE CULTURAL

May 20, 2017 | Autor: Syntia Alves | Categoria: Mexico (Anthropology), Festa dos Mortos, Caveira
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MEXICAS E MEXICANOS: A MORTE COMO IDENTIDADE CULTURAL Syntia Alves Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); pesquisadora e fotógrafa do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) e do Iplures (Grupo de Pesquisa de Identidades Plurais e Representações Simbólicas); docente na Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) e no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (FEBASP).

RESUMO A morte é um tema importante em inúmeras culturas e civilizações, seja do ponto de vista religioso, filosófico ou científico. Neste sentido, o tratamento da morte dado pela cultura mexicana chama especial atenção, pois a finitude da vida não é pensada apenas no campo religioso, mas apresenta-se como componente da identidade nacional. A morte no México faz parte da vida, é tema de festa e arte. O fato de o México apresentar uma história de colonização europeia e agressiva evangelização semelhante aos demais países latino-americanos, leva-nos a perguntar o que há na cultura e religião mexicana que tornam este país tão singular em sua identidade e importante símbolo: a morte. Assim, o presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa em andamento sobre a morte, e um de seus principais símbolos, a caveira, elemento fundamental da cultura mexicana. A partir de dados bibliográficos e de campo, o texto traz uma reflexão sobre as relações entre morte e vida — presentes na Festa dos Mortos —, religião, arte e identidade mexicanas que se constroem em torno da imagem da caveira. PALAVRAS-CHAVE Caveira, México, Festa dos Mortos, Identidade Mexicana.

ABSTRACT Death is a major theme in many cultures and civilizations, whether on religious, philosophical or scientific perspectives. In this sense, the treatment of death given by the Mexican culture draws particular attention, since the finiteness of life is not conceived only in the religious field, but is presented as a component of national identity. Death in Mexico is part of life, and is regarded as a theme both for celebration and art. The fact that Mexico presents a history of European settlement, as well as an aggressive evangelization, similar to other Latin American countries, leads us to ask what is in the culture and Mexican religion that make this such a unique country in its identity and in its very important symbol: the death. As follows, this paper presents partial results of an ongoing research into the death and one of its main symbols, the skull - a fundamental element of Mexican culture. From both bibliographic and field data, the text presents a reflection on the relationship between death and life - present in the Day of the Dead Celebration - religion, art and Mexican identity that are built around the skull image. KEY-WORDS Mexican Skull, Mexico, Mexican Day of the Dead Celebration, Mexican Identity.

