MFLambert.Em 1999 (josé rodrigues.nov.2014).pdf

May 24, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: ESCULTURA, Arte Contemporanea, Arte contemporáneo, Arte Portuguesa, Arte Contemporânea
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“Estruturas Geométricas e Derivas Simbólicas: Obra [3D] - José Rodrigues”

“O desenho e uma espécie de lente que nos revela coisas que não se vêem ao primeiro olhar. O desenho tambem e um mapa de viagem... “ (JOSÉ RODRIGUES)

Irei desenvolver algumas considerações sobre os fundamentos estéticos na obra de José Rodrigues, num trajeto que inclui algumas peças de escultura realizadas por José Rodrigues nas décadas de 60 e 70 do séc. passado, evocando a minha leitura de algumas peças do escultor apresentadas numa outra exposição anterior, embora realizadas em décadas sequentes, realizada na Cooperativa Árvore em finais do séc. XX. A exposição realizada na Cooperativa Árvore há cerca de dois anos atrás – esteve patente ao público entre 10/05/ e 08/06/2013 - incidiu exatamente na produção escultórica desse período, num a seleção das obras sob responsabilidade partilhada entre Laura Soutinho e Laura Castro. O texto da exposição é da autoria desta a nossa colega de mesa e anfitriã aqui na Escola das Artes da UCP, Profª Laura Castro. Congratulando-me pela realização da excelente exposição, permitindo-me abordar esse recorte no contexto da obra vastíssima do nosso escultor e amigo José Rodrigues.

Em 1999, por ocasião da exposição coletiva, apresentada na Cooperativa Árvore, intitulada “4 mãos” – “Cláudia Amandi [Alma (psyché)] | Rute Rosas [Corpo (Soma)] | Carlos Barreira [Daimon] | José Rodrigues [Sopro (Ruha)] – Escultura”, escrevi: “A visibilidade externa das construções racionais - Rute Rosas, incrementada pela ideologização vanguardista do acto subjectivo - José Rodrigues, nutrida pela efabulação tecnicista e inventiva - Carlos Barreira, e, ainda, sublimada pela depuração construtiva Cláudia Amandi demonstram a pluralidade de vontade e deliberação. O desejo, a ideia e a realização provocam constatações retóricas que pretendo ver muito mais desocultadoras do que aparentemente possa deduzir-se ou manifestam ser compartilhadas entre os quatro escultores. Os elementos que atestam esta perspectiva, enunciam-se a partir de: -

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a extremosa consciência com que cada um encara o acto e praxis artística; o sentido intrínseco aos autores, ou seja, o impulso/arranque conceptualizador que estabelece para a estabilização relacional, dialógica, quanto à natureza destinada a agir, intervir ou sustentar os materiais; o perfeccionismo obsessivo para a final configuração das peças; o ordenamento matricial, denotador de uma cultura visual abstracto funcional, embora sedimentada em configurações diversas.” [texto 2001, Exorcismos, Coop. Árvore]

Adiante, referindo à obra de José Rodrigues: “Sopro (Ruha) José Rodrigues não abandona, nem corpo, nem alma, nem daimon, mas é sopro. Sopro pois inflige uma vitalidade através das formas apenas delineadas no ar. Subtilmente, com uma sublimidade rigorosa que as conforma, as "lágrimas de metal" irrompem no espaço, transforma as partículas etéreas, unem as partículas que pairam e animam-se de um sentido humano confrangedor. Intimida a precisão com que afirmam a condição do homem: a sua decisão, o seu direito, a sua luta. O sopro concedia a vida nos tempos arquetípicos, quando a proximidade de um ser humano ao outro - através da respiração, trazia o dom dos espíritos, transportava a mitificação dos criadores. O sopro é uma realidade física, é uma concepção, ambas mítica e metafísica, advém, no caso evocado, de uma experiência estética, além da sua conformidade artístico-socitária.” Hoje, se me perguntarem acerca desta quadripartição – assim por o dizer – comentaria que em José Rodrigues se reúnem os 4 elementos: Alma (psyché)], Corpo (Soma)], Daimon e Corpo (Soma). Dois anos depois, quando da exposição individual realizada pela Árvore e que abrangia obra no período compreendido entre 1963 e 2001, esta minha convicção tornou-se mais evidente: “Recorde-se que a primeira exposição individual de José Rodrigues na Cooperativa Árvore se realizou em Novembro de 1964. O texto introdutório da Exposição foi assinado por Eugénio de Andrade. Nele se pode ler: “Quando o José Rodrigues regressou de África encontrámo-nos não sei aonde. O autor dos desenhos estava diante de mim: tosco, calado, perdido. Toda a malícia desaparecera daquele rosto tisnado, que o negro da barba e do cabelo

