Michelle Dantas Rocha. 2007. A REDE DE BRINCADEIRAS NO DISTRITO FEDERAL

August 25, 2017 | Autor: Michelle Dantas | Categoria: Anthropology, Popular Culture and Religious Studies, Brazilian Culture, Latin America
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Comunicação Social – Jornalismo ^ A REDE DE BRINCADEIRAS NO DISTRITO FEDERAL Autora: Michelle Cristina Ângelo Dantas Rocha Orientador: Alex Ricardo de Medeiros da Silveira + 55 61 9989-8421

BRASÍLIA

2007

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Michelle Cristina Ângelo Dantas Rocha

A REDE DE BRINCADEIRAS NO DISTRITO FEDERAL

Orientador: Alex Ricardo de Medeiros da Silveira

Brasília 2007

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Seu Estrelo e Fuá do Terreiro

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Pé de Cerrado

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Agradeço a Deus por ter me concedido a condição, coragem e a perseverança para concretizar um dos meus maiores sonhos, que é o de me formar no que sempre almejei. Aos meus pais que sempre me incentivaram e que se esforçaram para pagar minha graduação, em especial, à minha mãe – mulher forte e guerreira.

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A Deus. Se hoje eu estou bem e se consegui alcançar meus objetivos, é graças a Ele. A minha família que lutou muito para que eu conseguisse realizar este sonho. Ao Professor Alex da Silveira, que me incentivou nos momentos mais difíceis. Nossa, e como foram muitos. Ao Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e Pé de Cerrado, pela recepção nos meses que acompanhei semanalmente os ensaios e apresentações. Durante cada treino aprendi e compreendi o significado do que é ser uma família e como compartilhar sentimentos em pequenos gestos que dizem mais intensamente, acima de qualquer diferença e ambiguidades. Aprendi que você pode se divertir como criança e com “coisas de criança”, como por exemplo, uma brincadeira de roda, pular corda e até mesmo brincar de ciranda. A minha colega e fotógrafa Tatiana Reis, que constantemente se preocupava com o meu trabalho. E que se esforçou para me ajudar a selecionar boas imagens para incluir em meu trabalho final de conclusão de curso. Aos meus amigos da UCB e da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) que acreditaram no meu trabalho. Obrigada pela ajuda, incentivo e compreensão, até mesmo quando o arquivo com o meu trabalho “travava”. Aos professores do curso de Jornalismo Pelos estímulos e importantes sugestões.

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“Muitos teriam chegado à sabedoria se não acreditassem que já eram suficientemente sábios” Juan Luiz Vives

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RESUMO: Brasília tem passado por um processo muito importante em relação à valorização da cultura brasileira. Desde o final do século XX, têm surgido variados grupos que possuem como foco a construção de uma identidade cultural brasiliense, baseados em referências de mestres da cultura popular tradicional e de suas práticas. A partir desta preocupação, as redes de brincadeiras do nosso país têm passado por um processo de hibridação, proporcionando a origem de novas práticas.

PALAVRAS – CHAVE: Brasília – hibridismo cultural – cultura popular – rede de brincadeiras

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO Primeiro Contato CAPÍTULO I: CRIANDO RITOS

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Gênese do Seu Estrelo

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A Casinha

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O Imaginário Popular que constitui o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro

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A Roda

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O Mito

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CAPÍTULO II: BRINCANDO E CANTANDO

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AS IDEOLOGIAS DO SEU ESTRELO E FUÁ DO TERREIRO

34

Os Personagens, As Danças e a Melodia

34

O Seu Estrelo e a herança dos Mestres de Cultura Popular

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Não é Maracatu. É o Samba Pisado

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Projetos

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CAPÍTULO III: TECENDO CULTURAS

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O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO CULTURAL DO PÉ DE CERRADO

62

A Gênese

62

Os Ensaios

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A Pesquisa

63

A energia através das composições

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Com o Pé na Recriação

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A Diversidade Cultural como Prática

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Reeducando o Público

76

Projetos

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Caindo na Rede de Brincadeiras

79

A Circulação das Brincadeiras Populares em Brasília

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

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Anexo I: O Mito Anexo II: Os Grupos

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INTRODUÇÃO

Pode-se definir o ano de 2005 em minha trajetória de estudante como um ano aberto para novas experiências e marcante no conhecimento de um mundo que até então eu não conhecia, ou melhor, que estava próximo de minhas concepções e que constituí as minhas origens étnicas, mas que até então estava oculto em um mundo construído por visões preconceituosas, alicerçadas nas doutrinas e vivências da Igreja, imagem essa que me “impedia de ver o mundo”, de observar o diferente e de tentar compreender e de respeitar o divergente, independente se faço ou não uma ruptura dos ensinamentos que me foram dados desde a construção de minha personalidade cristã. A partir desse momento, uma menina que muitas vezes tinha medo de entender as diferenças e os conflitos existentes no mundo social e religioso, pára para perceber que o seu horizonte estava limitado, e que seria necessário o esforço individual marcado por conflitos pessoais, intelectuais, religiosos e familiares para que fosse ampliada essa visão estreita que de certa forma a incomodava. Tudo começou quando fui selecionada no segundo semestre de 2005, por minha professora de graduação, Rosa Virgínia Araújo de Albuquerque Melo, cuja matéria se denominava Elementos de Realidade Regional e Brasileira Contemporânea. Através do seu incentivo fiz parte do Projeto Patrimônio Imaterial da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno1, a qual contribuí para a observação das expressões culturais, sendo que as celebrações, saberes, lugares e formas de expressões de Corumbá de Goiás seriam encaminhados ao registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, junto ao IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Foi a partir deste projeto que tive um contato intenso com a cultura popular brasileira. Através da convivência com as práticas culturais de Corumbá de Goiás, passei a observar a importância, o amor e a responsabilidade que os brincantes tinham em por em prática com honra e qualidade, apesar das dificuldades enfrentadas pelo município, as Cavalhadas, Folias de Reis e as Folias do Divino Espírito Santo. Foi a partir deste momento que meus pré-conceitos passaram a tomar novos rumos e assim, passei a ter ciência que meus conceitos antecipados e sem fundamentos sérios não teriam futuro e que me prejudicariam, não apenas em minha profissão, mas 1

O Projeto Patrimônio Imaterial da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno – PIRIDE - teve seu início em julho de 2004 até dezembro de 2005. O projeto foi idealizado com o intuito de identificar as expressões da cultura dos municípios de Formosa, Corumbá de Goiás, Santo Antônio do Descoberto e Luziânia, do Estado de Goiás, e de Buritis, em Minas Gerais. O projeto teve como produtos duas publicações, o inventário dos bens culturais de cada município e o livro com as interpretações do significado deste patrimônio imaterial para o país, um vídeo documentário, além dos dossiês de registro e do debate público com a sociedade.

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no meu dia-a-dia e na minha forma de lidar com o mundo. Eis o início do processo de autotransformação. Nesta mesma disciplina, eu e meus colegas de classe tivemos que selecionar um grupo de cultura popular do Distrito Federal e realizar segundo os textos lidos e discutidos durante as aulas, análises do processo de hibridação cultural, que segundo Canclini2, “são processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Em vista disso, observamos como este grupo selecionado realiza a união de duas ou mais práticas culturais, além de verificar como é realizado o processo de comunicação com esses elementos herdados pelas culturas de outros países, Estados e povos que os influenciaram, além de verificar como são trocadas as informações e experiências entre esta rede, contribuindo para a geração de um novo costume, ou melhor, de uma nova brincadeira. Foi no Festival de Cultura Popular3, realizado em 28 de outubro de 2005 que obtive o primeiro contato intenso e pessoal com a cultura popular no Distrito Federal e principalmente com o objeto de trabalho que tínhamos que realizar na disciplina citada acima e futuramente do meu trabalho final de conclusão de curso. Sendo assim, conheci em seu primeiro ano de vivência, o grupo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e através das apresentações que acompanhei do grupo, conheci também o Pé de Cerrado, objeto futuro também de minha pesquisa. Foi então que comecei a seguir os passos das apresentações dos grupos e tive a conclusão que era essa rede de brincadeiras populares do Brasil, especificamente de Brasília, que seria o tema principal do meu projeto final de graduação. Neste primeiro momento, enquanto escrevo a primeira parte do trabalho, tenho o intuito de abordá-lo como uma síntese do meu diário de notas, tanto nos ensaios e apresentações dos grupos Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e Pé-de-Cerrado, e minhas dificuldades primárias como pesquisadora, em um trabalho que seria plenamente individual e com total responsabilidade. Tento realizar agora, um contraponto ao descrever os meus primeiros contatos como pesquisadora, tanto com a cultura popular brasiliense, como também com os grupos que selecionei para a análise, focando o processo de hibridação cultural proporcionada e existente em nosso país.

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CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade, São Paulo, Edusp, 2003. 3

O Festival de Cultura Popular foi realizado pelo grupo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, em celebração ao seu primeiro aniversário e também em comemoração ao personagem principal do Mito do Calango Voador, que é o próprio Calango – símbolo característico do Centro - Oeste brasileiro, especificamente do cerrado. Todos os anos o grupo em comemoração ao nascimento do seu personagem principal, realiza entre agosto e final de outubro, o Festival de Cultura Popular do Distrito Federal. Mas afinal o que é o Mito do Calango Voador? Qual é o significado deste festival para o grupo e para Brasília? Todas essas indagações serão respondidas aos leitores no decorrer da monografia.

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Primeiro contato

No dia 14 de abril de 2007 comecei minha primeira pesquisa de campo com o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. Estava animada com minhas indagações, pois escolhi trabalhar com elementos que me faziam bem e que me concediam o prazer de apreciar, respeitar, estudar e analisar. Mas confesso, este foi o meu primeiro contato com o grupo e havia um excesso de ansiedade e até mesmo de despreparo como pesquisadora, pois fui à busca da concretização de um sonho que nunca havia realizado anteriormente sozinha. Com caneta, papel e câmera na mão entrei em contato com o responsável maior pelo grupo, Tico Magalhães, e confirmei minha ida ao primeiro ensaio. Muitos de vocês, meus leitores, devem estar se perguntando o porquê de relatar os detalhes dos meus primeiros contatos como jornalista e como pesquisadora de nossa cultura popular brasileira. Meu intuito aqui é fazer como costumava fazer o escritor brasileiro Machado de Assis, em seus romances. Ao mesmo tempo em que escrevo e me analiso, anseio também que meu leitor, em uma conversa intensa, seja cúmplice das minhas reflexões durante este processo complexo que é a análise de outras culturas e de novos processos sociais. Narro aqui em cada palavra, minhas primeiras memórias visíveis, para dar força e conscientizar àqueles que almejam fazer uma pesquisa de campo4, pois este é um trabalho árduo, desgastante e difícil, mas apesar de todas as dificuldades, é um esforço prazeroso. Continuando a relatar o meu primeiro contato com o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, confesso que não sabia como agir e como conversar com os participantes do grupo. Não sabia se contava a todos que eu estava ali a partir daquele dia analisando cada gesto, dança, brincadeira e passos dos participantes; ou se ficava neutra e invisível, me esforçando ao máximo para que ninguém me notasse. Tive o medo também de ser ou não recebida, mas descobri que a confiança e a “amizade” vão sendo alicerçadas aos poucos, de acordo com a convivência e com a abertura que não apenas o grupo em si dava, mas que também eu, não apenas como acadêmica, mas como possível admiradora desta rede de cultura popular. Em minha concepção, não é ético estar ali entre o seu objeto de pesquisa apenas com o intuito de receber informações do grupo e anotá-las no seu caderno de notas. É necessária e 4

Desde o início da seleção do tema para o meu trabalho, resolvi que gostaria de abordar algo referente à cultura popular brasileira e que a pesquisa principal seria a de campo. Procurei diversas bibliografias que pudessem me ajudar e ensinar a como me comportar em movimentos sociais e como seria a experiência de estudá-los, mas infelizmente obtive dificuldades de encontrar essas fontes. Contudo, resolvi que seria interessante dar ênfase a estas barreiras no meu trabalho para que os futuros pesquisadores de primeira viagem como eu possam estar cientes de como é a sensação de realizar um estudo de campo, mas quero deixar claro, que o maior manual de como saber pensar, fazer e agir nestas situações é fundamentalmente a experiência pessoal.