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Introdução

Passa-se a vida pensando na morte. São inúmeros os intelectuais, instituições e culturas que dedicamse a estudar, questionar e viver a morte, tanto no ocidente, quanto no oriente. A ideia da finitude da vida é algo que preocupa o Homem, seja pelo ponto de vista religioso, seja pelo científico, e em muitas culturas a morte é negada tornando-se inclusive um tema tabu. Como colocou Baudrillard, toda nossa cultura nada mais é do que um imenso esforço para dissociar a vida da morte, conjurar a ambivalência da morte em benefício exclusivo da reprodução da vida como valor, e do tempo como equivalente geral (BAUDRILLARD, 1993). Levando em consideração as diferentes maneiras pelas quais podemos pensar a morte, e principalmente, o grande esforço no ocidente em manter uma ideia de oposição vida-morte, é especialmente curiosa a maneira com as quais os mexicanos lidam com a morte, não apenas pelo fato de festejá-la, mas também por fazer dela algo tão importante que a ponto de torná-la um elemento de identidade cultural do país. O presente artigo tem como objetivo pensar a morte como elemento fundamental para a identidade cultural do México, tanto em âmbito nacional, quanto internacional. Para tanto, serão apresentados alguns dados coletados a partir de visitas a campo e elementos levantados em pesquisa bibliográfica, a fim de relacionar elementos importantes como a história da construção do México como nação, religiosidade popular mexicana e iconografia da morte a partir da imagem da caveira, um dos principais símbolos da cultura mexicana. Na primeira parte do texto será trabalhado o conceito de identidade cultural, entendo este como o conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados que estabelece a comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade. A partir de bases teóricas será observado o conceito de identidade cultural e o caso específico do México. Na segunda parte do texto será observado o encontro dos povos aztecas – também conhecidos como mexicas – com os espanhóis a fim de mapear a relação do mexicano com a morte, os ritos sacrificiais, as caveiras e a religiosidade popular mexicana. E, em ambas as partes do texto, será fundamental olhar para a história do México, entendendo que só assim é possível compreender os elementos históricos que dão pistas da construção da identidade mexicana e a relação desta com a morte. Identidade Mexicana Se por identidade cultural entende-se, de maneira geral, o sentido pelo qual o indivíduo se reconhece frente ao seu grupo, entender esse reconhecimento geral em uma população heterogênea não é tarefa simples. É o caso do que chamamos de “mexicanos”, população nascida a partir do encontro de inúmeras populações pré-colombianas e europeias. O mexicano, categoria que inicialmente pode ser analisada a partir da ideia de Stuart Hall (2014: 36) de identidade cultural relacionada à nação, na qual o sentimento de pertencimento e reconhecimento cultural está ligado ao Estado, apresenta sua complexidade oriunda das distintas etnias que a compõe, incluindo características físicas, sociais e até psicológicas. Assim como os demais países latinoamericanos, o México é fruto de inúmeros processos de guerra, conquistas e dominações nas quais diferentes povos, raças e culturas se encontraram no território que hoje é o México. Os rastros do caminho histórico que percorreu o país são notórios, mas de difícil compreensão para aquele que olha de fora. Mas antes de tratar especificamente sobre a identidade cultural mexicana é necessário clarear o conceito de cultura que norteia este trabalho. O antropólogo Roberto F. Murphy definiu cultura como um resumo de todos os conhecimentos, crenças e instruções para sobreviver, acumulados durante anos por uma sociedade e que desempenha o papel do sistema moral da mesma (MURPHY, 2001: 32-33). Assim, a cultura, de modo geral, é um sistema integral dos valores e normas da sociedade aos quais obedecem seus membros, sendo estes transmitidos às gerações seguintes a partir do processo de socialização. Especificamente sobre a identidade mexicana, pode-se dizer que esta provem de uma mescla cultural - ou seja, uma cultura que se origina a partir do encontro de diversas influências e que vão deixando suas marcas - formada por distintas etnias (europeus, indígenas e negros) e pensamentos, uma cultura por definição variada em símbolos e civilizações. Se por um lado tanta diversidade pode dar origem a preconceitos sociais, desigualdade social e econômica, por outro, devido ao sincretismo religioso, racial e de costumes, também deu 83