acentuavam – havia só lugar para a melancolia mais feroz.”1 Num texto posterior, da autoria de José Ernesto de Sousa, publicado em 1974 na Colóquio/Artes, evidencia-se, também, a personalidade telúrica do artista, a excessividade do impulso artístico transformado em potência e luta: “A eliminação das fronteiras, o sentimento orgiástico do fim das diferenças individuais, e em especial o não saber-se exactamente, nem isso é importante, onde começa a expressão e acaba a acção; ou melhor, a festa: onde os bens são evanescentes e se apagam em detrimento dos processos, dos actos.”2 O porquê desta minha afirmação radica nos estudos que, posteriormente a essa data, me foi dado desenvolver, em momentos diferentes. Em 2000 e 2001, por conta de duas curadorias – uma delas partilhada com a Laura Castro, quando da inauguração da Galeria Municipal Almeida Garrett > [+ DE] 20 GRUPOS E EPISÓDIOS NO PORTO DO SÉCULO XX e, também, para o Museu de Serralves na curadoria partilhada com João Fernandes > Porto 60/70: os artistas e a cidade. Retomo estes estudos, pois nos permitem contextualizar a emergência da obra e atividade de José Rodrigues, atendendo ao panorama cultural vivido, então, aqui na cidade, exatamente nessas décadas. Mapeando as suas colaborações, percebe-se que são tentaculares. Ou seja, a sua criatividade aplicava-se, a partir da conceção de peças que se destinavam a propostas específicas, denotativas de uma consciência crítica do que hoje apelidaríamos de cruzamentos artísticos. A sua presença regular em parcerias com o TEP tem sido objeto de estudos particulares. Aqui, interessa-me relembrar alguns aspetos fatuais que assinalam a versatilidade responsável de José Rodrigues no âmbito da programação deste grupo, cuja atividade foi decisiva na cidade e emblemática em termos nacionais: “Também o Teatro Experimental do Porto, surgido em 1953, constituirá outra das estruturas culturais essenciais para a vida cultural da cidade. O convite a António Pedro, concretizado em 1954 por sugestão de Eugénio de Andrade, para assumir a criação de uma Escola de Teatro e a Direcção artística da Companhia propiciará uma das experiências determinantes da renovação das linguagens do teatro português na segunda metade do século. Conhecedor das experiências de Stanislavsky e de Meyerhold, António Pedro intervirá profundamente na alteração da relação do actor com o texto, assim como na valorização essencial da funcionalidade do som, da luz, da cenografia e dos figurinos na concepção do espectáculo

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Eugénio de Andrade, « Assim pode nascer a alegria ». José Ernesto de Sousa, “José Rodrigues. Vanguarda e com-sentimento”, Ser moderno...em Portugal, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.114: “Festa sempre diferida, evidentemente, num não-vago, bem definido “vale de lágrimas” (por exemplo, aquele que José Rodrigues trouxe de Angola). Por isso falámos de geração e de caminho. Poderia mesmo acrescentar que este caminho, esta geração para a festa é um caminhar para-trás com que se descobrem no futuro os paraísos perdidos.” 2

