MFL 2013 dani soter E no entanto o tempo escapa a cada instante

Share Embed


Descrição do Produto

“…E no entanto o tempo escapa a cada instante, e quanto mais é meu mais se me escapa, e mais se me escapa quanto mais é meu,(…)”1 Dans ce théâtre du passé qu’est notre mémoire, le décor maintient les personnages dans leur rôle dominant. 2 “Ah quero voltar para minha casa”, pedi-me de súbito, pois a lua húmida me dera saudade de minha vida.”3 Le temps n'a qu'une réalité, celle de l'instant. Autrement dit, le temps est une réalité resserrée sur l'instant et suspendue entredeux néants.4

Quanto tempo o instante? Tranquilo momento que persiste, esse (é) o tempo do instante. A duração persiste, irreverente, subvertendo a acepção cognoscível, lógica ou coerente do instante significado. Um dos incontornáveis filósofos do tempo, Santo Agostinho, afirmou: “…Não digamos pois: “o tempo passado foi longo”, porque não encontraremos aquilo que tivesse podido ser longo, visto que já não existe desde o instante em que passou. Digamos antes: “aquele tempo presente foi longo”, porque só enquanto foi presente é que foi longo. Ainda não tinha passado ao não-ser, e portanto existia uma coisa que podia ser longa. Mas, logo que passou, simultaneamente deixou de ser longo, porque deixou de existir.”5

A ultrapassagem da consciência do instante reside na capacidade, intenção ou desejo que a cada pessoa possa acudir. A imensidão, a (a)temporalidade ou o colapso do instante estará nela própria, nessa ou nesse que é uma pessoa singular. Há pessoas que habitam instantes, como se de casas se tratara. Então: a casa (leia-se a pessoa) estava de fora, a pessoa (leia-se a casa) entrava dentro. Também, se lembre aquelas pessoas que existem como sendo as casas onde outras pessoas se instalam. Podem tomar configuração de imagens, vidas, fixando-se habitação em conceito, alma e/ou imaginação. Talvez que essas pessoas, que possuem sua casa no “si-mesmo”, nunca partam mesmo quando deixam de estar aqui (Dableiben). Residem, nos demais, sendo

1

Jorge de Sena, “Elegia por certo”, Visão perpétua, Lisboa, Edições 70, 1989, p.93 Gaston Bachelard, Poétique de l’espace, Paris, P.U.F., 1983, p.27 3 Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H., Lisboa, Relógio d’Água, 2000, p.87 4 Vide G.Bachelard, Líntuiton de l’Instant (1932) e La Dialectique de la durée (1936) 5 Santo Agostinho, “15. AS TRÊS DIVISÕES DO TEMPO”, Confissões. SP, Editora Nova Cultural, 1999 2