.......................................................................................................... Artigo início a uma identidade cultural nacional de múltiplos componentes. E ainda que seja impossível unir um país com 125 milhões de habitantes1 sob uma cultura única, o importante é entender as muitas identidades e culturas que se encontram e se transformam. Assim, por cultura mexicana entende-se um mosaico de culturas, ou seja, uma cultura única formada a partir do encontro de distintas partes que, mesmo contraditórias, quando reunidas dão origem a uma peça única, com partes que aparentemente convivem de maneira harmônica. Trata-se do encontro de elementos culturais antigos e modernos, de um processo de assimilações e influências culturais que chegam do exterior do país e que se fundem com as culturas locais e as reinterpretações das culturas pré-colombianas. Porém, esse emaranhado de elementos pode fazer parecer que aos mexicanos lhes falta identidade própria. Segundo Octavio Paz, os mexicanos são um povo que se agita na eterna busca por sua identidade, uma nação que se ocupa desesperadamente pelo que são, de onde vêm e para onde vão (PAZ, 2006). Para o autor, essa característica é atribuída ao fato de, por suas veias, correr duas heranças muito fortes, a indígena e a espanhola. Como coloca Paz em O Labirinto da Solidão: “Muitos fantasmas os habitam: a conquista, a colônia, a independência, as guerras contra França e Estados Unidos, ‘nosso bom vizinho’, muitos abandonos por parte dos deuses” (PAZ, 2006: 70). Durante muitos anos de domínio, os espanhóis impuseram suas próprias crenças e expressões culturais no novo território e assim começou a interpenetração de culturas, que culminou com o nascimento do que hoje chamamos de cultura mexicana. Após esse encontro, em 1821, com a Independência do México, surge o problema identitário no novo país. Após a Independência, apesar de haverem mudado as elites governantes no território mexicano, as tradições, costumes e valores pré-colombianos sobreviveram e de maneira resistente fizeram valer o lema procedente da época do domínio espanhol: “Obedeço, mas não cumpro” (ČOČKOVÁ:22). Como assinala Samuel Ramos em sua obra El perfil del hombre y la cultura en México, depois da Independência, surge a necessidade de organizar o país. Roger Bartra explica a questão colocando que, após a Independência e a formação do país, a nação mexicana se originou em virtude da invenção de intelectuais. Assim, “o mexicano” nasce de um processo no qual a sociedade do novo país produziu os sujeitos de sua própria cultura nacional, como estereótipos psicológicos e sociais ou seus heróis, com o objetivo de construir um novo estado independente (BARTRA, 2005: 14-15). Entre as muitas contradições características do povo mexicano, uma das mais marcantes é o que se refere à religiosidade, esta nascida da compenetração das crenças pré-colombianas com o cristianismo. Enquanto a identidade nacional foi imposta de cima para baixo, o mesmo não pôde ser feito para outros elementos que compõe a identidade cultural de um povo e as elites do novo país não puderam moldar a relação do povo mexicano com a religião. A religião é um dos traços mais marcantes e de fundamental influência na formação da identidade dos mexicanos. Caracterizada por um rico sincretismo, que além de manter diversas tradições pré-colombianas, também assimila as doutrinas cristãs impostas pelos conquistadores espanhóis, mesclado às crenças e a cosmovisão de culturas ancestrais. A presença das religiões heterogêneas produz diversas formas de celebração que sobrevivem até hoje no que se conhece como religião popular. A religiosidade popular, no caso do México, representa a inacabada imposição do Evangélio sobre uma população étnica e culturalmente mestiça e que se manifesta em uma variada tipologia de práticas de devoção nas quais – por meio de símbolos – se vivenciam valores religiosos cristãos que se vinculam com distintos universos culturais. Ocorre algo que pode ser chamado de “autoevangelização”, a população professa e afirma a crença cristã, por meio de práticas religiosas e sociais, mas continua trazendo consigo elementos de crenças ancestrais não cristãs. A religiosidade popular mexicana é, como na maioria dos grupos, a expressão de uma cultura de um todo relacionado entre si, e só é possível encontrar a importância da morte para os mexicanos a partir do momento em que se observa esta relação de partes distintas, a partir da ideia de mosaico cultural.