teatral. Sendo ele próprio um artista plástico, tendo-se revelado como um dos nomes fundamentais do surrealismo português, António Pedro procurará desenvolver uma íntima relação entre os artistas visuais e o teatro, a qual será depois continuada por João Guedes e por outros Directores artísticos da Companhia. Artistas como Augusto Gomes, Ângelo de Sousa, José Rodrigues, Carlos Barreira, Joaquim Vieira ou Zulmiro de Carvalho são, entre muitos outros, colaboradores mais ou menos regulares do Teatro Experimental, criando cartazes e ilustrando programas para os espectáculos, concebendo cenários e figurinos, participando de uma construção colectiva de cada espectáculo. Torna-se no entanto curioso constatar como, apesar de muitos destes artistas terem desempenhado um papel fundamental na renovação de linguagens no contexto da arte portuguesa, as suas colaborações com o Teatro Experimental são na sua maioria extremamente convencionais, na busca da verosimilhança realista ou no respeito de algumas das convenções cénicas mais usuais. Muitas vezes, estas colaborações revelam mais o empenhamento e a solidariedade para com um projecto cultural do que a sua utilização para a experimentação plástica e performativa. Existem no entanto excepções históricas a esta convencionalidade: são de destacar, por exemplo, o cenário de “Os Credores”, em 1964, em que um grupo de artistas entre os quais se destaca Ângelo de Sousa produz um cenário abstracto de grande funcionalidade cénica, a produção de “O Gebo e a Sombra”, em 1968, em que Ernesto de Sousa, responsável pela encenação, colabora com Jorge Peixinho na música e com José Rodrigues nos cenários e figurinos, numa experiência pioneira da conjugação de linguagens experimentais na produção do espectáculo teatral. Um outro caso particular é o da produção de “A Casa de Bernarda Alba”, segundo o texto de Federico Garcia Lorca, com cartaz, cenários e figurinos de José Rodrigues e encenação de Angel Faccio, pela celeuma pública suscitada pelas suspeitas censórias do Regime que, por exemplo, manda apreender todos os cartazes editados para anunciar o espectáculo.” (excerto do texto curatorial do Catálogo do Museu de Serralves) Por outro lado, foi inaudita e singular, a constituição do “coletivo” 21 G 7, ainda hoje uma iniciativa quase sem paralelo: “Em 1960, um conjunto de seis artistas, entre os quais encontramos os nomes de Armando Alves, António Bronze, Manuel Pinto, António Quadros, José Rodrigues e Ângelo de Sousa, constitui um grupo intitulado 21G7, dedicando-se à prática da gravura, um suporte artístico praticamente inexistente nas práticas da Escola de Belas Artes, assim como na cidade. O título, claramente irónico, remetia para um sétimo artista “por vir”, assim como para um hipotético número de 21 coleccionadores que se procuraria constituir para um mercado das gravuras produzidas. A primeira edição de gravuras deste grupo é acompanhada de um curiosíssimo catálogo em que um texto colectivo se apresenta inscrito na própria chapa utilizada para a impressão de gravura.”

“O grupo teve uma duração efémera mas essa duração foi suficiente para, trabalhando sobretudo sobre metal, alargar muitíssimo as experiências técnicas e as linguagens expressivas, pois das suas mãos saíram desde pontas-secas até técnicas mistas, passando pelas águas-fortes, águas-tintas, buril e um longo etc.”3 Alguns dos artistas envolvidos no 21 G 7 estariam, apenas três anos depois, presentes na fundação da Cooperativa Árvore, um espaço que viria a conduzir significativamente os caminhos da arte nas décadas seguintes, persistindo a sua atividade até à data. Lugar, onde se desenvolveram iniciativas marcantes, num período anterior ao 25 de abril de 1974, um polo de resistência e criação, abrindo a experimentação a novas gerações, artistas e pensadores emergentes. “A Cooperativa Árvore e o contexto que a rodeia Em 1963, inaugura-se a Cooperativa Árvore, espaço destinado ao desenvolvimento de arte experimental, dado o seu carácter não comercial – constituída no atelier do Arqtº Pulido Valente. José Rodrigues teve uma participação determinante na escolha das instalações da Árvore - foi o escultor quem descobriu a antiga casa da família Azevedo de Albuquerque, uma casa degradada no Passeio das Virtudes que, com o apoio dos sócio-fundadores, se conseguiu transformar numa “sede”. (…) A Cooperativa propunha-se abranger, com a sua acção “todo o território português e estrangeiro, podendo estabelecer em todo ele delegações ou outras formas de representação.”4 A sua constituição procurou combater aquilo que viria a ser a lógica de mercado das galerias de arte, propiciando aos artistas uma autonomia de decisão na gestão das suas obras. Os seis objectivos da sociedade encontram-se enunciados ao longo do art.º 4º dos “Estatutos”: produção e divulgação de obras artísticas; intercâmbio cultural com outros centros e organizações; fornecimento aos artistas/sócios de publicações e produtos artísticas; produção de materiais culturais para cedência a outras organizações congéneres; concepção e organização de ateliers, exposições e demais eventos; promoção de quaisquer outras actividades susceptíveis de pertinência para a Cooperativa. (…) A 18 de Janeiro de 1964 realizou-se a exposição inaugural – 1ª Exposição de Artes Plásticas – pintura, desenho, escultura e cerâmica, com a participação, entre outros de: Mário Eloy, Abílio Santos, Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, Augusto Gomes, Salvador Barata-Feyo, Dordio Gomes, Luís Demée, Eduardo Luís, Espiga Pinto, Gustavo de Bastos, Irene Vilar, Jorge

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Joaquim Matos Chaves, Sobre Artes Plásticas, Porto, Quadrado Azul, 1992 Artigo 3º dos “Estatutos” da Árvore Cooperativa Artística SCARL.

