Michel Foucault: circuitos criativos do poder, do saber e do cuidar

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Michel Foucault: circuitos criativos do poder, do saber e do cuidar. Emerson José Sena da Silveira1

Cenário de batalhas sangrentas entre os seguidores de Muhammad e os cristãos ocidentais, ambos defendendo projetos distintos de civilização, no século VIII d. C., (732), época de Charles Martel (rei dos francos), a cidade de Poitiers foi também berço de Paul-Michel Foucault, nascido em 1926. Depois de percorrer muitas cidades pelo mundo, deixando milhares de páginas escritas, entrevistas realizadas em programas de TV, rádio e revistas, além de célebres conferências públicas, Foucault morreu em junho de 1984. Sua vida é contestadora: nascido em uma família tradicional de médicos, filho do cirurgião Paul Foucault e de Anna Malapert, Foucault frustrou as esperanças do pai, cirurgião e professor de anatomia em Poitiers, e interessou-se por psicologia, história e filosofia. Uma tensão se instaurou na biografia de Foucault, fazendo-a oscilar entre aberturas e fechamentos devido a uma profunda insatisfação com atitudes e teorias e, ao mesmo tempo, uma busca incessante pela criatividade intelectual. Tido como pessoa de temperamento fechado, solitário e irônico, iniciando a seguir, diversos tratamentos psiquiátricos. Em contato com a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise, leu atentamente pensadores como Platão, Marx, Husserl, Heidegger, Freud, Lacan e Kant. A partir de 1950, militou nas hostes do Partido Comunista Francês, afastando-se posteriormente, devido a divergências intelectuais (assim como aconteceu com JeanPaul Sartre) e ingerências pessoais do partido em sua vida particular. Em 1951, ministrou aulas de psicologia na Escola Normal Superior e entre seus alunos estão importantes pensadores como Paul Veyne. Durante a estada no Hospital Psiquiátrico de Saint-Anne e em diversas prisões, extraiu elementos que irão repercutir em toda sua obra. Aproximou-se do famoso Seminário de Jacques Lacan, e então, por meio de outro grande intelectual, Georges Bataille, se sentiu atraído pela “filosofia a marteladas” de Friedrich Nietzsche. Em 1952 diplomou-se em Psicologia patológica no Instituto de Psychologie, tornando-se, em seguida, assistente na Universidade de Lille. Posteriormente, passou a lecionar psicologia e filosofia em universidades na Alemanha, Tunísia e outras. Sua

1

Texto finalizado em 2017.

tese, História da Loucura, tornou-se um dos mais célebres livros, onde praticou a arqueologia da escritura como método de investigação. Ainda durante as décadas de 1950 e 1970, Foucault militou em campanhas, viveu em vários lugares (Suécia), concedeu entrevistas, gerou polêmicas com outros de sua área, enfim, foi um pensador que, como Sócrates, desceu a Ágora (praça), para juntar-se aos movimentos da vida, da cidade, do mundo. Sua vida pessoal é consonante com o projeto filosófico vivido e abraçado por ele, característica que tem sido explorada de forma inconsistente e desinteligente por críticos conservadores e de direita. Um exemplo foi quando Foucault concedeu uma entrevista no fim da década de 1970, mostrando-se favorável ao retorno do Aiatolá Khomeini de seu exílio na França. Foucault viajou ao Irã, conversou com diplomatas, estudantes e pessoas comuns. Posteriormente, lamentou partes de sua própria atitude e as más interpretações advindas de alguns pronunciamentos, entre os quais, este: “O Islã, como força política, é um problema essencial da nossa era e dos anos vindouros. A condição necessária para nos aproximarmos dele, mesmo sendo com uma pitada de compreensão, é não começar impulsionando o ódio contra ele” (FOUCAULT, 1994, p. 708). Em 1979, o retorno do líder xiita (minoria no mundo muçulmano) Khomeini foi um dos elementos desencadeadores da Revolução Islâmica e a emergência de uma teocracia, sendo, contudo, o antigo regime secular do Irã (com o Xá Reza Parlevi, da, então, Pérsia) uma ditadura que reprimia duramente os movimentos islâmicos. Hoje, alguns intelectuais brasileiros de direita exploram esse episódio, tentando reduzir a importância de seu pensamento. Neste elemento, pode-se extrair um sério problema concernente a alguns intelectuais e militantes de esquerda e direita, escancarando o déficit de inteligência de muitos perante qualquer forma de insurgência popular: a fascinação religiosa e extática ou a condenação ressentida e amargurada. E a análise crítica e intelectual autônoma límpida é sacrificada. Ou, como diria Weber (no texto “As rejeições religiosas do mundo e suas direções”) determinados compromissos, no caso da análise weberiana, o compromisso religioso, podem levar ao “sacrifício do intelecto”. As revoltas da Primavera Árabe, em especial a revolta na Síria, é exemplo disso: de um lado, alguns movimentos de esquerda como PSTU(s) e PSOL(s) falam de complôs dos EUA/Europa (esquecendo que Assad é um ditador e massacra seu próprio povo); de outro, movimentos de direita lamentam supostos planos secretos de organizações vermelhas para insuflar e governar o mundo (o famigerado Governo Mundial).