1 Número de habitantes no México em 2015, segundo http://populationpyramid.net/es/mexico/2015/

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Artigo .......................................................................................................... A morte está muito presente nas camadas mais populares do México. Voltando para a construção do país como algo imposto de cima para baixo, pode-se pensar que a morte torna-se a última esperança daqueles que viveram o nascimento da nação mexicana, mas que estão fora das esferas de poder. Ao longo do século XIX, mesmo com toda a transformação política pela qual passou o jovem país, para grande parte da população não houve alteração na estática estratificação social, especialmente se entendermos que o México, após sua independência, continuou sendo uma sociedade feudal na qual os latifundiários mantinham uma comunidade sob pressão, medo e violência, forçando-a a obedecer, sem questionamentos, a vontade do cacique (ARANGO L., 1980: 63). O posicionamento de resistência da população, que ao longo da história do século XX se manifestou em movimentos políticos e sociais, após os muitos fracassos que sofreram as camadas populares e mestiças, hoje sobrevive na cultura e religião do país. Mesmo após a Revolução Mexicana (1910) e as tentativas de reforma agrária, não houve nenhuma mudança nos sistemas de poder mexicanos anteriores, mantendo-se, assim, as estruturas sociais coloniais (GONZÁLEZ STEPHAN, 1990: 103). Diante das injustiças que ocorrem diante dos olhos de Deus sem serem castigadas, o povo modifica as regras morais e religiosas, e a imagem do mexicano, mestiço e de camada popular, é a imagem de um indivíduo desprovido de esperança na salvação, que se deixa levar pelas crenças sincréticas, mesclando a doutrina católica, o céu, o inferno, os santos e os deuses, com o profano. Na religiosidade popular mexicana, a percepção sagrado-profana da morte é um traço fundamentalmente importante para o mundo dos mexicanos e modula de forma significativa seu caráter, fenômeno proveniente do pensamento azteca. Assim, é imprescindível compreender as visões ancestrais pré-hispânicas sobre a criação do universo e a posição do homem nele. A morte mexicana não é vista da mesma maneira que no resto do mundo ocidental, e isso se deve especialmente pela dualidade vida-morte, parte fundamental do ciclo vital azteca. Esta dualidade, para a cultura mexicana, aparentemente tem sua origem nos ciclos naturais fundamentais para a agricultura. Segundo Eduarto Matos Moctezuma (1996:51), a agricultura do México conta com duas temporadas principais: a temporada de chuvas e a de seca, com isso os povos agrícolas observavam como em uma estação as plantas morriam para depois nascer e reverdecer outra vez. Na agricultura, os mexicas entenderam que a morte e a vida são indissociáveis, ou seja, para que haja vida há de ter morte. E essa relação de dualidade relacionado à produção agrícola acabou se estendendo em outros aspectos da cultura dos aztecas, como os calendários religiosos. As práticas agrícolas acabaram direcionando os aztecas à elaboração de um calendário que estabeleceu diferentes festividades para celebrar distintos deuses relacionados à água, fertilidade ou agricultura e deste modo assegurar uma colheita abundante. Desta forma, a relação vida-morte faz parte da agricultura, mas também da cosmogonia azteca dando origem a mitos, deuses e crenças. A morte acaba adquirindo um significado especial e complexo que pode ser observado a partir da ideia de para onde vão aqueles que morrem. A maioria dos mortos vão para Mictlán, o submundo da mitologia azteca, embora existam outras possibilidades2. Ele está localizado distante ao norte, e constitui-se em nove níveis de distintos. Segundo Matos Moctezuma, Mictlán é um lugar ao qual podemos relacionar dois fenômenos: é o mundo dos mortos, mas, ao mesmo tempo, é o lugar de onde provém o primeiro homem (MOCTEZUMA, 1996: 51). Justificando sua análise, Moctezuma menciona o mito da criação do homem pelo deus Quetzalcoatl3 no qual encontra-se o princípio básico da cosmovisão dos mexica com relação à vida após a morte. Segundo

2 Os antigos aztecas acreditavam que os guerreiros que morriam em batalha, assim como aquele que foi oferecido em sacrifício para os deuses, iam para o Leste e acompanhavam o Sol durante a manhã. As mulheres que morriam no parto iam para o oeste e acompanham o Sol quando ele se põe. Já as pessoas que morriam de afogamento — ou por outras causas que eram vistas ligadas ao deus da chuva Tlaloc, como certas doenças e relâmpagos — iam para um paraíso chamado Tlaloclan (Báez-Jorge, 1987). 3 Quetzalcoatl, representado pela figura de uma serpente com plumas relaciona-se com as energias telúricas que ascendem. Representa a vida, a abundância da vegetação, o alimento físico e espiritual.