Barradas, Jorge Vieira, Jorge Pinheiro, José Rodrigues, Lagoa Henriques, Manuel Cargaleiro, Manuel Pinto, Alfredo Queiroz Ribeiro, Querubim Lapa, Júlio Resende, Sousa Felgueiras. (…) A Árvore foi, assim, local de divulgação das actividades artísticas mais avançadas na linha de produção das novas gerações de criadores. Um dos grupos emblemáticos surgidos na década de 60, Os 4 vintes, veria uma estratégia promotora de uma visibilidade conjunta concretizada a partir através de uma exposição aí realizada, à qual se segue uma série de exposições apresentadas noutros espaços da cidade, assim como em Lisboa e em Paris. Ângelo de Sousa, Armando Alves, Jorge Pinheiro e José Rodrigues, organizam-se enquanto grupo, a partir do pretexto de se terem formado com vinte valores. A designação toma ironicamente como referência uma marca de cigarros então existente, os “Três vintes”. Não se pode dizer que exista um programa colectivo formal ou conceptual que surja como objectivo de emergência do grupo. As exposições realizadas contribuem sobretudo para o conhecimento das obras individuais de cada um dos artistas, numa estratégia claramente promocional que combate a centralização da crítica em Lisboa e as dificuldades de afirmação e reconhecimento de um artista fora da capital. As novas linguagens utilizadas pelos artistas fazem de cada uma destas exposições um marco relevante na legitimação de linguagens plásticas que se dissociam claramente do contexto vigente. Assim, em 1968, o grande acontecimento do ano foi a exposição d’ Os 4 Vintes, apresentada simultaneamente na Cooperativa Árvore e na Galeria Alvarez, a qual virá posteriormente a ser repetida na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1969, em Lisboa, sob o patrocínio da Fundação Gulbenkian. Nos anos que seguiram, e em paralelo às iniciativas conjuntas que ocorriam nas cidades principais do país, destaque-se o Centro de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), para onde confluíram jovens artistas procedentes de diferentes locais, convertendo-se num núcleo dinamizador. O país, através destes elementos ativos, sedentes na atualização do cenário artístico português (e em Portugal) , assistia à configuração de uma plataforma de criação que experimentaria as linguagens artísticas e as tendências estéticas mais recentes, sobretudo na Europa, mas também advindas da América do Norte. A necessidade da internacionalização, no sentido do contato, diálogo e sinergia com autores de outras nacionalidades realizou-se fora de Portugal, mediante a fruição de bolsas para formação artística no âmbito dos programas iniciados pela Fundação Calouste Gulbenkian, dirigindo-se os artistas plásticos, muito em particular, para Londres, Paris e – ainda que menos – para algumas cidades alemãs como Munique. As relações culturais, intelectuais daí decorrentes, frutificaram em projetos conjuntos, que marcaram e decidiram o que seria a Arte Portuguesa no último quartel do séc. XX, influenciando nitidamente os anos vindouros. Essa decisiva abertura para o estrangeiro regularizava uma ausência, vivida durante o período da ditadura. Assim, interessava não

apenas estabelecer as redes culturais – pessoalizadas e de grupo – fora de Portugal, no contexto das referidas estadias em contexto formativo ou de autoformação, mas promover ações e eventos dentro de portas. A vinda de artistas portugueses para participarem em eventos e programações esporádicas empreendeu-se, a título irregular e ocasional primeiro, procurando depois uma sistematização em termos de organização de atividades subsumidas a objetivos e atuações concretas que pediam uma continuidade. Assim, surgem os Encontros Internacionais de Arte [1974]. “Entre os acontecimentos mais significativos dos Encontros, está a definição de um espaço cultural, onde se apresentavam esculturas de Zulmiro de Carvalho, Ângelo de Sousa, José Rodrigues, Alfredo Queiroz Ribeiro, Aureliano Lima, Espiga Pinto, Carlos Barreira, Moucha e Serge III Oldenbourg, para além da realização de um Dia da Arte, com animação de elementos do CAPC. As participações repartiam-se entre um realismo militante (marxista ou não), uma abstracção psicológica e uma tendência partidária da utilização de novos suportes – integrável no conceito de intervenções.(…)” A proposta de constituição de um “Centro de Arte Contemporânea do Norte” – vulgo