como que cosa mentale, internalizadas como substância ansiosa, irreversível pois que destinada. A duração seguindo Henri Bergson e o instante sobre o qual nos falou Gaston Bachelard6, surgem concatenados (conciliados) nas reflexões suscitadas perante as obras apresentadas por Dani Soter em “Quanto tempo o instante?” - um processo, fica em processo, acumulando todas as possíveis imagens que os visitantes, ilusoriamente, queiram emprestar-lhe, expandindo mais e mais, promulgando uma agregação de elementos que se me afiguram como infindáveis. Se Andrei Tartkovski “esculpiu o tempo” e George Kubler nos falou de “configurar o tempo”, haveria que convocar todos aqueles autores e artistas que “o” pensaram ou externalizaram [tempo]” …assim, se recompondo ou recuperando um arco cronológico que abrigue a linearidade tanto como a circularidade de Kronos – Octavio Paz dixit em Los Hijos del Limo. Talvez que a coincidência de instante e duração se encontre na intuição (bachelardiana) que a ânsia de um artista ou autor possa transpor em obra. Por outro lado, a pessoa que é casa (em si próprio) configura um conceito que é síntese conciliatória (por vezes conciliada) entre os patamares distintivos do individual e do gregário. Orienta-se (quase sempre) pela busca de integração, intervalado pelo interior, quanto pelo exterior. Dirige (com forte razão de sucesso) a reconciliação entre pensamentos, recordações e sonhos: assim, propugnando a derrota (oh! utopia!) do maniqueísmo judaico-cristão que castigava quer o corpo, quer a alma. Associado, intimamente ao paradoxo epistemológico (mas talvez não ontológico) de instante versus duração, está a díade “culpa e castigo” que se atravessa – igualmente nas imagens obcecadas7 que pontuam a exposição/instalação de Dani Soter na QuaseGaleria. Culpa e castigo (fantasmático) organizam-se em efabulações de “valência psicanalítica” que a artista articula a uma experimentação de registos, materiais e apropriações que, nalguns momentos (que não instantes) suscitam um procedimento colaborativo. As figuras predominantes centram-se em crianças – meninas de tranças que se converteram tão apenas em silhuetas de si-mesmas, esvaziadas de sensibilidades ou razões. Tampouco a imaginação as recheou de existência. As meninas são vazias e não souberam achar-se… será essa a questão que a artistas brasileira se coloca? Ou, pelo contrário, o preenchimento identitário é excessivo e agravado por tópicos narcísicos, numa ambiguidade que poderia associar-se a um perfil ciclotímico? Daí, a pregnância da forma esquematizada da casa, onde o intervalo de ser (à boa maneira pessoana) se circunscreve de e a tudo. A imagem, a pseudo-fisicalidade da casa resolvem a dicotomia, reúnem em si, quer a solidariedade da memória e da imaginação, quer os antagonismos, as lutas pelo poder inútil, as decisões legais acontecidas sobre pessoas e bens. Mas, acredite-se – é mais optimista fazê-lo – que servem, sobretudo, para resolver a estrutura interna de cada um, em forte cumplicidade relacional. Relembrando algumas ideias que anteriormente desenvolvi, reitero que a assunção, consciência internalizada do que se entende seja a casa, contribui para organizar a condição antropológica que estrutura o indivíduo, propiciando-lhe o reconhecimento visível de suas obsessões, anseios públicos ou delírios privados. Por analogia ao que Bachelard argumentava acerca da “consciência vivida”, na vertente da fenomenologia 6 7

CF. L’intuition de l’Instant, Paris, Gallimard, 1935 Vide o conceito de « images obsédantes » segundo Charles Mauron.

do eu: « On n’a jamais vu bien le monde si l’on n’a pas rêvé ce que l’on voyait.” 8 Pois então, as casas são privilégio de real e circunstância condicionada de sonho e/ou deambulação. A casa resguarda as idades das pessoas, cujas vidas são deixadas a seu cuidado. Nelas, se desenrolam angústias, se acentuam conflitos, se entranham muitos hábitos; os objectos adquirem afetos sublimados, as paixões ou os amores comedidos usam todas as salas para se fazerem ou, porventura, se esgotam à janela. As casas, plasmadas em recortes de papel vegetal, recortadas pela artista, intensificam angústias e acolhem local de morte. Talvez estes desenhos nos digam que a maioria das pessoas desejaria ter morrido em sua casa: entendida como território derradeiro, teleológico consolo/acarinhamento ontológico, certificação, última e iludida…que seria a decisão de pertença sobre a vida, antes de se esgotar a decisão irremediável sobre si. Antigamente, nascia-se em casa: como se tal facto fosse condição suficiente e/ou garantia de se ir, sempre, pertencer a um sítio, de se ter alguém. (Não deixa de ser estranho.) Nas imagens apropriadas por Dani Soter, enredam-se anonimatos que, por extrema coincidência talvez, algum visitante saiba denominar. Os fotografados possuem rosto (contrariamente às figuras desenhadas, decalcadas) e as molduras cartonadas e planas são as suas esquematizações de casa. Os alfinetes espetados nas paredes mapeiam, desenham uma cartografia de sombras provocadas pela existência. Os alfinetes sinalizam casas invisíveis. Os alfinetes são símbolos ténues de sedentarização num argumento que desenvolve um certo nomadismo – entre o sonho e a efetividade, como antes se sugeriu. Pois que o conceito de casa obriga a pensar a viagem, estimula o empreendimento de jornadas, clama pela duração e pela precariedade, tomando corpo e paisagem, em doseamentos e excessos de concepções apropriadas. Sendo, portanto concêntrica à definição de espaço/lugar, converteu-se num mitema dominante em prol de sedentarismo (utopista?), a casa é, eminência de espaço em viagens/errâncias: sítio donde se parte, local aonde se retorna, quer física quer mentalmente. É, todavia, o local que se abandona, troca e decide. Sendo causa de fixação é, pois, causa de mobilidade e fuga. Mudar de casa – leia-se transitar de desenho em desenho, pular entre fotografias, naperons de renda ou decalcomanias significa construir-se a casa, construir-se a si, articulando ou dissociando as interferências de tráfego e teias urbanísticas que são internas à pessoa. No percurso que traz ou leva de/para casa, dura o tempo desconcertado e quase autofágico – porque é instante de quantificação equívoca. A cidade – que a artista construiu dentro de uma sala e pelas paredes de uma (quase)galeria que é uma casa (espaço de todos) - faz corpo com o seu contorno: os territórios, os jardins, o asfalto, a pedra, a terra e os sujeitos, “quase invisíveis”, incómodos, intranquilos : « E os locais da duração também nada têm de notável,/ muitas vezes nem estão assinalados em nenhum mapa/ ou não têm no mapa qualquer nome.”9 A casa/ a pessoa, enquanto tempo, não é óbvia, fechada ou conveniente. A casa/ a pessoa seduz para a mobilidade interna, cruzada e transversa; regimenta as dinâmicas pulsionais, benéficas para a solidez da identidade que se interroga sobre os constructos e simulacros da memória. [As casas têm demasiadas portas fechadas e as poéticas do imaginário garantem a sobrevivência autoral que se personaliza quer no