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agradável, até mesmo para o seu relacionamento com cada integrante, a postura da humildade. É importante mostrar que você não está ali porque sabe de tudo, mas que os escolheu para poder aprender, não apenas como estudante, mas como um ser humano com desejos de conhecer o diferente, e com o anseio de descobrir um pouco mais sobre o seu país, sobre sua cidade e sobre as comunidades e movimentos que a constituem. Aprendi que é necessário se doar e se prontificar em ajudar em qualquer circunstância gerada no grupo. Em muitos momentos, durante os ensaios e até mesmo nas apresentações, surgiram oportunidades onde alguém do grupo estava precisando de uma carona até a parada mais próxima, de ajuda na confecção de uma roupa ou de uma máscara para um dos personagens, na hora de ajudar a lavar a louça ou preparar uma salada de fruta para a concretização de algum evento ou lanche que o próprio grupo estava se propondo a organizar. Mesmo tendo passado pela angústia do primeiro contato com o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, passo pela mesma aflição ao ligar no dia 18 de junho de 2007 ao Pablo Ravi, um dos componentes do grupo Pé de Cerrado 5 explicando o desejo de abordar o conjunto no meu trabalho de conclusão de curso. Sendo muito bem recepcionada pela equipe do Pé, como muitos assim os denominam, e mesmo tendo tido novamente o receio de não saber como agir, passo a ir aos ensaios todas as segundas e terças-feiras das vinte duas horas até a meia-noite e nas apresentações externas. Durante a convivência com ambos os grupos, o tempo, que se resumiu aproximadamente a oito meses, foi dando as respostas do que seria necessário e fundamental para a análise. Aos poucos, fui me esforçando para saber diferenciar o que era importante ou não a ser analisado durante cada ida às pesquisas de campo e a qualquer evento de cultura popular, mas tendo como referência os estudiosos da Antropologia, Sociologia, Literatura e da Comunicação. Confesso que tive muitas dificuldades na hora de manusear e moldar o meu trabalho. Mas quais foram essas dificuldades? O maior emblema foi tentar ser neutra em um movimento que você admira e que deseja até ser ativa. Saber dividir a emoção da pesquisa é um exercício difícil de concretizar. Muitas vezes, nas apresentações e até mesmo nos ensaios, tive que parar um momento e refletir que eu não estava ali para me entreter, mas para analisar e criticar as ações dos grupos que selecionei como foco para a observação do processo de hibridação cultural existentes nas redes de brincadeiras. Sabia que apesar de tudo ser novo em minha vida naquele momento, era importante que tudo fosse seriamente observado. Para não ficar apenas na teoria e na suposição como alguns 5

Agradeço a receptividade de cada participante do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e do Pé de Cerrado pelos meses em que os acompanhei semanalmente durante os ensaios e as apresentações. Durante cada treino fui aprendendo e compreendendo o significado do que é ser uma família e como compartilhar sentimentos em pequenos gestos que dizem mais intensamente, acima de qualquer diferença e ambigüidades. Aprendi que você pode se divertir como criança e com “coisas de criança”, como por exemplo, uma brincadeira de roda, pular corda e até mesmo brincar de ciranda.

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acadêmicos, tenho que abordar a realidade das práticas culturais do Distrito Federal, além de divulgar como são realizadas as batalhas diárias pelos brincantes ativos do nosso Brasil. Para que haja uma maior valorização da cultura popular em nosso país, assim como tem extremo valor as culturas eruditas. Quando critico as atitudes de alguns acadêmicos ao abordar a cultura popular, não generalizando, quero afirmar que muitas vezes a abordagem de determinadas práticas culturais são desvirtuadas por estes, pois elas não são retratadas de forma verdadeiramente ligadas à realidade daquele movimento. Afirmo esta realidade baseada em críticas dos próprios mestres e brincantes. Segundo Tico Magalhães, “há um grande problema em relação às críticas referente à cultura popular realizadas pelos estudiosos. Muitos possuem a visão fechada, pois para eles a cultura popular é feita por um negro, sem dente e analfabeto, além da idéia de que não se pode mexer ou modificar alguma dessas práticas, pois elas podem se perder e acabar morrendo”, e acrescenta, “uma coisa é você teorizar a cultura popular estabelecendo que essa visão seja a certa e ponto final, agora outra coisa é você viver para a cultura popular. Infelizmente as teorias são muitas no meio acadêmico, mas a realidade sobre a prática popular e a luta para que ela continue viva no meio social é pouca”. Durante este processo de adaptação, registro e observação, percebi que nada era comparável como a visita pessoal e com a realidade que vivenciei no lugar, e do que é o Pé de Cerrado e o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. A cada encontro que havia com o meu objeto de estudo, me sentia uma “antropóloga” realizada. Meu contato pessoal foi muito mais intenso do que minhas expectativas e projeções iniciais com o trabalho. Contudo, não existe melhor aprendizado que a prática, apesar de muitas vezes a naturalidade ser afetada, visto que quando você se apresenta como pesquisadora daquele grupo e de seu movimento, muitas vezes o seu relacionamento é diferente, tanto para quem analisa e para quem é analisado. Ter a moldura de pesquisador significa que é a sua verdade e realidade que vai sair no produto final e não a realidade do próprio grupo. Tentar registrar um patrimônio cultural muitas vezes é mais difícil do que entendê-lo. Assim como afirma Rainer Maria Rilke6, “sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil, é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil dever ser um motivo a mais para que seja feita”. Estar aqui com o intuito de escrever minhas descobertas tem sido doloroso, devido ainda à inexperiência, mas há a inquietação de trazer uma contribuição para o estudo sobre os grupos de cultura popular do Distrito Federal. O medo e a insegurança sempre estiveram presentes, mas a 6

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta e a canção de amor ao porta-estandarte Cristóvão Rilke. Tradução Paulo Rónai e Cecília Meireles. 2ª edição, São Paulo: Globo, 2001, p. 58.

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abdicação foi o combustível para que este sonho tomasse o seu rumo, conseguindo alcançar os meus objetivos e expectativas. 1. CRIANDO RITOS

Gênese do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro

Por volta do ano de 1997, o publicitário Tico Magalhães desloca-se de Pernambuco para morar na capital federal. Com uma representação muito ativa nas práticas culturais de Recife e com a influência intensa desde a infância de alguns mestres do Maracatu Rural7 e do Maracatu do Baque-Virado8, entre eles o mestre Walter França do grupo Maracatu Nação Estrela Brilhante do

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REAL, Katarina. O folclore no carnaval do Recife. Recife: Massangana, 1986. O Maracatu Rural é também conhecido como Maracatu de Baque Solto ou Maracatu de Orquestra ou de Trombone. O ritmo se originou durante a crise que precedeu a II Guerra Mundial (1939 – 1945), em que ocorreu uma onda migratória da zona rural de Pernambuco para o Recife. O movimento é uma manifestação originada do campo, ligada a cultura da cana-de-açúcar e influenciada pela cultura afro-brasileira. Segundo a folclorista Katarina Real, o Maracatu Rural tem possível origem dos grupos “cambindas” – em que os homens travestiam-se de mulheres. A pesquisadora afirma em seus estudos que o maracatu rural é "uma fusão de elementos de vários folguedos populares existentes no interior de Pernambuco: pastoril, baianas, cavalo-marinho, caboclinho, folia de reis, etc." Diferente do Maracatu Nação, o Rural não conta com cortejo real do Rei e da Rainha. Os personagens principais são a PortaBandeira ou Baliza, a Dama do Paço, as Porta-Buquês, as Baianas, os Caboclos, os Caboclos de Lança (com chapéu em forma de funil), caboclos de Pena e a Boneca Aurora. No Maracatu Rural, do começo ao fim, o ritmo instrumental praticamente não muda. Os instrumentos que o constitui são o gonguê de duas campanas, mineiro, tarol, bombo, porca, trombone de piston, trompete, vozes, apito do mestre, os chocalhos no surrão dos caboclos de lança e os chicotes de burrical. O Maracatu Rural mais antigo foi originado, em 1898, e é denominado Cambinda Brasileira, localizado na Zona da Mata de Pernambuco. Quero deixar claro aqui também, que o Maracatu em geral não existe apenas em Pernambuco, mas também em outros estados do Nordeste (Paraíba, Ceará e Maranhão), com menos incidência. 8

SANTOS, Climério de Oliveira; RESENDE, Tarcísio Soares. Maracatu Baque Virado e Baque Solto. Recife: Coleção Batuque Book. 2005. Maracatu do Baque Virado ou Maracatu Nação são os filhos das senzalas e dos mocambos de Recife que viviam do trabalho de homens e mulheres escravizados. A manifestação se resume no cortejo das procissões católicas. Os trajes são semelhantes aos utilizadas pelas cortesãs portuguesas, com toda a sua riqueza e brilho. O batuque segue o cortejo do Rei e da Rainha desde o século XVII, os escravos tinham o costume de eleger um rei e uma rainha negros para cada comarca ou distrito paroquial. Esse costume se denominava a Instituição do Rei do Congo. O rei do Congo, bem como os demais cargos, era apenas um auxiliar da autoridade policial. Todos, inclusive o rei e a rainha, eram autoridades intermediárias entre o poder do estado e todas as nações africanas, sem que se dessem conta disso. A festa da coroação do rei e da rainha do Congo era realizada em março, na festa da Nossa Senhora do Rosário. A boneca utilizada nos cortejos no Maracatu denomina-se Calunga – ela encarna as divindades dos orixás, recebendo em sua cabeça os axés e a veneração do grupo. A música denomina-se toada e suas letras têm influências africanas. O Maracatu do Baque Virado é formado pelo rei, rainha, dama-de-honra da rainha, dama-de-honra do rei, príncipe, princesa, ministro, embaixador, duque, duquesa, conde, condessa, vassalos, damas-de-paço (que portam as calungas durante o desfile do maracatu), porta-estandarte, escravo sustentando a umbrela ou pálio (chapéu-de-sol que protege o casal real e que está sempre em movimento), figuras de animais, guarda-coroa, corneteiro, baliza, secretário, lanceiros, brasabundo (uma espécie de guarda costa do grupo), batuqueiros (percussionistas), caboclos de pena e baianas. O maracatu nação é abundante na capital pernambucana. Na Federação Carnavalesca de Pernambuco estão filiados 31 maracatus de baque-virado, mas estima-se que haja ao todo, 65 grupos de Maracatu. O som do apito do mestre dá início ao batuque. Os instrumentos constituídos do movimento são o tarol, caixa de guerra, gonguê e alfaias.