CAC - foi anunciada em ofício, assinado por Fernando Pernes, para discussão numa sessão que se realizaria a 28 de Novembro de 1974. Para a sessão de debate na Cooperativa Árvore foram convidados todos os artistas activos na cidade do Porto. O texto da proposta para “um Centro de Arte Contemporânea” é constituído por 8 páginas dactilografadas, onde se encontram explicitados os objectivos, contexto, linhas de orientação, intervenção e actividades, devidamente detalhadas nalguns aspectos. O projecto mais imediato dizia respeito a um Levantamento retrospectivo da arte

portuguesa do século XX, a realizar sob responsabilidade organizativa de um grupo integrado por Ângelo de Sousa, Fernando Pernes (que representava a “Comissão para uma Cultura Dinâmica”), Joaquim Vieira e José Rodrigues (que representava a Cooperativa Árvore). Posteriormente, o grupo seria acrescido com a participação de Ethéline Rosas e do pintor Jorge Pinheiro. O Levantamento retrospectivo da arte portuguesa do século XX foi o evento que esteve na génese do Centro de Arte Contemporânea do Norte, com apoio da Câmara Municipal do Porto, tendo estado previsto que a exposição se viria a realizar na Casa do Infante, contando como já se viu, com a colaboração mais directa, da Árvore.” Como se constata, do acima exposto, a atividade de José Rodrigues nesses anos é diversificada e prolífera. Além do envolvimento nas ações culturais da cidade, é um operador estético, expressão de José Ernesto de Sousa5, que também a ele assim designa, quando 5 “Os operadores estéticos convidados são, nomeadamente, Costa Pinheiro, René Bertholo, José Rodrigues, Alberto Carneiro, Armando Alves, Angelo, Júlio Bragança Álvaro Lapa, João Vieira, Carlos Gentil-Homem, Calhau, Nuno Siqueira, Artur Rosa, Eduardo

escreve a carta-convite dirigida àqueles que pretendia fossem os artistas participantes na Expo AICA 74: “A expo AICA / SNBA volta a realizar-se este ano: em Julho. A Secção de que me vou ocupar tem o seguinte titulo e tema: PROJECTOS – IDEIAS”.

Logo nessas décadas, a produção artística do escultor nascido em Angola o situava, posicionava-o de forma inequívoca, no panorama cultural português. Em 1967, quando de uma exposição na Coop. Árvore, no texto belíssimo de Eugénio de Andrade, pode ler-se: “Um corpo respira, abre-se ao sol, floresce na noite. Em silêncio, é pura veemência; quando fala, queixa-se de ser tão frágil e tão só. Mais raramente, diz uma palavra de alegria. Exalta-se; fatiga-se; exaspera-se. A sua voz é a da terra – dali parte, ali regressa. (…)”6 Francisco Bronze, no texto para a revista Colóquio Artes & Letras nº 49, de Jun. 1968, refere-se à exposição realizada na Livraria Bucholtz, informando acerca da circulação da sua obra, ao se referir à participação do artista nas Bienais de São Paulo e de Paris. Por outro lado, evidenciava-se o dinamismo do ambiente artístico do Porto, traduzindo-se na intensa atividade cultural desenvolvida na própria Escola de Belas Artes, onde José Rodrigues entrou em 1963, reconhecida em muito como superior ao que, à data, ocorria na Escola de Lisboa. "Olhamos para o mais insignificante dos pormenores. Falamos acerca dele. Aproximamo-nos um pouco para o tocar e julgamos sentir como ainda estremece, as suas palpitações, sim, esta sua forma arterial, leve."7 A obra de José Rodrigues explora então a dimensão do desenho como uma propriedade sugestiva da sua materialização escultórica. No caso das suas esculturas filiformes, o desenho encontra-se tridimensionalizado no espaço, surgindo como uma evidência dos princípios de equilíbrio e modificação desse mesmo espaço enunciados em cada uma das suas obras. No caso dos seus “Jardins”, os volumes incorporam elementos naturais como terra ou pedras na sugestão de micro-cenários paisagísticos que surgem como modelos de uma esculturaambiente, confinados na transparência dos acrílicos coloridos que os delimitam. Na escultura e no desenho de José Rodrigues, a “collage” surge como um princípio mais produtivo do que a “assemblage”. Os seus desenhos a carvão extendem-se metonimicamente em fios, pequenos ramos e outros elementos que estruturam e materializam a linha, escapando aos meros problemas da representação ou da figuração. (…)