A obsessão com a ideia de dominação mundial não é nova e foi usada por Hitler contra os judeus. Tal ideia ganhou novas versões: a islâmica (um plano mundial de dominação muçulmana, paranoia de alguns líderes israelenses), a vermelha (velha conhecida dos direitistas) e a rosa (alguns líderes religiosos inventaram uma ideia estapafúrdia chamada de “Plano Gay de Dominação Mundial”). Todos esses são exemplos alinhados com a extrema direita, mas temos as versões de esquerda, como a acusação contra os banqueiros e as poderosas multinacionais etc. Essas ideias são mantras hipnóticos, repetidas até a náusea por extremistas de direita como Olavo de Carvalho ou vociferantes líderes religiosos como Silas Malafaia. Retornando à França, em meio a uma vida agitada, erudita e engajada, Foucault presenciou alguns grandes acontecimentos como as revoltas estudantis (maio de 1968) e as revoltas coloniais na África (1956-1975) e analisou ou se pronunciou diante de outros acontecimentos. A listagem de eventos marcantes é numerosa: o Festival de Woodstock, com práticas e estéticas libertário-anárquicas e a revolta provocada pela forte repressão da polícia de Nova York ao bar gay Stonewall, em Greenwich Village (ambos em 1969), a Guerra do Vietnã (1959-1975), a crise do Petróleo (1973) e outros. Paralelamente, a homossexualidade e o pendor para práticas sadomasoquistas, especialmente nas estadas em São Francisco (EUA), em casas e banhos gays, têm sido motivo para alguns intelectuais obtusos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, minaremlhe a conduta. Ao se referirem à morte de Foucault como vítima da AIDS, esses intelectuais de direita, nada mais fazem do que erigir um procedimento disciplinar de desautorização da voz e das ideias foucaultianas. É quase inexistente uma boa crítica a Foucault no horizonte ideológico de direita, preocupada obsessivamente, entre outras coisas menores, com questiúnculas morais. Antigos rótulos são impingidos, patologizando indevidamente sua biografia (em 1961, Foucault conhece e mantém uma relação afetiva com Daniel Defert, então estudante de filosofia). Contudo, falta compreensão inteligente do que Foucault pensou e escreveu. Diga-se de passagem, que em 14 de abril de 2012, o Jornal Le Monde noticiava: “L'Etat français a décidé de classer ‘trésor national’ les archives du philosophe Michel Foucault et interdit leur exportation, par un avis publié samedi 14 avril au Journal Officiel.” Ou seja, ainda no Governo Sarkozy, de centro-direita, o Estado francês decidiu classificar como tesouro nacional, os arquivos do filósofo Michel

Foucault

e

proibir

sua

saída

do

país

(Fonte:

http://www.lemonde.fr/culture/article/2012/04/14/les-archives-du-philosophe-michelfoucault-classees-tresor-national. Acesso em 10 de maio de 2012).