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Recife9 e o mestre Salustiano do grupo Maracatu Piaba de Ouro10, Tico procura sempre estar ligado com suas referências, divulgando-as por onde anda. Após alguns anos no Planalto Central, Magalhães faz planos para continuar pondo em prática todas as suas vivências e experiências da cultura popular pernambucana em Brasília. Inicialmente, o grupo Calango Alado foi o primeiro conjunto formado por Tico Magalhães. O grupo utilizava em suas apresentações o teatro, Maracatu, artes plásticas, música e circo. Desde o ano 2000 o grupo se apresentava em Brasília e no Entorno, entrando nos ambientes de surpresa, contando a história do surgimento do Calango Voador. Mas após divergências com os componentes do grupo, o pernambucano resolveu abandoná-lo. O Calango Alado era um processo de experimentação mais ligado à percussão do Maracatu e esse não era o interesse de Tico Magalhães, pois trabalhar com o mito era o verdadeiro sentido da brincadeira. O grupo era muito solto, pois cada um fazia o figurino do seu jeito. A proposta inicial nas apresentações era chegar ao lugar sem ser anunciado, mas com o tempo as pessoas começaram a anunciar. Surgiu também a discussão do “Para quê chamar se não pode divulgar”? As pessoas que participavam do Calango Alado no começo não tinham um diferencial de brincadeira, mas para que pudesse ser sustentado esse experimento, o grupo teria que estar muito sintonizado, porque o tempo vai passando e a brincadeira começa a ser reconhecida, portanto seria necessário ter mais responsabilidades. Então como o grupo estava distante do que Tico havia

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MARACATU NAÇÃO ESTRELA BRILHANTE. Disponível em: Acesso em: 10/09/2007. O grupo Maracatu Nação Estrela Brilhante do Recife foi originado em 1906 por Cosme Damião Tavares, conhecido como Seu Cosmo. Após a sua morte, em 1955, o grupo já passou por diversas direções, entre eles, ao da sua esposa Dona Assunção, do Sr. José Martins de Albuquerque, do Sr. Lourenço Molla, da rainha Marivalda Maria dos Santos e atualmente do Mestre Walter França. O conjunto foi o primeiro grupo de Maracatu que teve a oportunidade de registrar seus repertórios no CD Amazônica e no CD Pernambuco em Concerto. Em 2001, eles conseguem realizar um grande sonho, não só deles, mas de todos os Maracatus de baque virado de Penambuco: gravar o CD “Nação Estrela Brilhante” unicamente com toadas e baques do Maracatu. No carnaval de 2002 o grupo consegue atingir o primeiro lugar, junto com o grupo Nação Porto Rico, no desfile da Federação Carnavalesca, e coroa com essa vitória todo o trabalho cumprido até hoje. O conjunto são os padrinhos do grupo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. 10

CÂMARA, Augusto. Quanta História para Contar: Disponível em: Acesso em: 08/10/2007. Fundado em setembro de 1977 por Manoel Salustiano Soares (o pai), o Maracatu Piaba de Ouro é um dos maracatus rurais mais conhecidos no estado de Pernambuco. Segundo o autor Augusto Câmara em seu Roteiro do carnaval de Olinda, a origem do nome deve-se aos pequenos peixes existentes do riacho que havia próximo a casa da família. Hoje, o mestre Salustiano continua dando seqüência as práticas culturais de seu pai e hoje é denominado como o primeiro mestre patrimônio cultural da humanidade. O grupo se tornou um Ponto de Cultura, do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura. O Maracatu Piaba de Ouro, liderado pelo mestre Salu é o único maracatu de baque solto que tem uma orquestra com 20 músicos. Atualmente, o maracatu desfila com 250 figurantes. Nas apresentações do grupo são divulgadas também diversas manifestações culturais, entre elas, o Cavalo-Marinho, Caboclinho, Coco de Roda e o Forró Pé-de-Serra com Rabeca. A instituição já foi campeã do carnaval pernambucano por sete vezes.

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imaginado, ele voltou para sua cidade natal, Recife, e depois de algum tempo resolve novamente voltar para Brasília. A partir deste retorno surgiu o processo de criação do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e de transformação e amarração do Mito do Calango Voador, que será abordado posteriormente no decorrer deste trabalho. Para Luís Felipe, integrante do grupo, no vídeo documentário Fuá, a Brincadeira já começou

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, “o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro se originou quando Tico estava buscando algumas

pessoas para montar uma nova história, pois ele estava voltando de Recife e estava com muitas idéias na cabeça querendo realizar”. Marcelo Fernandes, outro integrante, acrescenta, “com dois anos, quando A Casinha estava ocupada por uma das integrantes atuais do grupo, o Tico veio dar uma oficina para a gente, ensinando alguns passos e toques do Maracatu”.

Luís Felipe

complementa que “a principio ele ia fazer a oficina com crianças carentes lá da cidade do Paranoá, mas ele não tinha o espaço para fazer. Eu morava Na Casinha com a Cris, que é uma integrante também do Seu Estrelo. De repente o Tico conheceu o espaço e deu uma sugestão de fazer o lance lá. Depois que o ambiente já estava legal, o grupo já estava formado, aí ele deu a idéia de formação de um grupo à parte para contar esse mito que ele havia criado e nisso, Tico Magalhães, criou o Seu Estrelo que já tem outros personagens além dos existentes no mito”. A princípio o recifense teve a iniciativa de dar oficinas para que os candangos aprendessem um pouco mais sobre a cultura popular pernambucana, mas com o tempo ele foi sentindo a necessidade de se abastecer dos elementos do Maracatu, que infelizmente estavam muito distantes. “Uma coisa que eu sentia aqui na cidade era esse lance de trabalhar com o Maracatu aqui mesmo. Maracatu está muito ligado a Recife, então muita referência você tem lá. Porque na verdade você fazer cultura popular é algo complicado, pois o tempo todo você precisa estar se abastecendo, você precisa o tempo todo estar puxando para um processo de resistência. Então como você tem os elementos que faziam parte daquilo ali perto, então fica muito mais fácil”, e acrescenta com um exemplo, “a história do Maracatu está ali em Pernambuco o tempo todo, então toda vez que você precisa de força, você vai lá e encontra alguns elementos e pega essa força como se fosse um combustível. Quando eu comecei a trabalhar com o tambor aqui em Brasília, eu sentia a necessidade de ter aqui perto algo que me abastecesse, porque eu não agüentava estar aqui e ter minhas referências em Recife. Eu tinha que ter essas menções aqui perto. Então foi quando começou o processo de construção do elemento, do mito, da história da gente e do Seu Estrelo. Foi exatamente isto que aconteceu. Nós pegamos elementos do cerrado que estavam próximos da gente e acabamos construindo um formato para o Seu Estrelo trabalhar. Enfim, a gente abriu um grupo 11

FUÁ, a Brincadeira já começou. Produção de Hugo Michels e Silvio Cohen. Brasília: Titio Produções, 2006. 1CD (16 min).

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que vai ter um espaço aberto para quem quiser chegar e brincar, nós nos propomos também a fazer uma brincadeira cada vez maior, com influências do Recife, mas com elementos mais do CentroOeste e daqui de Brasília”, conclui Tico Magalhães. Apesar de Brasília possuir na época da criação do grupo 44 anos, Tico Magalhães havia observado que a cidade estava num processo de construção de sua identidade cultural. Conhecida como a capital do rock, devido o surgimento de bandas no final dos anos 70 e início dos anos 80, entre elas, Capital Inicial, Legião Urbana e Plebe Rude, a capital aos poucos estava se modelando. Nesta mesma época em que o rock candango estava em grande repercussão, surgiu a difusão do reggae de Renato Matos, do Projeto Cabeças (1978) e o Panelão de Arte (inicio dos anos 80), que tinham o interesse de lançar no Brasil cantores de melhor qualidade, como por exemplo, Cássia Eller, Zélia Ducan, Paralamas do Sucesso e outras bandas musicais da capital federal. Em 1990, surgiu o movimento hardcore com a banda Raimundos e o reggae do Natiruts. Além dos surgimentos dos grupos citados acima, os construtores e incentivadores para o surgimento da capital dos sonhos, Brasília, desejavam alicerçar uma comunidade sem divisão de classes. Apesar de serem poucos os relatos da história oficial, a cidade possuía também, desde a sua origem, os forrós, serestas, sambadas de terreiro, samba de roda baiano, pagodes cariocas, Bumba meu Boi, dentre outras práticas culturais em suas ruas. Mas apesar de Brasília ser a união de vários povos, grande parte dos elementos culturais que existem aqui é trazido de outros Estados, e a partir da idéia de ausência de uma cultura tipicamente de Brasília, com os elementos da cidade e dos povos que aqui se constituíram, surgiu o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. Tico Magalhães relata que desde que migrou para a cidade, ele sentia falta de alguma coisa que tivesse um identificador característico da cidade, em que as pessoas pudessem se encontrar com os elementos daqui e se sentissem mais à vontade. Sendo assim, o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro foi originado no dia 15 de junho de 2004. Danielle Freitas, componente do grupo, explica que “ninguém começou sendo um ótimo dançarino e percussionista. Na verdade a gente iniciou aqui fazendo uma oficina de batuque. Aos poucos a gente foi aprendendo a pegar a dança e com o tempo, toda a galera que está aqui foi aprendendo. Ninguém foi convidado ou contratado porque era suficientemente bom. Cada um está neste trabalho porque acredita em uma brincadeira, na história do mito, na formação de uma cultura e na proposta de estar fazendo alguma coisa que possa ‘mudar o mundo’, principalmente a nossa comunidade. Trabalhar com o imaginário popular numa cidade que está começando é muito forte, e é isso que temos tentado fazer, ou seja, intensificar o imaginário popular do nosso país”.

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Brasília desde o ano de 1961 tem como referência a resistência heróica para continuar viva à cultura popular brasileira, a figura do folclorista Seu Teodoro e o seu grupo Bumba-meu-Boi12. Mas com o tempo, sementes foram lançadas através do sonho do Seu Teodoro e de outros folcloristas que residem em Brasília, e assim foram sendo consideravelmente germinadas e progressivamente surgiram grupos de Cacuriá, Jongo, Congado do mestre Eli, Maracatus, grupos de percussão afro-brasileiros, Catiras, Mamulengos, Frevo, Capoeira e entre outros grupos. Constituindo este sonho, surge então o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, integrando esse movimento de amantes da cultura de nossa pátria.

A Casinha

No meio da capital do Planalto Central, existe um lugar para o refúgio para aqueles que anseiam sair da correria diária e da realidade imposta pela sobrevivência. Um lugar onde é possível mergulhar no mundo dos sonhos, dos mitos, das danças, do teatro, do circo, dos batuques do tambor herdados pelos nossos antepassados e da liberdade de expressão. Um lugar aonde é possível parar para rir, prosear, fazer projetos, construir sonhos futuros, cortar cana e saboreá-la, plantar flores, inventar ritmos, máscaras, vestimentas e adereços. Mas principalmente, um lugar melhor e mais atraente para fazer rodas de brincadeiras de nossa cultura popular e se incorporar livremente sem medo de ser mal interpretado em peso. Este lugar marcado por uma magia acolhedora se denomina A casinha. Localizado no centro de um contraste entre três mundos diferentes, aí está o surgimento do Calango Voador. Situados na Avenida das Nações, em frente à Embaixada da República Popular da China o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro se vê ligado, mesmo que territorialmente, a novas culturas, origens e costumes. Mas ao mesmo tempo, ao olhar para os lados, é possível e notório visualizar do lado 12

CARVALHO, Maria Michol Pinho de. 1995. Matracas que desafiam o tempo: é o bumba-boi do Maranhão. São Luís: s/e. Bumba-meu-Boi é conhecido também como Boi-Bumbá ou Pavulagem. A dança característica do folclore popular brasileiro foi originada entre o final do no século XVII e o início do século XVIII. O folguedo é oriundo pelos escravos como forma de protestar e criticar as relações sociais desiguais que existiam entre os negros e índios versus os senhores de engenho. O Folguedo é característico do estado do Maranhão, e foi originado do pagamento de uma promessa feita a São João. A brincadeira existe em vários estados do Brasil – além de possuir várias vertentes do enredo -, mas sua realização é característica das terras maranhenses, devido suas constantes práticas entre os santos e devotos, além da ligação entre o sagrado e o profano. A dança conta a história da escrava Catirina, que leva o seu homem, o nego Francisco ou apelidado por Chico, para o boi mais nobre da fazenda aonde trabalhava, para comer a língua do boi, satisfazendo-se do desejo de sua gravidez. O fazendeiro descobrindo o acontecido manda o Amo (que encarna a autoridade militar) dar ordem aos índios para que tentem descobrir e capturar o criminoso. Para tentar ressuscitar o boi, chama-se o pajé da cidade, para que fosse passados diagnósticos e receitas para o renascimento do bovino. Após o tratamento, o boi ressurge e o negro é perdoado. Em comemoração a vitória é realizada uma festa em que se confundem personagens e assistentes. O folguedo através da sua teatralização realiza críticas implícitas em forma de comedia, a sociedade, a desigualdade social e a medicina.