Nery, Jorge Nesbitt, Ferraz, Helena Almeida, Ana Vieira, Peixinho, Melo e Castro, Ribeiro Telles, Ana Hatherly, Salete Tavares, João Guedes, António Campos, Carlos Calvet, Areal, Dixo e eu próprio. N.B. A forma o organização geral desta Secção podem ser modificados no decorrer da exposição. Está previsto um programa de projecções e, discussões sem prejuízo do que acontecer espontaneamente.” In http://www.ernestodesousa.com/?p=230 (acedido em outubro 2014) 6 Eugénio de Andrade, texto para Catálogo da Exposição “José Rodrigues”, Porto, Cooperativa Árvore, 1967. 7 Fernando Guimarães, "O desenho do caminho", in Exorcismos, Porto, Coop. Árvore, 2001

As obras de escultura estão obviamente articuladas ao desenho, corporalizando-se, comendo matéria que lhes confere a espessura e volume subtil. As linhas rigorosas da geometria não solicitam as arestas fechadas, como se de fim de linha sem retorno se tratara. Pelo contrário, mesmo quando as arestas e os ângulos se acentuam, é uma viragem dinâmica que se propõe. Num tempo em que argumentação deleuziana sobre a “dobra” (le pli) ainda não revigorara o sentido contemporâneo do barroco, redimindo-o…e tornando-o associável às decisões próximas do presente. 8 Recorde-se que Le pli: Leibniz et le Barroque, seria publicado 20 anos depois. Em finais do séc. XX, Gilles Deleuze refletiu sobre as repercussões do barroco, no seu livro Le Pli: Leibniz et le Barroque, tendo vivificado um debate situado a partir de premissas diferenciadas que posicionaram essa nova abordagem filosófica. Num exercício proposicional de analogia mais do que por afinidade estética, leia-se nos desenhos que as esculturas desenvolvem no espaço, um tópico do barroco, consentido numa interpretação poética das peças de José Rodrigues. O dinamismo, nalguns momentos, quase a vertigem da linha, adquire uma dimensão cárnea, não se isentando todavia do propósito de rigor e austeridade que, de modo paradoxal, se apresenta: decididamente bem resolvido e tornando-se mesmo um conteúdo (e não somente forma num sentido aparencial) identitário na obra do artista, patente na lucidez da matéria cúmplice da morfologia em modo “doppelganger”. “No vazio tomado como “matéria plástica” destas esculturas, as formas abremse para uma “acção” que lhes dará um novo sentido, acção que pode revelar-se, por exemplo, no movimento pendular de uma lágrima de cristal suspensa por um fio ou no de qualquer elemento assim animado, por vezes num ritmo que pode ter algo de fecundante e se alarga e se completa no próprio jogo linear da escultura.”9 A convocação do rosto humano, naquilo que possui de iconográfico, encontra-se, pois, fixado – de forma recorrente - ao longo da obra de José Rodrigues, revelando-nos as mutações plausíveis, as metamorfoses desejadas, as dramatizações intrínsecas. Procede do íntimo, consigna o gregário, absorve-o, destrói-o mesmo, para logo o emancipar com a intensidade do originário, com a genuína posse de si. 8

O estilo barroco, na valorização que lhe é atribuída, resulta da convicção e atitude avançadas a partir do séc. XIX. O termo possuía uma carga pejorativa, de dissidência, associada à contradição que expunha relativa às estéticas do Renascimento e na sequência da transgressão que o Maneirismo iniciara e impusera. A desmontagem, redenção e reconhecimento do barroco deve-se, pois, a Jacob Burckhardt8 e Heinrich Wölfflin8, designadamente este último que o valorizou, contrapondo-o – em termos de interesse artístico – à arte produzida no Renascimento. Redimida a sua axiologia, suscitou não somente historiadores de arte mas estetas e pensadores, em diferentes épocas na cultura ocidental. Entre outros, destaquem-se 4 autores que, em momentos diferentes, reclamaram a sua relevância, usando-o de forma paradigmática: Eugeni d’Ors, Severo Sarduy, Gilles Deleuze e Osmar Calabrese. 9

Francisco Bronze – “José Rodrigues”, Colóquio revista de Artes e Letras, Jun.Set.1968, nº 49, pp.36-42