Entre janeiro de 1971 e junho de 1984, excetuando-se um ano sabático (1977), em que pôde dedicar-se a leituras e estudos, Foucault assumiu, no prestigiado Collège de France, uma cátedra criada em 1969 por uma Assembleia Geral de professores. No dia 12 de abril de 1970, aos 43 anos de idade, Paul-Michel Foucault foi eleito titular da cátedra que viria a chamar-se “Historia dos Sistemas de Pensamento”. Tais fatos demonstram seu reconhecido prestígio no meio intelectual, apesar das imensas críticas provindas de intelectuais de direita e conservadores. Um pensar (e uma vida) inquieto e destoante da doxa e do homo academicus, expressões de Pierre Bourdieu em sua crítica sobre a constituição do campo científico como campo de luta pelo poder e pelo capital simbólico intelectual; uma vida e uma trajetória permeadas pela solidão, talvez da pior forma possível para um intelectual, como afirma o próprio Foucault, ao comentar suas conferências no Collège, sempre muito concorridas:

Seria preciso poder discutir o que propus. Por vezes, quando a aula não foi boa, bastaria pouca coisa, uma pergunta, para tudo reordenar. Mas esta pergunta nuca vem. E, como não há canal de retorno, o curso se teatraliza. Tenho com as pessoas presentes uma relação de autor ou de acrobata. E, quando termino de falar, uma sensação de total solidão (In: Gèrard Petijean, Le Grands Prêtres de L’Université Française. Le Nouvel Observateaur, 7 abr. 1975).

Como verdadeiros atos filosóficos, nos cursos que ministrava no Collège, Foucault realizava uma sutil alquimia entrelaçando uma sábia erudição, o engajamento pessoal e suas memórias sobre acontecimentos contemporâneos. Assim como Jean-Paul Sartre, Foucault engajou-se em lutas políticas, recusando-se a consagrar um dos cânones intelectuais da modernidade ocidental: a separação entre filosofia prática e filosófica teórica. Apesar de sua vasta fortuna crítica, abarcando livros, artigos, textos, aulas inaugurais, estudos, seminários, enfim, uma obra monumental, com distintas ênfases ao longo de sua fecunda, mas breve, trajetória de filósofo, muitos insistem em ver Foucault com olhos estreitos e severos, acusando-o de erraticidade teórica, irracionalismo, entre outras características depreciativas. Críticos e críticas, desinteligentes e similares àqueles que ainda insistem, mesmo diante de tantas evidências em contrário, na associação automática entre o pensamento de Nietzsche e o nazismo hitlerista. Ousadas, as reflexões foucaultianas inspiradas em Heidegger e Nietzsche, indagam sobre a emancipação, o “sujeito”, o saber-fazer, o controle de si, as diversas tecnologias desenvolvidas no solo epistemológico do Ocidente: sexualidade, prisão,

medicina moderna, novos modos de governo político e bem como as famosas tecnologias do Eu. Pairam algumas ideias centrais na obra foucaultiana: através das obras História da loucura, resultado de sua tese de doutorado na Sorbone (1960), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969), pode-se visualizar a envergadura de seu projeto, centrado inicialmente na análise das condições que possibilitaram a emergência das ciências da humanidade e do sujeito, dos discursos legitimadores sobre saúde e patologia, dos controles de saber e de poder. Investiga também os mecanismos da anatomia política do corpo e a biopolítica da população em livros como Vigiar e punir (1975). Por fim, há o Foucault que se desprende da reflexão revolucionária contida nos três volumes da História da sexualidade, escritos entre 1976 e 1984, submetendo o “conhece-te a ti mesmo” ao “cuidado de si”. Dizem alguns que se pode ouvir um vestígio dos conselhos dados pelo pai: “Aprenda a governar a si mesmo”. Nesses volumes, Foucault desconstrói as tecnologias de produção do eu, da interioridade, em busca de horizontes de emancipação em relação aos novos poderes pastorais e tecnologias de assujeitamento, ou seja, de docilização do sujeito, um sujeito heterônomo, porque não é capaz de construir sua autonomia. Eis um dos dilemas na modernidade: a busca pela autonomia, em um estilo de vida pode configurar, em si, uma concretização ética, em face das tecnologias do corpo, da subjetividade, do discurso legítimo, do controle, da punição, quer seja no nível microssocial quer seja no nível macrossocial. Mesmo citando esses livros, ainda faltaria muito: no livro O nascimento da Clínica (1963), por exemplo, Foucault disseca os mecanismos de poderes e saberes que vão transformando instituições e práticas clássicas em procedimentos refinados de controle, em novas tecnologias do saber e do poder. Por elas, a medicina moderna se torna um espaço social em que a doença é um problema político (biopolítica da população), e o médico, a autoridade suprema desse espaço, suporte indispensável de novas práticas de promoção da saúde social efetivadas por novas políticas estatais. Há que citar ainda a monumental compilação de cursos e conferências Hermenêutica do Sujeito, resultado de extensas investigações e cursos feitos mais concentradamente durante 1980-82 e publicado em 2001, na França, pelas editoras Seuil/Gallimard, e no Brasil, em 2004, pela editora Martins Fontes. Nessa obra, investiga profundamente o “cuidado de si mesmo”. Mostrando as técnicas, os procedimentos e as finalidades as quais um sujeito ético se constitui, Foucault o vincula à dimensão política.