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leste e oeste uma oposição entre os mundos. De um lado a modernidade marcada pelas ruas e avenidas voltadas ao comércio e aos prédios residências da L2 planejada por Lúcio Costa

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e ao

mesmo tempo do lado oeste, a calmaria e natureza do Lago Paranoá14. É impossível falar do Seu Estrelo sem abordar o local aonde são realizados os ensaios e algumas festividades do grupo. A casinha não é um lugar conquistado e alugado pelo conjunto apenas para a realização dos ensaios. Seu significado e sua importância são muito mais intensos do que um simples estúdio para o aperfeiçoamento do grupo. A casinha é considera a casa, o local de bem estar e de prazer de cada participante, por isso se chama assim. Lugar simples, mas aberto para quem quiser brincar. A casa é dividida em dois compartimentos. Quando você adentra na casinha, você se depara com todas as vestimentas dos personagens e no outro quarto cada instrumento é guardado cuidadosamente como se tivessem vida. Quem ansiar tocá-los será muito bem vindo, mas exige-se cuidado. Em uma conversa com Tico Magalhães ele declara a importância da casinha para a constituição do grupo. “Eu cheguei a levar o mito para o terreiro. Numa conversa com uma entidade, ela me falou do mito e me perguntou se esse mito trabalhava com a mata, aí eu confirmei que trabalhava sim. Eu e esta entidade começamos a conversar dentro do terreiro sobre o mito e uma das coisas que ela havia me falado, era que quando eu chegasse a Brasília eu iria conseguir um local especial. Com um mês depois, quando eu havia chegado do Recife, Dany, Cris e a Flávia (integrantes do grupo desde sua origem) tinham uma ligação com essa casa e acabaram me mostrando o local. Eu vim pra cá com a idéia de fazer apenas uma oficina e uma brincadeira, mas a coisa foi se transformando e A Casinha virou a casa do Seu Estrelo”, finaliza.

O Imaginário Popular que constitui o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro

Desde nossa infância, principalmente quando estamos no inicio da formação escolar, somos acostumados a ouvir ou a ler as histórias do folclore brasileiro. Atire a primeira pedra quem nunca ouviu sequer um comentário sobre o Saci-Pererê, Mula Sem-Cabeça, Curupira, Boitatá, o Negrinho do Pastoreio, Lobisomem, Iara e outras inúmeras lendas. Cada personagem e suas histórias 13

CASA DE LÚCIO COSTA. Cronologia. Disponível em: Acesso em: 10/09/2007. Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro Lima Costa ou Lúcio Costa é conhecido mundialmente como um dos principais pioneiros da arquitetura urbanista de Brasília. Após ter vencido, em 16 de março de 1957, o concurso para a construção da nova capital do país. O projeto de Lúcio Costa e a arquitetura de Oscar Niemeyer levaram a cidade ao reconhecimento da UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. 14

O Lago Paranoá é o lago artificial de Brasília, no Distrito Federal brasileiro. Foi criado com a construção da cidade, durante o governo de Juscelino Kubitschek.

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começaram a morar no mundo da imaginação de cada brasileiro, mesmo que implicitamente. As narrativas foram contadas de geração a geração em todos os estados do Brasil, mas adaptadas de acordo com cada região caracterizando a tradição oral que antes da modernização era intensa entre as comunidades. O imaginário popular é oriundo da prosperidade que há na diversidade cultural proporcionada pela cultura brasileira, através da influência dos indígenas, europeus e africanos desde a constituição do nosso país e do nosso povo. Antes mesmo da acelerada industrialização, modernização dos meios de comunicação e de seu crescimento não apenas no Brasil, mas mundialmente, a cultura oral tradicional era intensa entre as famílias e a sociedade. O lazer entre as linhagens era pôr em prática a conversa e a troca de informações todos os dias após o jantar, sobre o que cada um havia feito durante o dia. Além de intensificar a união familiar, o diálogo diário enriquecia as histórias, lendas, contos, provérbios, piadas e utopias do nosso povo. Mas com o avanço das tecnologias, os indivíduos passaram a trocar a oralidade pelo rádio, televisão e atualmente pela Internet. Remetendo aos dias atuais, em muitos lares há duas ou mais televisões. As pessoas pararam de ter um contato interpessoal, elas não almoçam, não jantam mais juntas. Não param mais para conversar sobre a realidade de cada um, não há mais a curiosidade de saber o que aconteceu de bom ou ruim no dia de cada parente que constitui aquele lar. Nas escolas tudo é informatizado, os professores não se relacionam mais com os seus alunos, como nas escolas de décadas passadas. A industrialização desestruturou os movimentos e práticas que anteriormente existiam e que tinham grande significação. A comunicação oral se enfraqueceu. Mas mesmo que a oralidade tenha se abrandado, e que as histórias criadas pelos nossos antepassados não tenham mais a ênfase e importância na vida de alguns indivíduos como antigamente, ainda há uma gama de estudiosos, brincantes de nossa cultura e mestres que tentam estudar, ativar, registrar e reerguer a valorização desses elementos que constituíram o nosso imaginário popular. As lendas e mitos transmitidos verbalmente entre as gerações ainda existem, apesar de muitas vezes modificadas, e até mesmo dissipadas entre diferentes regiões perdendo seu relato original, e moldadas de acordo com a realidade do espaço em que ela foi migrada. A literatura oral é uma memória popular que revela o imaginário de um tempo e espaço de onde ela foi originada ou adaptada. Através da narrativa lendária ou mitológica criada em uma determinada região, você pode entender a história e costumes de toda aquela comunidade. E este é o desejo do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro: criar uma história mitológica que explique a origem de Brasília e de alguns elementos que a constitui e que são símbolos do cerrado.

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Eis que surge então o mito do Calango Voador. Tico Magalhães explica que “o mito foi construído a partir dessa necessidade de ter os elementos de Brasília perto. Eu ia para a Chapada dos Veadeiros e via a Caliandra15 e parava para pensar que ela era uma matéria prima daqui do cerrado, e pensava que era uma coisa que a gente poderia estar puxando para a história. Tem também a coisa da cachoeira e da mata que é muito característico do cerrado brasileiro”, e acrescenta, “o mito é uma amarração, pois as coisas vão chegando e vão sendo amarradas. O mito não tem registro nenhum, pois ele é da cidade e não do Seu Estrelo entendeu? Quem quiser brincar e desenvolvê-lo está livre para fazer isso. Nossa idéia é que a gente vá brincando com ele, saindo do estereótipo do folclore.” Para os integrantes do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, a idéia das práticas folclóricas estão longe de suas concepções. Para Tico Magalhães, o folclore “é uma coisa que está parada. Por exemplo, o Saci-Pererê, as pessoas não cantam e não tocam mais para ele, e a partir do momento em que você não usa mais esse elemento, ele passa a se integrar ao folclore. Mas tem também aqueles elementos que você o tempo todo alimenta, que é denominado cultura, porque ele está vivo e brinca com a gente sempre. Por exemplo, o Mateus, um Boi, uma Catirina que são personagens do Cavalo-Marinho 16, todos eles estão vivos, porque você toca, canta e recebem eles brincando.

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CALIANDRA. Disponível em: Acesso em: 20/08/2007. A Caliandra é uma planta, parecida com uma esponjinha avermelhada, pois apresentam flores com grande quantidade de estames, que em nossa memória, nos remete a semelhança de um pompom. As Caliandras pertecem à família Leguminosae – Mimosoideae, e ao gênero Calliandra. Na mata brasileira elas são encontradas nas regiões do Cerrado, e em menos quantidade, nas áreas de Caatinga no Nordeste. Elas são originárias das zonas tropicais e subtropicais da América, visto que elas não resistem ao frio. Na região do Centro-Oeste brasileiro, a Caliandra é conhecida como a flor do Cerrado. Na época de seca, elas sempre estão robustas e afloradas, dando beleza a nossa savana. 16

O CAVALO MARINHO. Disponível em: Acesso em: 15/08/2007. O Cavalo-Marinho é uma variante do Bumba-meu-Boi que tem influência portuguesa e possui raízes nos costumes do povo da Zona Norte de Pernambuco. É uma prática cultural tipicamente pernambucana e tem um processo de formação dos Reisados. O movimento é um teatro popular que retrata as questões do passado e do presente do povo, além de ser uma tradição que se mantém viva entre o mês de julho ao dia 06 de janeiro, data que comemora o Dia de Reis. A brincadeira é composta por música, dança, poesia, coreografias, loas, toadas e reúne cerca de 76 personagens, dividido em 63 partes. Uma apresentação completa dura cerca de oito horas, sem intervalos. Estes estão divididos em três categorias: animais, humanos e seres fantásticos. O som característico é realizado pelos músicos que tocam sentados e que são denominados “o banco”, o toada é constituída pela rabeca, pandeiro, gaza e reco-reco. A dança é caracterizada sem rebolados e giros, os passos são rasteiros, para levantar poeira, intercalados com saltos rápidos e vigorosos. Resumidamente o teatro retrata a história dos personagens Mateus e Bastião, que participam do início ao fim da brincadeira. Eles são dois negros amigos, que dividem a mesma mulher, a Catirina, e estão à procura de emprego. Eles são contratados para tomar conta da festa. O espetáculo é costurado ou coordenado pelo Capitão, de quem se origina o nome do folguedo. O nome do capitão é Marinho e ele chega montado em seu cavalo, daí a história dá seu prosseguimento até o momento final, quando o boi é dividido entre os participantes numa grande farra. Os personagens principais da brincadeira são estão os galantes e damas (que representam a elite que vem abrilhantar a festa), o Capitão (dono da terra ou chefe político da área), o Soldado (elemento opressor a serviço do poder), o Caboclo de Arubá (entidade sobrenatural que canta todas as linhas de Jurema) e o Boi (presença constante na vida do homem do campo). Há algum ano atrás só homens dançavam o folguedo, sendo que alguns deles

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Eles ainda estão vivos nesse imaginário popular entendeu?”, e compara esta polêmica com os personagens vivos da cultura e ao mesmo tempo relaciona com as práticas do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, “o nosso grupo construiu diversos personagens aumentando esse imaginário que existe em nosso país, pois se há o Mateus, há o Seu Estrelo, como existe a Catirina, existe a Mariasia. O Brasil já tem um imaginário popular rico, mas a gente chega com mais esses para tocar e brincar com eles, pois a tendência do mito é crescer e continuar vivo sempre”. As práticas e histórias mitológicas abordadas e explicadas a seguir pelo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro é a exemplificação de como são constituídos os personagens deste imaginário que o próprio grupo intensificou na cultura popular brasileira.

A Roda

Desde o início do processo de formação do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, a Roda, era para ser ingressa no modelo fixo de apresentação do grupo, mas como ela é bem complexa, pois exige a necessidade e a preparação de um espaço mais amplo durante as apresentações, além de maior tempo devido o número de falas dos personagens. Sendo assim, o grupo teve que ir moldando a brincadeira para poder estabelecer modelos de exibições que se encaixe nos diversos tipos de apresentações agendadas. Mas afinal o que é a Roda? Ela é uma prática com influência do Cavalo-Marinho e do terreiro de Candomblé, em que os componentes do grupo fazem um círculo, sendo que cada participante da brincadeira naquele momento encarna um personagem. A maioria das representações tem sua origem no mito, sendo que cada um tem a sua música e o seu toque. Além disso, há a idéia de inserir também na brincadeira personagens da comunidade candanga. A Roda proporciona também a inclusão de personagens que não tem nada a ver com o mito, mas que estão inclusos no dia-a-dia da comunidade, como por exemplo, os seguintes personagens: a Dona Semgraça, que é vizinha da casinha que sempre reclama dos ensaios do grupo, tem o Guarda que remete aos postos policiais da cidade. O objetivo da Roda é trazer os elementos que estão na cidade para o meio do Seu Estrelo, para que o grupo possa senti-los e entendê-los. Mas qual é a influência herdada pela Roda dos terreiros de Candomblé? Durante os rituais nos terreiros é feito uma roda em que os músicos tocam para que a entidade chegue e se manifeste para os praticantes que estiverem ali presentes, e é dessa maneira que é abordada e realizada a Roda. Mas o costume, além de ser uma ligação com o sagrado, faz parte também de uma travestiam-se para representar as personagens femininas. As roupas são enfeitadas com fitas e espelhos e os chapéus têm abas horizontais adornadas com pingentes dourados.