8 9

Gaston Bachelard, La Poétique de la rêverie, Paris, PUF, 1978, p.148 Peter Handke, Poema à duração, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.53

artista, quer no visitante da exposição. E as chaves das narrativas, todas susceptíveis de serem desenvolvidas, quebram-se na fechadura, prendendo-nos dentro.] A porta, a janela, a escada, as flores desfocadas, o urso de peluche, a fotografia de crianças anónimas e de família iludida, todos esses elementos isolados (sozinhos mesmo), se entreabrem à percepção, substituindo as presenças que poderiam ser identificadas. Presenças anónimas, evocadas pela hieratismo do espaço que guarda perdas sucessivas, as memórias de uma família ali habitada. As meninas, os adultos esvaziados entram na casa, outorgando ao seu interior (pormenorizado) linhas de traçados ascensionais, vigiados pelas escadarias e corrimões (balaustradas que nos agarram) conduzem até algum sótão pensado e descem até à cave. Recantos de escadas, rodapés, tectos, portas simétricas e fechadas com suas bandeiras translúcidas, detalhes arquitecturais, tudo suposições para o conforto e o direccionamento de vivências de dentro/fora da casa. Todos os indícios estão em conluio, agem em cumplicidade, inanimados, para expulsar e segurar as pessoas. A suposta genuidade das coisas pensadas. A inequívoca naiveté da linha que delimita as fantasmasias, esses dilemas que asseguram as vidências estéticas, persistindo na senda, numa celebração àquilo que Louise Bourgeois legou. A cadeira da menina (sem trança/destrançada e destroçada?) em cima da escada ou levitando fora do papel. A escada que se enterrou no cimento translúcido. O menino que não escalou a montanha porque não tinha o seu gps atualizado. As luvas usadas por um anjo que detestava cheiro de lixívia. Os sapatos trespassados por agulhas no calcanhar que é o seu coração ou alma. A trança minuciosa e preta que se oferece num prato lívido e virginal. Tantos são os indícios visuais presentes na diversidade de peças que constituem esta mostra. Os vestígios são unos e opostos, adquirindo factualidade como é conveniente a qualquer saudável existencialidade crítica. Porquê ter sentido, essa unidade de coisas e pensamentos? Tudo se suspende no reino da redundância (pois o instante engoliu toda possibilidade). Como medir o tempo das coisas? Maria de Fátima Lambert Abr./Jul. 2013

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.