Assim, ao descrever o modo de subjetivação dos gregos e suas alterações, rupturas e descontinuidades, a oscilação entre uma cultura de si pedagógica e uma cultura de si terapêutica, as técnicas cristãs de subjetivação (a confissão, por exemplo), Foucault confronta a precariedade dos modos de subjetivação nascidos por meio da e na modernidade ocidental, com os nazismos, estalinismos, prisões e manicômios. O filósofo de Poitiers realiza uma genealogia do poder e do saber ao conduzir a análise a partir de uma questão do presente, mesmo que dialogando com Epicuro, Platão e com dados empíricos (como as práticas disciplinares: o panóptico das modernas prisões ou as campanhas moralistas de médicos e religiosos patologizando a masturbação, por exemplo). O lugar da verdade passa a ser, na modernidade, a subjetividade do e no sujeito, (subjetividade e sujeito) tomados como natural decorrência de nossas sociedades e de nosso devir histórico. Novas ciências nascem de antigas e novas práticas: psiquiatria e psicologias, por exemplo, como maneiras de esquadrinhar o sujeito, e constituí-lo nesse processo, fazendo emergir verdades e desvios nele inscritos, acessados e interpretados por determinados profissionais (médicos, psicólogos), exímios conhecedores e “manipuladores” (sem a conotação pejorativa) de tecnologias de cuidado e de controle, refletidas em novos saberes. Um sujeito e um interior, com centro (estável), borda e linha, que passarão pelo processo de esticar, cortar, dobrar, cuidar, fazer florescer, curar, normatizar, orientados por uma linha epistêmica em ruptura com os modos de ser e viver clássicos nascidos entre os gregos, por exemplo. Esse sujeito, visto como único, transcendental (como queria Immanuel Kant), homogêneo e em linha de continuidade com um passado antigo e venerável, é uma construção, ou, se quiser, uma interpretação da modernidade acerca de si mesma. Um construto (a subjetividade), que estende suas velhas raízes desde Santo Agostinho e René Descartes a Immanuel Kant e Schopenhauer. Uma das críticas de Foucault ao sujeito (pode-se dizer “metafísico”): não se pode apelar a um sujeito do conhecimento que seja essencialmente a-histórico, atemporal, substancial e ontológico, para todas as eras, para toda a História e todas as histórias. A concepção foucaultiana parece próxima à grande ideia weberiana, crítica da noção

marxista-hegeliana

da

história

de

desenvolvimento

ininterrupto

das

forças/relações de produção (ou, no caso de Hegel, do Espírito Absoluto) em ascensão constante até seu zênite comunista, estágio máximo, começo da verdadeira história. Não há, nas trajetórias de desenvolvimento histórico-social das sociedades e da Civilização