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.......................................................................................................... Artigo o mito, Mictlán é composto por nove níveis. Após o falecimento, o morto experimenta uma longa viagem na qual será submetido a uma variedade de provas: deve passar por um estreito entre montanhas, seguir um caminho guardado por serpentes e bestas, atravessar estepes, lutar contra o vento glacial que soprava facas que raspavam a carne e, por fim, deve passar pelos nove rios de sangue com temíveis onças. No momento em que chega ao nono nível do inferno, o morto se dissolve em nada e deixa de existir (SOUSTELLE, 1959: 142). Moctezuma relaciona os nove níveis do inframundo azteca ao ciclo menstrual. Para o autor, o caminho que o falecido deve experimentar após sua morte é uma metáfora à volta ao ventre materno, representado pela mãe terra de onde surgiu a vida. Aqui já vemos, além da fundamental importância da agricultura, na imagem da terra de onde tudo nasce, e no binômio morte-vida. Mas o autor segue sua análise colocando que os mexicas eram muito conscientes de que a suspensão da menstruação é um sinal de que a mulher está grávida e que o sangue desta mulher estaria detido por nove meses. Durante este tempo o feto tem muito o que lutar, coloca Moctezuma, para sobreviver para que, em seguida, saia uma fonte de água da mulher (o líquido amniótico que sai do corpo da mulher quando a bolsa se rompe) e nasça a criança. Para justificar a afirmação de que as almas voltam para o ventre materno (terra) atravessando as nove etapas da morte (os nove meses de caminho até o nascimento) mencionando as práticas fúnebres de colocar o cadáver com as pernas encolhidas em posição fetal e é regado o corpo do falecido com água. O autor finaliza nos lembrando que o Mictlán dos mexicanos não equivale ao inferno cristão, pois não se trata de um lugar de sofrimento e pena, mas que serve para depositar os ossos das pessoas mortas (MOCTEZUMA, 1996: 63-78). Sobre a religião cristã, é importante observar como as novas crenças influenciaram os conceitos précolombianos. As ideias recém-chegadas da Europa foram penetrando nas percepções originais modificando e ampliando os conceitos conhecidos. O mito relata a viagem do deus Quétzalcoatl ao inframundo para conseguir os ossos dos mortos com a finalidade de utilizá-los como base de um ser humano novo. Narra o mito: Se consultaron los dioses y dijeron: “¿Quién habitará, pues que se estancó el cielo y se paró el Señor de la tierra?¿quién habitará, oh dioses? (…) Luego fue Quetzalcóhuatl al infierno (Mictlán, entre los muertos) se llegó a Mictlanteuctli y a Mictlancíhuatl4 y dijo: “He venido por los huesos preciosos que tú guardas.” Y dijo aquél: “¿Qué harás tú Quetzalcóhuatl?” Otra vez dijo éste: “Tratan los dioses de hacer con ellos quien habite sobre la tierra.” (…) subió pronto, luego que cogió los huesos preciosos; estaban juntos de un lado los huesos de varón y también junto de otro lado los huesos de mujer. (…) los molió la llamada Quilachtli; ésta es Cihuacóhuatl, que a continuación los echó en un lebrillo precioso. Sobre él se sangró Quetzalcóhuatl su miembro; y en seguida hicieron penitencia todos los dioses que se han mencionado: Apanteuctli, Huictlolinqui, Tepanquizqui, Tlallamánac, Tzontémoc, y el sexto de ellos Quetzalcóhuatl . Luego dijeron: “Han nacido los vasallos de los dioses (MOCTEZUMA, 1996: 51).

O mito acima, além de relacionar vida e morte, também nos sinaliza algo fundamental: a presença dos restos mortais como símbolo fundamental desta relação, em especial os ossos – que será popularmente representado pela imagem do crânio humano. Festas e caveiras Além de entender as origens da relação entre vida e morte para os mexicanos, originárias das tradições dos povos pré-colombianos, o importante é perceber como a morte segue sendo um traço importante de socialização e, principalmente, como os modos de representação mudaram e as vivências sobre ela, do final do século XIX e início do XX, são muito diferentes. Importantes elementos representativos sobre a morte permaneceram no imaginário coletivo, mas seguem sendo transformados e readaptados aos distintos contextos históricos. Este é o caso da caveira na cultura mexicana. Ainda que sua representação e simbolismo venham sofrendo constantes mudanças, a caveira segue sendo um importante ícone e reafirma a ideia de que no México os mortos nunca se vão completamente, e a morte continua sendo um personagem vivo.