« La question du portrait commence peut-être le jour où un visage commence devant moi de n’être plus là, parce que la terre commence de le dévorer. »10

A recorrência da representação de rostos conhecidos ou anónimos é manifesta na história da pintura ocidental. Seguindo a história da pintura (e escultura, em certa medida) enquanto construção compósita de identidades singulares, desviadas em tempos complementares, regressa a memória dos artistas olhando – mais ou menos objectiva ou ficcionalmente - para si mesmos. Tomados, em si, como a posse radical do mundo, através, pela via, da reversão em obra. Na contemporaneidade constata-se uma reformulação conceptualizadora da emergência pessoal do autor como objecto e sujeito – em simultâneo – pretexto corajoso para uma dupla exposição de si-mesmo – ao mesmo tempo que se pode assumir como enigma do coletivo. O autor das imagens geradas se presentifica através da explicitação de traços fisionómicos mais diretamente identificáveis ou através de indícios e vestígios de diferente índole – transfigurador, abstraccionalizante... Haverá que retomar os termos com que se ponderam a definição do retrato. Os retratos são, antes de mais, concordando com Didi-Huberman, uma questão antropológica que ganha contornos afectos às diferentes ciências humanas e sociais. A noção – afecta à antropologia cultural, nomeadamente a antropologia simbólica na senda de Gilbert Durand11 - com que lidámos, durante a realização da obra de José Rodrigues, entende-se claramente para além da dimensão de reconhecimento identitário singular, para além daqueles casos em que a atribuição nominal, real ou mítica, é um facto e/ou sintoma. A configuração do retrato reveste-se de inúmeras efabulações visuais e objectuais, observáveis nos trabalhos expostos: a) apropria-se de pastas matéricas, cuja densidade afirma a substância experimentadora no domínio plástico; b) inscreve elementos objectuais orgânicos, usufruindo de novas funcionalidades estéticas; c) concentra-se em matérias-brutas – madeira em particular – que simbolicamente ganham a terra para o homem; d) explana-se em traços difusos, elevando-se e descendo em requintadas deambulações gráficas; e) condensa-se em fragmentos elucidativos para o equilíbrio global do quadro, sublinhando marcas substantivas do corpo; f) retém memórias de outros envolvimentos picturais em novas camuflagens, recorrendo a estratégias minimilizadoras; g) expande-se em variantes decorrentes de uma matriz iniciática...

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Georges Didi-Huberman, “Le visage et la terre”, in Arstudio, nº 21, Été 1991, p.6 Veja-se deste autor, Las Estruturas Antropológicas de lo Imaginário, Madrid, Taurus, 1982, nomeadamente, o Livro 1º, “Los rostros del tiempo”. 11

A evidência e a contingência associam-se num jogo equívoco que, todavia, endereça para uma exaltação (intensa) sagrada-profana do humano, situada para além do tempo, da história, sem perder a sua inscrição cronológica e territorial. A topografia do rosto humano torna-se cúmplice da cartografia efectiva dos sítios e dos tempos envolvidos pelo autor. As referências pessoais vividas pelo escultor encontram-se subjacentes ao longo da obra: África, o Oriente, a tradição mitológica da Grécia – rastos da Europa – dialogam, dominando em simultâneo ou em alternância. Assim, se consolida a identidade estética do artista, expressa numa comunicação de residências antropológicas e societárias nítidas que crescem com suas disparidades, tornando-se complementarizadoras. A pregnância da máscara é um dos valores ontológicos remanescentes. A carga simbólica que lhe está associada intensifica-se com a concretização material em que se sustenta: os veios da madeira são os sulcos do tempo do indivíduo singular, do grupo, da comunidade sobre si. A consignação estética da máscara procede do mais remoto e originário: chega-nos da época dita “pré-histórica” em que o rosto não existia, em termos conceptuais; em que o rosto era desprovido de significação, sendo mesmo um tabu.., congregando toda a mágica tensão dos equívocos e prisões do conhecimento incompleto que pretendemos ter. Os corpos, deixados pela herança iconográfica da “pré-história”, possuem uma força figurativa única, uma carga substancial anónima, abstracta, estando no rosto explícita a ausência de traços fisionómicos designativos. As máscaras percorrem os trilhos da terra africana, atravessam os mares até às ruínas do Olimpo e ocultam a serenidade, a interioridade do Oriente: papéis, pregos, arames, farrapos de tecidos...tudo são seduções para o eu, tudo são forças do espírito gregário. O rosto é, portanto, máscara, o que confirma as nossas convicções culturais, mas interroga os limites da a sua extensibilidade hermenêutica – Umberto Eco -, questiona o conflito das interpretações - Paul Ricoeur. O rosto transcende as máscaras quer na sua dimensão plástica, quer na sua dimensão antropológica, quer na sua dominação psicanalítica. O rosto é individuação; o rosto é assunção da condição humana específica exposto perante si e os demais. (Suspensão Mas trata-se de uma afirmar algo de muito mais complexo: em que termos ambíguos se enfrenta essa individuação, em que domínio: íntimo/pessoal ou comunitário/público? Ainda, como desvelar dinamicamente uma tal assunção, como situar essa espécie de revelação (voluntária e intencionalizada, portanto conducente e contaminada???) Também, a “condição humana” com que propriedade, com que determinante sociológica??? Em que patamar (filosófico...) se estabelece uma tal relação com o dinamismo representativo: afinidade ou dissuasão? “O que nos retrata um rosto, para onde nos leva a sua epifania?... É pois legítimo deduzir que o pintor, ao representar-se, incide a sua pesquisa na alquimia do rosto, isto é numa dialéctica de identidade e alteridade, na tentativa de compreensão do si-mesmo como um outro. O auto-retrato é então autorevelação, auto-análise (como veremos), antes de tudo o resto.”12