Ocidental, linhas necessárias regidas por uma lógica férrea, quer seja econômica ou transcendental, quer seja política ou ideológica. O futuro é resgatado em Foucault, e não é aquele ameaçado pela colonização da esfera da vida pela racionalidade instrumental (uma das hipóteses de Habermas), ou pelo avanço da técnica e da tecnologia “asséptica” divorciada da ética (Heidegger) ao lado da crítica pessimista às ingenuidades do Iluminismo (Adorno; Horkheimer). Para isso, a autonomia e a emancipação não passam exclusivamente pelas tecnologias de libertação, produzidas no interior de grupos e associações políticas de esquerda. Mesmo nesses “aparelhos” (como se refere Louis Althusser), as tecnologias de controle, como se sucedâneos do poder pastoral cristão fossem, operam para normalizar enquadrar, estabilizar, autorizar vozes, saberes e práticas em detrimento de outras, deslegitimadas, caladas, postas à margem. Em uma aula inaugural proferida por Foucault no, Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, publicado no Brasil como livro, pela primeira vez, em 1996, permite visualizar as transições entre o que pode ser chamado de “fases” do pensamento de Michel Foucault. O filósofo analisa os principais grupos de procedimentos do ordenamento do discurso, cristalizados em tecnologias de legitimação do saber e do poder. Nessa análise, ele ressalta a seguinte ideia: os sujeitos que podem emitir falas legítimas e que possuem autoridade para falar têm, na verdade, sua raiz em práticas de tecnologias complexas de micropoderes que, ao vibrarem em uníssono geram macropoderes, expressos em instituições como a Medicina Moderna:

A troca e a comunicação são figuras positivas que atuam no interior de sistemas complexos de restrição; [...] A forma [...] mais visível desses sistemas de restrição é constituído pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação [...] devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); definem os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e de todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção (FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 20 ed. São Paulo: Loyola, 2010, p. 39).

E mais adiante arremata: Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte também, políticos, não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos (FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 20 ed. São Paulo: Loyola, 2010, p. 39).

A pretensa naturalidade do sujeito e de sua verdade mais profunda, o eu e a identidade sexual, por exemplo, resultam de práticas, dispositivos e discursos nascidos dos micropoderes; estes são cotidianamente exercidos sobre loucos, doentes e doenças, crianças,

operários,

aprisionados

ou

criminosos,

corpos,

vivências

sexuais,

enfermidades mentais e desvios comportamentais. Na verdade, o processo de investigação e criação de um fazer-saber em torno do sujeito estabelece determinadas fronteiras entre o normal e o patológico. Na contramão da escola de Frankfurt e das morbidades teóricas daí advindas, Foucault interpreta o poder além das tradicionais análises: uma coisa inscrita em certos aparelhos (o Estado, o Mercado) ou uma forma pura de repressão ou sublimação (o que deve ser regulado, proibido e reprimido). O poder é visto como uma série de dispositivos nascidos das microrrelações travadas no cotidiano (família, colégio, fábricas, hospitais e manicômios, exércitos) e, ao mesmo tempo, positivados, isto é, que apontam para o desenvolvimento de habilidades, docilidades, permanências, desejos ou ânsias de saber, de verdade e de poder. Esses três elementos estão profundamente interligados. Uma coletânea de textos de Foucault que, ao ser lançado no Brasil, em 1979, recebeu o nome de “Microfísica do Poder”, é uma amostra dessas perspectivas. O poder não é essência, coisa ou objeto a ser tomado, usado, manipulado, liberado. Não está só nos grandes aparelhos como o Estado, Igreja, Partidos Políticos, Sindicatos, Ciência. O poder é prática e, por isso, poroso em relação a essas instituições, perpassando-as, atravessando-as, extravasando-as: entra e sai delas, nelas circula. Quando as práticas, em nível micro se postam em planos convergentes, criam-se mecanismos gigantescos de controle e autoridade. O poder existe na medida em que se criam feixes de relações, de tecnologias de controle, de produção das verdades, das docilidades do corpo e do self, e isso passa pelas relações humanas na história presente. Foucault critica as teorias liberais e marxistas que, a seu ver, não conseguem interpretar, de forma profunda, as questões suscitadas pela modernidade capitalista, uma vez que essencializam o mercado, as relações econômicas e políticas, e as engessam nos grandes aparelhos. Todavia, Foucault percebe pouco a pouco que o sujeito não está apassivado como um objeto sobre o qual as tecnologias de dominação se deleitam, mas como um horizonte de possibilidades autonômicas como projetos éticos e estilos estéticos. UM alerta: devem-se entender essas autonomias como não absolutas e transcendentais, mas históricas e imanentes.