4 Mictlanteuctli e Mictlancíhuatl são o senhor e a senhora, respectivamente, do inframundo.

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Artigo .......................................................................................................... A morte, desde o final do século XIX, no México, parece gozar de um prestígio singular e que lhe permite tocar em temas cotidianos sem assustar ninguém. E, ainda hoje, pelo menos um dia por ano, a morte no México se torna a convidada favorita. No dia 2 de Novembro, quando se festeja o “Dia dos Mortos”, ainda que não todos os mexicanos, grande parte deles vão a algum cemitério levando diferentes oferendas nas quais se pode encontrar bebidas alcoólicas, comida, qualquer tipo de coisas comestíveis, cigarros e objetos que são colocados juntos à tumba de seus familiares. Também são depositadas flores muito coloridas que só podem ser encontradas nesta época do ano5 e que têm a função de transmitir o caráter festivo do dia para a cidade. Mas das tradições mais conhecidas tanto dentro quanto fora do México é o consumo de caveiras de açúcar com nomes inscritos sobre elas, o pão dos mortos e a construção de altares nas casas, estabelecimentos comerciais e locais públicos, em memória aos familiares e personalidades falecidos. A montagem dos altares é um dos ritos de maior adesão no México e no qual participa grande parte da população, mas a que não é visto como algo nostálgico, que incita ao choro por aqueles que se foram. Ao contrário, a montagem e apreciação dos altares cria um ambiente de alegria no qual se mistura bebedeira, música e principalmente o riso. O consumo de álcool é característico tanto para vivos quanto para mortos. Acredita-se que nessa noite de festa, os mortos deixam suas tumbas e tomam tequila e outras bebidas junto com a comida que lhes foi deixada por seus familiares. Por isso a data é chamada de Festa dos Mortos, pois nesta data os falecidos podem ter acesso aos prazeres que foram abandonados há tempos por sua condição de mortos. Assim, esse dia se torna muito importante para aqueles que adotam tais crenças, pois, por não seguir o rito e seus preparativos, seu morto não apenas ficará privado de seus prazeres como terá que esperar mais um ano apara para gozá-los. Há ainda aqueles que relatam que se esqueceram de preparar o altar para seu morto e ver-lhe aparecer na noite da festa. Outros relatos são ainda mais dramáticos e dizem que existem casos de pessoas que se esqueceram de depositar oferendas, ou que não o fizeram de maneira abundante, e na noite de 2 de novembro apareceu o familiar morto e como vingança levou o vivo para o mundo dos mortos. A origem dessas crenças e práticas não é precisa, não há registros que comprovem que seja oriunda das antigas culturas pré-colombianas que habitaram o solo mexicano ou se é produto do sincretismo entre estas e a cultura ocidental. Mas sabe-se que as velhas culturas mesoamericanas tinham uma relação muito estreita com a morte. González Crussí, médico e ensaísta mexicano se dedicou a pesquisar sobre o tema, afirma que a concepção da vida que tinham as diferentes culturas que habitaram o território mexicano era muito pessimista, que viviam a espera de uma catástrofe, e que grande parte de seus ritos estavam orientados a aniquilar essa possibilidade. Pode-se dizer que a vida não era vivida como algo alegre, mas que era suportada como um sofrimento inevitável. “Los antiguos aztecas (...) sentían la inminencia de la destrucción. Jacques Soustelle sugiere que el gran desarrollo de la astronomía en las civilizaciones antiguas de Mesoamérica puede haber estado alentado por un deseo de predecir, mediante la observación de las estrellas, la ocurrencia de desastres futuros (...) Los Aztecas vivían con un sentimiento, que lo impregnaba todo de la futilidad de las aspiraciones humanas; su filosofía pesimista debe de haberles dado una enorme aceptación resignada respecto a la vulnerabilidad del hombre. (...) Los aztecas veían la vida como una prisión, cuyo principal mérito era su transitoriedad” (GONZÁLEZ CRUSSI, 1997: 43-46).

Sobre o culto dos aztecas pela morte, dois elementos importantes podem ser citados. O primeiro é o fato de que antes da conquista espanhola, os aztecas dedicavam a maior parte do período que hoje corresponde ao mês de agosto à sua deusa da morte, Mictecacihuatl. Como parte da supressão geral da religião indígena, a Igreja Católica exorcizou Mictecacihuatl e mudou a data do culto aos mortos para que coincidisse com o Dia de Todos os Santos (1 de novembro), que também é conhecido no México como o Dia dos Inocentes, já que celebra os bebês falecidos e as crianças, e Dia dos Defuntos (2 de novembro), que se concentra no adultos falecidos. A segunda informação sobre a relação dos aztecas com a morte é o fato do calendário desta civilização contar

5 Cempealxóchitl ou cempasúchil, flor de cor laranja ou roxa, originãria da América do Norte e Central. No México, onde é chamada de “flor dos mortos”, é utilizada na Festa dos Mortos para efeitar os altares e cemitérios.