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brincadeira, mas que é feita de uma forma muito séria. Sendo assim, o profano e o sagrado se relacionam constituindo a Roda. Tico Magalhães explica “a gente abre a roda e toca para os personagens com o objetivo que eles cheguem e brinquem com a gente. No Cavalo-Marinho é assim também. A roda é muito pesada, pois todo mundo tem que entender a característica de cada personagem profundamente, pois além de caracterizá-lo, temos também que fazer uma música para ele, para que a gente possa fazer um minuto especial para o personagem, além de um toque, para que a pessoa responsável por encená-lo, dance, fale e dramatize segundo todas as suas peculiaridades”. É o momento de aperfeiçoamento e adaptação dos novos personagens no mundo do imaginário popular construído pelo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. O Mito17 No dicionário Aurélio 18, a palavra mito significa um fato, passagem dos tempos fabulosos; tradição que, sob forma de alegoria deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico; (sentido figurado) coisa inacreditável e sem realidade. Sendo assim, apesar de parecer uma utopia, ou apenas uma história fabulosa, o mito é a exposição de um pensamento, que tem uma simbólica transmissão de valores, mas é descrita de forma figurada. Segundo o antropólogo Everado Rocha19 o mito é uma narrativa. Um discurso, uma forma de as sociedades espalharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmo, as situações de “estar no mundo” ou as relações sociais. Por trás dele, existe uma tradição, uma crença e até mesmo a história de uma determinada comunidade. Podemos tomar como exemplo, as parábolas citadas da Bíblia, especificamente no Novo Testamento, em que Jesus Cristo ensinava aos seus fiéis, através da linguagem metafórica, várias verdades sobre a vida humana e sobre a salvação. A forma como Jesus Cristo pregava era de forma alegórica, para que os indivíduos que o escutasse, compreendessem de forma mais rápida e imaginária os seus ensinamentos, mas que implicitamente tem um significado e uma importância para aquela comunidade. E desta 17

Está descrito neste trabalho apenas as partes principais do mito. Ele, completo, está em Anexos.

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ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, 2º edição revista e aumentada, pg 1143. 19

ROCHA, Everado P. Guimarães. O que é Mito. São Paulo: Editora Brasiliense. Coleção Primeiros Passos. 1994, pg.7.

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forma o mito também é retratado, pois carrega uma mensagem que não está dita diretamente, ou seja, ele descreve de forma bonita, poética e fantástica, mas sua mensagem é séria, porém cifrada. Para entendê-lo é preciso esforço. Os mitos querem explicar a origem do universo, da Terra, da vida, dos homens, de outras línguas e até mesmo da primeira pesca efetuada pelo Ser Sobrenatural. Em síntese, o mito quer explicar a origem de alguns elementos e acontecimentos que existem no mundo até os dias de hoje. Através dele você pode também compreender o pensamento do tempo e da sociedade em que ele foi descrito. Para Mircea Eliade 20, o mythos designa tudo o que não pode existir realmente. Mas é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada. Para simplificar, o autor afirma que o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos. Noutros termos, o mito conta graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer seja realidade total, quer apenas um fragmento. Para os indígenas, há uma diferença entre os mitos, que são denominadas como “histórias verdadeiras”, ou fábulas ou contos, a que chamam “histórias falsas”. Para Pownee21as histórias verdadeiras retratam a origem do mundo; os protagonistas são seres divinos, sobrenaturais, celestes ou astrais. Mas o que é considerado muitas vezes uma história verdadeira para um povo, pode ser para outras comunidades uma história falsa. Mas como afirmar que o mito é uma realidade? O mito cosmogônico, que relata origem da formação do mundo, é verdadeiro porque a existência do Mundo comprova isso. Eliade afirma também, que o mito da origem da morte é também verdadeiro porque a mortalidade do homem prova-o. Então é o tempo que vai dizer se essa narrativa fabulosa transmitida pela tradição vai prevalecer ou não como mito. Mas será que posso denominar o mito do Calango Voador criado e amarrado pelo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, como uma verdadeira mitologia? Ou podemos denominá-lo como uma fábula, pois conta a história de dois heróis (Seu Estrelo e Calango Voador) fabulosos? Antes de conceituarmos o mito, vamos conhecer agora leitor, o resumo da história que tantos abordamos nos relatos acima. O enredo criado pelo grupo tenta explicar a origem de alguns elementos na natureza, inclusive o surgimento do Cerrado e logo depois a construção da mais nova capital federal, 20

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ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Lisboa – Portugal: Edições 70, 1963, p. 9 - 17.

R. Pettazzoni, Essays on the History of Religion (Leiden 1954), pg. 11-12. Cf. também Werner MüLLER, Die Religionem der Waldlandindianer Nordamerikas (Berlim, 1956), pg. 42

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Brasília. Ele é dividido em três partes: O primeiro denomina-se A História do Surgimento da Noite, ou como nasceu Seu Estrelo, o Gavião e a Caliandra, o segundo o Nascimento do Calango Voador e o terceiro, A Mata e a Triste Comedora de Homens. A trama se inicia a partir do nascimento de Laiá, que é a filha do cantar da Mata. Antigamente existia apenas o dia e o Sol. As Sombras se arrastavam de um lado para o outro, pois sonhavam em subir para o céu assim como os pássaros. Laiá cresceu entre os bichos e as flores, mas com excesso de vaidades, ela se enfeitava com os elementos da natureza. Certo dia, ao dormir, as Sombras pegaram do cocar da filha da Mata suas penas que serviam de adorno, e a partir delas criaram um pássaro negro que vivia em meio à luz, denominado Gavião. Sendo assim, as Sombras então se agarraram na ave com o intuito de voar ao lado dela para o céu, e desta maneira foi criada a Noite. A partir deste fenômeno, os dias começam a ser contados sucessivamente e Laiá cresce. Um dia, sentada numa pedra, ela menstrua e, assustada corre gritando com o seu sangue lá pra dentro da Mata, e por onde ela passa vai deixando pingos. As flores morrem de rir, zombando da cara de assustada de Laiá. Mas para mostrar a sua filha a beleza desse momento, a Mata transforma seus pingos de sangue em Caliandras e para se vingar das flores, que ficaram rindo do medo de Laiá, a Mata não deixa a chuva tocar seus corpos, fazendo assim com que todas as flores murchem e as únicas a ficarem inteiras foram as Caliandras. Em uma noite estrelada Laiá, já mulher, andando pela mata descobre o Rio que refletia as estrelas. Laiá se apaixona e com ajuda do seu irmão Luz Belo - que tinha o poder de andar pelos sonhos alheios - acaba dormindo num sono profundo, imaginando que o Rio possuía todo o seu corpo, gozando-a por inteira. Laiá acorda toda encharcada e de tão bonito que acha seu sonho, resolve pegá-lo e o coloca dentro de uma árvore. Depois de algum tempo, nasce o Seu Estrelo. Ao mostrar o fruto do amor ao Rio, Laiá é engolida por ele e levada para as águas. Seu Estrelo se salva e a Mata o protege. De acordo com as criaturas da Mata, Laiá virou uma sereia. Já na segunda fase do mito, surge outro cenário que é o nascimento do Calango. Com afeto, as Nuvens, para demonstrar o carinho pelo Mar, fizeram com que uma chuva molhasse todo o corpo da Terra, que acaba se apaixonando. Em um dos dias de inverno tropical, a Terra resolve entregar o seu corpo ao Mar. Enfurecidos, o Sol que era apaixonado pela Terra e a Lua que morria de encantos pelo Mar resolvem mentir, dizendo que a Lua estaria grávida do Mar. No momento do encontro, quando o Mar chega para o grande

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momento, a Terra enfurecida e desiludida, se fecha, rochedos começam a surgir e a onda que avançava se quebra por inteira, derrubando uma embarcação que descansava na beirinha do mar. Neste exato momento, o casal Teresa e Nicolau que estavam em um barco, é lançado ao mar. Enquanto Nicolau se afoga, o gozo do Mar entra por inteiro em Tereza, engravidando-a. Ao acreditar no sentimento que o Sol havia por ela, a Terra, resolve se entregar ao Sol. Depois de uma semana, quando a Lua apareceu toda minguante, a Terra viu que fora enganada, mas já era tarde, pois agora esperava um filho do Sol. Com vergonha, ela foi ter seu filho em outras paragens, bem longe dali. Deu à luz no Planalto Central, no Reino da Mata, e seu rebento é logo transformado em um Calango, para que assim fosse difícil de ser encontrado. O Mar só ficou sabendo que a Terra ficou grávida do Sol quando a Lua contou, assim que o Calango nasceu. Tereza teve seu filho, que cresce junto ao Mar e vira um hábil Pescador. Um dia quando já adulto voltava de uma pescada, encontrou na beira do Mar, mareada e majestosa, a bela Mariasia. Foi amor a primeira vista. Depois de algum tempo o casal resolve se casar. Perto da cerimônia, o Pescador resolve dar a Mariasia a Lua que tanto vira sobre o Mar. Um belo dia o Pescador pede ao Mar o sonhado presente, mas o que ele não sabia era que aquela Lua era falsa, pois ali estava apenas o seu reflexo. Ainda cheio de raiva pela traição da Terra, o Mar resolve enganar seu Filho, dizendo que só seria possível se o rapaz matasse um animal sagrado que vivia distante dali, no cerrado. O Mar disse que este animal sagrado é que tinha aprisionado a brilhante Lua dentro do Mar. O Pescador, sem querer mais explicações e cheio de amor por Mariasia, aceita a missão de ir embora para caçar o Calango. Ao entrar no Reino da Mata, no cerrado, o Pescador se depara com a Caliandra. Ao vê-la lembra-se de Mariasia e pega a flor. No mesmo momento vê um Gavião que avança para cima de si e diz que aquela flor é dele e ninguém tem o direto de colhê-la. O Pescador se protege e diz que só a devolve, caso o Gavião dissesse onde estaria o Calango. E foi assim que o Pescador descobriu onde o filho do Sol e da Terra se malocava. Ao ver o bicho que tanto desejava, o filho do Mar se aproxima, pega o seu arpão dado pelo Mar e prepara-se para lançá-lo. Nunca havia errado um alvo, nem muito menos deixado algum bicho escapar. Mas no momento do golpe, o Sol manda um brilho forte, um pedaço de seu corpo-fogo, para o céu-da-boca do Calango. Sentindo em sua boca o poder do fogo, o

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filho da Terra estira sua língua. O brilho do Sol reluz da boca do Calango e cega o Pescador por um instante, ofuscando-lhe as vistas. Mesmo assim, o Pescador lança o seu radiante arpão. O arpão atinge o dorso do Calango e atravessa o rio, fazendo um enorme buraco ao tocar o chão. O Rio, ferido pela arma do caçador, faz surgir das suas águas um Elefante com uma Tromba D´Água. O Elefante D´água sai do buraco destruindo tudo o que há em seu caminho. É aí que a Terra, sentindo que o seu filho não pode se salvar pede ao Ar que o ajude. Assim o Ar dá asas ao Calango, e este consegue voar, livrando-se da poderosa Tromba. O Pescador e o Elefante continuam a brigar e muitos dizem que eles lutaram até o Mar. E todo ano, quando o Calango Voador resolve matar sua sede e esfriar sua língua por causa do pedaço do sol que traz em sua boca, um período de seca acontece e castiga o Cerrado. Quando o Calango mata sua sede e pára de beber toda a água do rio, as águas sobem novamente, enchendo as corredeiras e as cachoeiras. A terceira parte do mito nos revela que nas Terras Além- Mar surgiram homens que não dançavam e nem cantavam. De tanto se multiplicarem, esses homens viraram uma praga e a natureza decidida a derrotar esses seres infelizes, resolveu criar um homem que acabaria com os outros homens. Este homem nasceu do canto da natureza, mas como os outros, nem cantava e nem dançava, mas construía coisas. Com a ajuda da natureza foi construindo de tudo, abrigos, ferramentas, armas e máquinas, até chegar à maior de suas construções, aquela que ia engolir todos os homens. Foi para construir a Grande Coisa que este homem surgiu. A Grande Coisa começou bem simples, mas foi ficando cada vez mais complicada. Dentro dela havia um fogo que comia madeira, a Coisa soltava fumaça. Começou parecida com uma casa, mas rapidamente transformou-se em uma cidade. A Cidade assim surgiu e como um grande monstro foi engolindo cada vez mais homens. A Grande Coisa ficou tão grande que a natureza ficou com medo e tentou parar seu crescimento. Vendo o mal que tinha feito, a natureza tentou falar com o homem que ela criou para engolir os homens, mas o Comandante já não tinha ouvidos para mais ninguém, e a Cidade acabou ocupando toda a Terra Além-Mar, destruindo aos poucos a natureza. No Cerrado, Seu Estrelo foi avisado e rapidamente reuniu todo seu povo. Chamou também o Calango Voador, convocou a Mata e os homens de tudo que era lado para se juntar na batalha contra a Grande Coisa. Veio gente de tudo que era canto. Homens que largaram suas famílias para tentar segurar o tal monstro. Cada homem trazia consigo a fé, as riquezas e os saberes de seu lugar. Por isso junto com Seu Estrelo, a Mata e o Calango inventaram de construir uma nova Coisa, uma fabulosa criatura. Uma nova cidade que abrigaria todos os

