MFL. 2012. JORGE ABADE. Talvez que o estado de quietude seja.pdf

May 27, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Arte Contemporanea, Artes, Artes plásticas, Arte contemporáneo, Artes Visuais
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Jorge Abade – Em Estado de Quietude…

“…E as mãos tecem apenas o rude trabalho.”1 “…Eu colho a ausência que me queima as mãos.”2

Talvez o estado de quietude seja, antes de mais, a eminência da quietude. E exija resistência. Estar em quietude exprime-se em volumetria pictural, através da sobreposição de velaturas sucessivas, trabalhadas com rigorosa compulsividade, cumprindo uma metodologia de trabalho estético, tanto quanto artístico. O Estado de quietude que submete as obras reunidas nesta exposição, presentificam ideias pertença de sistematizações consignadas pela Filosofia do imaginário, por analogia e confronto a tópicos como: potencialidade figural dos arquétipos (Jung) Dimensão imaginária no real (Husserl); a pregnância dos elementos na criação/imaginário (Bachelard); o primado enunciado de imagens obsessivas (Charles Mauron); as forças (morfologizadas) do imaginário que estruturam o “antropológico” (Gilbert Durand).

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Carlos Drummond de Andrade, “Os ombros suportam o mundo”, Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.172 2 Ferreira Gullar, “Sete poemas portugueses”, Obra Poética, Famalicão, Quasi, 2003, p.32

As imagens foram condenadas por Platão pois desvirtuavam a realidade e imprimiam a ilusão – portanto a falsidade – em quem as contemplasse. Replique-se, propondo que seja, efectivamente, a potência (dosificada…) do imaginário que garante a sanidade mental e estética… Quietude foi o desígnio agregador, presidindo à concepção das obras, segundo afirmação do autor. Quietude – na historiografia da arte - evoca as posturas das Korai e dos Kouros, regressando ao hieratismo arcaico da escultura na Grécia. Quietude submete um desfraldar de conceitos, organizando um caminho que confirma o quanto as imagens sejam transponíveis e [concomitantes] à concinnitas assinalada por Leon-Battista Alberti. A concinnitas infere da acuidade, da atenção detalhada que se plasma na convergência de ordem, harmonia e equilíbrio. Estes princípios herdados, por sua vez, da estética pitagórica e que remetiam para a proporção (matemática e musical) subjacentes na cartografia do pensamento cosmogónico…vencendo o Kaos... Lentidão, Duração, Silêncio, Estabilidade, Leveza, Permanência, Rigor e Síntese são termos associados à Quietude (em causa e consequente) exigindo brevíssima explicitação. A pausa demorada, suspendendo a vida para olhar, chama-se contemplação. A contemplação é “caso” de se conceder disponibilidade ao tempo vivido, prolongando-lhe a medição, garantindo-se a consciencialização, ou seja, outorgandose lucidez. Quase automaticamente se articula às polissemias de silêncio – Sussurro potencializadas pelos sentidos/e suas percepções/ todos e não somente mediante a audição. O silêncio visual emana, persistindo na placidez configuradora das peças. A duração de prolongamento – em sentido cronológico – é terrífica pois se entende na sua verdadeira plenitude pelo exercício do seu contrário: a irreversibilidade do que desaparece, deixa de existir, não é mais. “…pois então ainda não me havia ocorrido inventar esta mão que agora inventei para segurar a minha.”3

Combatendo-se a precariedade, nos desenhos as mãos simbolizam a permanência, a síntese de par e ímpar. São esses os reinos do imaginário, onde o rigor e a síntese flexibilizam os topos do diurno e do nocturno. Curiosamente nos desenhos as mãos estão em estado de solidão, consigo mesmas, enquanto nas pinturas esculpidas, agarram, seguram ferramentas e objectos que exigem decisão e actuação. Mas as mãos dos desenhos, na sua ética e austeridade, são tão dinâmicas e decisórias quanto as congéneres tridimensionalizadas. Os gestos desenhados correspondem a atitudes em que se vislumbra a quantidade de ser em falta. O todo está localizado na agilidade inteligente que as mãos e o tacto exercitam. O tacto, um sentido menosprezado, pois que associável às expressões artísticas que precisam de agilidade e fisicalidade treinadas, é uma premonição movida simultaneamente pela inteligência e pela sensibilidade - caso da obra de Jorge Abade. As mãos, na extensão dos braços, são os fragmentos privilegiados do corpo que Jorge Abade determinou, outorgando-lhes a autoridade de sinédoque. Também na completude, onde a natureza e o humano se continuam, através da cumplicidade e acordo fluído. Resultado de consonância lógica, os ramos e caules antropormofizam-se numa finalização, em estado de quietude que não seja terminal que é, exactamente, a 3