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.......................................................................................................... Artigo com dois meses dedicados à morte, “noveno” ou “festa dos mortinhos” e “décimo”, “grande festa dos defuntos”, data na qual se sacrificava um grande número de homens6. Assim, pode-se notar que a morte entre os aztecas era levada a sério, que era muito mais do que uma possibilidade próxima e previsível; com a morte se convivia todo o tempo. E por essas razões pode-se encontrar o motivo pelo qual existia um culto à morte e que se manifestava especialmente em alguns períodos fixos de seu calendário. Durante os séculos seguintes, principalmente com a chegada dos espanhóis à América, as representações, assim como a relação com a morte, mudaram. Durante o século XVI, expandiu-se no território mexicano a ideia de inferno até então desconhecida, e com ela gerou-se o temor à morte. Os crânios, que anteriormente eram usados para enfeitar alguns altares, começaram a desaparecer por influência da Igreja Católica. A morte começou a ser representada por meio de um esqueleto com uma foice. Durante o século XVIII, a morte deixa de ser representada como algo tenebroso e se transforma em uma figura amável, mas ainda teria que passar algum tempo para chegar à personalidade notável que adquiriu nos séculos XIX e XX, quando José Guadalupe Posada7 se encarregou de deixar indícios sobre isso. A relação com a morte parece ser um fato que sobrevive desde as culturas ancestrais. Porém, a festa que acontece em todo o país em 2 de novembro, pelos dados documentais e ilustrações de jornais, parece ter recobrado força a partir do final do século XIX. Pode-se observar a partir dos desenhos de Posada que a morte, neste momento histórico, ocupou um lugar importante na vida mexicana. Nas obras de Posada fica evidente que o tema da morte ganhou posição de destaque entre alguns setores no México, e um dos fatos mais destacáveis sobre isso é o caráter humorístico que a morte e a caveira adquirem no início do século XX, estando presentes não apenas nas obras de Posada, mas também em outras representações imagéticas ou gêneros literários, como os chamados “versos de caveira”. Assim, a caveira e a morte, neste período, estabelecem uma relação com o insólito, com o absurdo e, principalmente com o humor e com o riso. E essa característica parece se manter viva até os dias de hoje nas celebrações do Dia dos Mortos. Considerações Finais Carlos Pellicet definiu a morte como “…misteriosa garantia de que tudo o que nasce…” (c.f. BÁEZJORGE: 1987: 220), interessante definição considerando-se a dualidade vida-morte, como no caso mexicano. A partir do levantamento histórico fica clara a diferença entre as duas culturas que originaram esse povo: os pré-colombianos e os conquistadores espanhóis. A percepção da morte entre eles é bastante diferente, mas o encontro entre essas distintas visões de mundo deu origem a uma cultura rica em cores, sabores e crenças e que vive até os dias de hoje, influenciando, inclusive outras culturas pelas Américas e pelo mundo. Atualmente as festas de Halloween apresentam movimentos diferentes dependendo da localização em questão. Enquanto nos EUA a festividade que leva as pessoas a se fantasiar de monstros e seres sobrenaturais têm desenvolvido uma imagem mais escura, com casas mal assombradas e temas de filmes de terror, América Latina e Europa, onde as influências religiosas e católicas continuam fortes no imaginário geral, no dia 1 e 2 de novembro grande parte da população continua mantendo seus laços ancestrais por meio das festividades associadas à memória sagrada e às influências do passado que seguem vivas. No México, no Dia dos Mortos é um dos momentos mais esperados do ano. É um momento para voltar a se conectar com os amigos falecidos, familiares e antepassados em um espírito festivo de comemoração e celebração. As visitas ao cemitério para levar oferenda aos mortos, como velas, flores e comida, continuam acontecendo e têm ganhado força nas grandes cidades, como a capital Cidade do México, onde a busca pela por uma identidade e personalidade mexicana ajudam a reforçar a busca pelos antepassados e traços culturais 6 Segundo afirma Efraín Cortés Ruíz, em “Los días de muertos, una costumbre mexicana”, 1995. pág. 17. 7 José Guadalupe Posada (1852 – 1913) ilustrador mexicano, foi o criador de um estilo único e influenciou importantes artistas mexicanos como José Clemente Orozco, Diego Rivera; Carlos Pellicer y Jean Charlot. Suas ilustrações contavam com a caveira como personagem principal e circulavam em revistas de baixo custo e panfletos, o que certamente lhe conferiu popularidade entre diferentes classes sociais.