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homens que para o cerrado vieram para enfrentar a Criatura Comedora de Homens que estava para chegar. Era preciso atrelar todas as forças. A esperança enchia o ar e no meio do cerrado, em um lugar marcado com um X, começou a construção dos homens. Os homens decidiram dar asas a sua Criatura em homenagem ao Calango Voador, o filho do Sol e da Terra. A Mata lançou um canto, os homens tocaram e dançaram pros seus santos, Seu Estrelo jogou seus feitiços, o Calango seu raios de sol, mas não adiantou muito. Muito maior que a fabulosa Criatura criada pelos homens do Cerrado que vieram de tudo que era de lado, a Grande Coisa não demorou muito para dominar a cidade de asas. A batalha foi suada. De um lado, a grande máquina; do outro, os homens e a força da Mata. No meio de tanto barulho e tanta fumaça, o Calango Voador sumiu. Seu Estrelo sentiu que num confronto direto não haveria vencedor, os dois lados perderiam. Ele entendeu que era preciso estar dentro da Coisa, para conseguir derrota-lá. Não adiantava ficar de um lado e a Coisa do outro. Percebeu que só puxando a força da natureza lá pra dentro da Coisa seria possível tentar domar aquela triste criatura. Foi aí que Seu Estrelo juntou de novo seu povo e contou seu novo plano. Com isso Seu Estrelo se afastou e cavou um buraco com as mãos. Um buraco do tamanho do seu corpo. Seu Estrelo entrou no buraco e se plantou. Nasceu do buraco uma árvore imensa, no lugar dos frutos cresceu estrelas. Os homens que iriam entrar na Coisa comeram as estrelas e ficaram alimentados do corpo estrelado de Seu Estrelo. Alimentados, deixaram a Coisa os engolir. Hoje, estes homens e mulheres dançam e cantam pra Seu Estrelo, trazendo para perto deles e para dentro da Coisa a força da natureza. Recebem, ora dentro da COISA, ora fora, Seu Estrelo e sua Falange. Contam e transmitem em suas brincadeiras, para seus filhos e seu povo, a história do Calango Voador. Alimentados de Seu Estrelo, nutrem-se da esperança de que um dia o Calango novamente aparecerá e junto com outros homens encantarão novamente a Grande Coisa, dando fim à guerra entre a triste Criatura Comedora de Homens e a Natureza. Segundo Marcelo Fernandes “é através da necessidade de Brasília ter uma cultura de raiz é que foi originado o Mito do Calango Voador”. Mas fazendo uma releitura da trama, a mitologia é retratada de maneira linear em três etapas da história do Brasil e do Cerrado brasiliense. É narrado, portanto, o passado e o presente do nosso país. A Parte I conta-nos como a natureza foi pegando forma e de que maneira a harmonia predominava entre os elementos que a constituía. Através de seres sobrenaturais, foram surgindo Laia, Luz Belo, a Noite e o Seu Estrelo, além de seres mais específicos do cerrado, que são a flor Caliandra e o Gavião.

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Quando lemos o mito pela primeira vez, são geradas dúvidas sobre cada personagem. Como por exemplo: É a Terra que se apaixona pelo Mar? Ou é o Sol? E a Lua? Apaixonou-se por quem?

Para não se confundir, a Figura I explica:

MATA Mãe e filha (nasceu do cantar da MATA )

RIO

LAIÁ

Mãe e filho (nasceu da pausa e da respiração da MATA)

LUZ BELO

Nasceu do amor do RIO com LAIÁ

PESCADOR LAIÁ

Das gotas de sangue de LAIÁ nasceu a CALIANDRA Das penas dos pássaros que estavam no cocar de LAIÁ surge o GAVIÃO

Através das

SOMBRAS

Surgiu a

NOITE

Já a Parte II retrata como os elementos da natureza se relacionavam harmoniosamente. Assim como na primeira parte, a segunda fase não havia relato da má interrupção feita pelo o homem. Havia moradores, como a Tereza, o Nicolau e futuramente o Pescador e a Mariasia, mas eram seres bons, que possuíam o anseio de viver sem desigualdades e hierarquia com os elementos da natureza. Não existia maldade e ambição.

Segundo minha concepção, as

imagens de Tereza e Nicolau retratam os índios que habitavam em nosso país, mas que perderam sua força e identidade com a vinda dos portugueses e europeus para o Brasil, em 1500. Em ambas as etapas não havia distinção de valores, o homem e a natureza se davam bem. Havia o respeito, cada um conhecia os seus limites e necessidades. Todos lutavam pelo mesmo bem, que era um zelar pelo bem estar do outro, como por exemplo, o desvelo que o

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Gavião tinha com Caliandra, e a vigilância das Sombras com os sonos de Laiá. O bem de um era agradável a todos.

Vai aí a segunda dica. Não se confunda:

Do gozo do

Dentro de

MAR

TEREZA nasce o

PESCADOR Dos raios do

Dentro da

SOL

TERRA nasce o

CALANGO PESCADOR

eram apaixonados

Do furor do

RIO

MARIASIA Surgiu a

TROMBA D`ÁGUA A parte III retrata a multiplicação descontrolada do homem, que nem mesmo a

natureza conseguia entender. Além da invasão de outro povo em terras alheias (portugueses e europeus), os homens sérios que não dançavam e não cantavam, havia outros interesses. Eles desestruturaram a natureza que não os pertencia e foram criando armas, casas, máquinas e futuramente uma cidade. Estes migrantes não paravam de crescer e começaram a gerar desigualdades entre os homens. A natureza não tinha mais forças, suas características originais foram sendo perdidas devido ao desmatamento. Inicialmente, estes homens, que remetem aos imigrantes que chegaram a nosso país desde o seu descobrimento, começam a colonizar os litorais e com suas máquinas e escravos, passam a invadir no decorrer dos anos os quatro cantos do Brasil. Depois que a ambição já estava fora de controle, e alguns homens já estavam foragidos deste sistema criado pelos homens da Terra Além-Mar, junto com o desejo de construir uma cidade libertária, socialista, com raízes na fraternidade, além de uma terra sem fome, miséria e exploração, através de um X no Planalto Central nasce Brasília, a terra dos sonhos.

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A terceira parte do mito retrata o nascimento da mais nova capital brasileira e o refúgio que ela era contra as desigualdades que foram geradas em nosso país no decorrer da modernidade. Segundo Tico Magalhães, “você vê Brasília hoje e como ela foi construída é o que mais impressiona. Ao você ter o contato com as pessoas que estiveram aqui nessa época, e você observar em seus olhos a esperança que a construção da cidade trazia e de repente ruptura deste sonho logo com a ditadura militar é o que mais nos deixa pensativo, pois a idéia de refundação do Brasil não alcançou as expectativas, frustrando os sonhos daqueles que ajudaram a construí-la”, e acrescenta, “a terceira parte do mito ainda não tem fim, pois ele traz o presente e o agora. A terceira parte hoje existe, mas dependendo do que a gente fizer com a nossa vida e com a natureza, ele vai continuar. Se a gente chegar um dia a uma harmonia entre a cidade e a modernidade, o mito vai relatar um lado bom da história, mas se a modernidade continuar causando estragos, a história, assim como a nossa realidade, vai encaminhar para a destruição”. Mas ao retomar a questão sobre se o mito do Calango Voador é uma mitologia ou apenas uma fábula, abordo a idéia do antropólogo Marcos Vinícius, no vídeo documentário, Fuá, a Brincadeira já começou. “Só o tempo que vai dizer se ele vai virar ou não uma mitologia, pois o que a experiência não vincula, certamente vira ruína”. O mito significa a tradição e a realidade de um determinado povo, abordadas de forma alegórica. Para alguns estudiosos, a história criada pelo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro não pode ser denominada como mito, mas para o grupo, o mito do Calango Voador é verdadeiro. E reafirmo, segundo a idéia de Mircea Eliade, a história verdadeira para um determinado grupo, pode ser, para outros, uma história falsa. Portanto, definir se a história que o Seu Estrelo dramatiza é um mito ou não vai depender da maneira de olhar, observar e criticar de cada um. Tico Magalhães declara que “para o grupo o mito não é apenas uma história, é uma verdade, pois faz parte do nosso dia-a-dia. Essa história para nós é uma representação fiel, pois o Seu Estrelo é um personagem, e a gente existe para ele. A gente toca, canta e dança para o Seu Estrelo. Tudo o que a gente aprendeu é para tocar para ele. Tem muita gente que hoje está no grupo, mas que no inicio nunca tinha feito nada ligado a isso – dançado, feito teatro, circo. O processo de formação da gente foi em cima do Seu Estrelo e ele tem um significado muito forte. A gente chama de mito porque retrata a nossa realidade, pois abrimos mão de muitas coisas em nossas vidas para fazer as estruturas, para montar os figurinos, aprender a tocar para que isso tivesse vida, e assim temos feito, e essa é a nossa verdade”.

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2. BRINCANDO E CANTANDO 2.1 AS IDEOLOGIAS DO SEU ESTRELO E FUÁ DO TERREIRO

Os personagens, as Danças e a Melodia

Seres fantásticos invadem as terras de Brasília. Com o desígnio de preservar a natureza e todos os seus elementos, se iniciam as magias e encantamentos no Cerrado. A maldade, tristeza e a destruição se distanciam. A invasão não tem fim. Com batuques, toadas, melodias e passos a brincadeira começa, e a cada folguedo, mais personagens chegam para brincar com o imaginário popular do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. Os orixás ajudam a animar a festa, embelezando a vida e encantando o dia de cada brincante. Eis que o sagrado e o profano se comunicam, e unidos, lutam para que a harmonia chegue ao Planalto Central, trazendo beleza e felicidade a todos que moram e passam pela capital. A recriação é realizada. Personagens do Cavalo-Marinho, Maracatu, Congada, Afoxé, Caboclinho, Frevo e outras práticas culturais passam a ser referências para que a brincadeira se enriqueça. A rede de brincadeiras brasileiras começa a se mostrar. Eis que surge a inovação e a intercomunicação. A cultura popular brasiliense começa a se mostrar com toda força. Ei! A festa começou. Assim como o Mito do Calango Voador e a Roda estão abertos, a intenção do imaginário popular do Seu Estrelo é de se expandir com o decorrer do tempo. O grupo acredita que a cultura não é morta e a tendência dela é estar sempre se renovando, independente de quem queira. Segundo Hermano Vianna22 é possível perceber a existência de um repertório de elementos que podem ser combinados de formas diferentes, com funções diferentes, pelos brincantes de cada festa. Tudo circula entre as festas na rede das festas: pedaços de melodias; versos; instrumentos musicais; detalhes de indumentária; falas de encenações teatrais. Danças de Bumba-meu-Boi migram para o reisado; melodias dos reisados são absorvidas pelas congadas; letras das congadas são reinterpretadas pelas marujadas; trechos de música popsertaneja entram para o repertório do siriri; e assim por diante, e que nenhum

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VIANNA, Hermano. “Tradição da Mudança: A rede das festas populares brasileiras”. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, jul/dez., n º 32, 2005, Brasília, IPHAN.