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., Lisboa, Relógio d’Água, 2000, p.59

mão. As mãos, assim como os demais elementos e objectos abordados na unidade das diferentes peças, são consequência da exigência minuciosa e aprofundada que revela a “pele” essencial das coisas. A presentificação das mãos e seus objectos, porventura para alguns considerados como ameaçadores, regulariza a lição da cultura em dupla e literal acepção: cultivar, perfectibilizar-se e frutificar – expandindo-se até territórios mais e mais rigorosos e requintados do pensamento – pois que o pensamento exige acto e fará obra, como nos ensinou Goethe no Fausto. As peças são – em prioridade autoral – genuínas pinturas tridimensionalizadas que se convertem em esculturas. Sozinhas, unidade a unidade, pontuam o chão e elevam-se ou quase se pensa rastejam, como se fossem sinais cartográficos – marcando as suas inequívocas localizações na sala. A serpente finalizando/culminando na mão que empunha a pá, reserva-se a decisão de frutificar o solo, contrariando o estereótipo da morte. Rastejar, corpo contra corpo que é o chão da terra, implica o acto de levantarse. As peças ficam a residir ali, “estão” e “são ali”. Sedentárias, após a errância, pois foram concebidas pelo revigorar da memória arcaica e autêntica. Trazem em si a memória do colectivo, dos tempos em que a comunidade era um corpo unificado, quando a dor ou a alegria emergiam em uníssono; no tempo anterior ao humano se saber unidade individuada e estabelecer-se como identidade através do olhar do outro: “…Dissolvendo a cortina de palavras, tua forma abrange a terra e se desata à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.”4

As peças assim colocadas, como se fossem, pois, unidades numa composição, variantes de existências sonoras. Sendo excertos visíveis da herança quase originária, nos tempos comprometidos ao arquitepal. Da terra para o ar e atingindo, através de uma linha imaginária que os nossos olhos estendam, o tecto da casa. As peças impulsionam – solicitando a quietude – um movimento interno ao espectador para se precaver da passividade. É uma quietude inteligente que o autor pretende inculcar, cultivando a terra do imaginário que a cada visitante pertence: “…queria que o meu mapa mostrasse a terra no céu e o céu na terra; um mapa que fosse o protótipo de todos os mapas espalhados no espaço e no tempo.5

Dos meandros nómadas – que ocasionalmente irrompem no caminho de qualquer um – fixou-se a sobrevivência pela acção do homem na terra. Seja a terra força do mito, deusa grega ou ferramenta que o homem sabe usar para sua dignidade plena Manusear cuidadosamente. A sabedoria de instruir a terra para que dela brote sustento, não está na posse de qualquer pessoa. É um saber fazer preenchido de estratégias e determinação pensadas e cumprindo uma ética que não compadece com o fortuito. A essa sabedoria cabe a qualidade em saber esperar, impregnadas a quietude e a permanência pelo dinamismo intrínseco que lhes assiste - Incidentes previsíveis. Está-se perante o tempo quase mítico, quando os ciclos se sucediam em consonância (concinnitas) e sem traição... Permanecer, então, no Abrigo, de modo 4

Carlos Drummond de Andrade, “Contemplação no banco”, Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.177 5 James Cowan – O Sonho do Cartógrafo, Meditações de Fra Mauro na Corte de Veneza do séc. XVI, Lisboa, Rocco, 2000, p.17

simbólico, como o apresenta Jorge Abade. É questão de denominar volume no espaço, concordando com a poética fenomenológica do espaço como a entenderam Bachelard e Merleau-Ponty. “…Que seja aqui na terra, não no céu, Como em casa de música preenchida – E não os assustemos nem magoemos – Será bom, se até lá chegar a vida...”6

Estado de quietude que implica também a noção de genuinidade e convicção. Acredito que nas axiologias do imaginário estão contidas forças iconológicas que na obra de Jorge Abade se revelam substantivas. A sua versão do real agrega a lisibilidade dos elementos da natureza aos objectos (utensílios) manufacturados pelo homem. Revelam quanto o poder civilizacional residiu no fogo dominado para cozer (lembre-se a argumentação de Lévi-Strauss em Le cru et le cuit) assim como a capacidade humanizada pelo virtuosismo em desenhar na terra - Desbravar, em a cavar (Choro), esculpindo linhas para sementeiras (Esporo) brotarem ou elevando cercas para a guarda de rebanhos. Eis os domínios (imaginários, pois que deambuladores e oníricos) do elemento terra, submetidos à imaginação que aqui preside, seguindo o pensamento bachelardiano. Não se menospreze o facto do filósofo francês ter aprofundado as suas reflexões exigentes em dois títulos consignados à Terra: La Terre et les revêries de la volonté (1947) e La Terre et les revêries du repos (1948). Assim, evidenciou, na minha perspectiva, a dupla essencialidade do grande elemento – em suas conivências e oposicionalidades complementares: a acção/vontade e a quietude/repouso. Pois que na vontade existe o repouso (e no repouso está a vontade=decisão) e à quietude subjaz a acção (e a acção se fixa em quietude): “…Si dês images si diverses convergent d’une manière si regulière vers dês significations oniriques voisines, n’est-ce pás que nous sommes entraînés par un véritable sens de l’approndissement?”7 E, num intervalo, ocorre-me o quanto a quietude, enquanto leveza, seja o “…peso giacomettiano [que] é a vida…” (Paulo Reis dixit) nos conduz.

Maria de Fátima Lambert Dez. 2012

6 7

Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 223 Gaston Bachelard, La Terre et les revêries du repos, Paris, Ed. José Corti, 1948, p.259

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