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Carlos M. Couto S. C., “Auto (de) representação”, in O Rosto e a Máscara, Lisboa, C. C. B., 1994, pp.49-50.

Respire-se e...Continuum) O formato ovalado do rosto, a sua esfericidade quase regular, servem para redefinir as pulsões que ultrapassam os períodos categorizados pela História. Desprende-se destas formas uma memória nas incisões feitas pela grafite, exploradas pelos pigmentos ou afinadas pelos materiais: o uso de estratégias plásticas diversificadas – gráficas ou picturais – garante a intenção antropológica do artista enquanto operador da humanidade. A resposta mais mediática (mais directa?) sobre o rosto encontra-se na concepção de “epifania do rosto” de E. Lévinas – veja-se em particular: “O rosto e a exterioridade” e “Para além do rosto”, Totalidade e Infinito: a primazia inequívoca do outro; o outro revela-se, manifesta-se; é totalmente diferente das coisas objectivas...13 O que implica, por um lado a certeza do outro como outro que se impõe com a sua própria força, introduzindo o homem numa vivência metafísica e religiosa e, por outro lado, o reconhecimento do outro não acontece apenas a nível intimista e privado, mas deve ser, essencialmente ético e objectivo. “La reconnaissance du visage, comme élément premier de l’identification de soi et de l’autre est une opération que chacun réalise d’innombralbles fois dans une même journée et sans laquelle l’existence sociale serait d’ailleurs impensable.(…) Il est socialement absurde de concevoir des hommes sans visage dont on puisse se souvenir. »14 Esta trajetória estética de José Rodrigues, evidenciada através do caso das esculturas abstrato-geométricas produzidas nos anos 60 e 70, derivaram para peças tridimensionais de teor representativo que o autor abordou nos finais do séc. XX, numa versatilidade expressiva que se conhece e, em particular, muito associada à prática transversal do desenho. As linhas do seu desenho relacionam-se, na minha perspetiva, às esculturas filiformes dos anos finais de 1970 e 1980. Esta série é particularmente significativa, exprimindo-se numa inscrição no espaço que é uma ausência, sem ser um espaço vazio. As configurações dinâmicas suscitam enunciações de reconhecimento progressivo, que se converteram numa incessante procura morfológica livre, caminhando entre o representacional indireto ou imediato, a abstração iludida pela evocação mimética, mas de matriz intrínseca e introspetiva, mais do que naturalista ou realista. Assim, como os recortes de peças de acrílico da série jardins integram um delírio virtuoso de essência botânica que marcaria presença nas folhas e caules e ramos – alguns naturais mesmo – constitutivos de peças de escultura realizadas nos anos 1980 e 1990.

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“Contrariamente às condições de visibilidade dos objectos, o ser não se coloca à luz do outro, mas apresenta-se a si mesmo na manifestação que o deve anunciar.” E. Lévinas, op.cit. 14 David le Breton, Des Visages, Paris, Métaillé, 1992, p. 201.

Maria de Fátima Lambert Out.2014/fev. 2015

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