Diante disso, Foucault realiza a seguinte crítica endereçada ao filósofo Sartre (e a outros), que concebe um sujeito autônomo autocriando-se numa liberdade “absolutizada”, sem atentar para as dobras/clivagens ou para os cruzamentos históricos entre as tecnologias de dominação e as tecnologias de constituição do eu que, desde os Gregos e Romanos até os modernos, descrevem trajetórias descontinuadas, ou “governamentalidades”. Na esteira de seu prestígio como intelectual, Paul-Michel Foucault veio ao nosso país algumas vezes, debatendo com diversos intelectuais (Roberto Machado, Helio Peregrino, Jurandir Freire Costa, Benedito Nunes e outros) entre 1973 e 1976 (ocasião em que proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém). Não veio como Lèvi-Strauss, importante antropólogo francês que conviveu com os indígenas do Brasil Central cujas experiências relatou em “Tristes Trópicos” e lecionou na Universidade de São Paulo. Contudo, das conferências realizadas em universidades brasileiras, cinco delas foram pronunciadas em maio de 1975, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, das quais este trecho é uma amostra:

Como as condições políticas, econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito do conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade. Só pode haver certos tipos de sujeitos de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que forma o sujeito, os domínios do saber e as relações com a verdade. Só se desembaraçando destes grandes temas do sujeito de conhecimento, ao mesmo tempo originário e absoluto, utilizando eventualmente o modelo nietzschiano, poderemos fazer uma historia da verdade (FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas, 2003, p. 13).

Coerente com sua forma de atuar, Foucault fez em São Paulo declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional (RODRIGUES, 2011). Lembre-se que em 1975, chocado, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso, torturado e assassinado por agentes da repressão militar no Brasil. Hoje, com a Comissão da Verdade, vozes e memórias podem emergir da subalternidade imposta (desordenando a “ordem injusta” do discurso “ordem e progresso”) e, quiçá, serem fermento de justiça concreta: a punição para os crimes cometidos por agentes da Ditadura Militar brasileira. A obra de Foucault, descobre-se, ou interpreta-se, que a moral como obediência “vitoriana” a Lei é uma das possibilidades éticas, e o sujeito moral é umas das realizações históricas do sujeito ético, ele também uma construção social. O local de

realização da autonomia é imanente à história: nos fluxos e devires concretos e presentes, emergindo das lutas de resistência (mas também de invenção de si mesmo), às tecnologias de dominação em suas mais variadas formas, em busca do horizonte das autonomias. Há outras possibilidades foucaultianas, mas isso já é assunto para outro artigo.

Bibliografia FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. _____. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _____. A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. _____. A ordem do discurso. 20 ed. São Paulo: Loyola, 2010. _____. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 5. ed. São Paulo: Graal, 2003. _____. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. 10 ed. São Paulo: Graal, 2003. _____. História da Sexualidade III: o cuidado de si. 6 ed. São Paulo: Graal, 2003. _____. O Nascimento da Clínica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. _____. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. _____. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 1987. _____. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva1997. _____. Tecnologias del yo y otros textos afines. Barcelona: Paidós Ibérica S.A. 1990. _____. Réponse de Michel Foucault a une lectrice iranienne. In: _____. Dits et écrits. Vol. III. Paris: Gallimard, 1994. MOTTA, Manoel Barros da (org. comp. de textos). Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Coleção Ditos e Escritos, volumes I, II, II, IV, V (2002, 2003, 2004). Tradução da Edição francesa, Dits e Ècrits, sob a direção de Daniel Defert e François Ewald, com a colaboração de Jacques Lagrange, lançado pela editora Galimmard em 1984. MILLER, James; MILLER, Jim. The Passion of Michel Foucault. Harvard University Press, 1993. RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Michel Foucault no Brasil. Esboços de história do presente. Revista Verve (PUCSP), v.19, p.93 - 112, 2011.

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