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Artigo .......................................................................................................... que tornam o México único. As oferendas deixadas nos altares caseiros, são acompanhadas de celebrações mais festivas e incluem elementos particulares como as chamativas caveiras de açúcar, que se tornaram um ícone de tradição familiar. Inscrita com o nome de um familiar falecido, os doces crânios são comidos como uma lembrança de que a morte não é um final amargo, mas sim uma doce continuação dos ciclos naturais da vida. A cultura do México não está apenas na lembrança da morte, mas é única em como a recordam, na maioria das vezes, estas comemorações são mais festivas que sombrias, e com esse espaço na cultura dos mexicanos, a morte desempenha um papel importante na religiosidade popular do mexicano, e segue oferecendo uma imagem potente dos ciclos inevitáveis da vida. Permeando tudo isso está o sentido do humor e fortaleza que cobram as duras lições da morte e as aceita com uma plenitude que surpreende aqueles que não estão familiarizados com as tradições. No âmbito pessoal, a morte se converte em uma imagem de renascimento e renovação, enquanto na cultura mais ampla as imagens e práticas associadas a estas tradições mantém viva a memória da turbulenta história da nação. Para uma nação com diferenças socioeconômicas importantes, a morte também se torna um grande igualador, onde inclusive um milionário no final sucumbe à nivelação da Morte, frente a qual todos somos iguais. Como dizem no México, “a morte é justa e forma par com todos já que vamos todos morrer”. Referências Bibliográficas ARANGO L., Manuel Antonio: Correlacion social entre el caciquismo y el aspecto religioso en la novela Pedro Páramo de Juan Rulfo, 1980. Disponible en: http://cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/06/aih_06_1_015. pdf ARQUIDIÓCESIS DE MÉXICO, Evangelización de las culturas en la Ciudad de México, 1992, Disponível em: http://www.vicariadepastoral.org.mx/doc_ecucim/hojas/077_religiosidad.htm BÁEZ-JORGE, Félix: Planos simbólicos del Templo Mayor, 1987. Disponível em: http://www.historicas. unam.mx/publicaciones/revistas/nahuatl/pdf/ecn19/315.pdf BARTRA, Roger. Jaula de la melancolía, México D. F, Debolsillo, 2005. BAUDRILLARD, Jean. El intercambio simbólico y la muerte. Caracas, Ed. Monte Avila editores, 1993. CHESNUT, A.; METCALFE, D. Muerte Santa: La Santa Muerte, Día de los Muertos y La Catrina. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/r-andrew-chesnut/muerte-santa-la-santa-mue_b_8324736.html ČOČKOVÁ,Vendula .La identidad mexicana en las obras de los autores contemporáneos, Filozofická Fakulta, Praga, República Checa. Disponível em: https://is.muni.cz/th/383650/ff_b/BAKALARSKA_PRACE_-_V._ Cockova.pdf GALLEGO, Mariano (2007). José Guadalupe Posada, la muerte y la cultura popular mexicana. Dissertação em Comunicação Social. Universidad de Buenos Aires – Argentina, 2007. GONZÁLEZ CRUSSÍ, Francisco. Día de muertos y otras reflexiones sobre la muerte. Ed. Verdehalago. U.A.M. México, 1997. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Ed Lamparina. Rio de Janeiro, 2014. MATOS MOCTEZUMA, Eduardo. Muerte a filo de obsidiana, México, Asociación de Amigos del Templo Mayor, 1996. ________________ La cosmovisión de los aztecas. Disponível em: http://www. mexicodesconocido.com.mx/la-cosmovision-de-los-aztecas.html 89

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