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preservacionista, por mais bem intencionado que seja, tente ordenar ou totalmente estancar esse processo de criação. Apesar de haver muitos estudiosos e até mesmo brincantes que acreditam que a cultura popular deve ser estática, para que ela não perca sua identidade original, o grupo Seu Estrelo tem demonstrado, através das suas recriações, que a cultura é aberta, e que é permitido trocar informações e práticas com outras culturas, e que, de acordo com o tempo, essas práticas vão sendo renovadas e transformadas. Segundo Tico Magalhães “como que a gente prega uma inovação, se nós não a fazemos? Isso é impossível. Nós não iremos ficar apenas nas teorias e no conceito de que a cultura não é homogênea e irrenovável, e é devido a essa polêmica, que o Mito do Calango Voador e a Roda estão abertos, para que todos que quiserem brincar, sejam bem vindos para fazer parte da brincadeira. A tendência dele é crescer, assim como os personagens”, e acrescenta, “ cada personalidade tem o seu momento. Tem uns que querem chegar para fazer parte da brincadeira, tem outros que já chegaram, mas que já saíram e quando quiserem de novo aparecer, as portas estarão abertas”. No mundo do Seu Estrelo os personagens possuem uma vida assim como cada componente que canta, dança e toca E apesar dos personagens estarem em um universo imaginário, eles existem e precisam ser respeitados. Segundo Luis Felipe “o nosso trabalho não é comum ao de um ator que você faz um personagem que tem uma característica já definida e que várias pessoas chegam e fazem tudo da mesma maneira, pois já tem as falas, os passos, à maneira de protagonizar já descritas e que não podem ser modificadas”, e acrescenta, “a nossa brincadeira aqui não existe isso, os personagens estão vivos e estão sendo renovados por cada pessoa que faz. Não há aquela pessoa que tem que fazer o Seu Estrelo pronto e acabou, porque ele é a cara do personagem. Tem algumas coisas que são do Seu Estrelo, mas independente disso, ele está vivo para ser acrescentado e enriquecido”. A partir de agora serão descritos como são os personagens do imaginário popular criado pelo o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro para a brincadeira. As construções dos personagens são cheias de referências e simbologias, cada personalidade é ligada a algum elemento da natureza, e é perceptível através da constituição do figurino e dos adornos. Cada um deles tem seu toque, sua melodia e seus passos e que valem a pena ser retratados, para que o leitor possa compreender a importância e as simbologias que existem em torno da brincadeira do Calango Voador.

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A Parteira: No inicio do grupo, a brincadeira que era contada tinha características diferentes da atual. Anteriormente, era feito o nascimento do Calango Voador e através do teatro circense surgia a saída do Seu Estrelo. A Parteira era uma personagem que surgiu desde o início da brincadeira e que tinha por objetivo ajudar o Seu Estrelo no nascimento do Calango. Ela não está descrita no Mito e atualmente ela não se apresenta mais, devido o grupo ter modificado algumas características iniciais das apresentações, mas quero deixar claro, que ela não morreu. Hoje o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro não conta mais o nascimento, mas sim a chegada dele para a brincadeira. Desta maneira, ela ficou temporariamente fora das apresentações. A Parteira é uma personagem negra muito parecida com o estereótipo das parteiras nos tempos da casa grande e senzala. Ela assemelha aquelas baianas que falam alto, que é expansiva, porém mãezona. Tem uma intensa ligação com a entidade Oxum, que é a mãe das águas doces, rainha das cachoeiras, deusa da candura e da meiguice. É ligada também ao desenvolvimento da criança ainda no ventre da mãe. Segundo a integrante Danielle Freitas, que dramatizava a Parteira, “Oxum é conhecida por ter características muito maternas e além de ter uma ligação com as águas, retrata também a beleza, fartura, riqueza e cura. E desta maneira, a Parteira é energizada, ela era a mãe no sentido de geradora de vida em sua comunidade”. O figurino da personagem é o turbante, colares, um vestido bem rodado semelhante às utilizadas pelas baianas, meiões e sapatilha. As cores utilizadas eram o branco que remete a pureza e o amarelo que é a cor caracterizadora de Oxum. Danielle Freitas declara também que “quando eu estava fazendo a personagem, a minha bisavó paterna que nunca tive uma maior ligação, era parteira. Ela teve o meu avô e o deixou numa fazenda e sumiu no mundo. Ela era negra e estava ainda naquele processo do fim da escravidão e por não ter para onde ir e nem onde ficar, ela vivia pingando de lugar em lugar”, e acrescenta, “a partir destas informações eu passei a construir e buscar informações do que é ser parteira, além de descobrir como era a confiança e respeito que a comunidade havia dessa figura, pois ela contribuiu para que várias vidas estivessem ali presentes com vida e saúde. Então, quando eu a retratava, procurava caracterizá-la como aquela mulher cheia de mandinga, simpatia e com receitas de folhas para fazer chá para curar qualquer tipo de doença, pois é essa imagem que há nas crenças populares em nosso país das parteiras”. Os passos da personagem dão a impressão de que ela já chegava na brincadeira varrendo, ou seja, fazendo uma limpeza intensa com os seus pés, para que o parto do Calango Voador pudesse acontecer naquele terreiro.

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A música da parteira é: Vai nascer o Calango

Vai nascer o Calango Êeee... Vai nascer o Calango Êeee... Vai nascer o Calango Parteira, venha cá trabalhar 3X Parteira A Laiá: Com características muito parecidas da Parteira, a Laiá surgiu. A Parteira foi um processo de construção para que se chegasse a Laiá de hoje. Devido a esta semelhança, quem está atualmente na brincadeira é apenas a Laiá. Para Danielle Freitas, que também dramatiza a Laiá, “foi uma quebra total, pois eu estava numa construção que era muito ligada ao mundo da cultura negra, e de repente, passo a fazer uma personagem que é filha do cantar da Mata e que se apaixona pelo Rio, que é uma figura que tem a pele vermelha, cabelos pretos e cheia de vaidades. Para mim, era outro corpo, pois a parteira era muito expansiva, já a Laiá era toda recatada”. A personagem também tem uma ligação com as águas doces, pois ela é muito vaidosa e tem uma preocupação com o se mostrar sem ser vista. Suas cores são: o branco e a cor azul que além de remeter a imagem d’água, tem influência também da entidade Oxum e de Iemanjá. Laiá por ser uma sereia d’águas e ao mesmo tempo uma índia, acaba sendo considerada como a princesa pela própria floresta, pois todos a paparicam e zelam os seus passos. Segundo Danielle Freitas “o figurino de Laiá é marcado pela tiara que remete aos adornos utilizados pelas princesas - essa tiara é marcada por várias pedras furta-cor e que dependendo de onde a luz bate, ele reflete de várias maneiras, e essa característica é muito da água -, muitas jóias (brinco, colares e anéis – para demonstrar vaidade), uma blusa enfeitada com lãs para dar a impressão de que ela está enfeitada pelas próprias algas dos rios e a saia bem rodada semelhante a uma princesa” e acrescenta,” dentro do grupo a gente tem uma busca muito visual de elementos que sejam diferentes e que saiam dos estereótipos dos personagens do Walt Disney”. Os passos de Laiá têm muito da brincadeira de ser jogada com o intuito de ser mostrar para que todos notem a sua presença e beleza.

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Laiá possui duas músicas principais, que são:

Chegada de Laiá Marazul Oiá Quem te mandou de lá pra cá? Ô Sinhá Laiá Quem já foi te encomodar? Eu sou Laiá Tá chegando Ô Laiá Pra brincar Ô Laiá Tá sambando Ô Sinhá Tiara Hoje eu fiz uma tiara Pra enfeitar os teus cabelos Com pedrinhas prateadas Olha lá no teu espelho Nessa Noite enluarada Vem sambar no meu terreiro Com as pedrinhas prateadas Que enfeitam teu cabelo

Seu Estrelo: Segundo o integrante Luís Filipe “no comecinho do grupo quando o Tico veio propor de montar uma brincadeira, não havia nenhum personagem fixo, apenas algumas idéias que já existiam no mito, como o Seu Estrelo, Parteira, Pescador e dentre outros. Como ele não tinha intimidade com ninguém, ele não poderia chegar e falar: Você vai fazer esse personagem, e aquele vai fazer o outro. Mas ele disse que já sabia quem iria fazer um só personagem, que era o Seu Estrelo e quem faria seria eu”, e declara, ”eu não entendi o porquê, pois o cara só me conhecia um mês. Isso me chocou, mas para mim não foi eu ou o Tico que definiu quem faria o Seu Estrelo, mas acredito que foi o Seu Estrelo que me escolheu para iniciar a brincadeira, pois eles têm autonomia para fazer isso”. O Seu Estrelo é um mestre-de-cerimônias, e é ele que organiza a festa para o Calango que vai nascer na brincadeira. Ele é o dono do terreiro, pois é ele que vai receber as pessoas que vão chegar para a brincadeira. Ao mesmo tempo em que ele é bem cativante, ele é sério e

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arrogante, pois segundo Luís Felipe, “ele é como se fosse um matuto do mato, que não conhecesse nada. Então ele vai recebendo todo mundo, todos são bem vindos porque a brincadeira vai começar, os personagens vão chegar, o Calango vai chegar e vai voar, mas ao mesmo tempo ele é o protetor do terreiro e se chegar alguma coisa ruim ele já bate o pé no chão e diz que para entrar é necessário se apresentar, e se ele não quiser, ele chama algum personagem com suas magias para tirar o intruso dali”. Ele retrata a entidade Oxossi que é o orixá da caça, chamando muitas de Ode Wawá, ou seja, “caçador dos Céus”. É a divindade da fartura, da abundância, da prosperidade. Suas principais características são a ligeireza, a astúcia, a sabedoria, o jeito ardiloso para faturar sua caça. É um Orixá de contemplação, amante das artes e das coisas belas. Como todos os outros Orixás, Oxossi também está no dia a dia dos seres vivos, convivendo intimamente com todos. Dentro do culto, ele é o caçador do Axé, aquele que busca as coisas boas para uma Casa de Santo, aquele que caça as boas influências e as energias positivas. O Seu Estrelo veio com a missão de proteger o terreiro para o nascimento do Calango com boas energias. Ele tem a missão também de cuidar da natureza, que aos poucos tem se desestruturado, portanto, o personagem vem com essa energia verde de Oxossi. “Nas apresentações o personagem busca trazer muito movimento de corpo, de arco e flecha para demonstrar que ele é um caçador, e na fala, ele tem muitos elementos da mata” informa Luís Felipe. O personagem se apresenta com o rosto pintado de vermelho e preto para demonstrar sua ligação com os índios – o vermelho que vem do Urucum e o preto que vem do Jenipapo muito utilizado nas tribos indígenas -, ele também utiliza o terno que traz nas costas um estandarte com o símbolo do Seu Estrelo, a saia de palha que também retrata a lembrança dos índios, a meia é azul, a cor de Oxossi, e um tênis. Luís Felipe relata que “tudo o que tem no Seu Estrelo tem um universo simbólico. Em um colar que o personagem usa, ele tem pontas que possuem artefatos de lua, estrela, árvore, arco e que são os elementos da natureza, e outro colar de pedrinhas, que foi dado por uma mãe de santo. E tem também o cajado que retrata a autoridade e que foi ganho de uma amiga do grupo que o encontrou em uma cachoeira na Chapada dos Veadeiros, e esse cajado tem uma energia muito intensa da natureza e que nos é passada cada vez que o tocamos”. Os passos retratam ao mesmo tempo a idéia de que um matuto chegou para brincar na Roda. Ele demonstra através da cabeça erguida em plano baixo e as quebras de ombro, que ele possui habilidade, e com o olhar fixo nos olhos dos personagens e até nos próprios

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brincantes que estão observando a brincadeira, ele demonstra que tem autoridade ali naquele terreiro e quem manda ali é ele, pronto e acabou. As músicas para a entrada o Seu Estrelo é:

1. Seu Estrelo Lêie Seu Estrelo Coro: Lêie Meu Fuá Coro: Láia Eu vim da mata pra brincar Coro: Nesse Terrero eu quero pisar Eu vim aqui com meu Fuá Coro: Nesse Terrero eu quero brincar 2. Seu Estrelo o Teu Povo Te Chama Seu Estrelo O teu povo te chama Vem lavar minha alma Acender essa chama De amor No terreiro Eu canto minha dor Amarro minha fé Renovo meu amor Por você 3. Força de Seu Estrelo Sente a força que ele tem Coro: É Seu Estrelo Sente a força que dele vem Coro: Pro meu terrero Força essa igual eu nunca vi Coro: Nem eu Senhor da mata eu sei que está aqui Coro: Pra permitir

O Mané Cheiroso: Ele surgiu quando o grupo Pé-de-Cerrado convidou o Seu Estrelo para tocar no Parque da Cidade no ano de 2006, em Brasília, e esse evento era na véspera do festival que é feito todos os anos para comemorar o nascimento do Calango Voador. O Mané Cheiroso tem a função de divulgar o festival e é na véspera do evento que ele vai aparecer para brincar. Segundo Luís Felipe, “ele é o único personagem que não tem um

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simbolismo tão intenso quanto às outras figuras da brincadeira. Ele também tem a função de abrir a Roda nas apresentações do grupo, mas sem ter que incluir os personagens. O público nunca vai ver o Mané Cheiroso e o Seu Estrelo numa mesma Roda, porque ele possibilita com que as demais criaturas fantásticas descansem”. O personagem é um ser da mata e que tem uma ligação forte com o Seu Estrelo. Ele caracteriza um negro safado e brincalhão. Ele vem para animar a brincadeira através de citações de versos, do perfume que lança no público, além de ensiná-los os passos de todos os personagens da brincadeira oficial do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. Quando ele aparece na brincadeira, ele assume o lugar do Seu Estrelo. Ele é o centro das atenções e que comanda o festejo. Ele tem o rosto todo pintado de preto, um terno e calça azul, uma meia que vem por cima da calça para dar um movimento maior de perna quando forem feitos os passos. Como ele é um personagem sem muitas ideologias, ainda não foi feita à construção de uma loa ou um batuque específico para ele.

Dona Morte: É o personagem responsável por trazer a força e a bênção dos antepassados para dentro da brincadeira. Ela é chamada no final de todos os acontecimentos da Roda para fechar o terreiro, puxar a festa e recolher todos os espíritos acompanhantes que estão comemorando ao lado do grupo. Esses espíritos são os brincantes e os mestres de cultura popular que de forma direta ou indireta contribuíram para enriquecer o imaginário e a cultura popular brasileira, criando personagens, festejos e rituais. No começo do Seu Estrelo ela se apresentava com as próprias pernas do brincante que a fazia, alem de utilizar máscaras de caveira. Essas características da Dona Morte contribuíam para que as pessoas se afastassem dela, porque ela assustava muito. Com o decorrer dos tempos, o grupo sentiu que deveria ser quebrado esse medo do público, pois na vida real é muito difícil você lidar com a morte, por ser muita dolorosa. Com o intuito de dar maior leveza ao personagem, pois apesar de todo temor é ela quem carrega a vida e apesar dela chegar e levar alguém, é este um dos momentos de reconhecimento dessa vida que de certa forma fizeram importância, mesmo que implícita, no mundo. Então para mudar esse sentimento de susto, a personagem tem uma energia muito feminina para seduzir e dar um maior aconchego no público. Foi acrescentado também o Bio Eclipse que é o cavalinho que a acompanha. Ele foi feito de arame, papel marche, papelão, cola e tinta, mas ele também é muito assustador, pois sua cabeça é feita dos ossos do crânio de um cavalo, mas pelo fato de ele ser um boneco, as pessoas se aproximam e esquecem o terror

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que o personagem trás. Segundo Andressa Vianna, a responsável por dramatizar a Dona Morte, “o cavalo é muito carente, ele precisa muito de carinho e devido essa característica, ele chega de mansinho e aos poucos as pessoas vão soltando esse medo e aos poucos vão brincando com a personagem”. Hoje o público, principalmente as crianças, brinca muito com a Dona Morte. Elas passaram a ter um respeito maior com o medo, pois ela é a encarregada de nos levar quando temos que ir embora, mas ao mesmo tempo ela está perto para brincar. Andressa acrescenta que “a personagem está muito carregada pelas cores preto e branco, por um sentimento mesmo de ausência de vida, pois tudo ao nosso redor tem uma cor muito demarcada e tem sua vitalidade transcrita em uma cor. E junto com o preto e branco tem também a cor forte da vida que é o roxo, e que em várias etnias ela está muito ligada a espiritualidade, então para retratar a vida enfeitamos o chapéu da Dona Morte, a barra da saia e o corpo do Bio Eclipse”, e finaliza, “ a personagem utiliza muitas flores que é a representação da vida, apesar dela estar carregando as folhas secas, a calça vermelha de cetim que é utilizada dá vida e sentimento, mas que ao mesmo tempo foi um presente que foi ganhado do Bumba-meu-Boi do mestre Seu Teodoro, e a utilizamos em nosso figurino para homenageá-los, pois foi um trabalho artesanal feito por pessoas mais velhas e que tem lutado intensamente pela preservação da cultura popular em Brasília e para finalizar, a Dona Morte fica com os seus pés descalços, talvez para se ter um maior contato maior com as origens e a terra, e por fim, os colares para dar um peso no tronco na hora de dançar e uma maior proteção por parte dos antepassados e entidades”. A Dona Morte não tem muitos passos definidos, porque ela trabalha em cima do Bio Eclipse, que tem passos de cavalo. A personagem tem a ligação com o orixá Obaluaê, que é o orixá tanto das doenças quanto da saúde e também de Nanã Moroquê que tem um pouco da água calma, e dos ancestrais, ela é um dos orixás mais velhos e devido a isso ela retrata os elementos dos antepassados que caracteriza a existência da Dona Morte. A música da Dona Morte é: Do Beleléu Eu vim sambar Vim lá do Beleléu Trago o povo lá do Céu O samba não morrerá 2X O samba não morrerá Lá laia 4X

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O Pescador: Ele é quem chega e estraga a brincadeira, com o intuito de caçar o Calango Voador a pedido do Mar. Segundo Marcelo Fernandes, o responsável por fazer o Pescador, “o personagem é considerado o mal da historia. Eu tento lutar para quebrar essa imagem, porque ele não é malvado, ele chegou por amor na brincadeira, o problema é que ele foi enganado pelo Mar. Todo o esforço do Pescador é para dar o melhor presente, que seria a Lua, para a Mariasia. E por ter vindo carregado pelo sentimento do verdadeiro amor, o Pescador tem muita força, apesar de ele ser muito vaiado e empurrado pelo público”. O figurino do personagem sempre é um terno com um estandarte feito com lantejoulas nas costas. Marcelo Fernandes acrescenta que “no terno do pescador há um barco para trazer a lembrança que o seu nascimento foi gerado através de um acidente de barco, sendo que Tereza engravidou do Mar. Tem também um anzol em um coração enganchado, representando o amor por Mariasia. Um tridente que simboliza a bagunça, porque se não fosse o Pescador na historia, tudo seria perfeito e não teria a necessidade de existir a brincadeira. É através do Pescador que é realizado a trama, como se fosse a entidade Exu – mensageiro da trama”, e acrescenta, “o personagem utiliza uma saia de palha, com o intuito também de trazer a lembrança também dos indígenas, o rosto e todos os seus adornos são azuis, a fim de retratar a ligação com o Mar”. A ligação do Pescador a entidade Exu é referente à alteração dos ânimos na discussão, da divergência, do nervosismo. Exu está presente no medo, no pavor, na falta de controle do ser humano. Também está perto na gargalhada, no riso farto e na alegria incontida. Exu é a velocidade, a rapidez do deslocamento. É a bagunça generalizada e o silêncio completo, além de ser o namoro, o desejo, é o sentimento de paixões desenfreadas e é também o desprezo. Exu é a voz, o grito, a comunicação, é a indignação e a resignação, é a confusão dos conceitos básicos e aquele que ludibria, engana e confunde; mas que também ajuda, dá caminhos e soluciona. É aquele que traz dor e a felicidade. Assim é o Pescador, ele emite medo. Para conseguir o que quer, ele vai até o fim destruindo qualquer tipo de impedimento. É levado pelo sentimento e pela paixão descontrolada por Mariasia. Para conseguir fazê-la feliz, ele não pensa nas conseqüências. O personagem tem grande influência da arte circense e os seus passos são acrobáticos, para demonstrar que ele tem força para acabar com a brincadeira e para derrotar o Calango, a fim de que ele solte a Lua, para que ele possa dar a sua amada. Nas apresentações o grupo não canta para o personagem, mas faz os baques. Mas mesmo assim, o Pescador tem músicas específicas, como:

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1. Carruagem D’água Fui pro cerrado eu fui Com carruagem de água Procurar um Calango Escondido na mata Se eu pego esse Calango Coro:Eu tenho a lua Se eu pego esse Calango Coro:Eu tenho a lua Se eu pego esse Calango Coro:Eu tenho a lua é o que me falta Se eu pego esse Calango 2. Eu sou um pescador Eu sou um pescador meu bem Faz tempo que joguei a linha Eu sou um pescador meu bem Faz tempo que joguei a linha Na puxada da rede quem vem Quem dera oi você ser minha Na puxada da rede quem vem Quem dera oi você ser minha O Calango: A brincadeira do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro gira em torno do Calango, ele é o personagem principal da brincadeira e através do festejo que ele vai nascer e vai voar. Segundo Marcelo Fernandes “o personagem utiliza muito a cor verde para retratar a natureza, especificamente o cerrado, e várias fitas de cetim para dar movimento e habilidade ao personagem. O terno com o estandarte em suas costas, retrata a imagem de um calango, que é o próprio personagem representado e o Sol, que faz referência ao enredo do mito, em que ele tem um pedaço do sol que é um raio de luz em sua boca, e é o elemento que o ajuda a escapar do arpão do Pescador. Uma saia de palha verde, um chapéu, uma calça por debaixo da saia, tênis e colares”. Tico Magalhães explica que o Calango não tem nenhuma entidade específica. “Na verdade os orixás são ligados à natureza, e todos os personagens que a gente tem é muito ligado ao meio ambiente, então necessariamente eles acabam tendo alguma ligação. Por exemplo, a Caliandra, ela já é um ser que está ligada a Mata então ela é a entidade viva. Um outro exemplo é a Laia, que é uma figura fantástica. Ela é ligada ao Rio, e o Rio é ligado ao

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Oxum, então é uma parada que já se conecta normalmente. E esses orixás servem para gente como base para a construção das personalidades dos personagens” e acrescenta “a gente pode buscar alguns orixás ao Calango, mas a gente não precisa trabalhar muito em cima de um orixá, pois ele já tem características dessas e entidades”. A música do Calango é: Terreiro Estrelado Samba Pisado em Terreiro Estrelado Coro: Samba Pisado em Terreiro Estrelado 2X Eu quero ver Sambar 2X Ou à noite em que nasceu o Calango Voador Coro: boa noite que nasceu o Calango Voador 4X Um Calango Coroado Ai Ai Nasce em sua moradia Ai Ai Vem louvando e vem louvando Ai Ai Vem sambando essa folia Ai Ai O Gavião: Quando foi pensado o processo de construção do Gavião, ele havia uma ligação muito intensa com as sombras, além do simbolismo que possui como um ser da mata. No mito, ele era quem comandava o céu até o Calango chegar. Segundo releituras, as asas dadas ao Calango a fim de que ele voasse, foi retirada do Gavião, pois é ele quem dedura o Calango quando o Pesador aparece. Mesmo estando implícito no mito, o Gavião é apaixonado pela Caliandra. Podemos confirmar no enredo, quando o Pescador ao ver a Caliandra, ele a pega e se recorda de Mariasia. Enfurecido, o Gavião dá um raspão no filho do Mar, dizendo que aquela bela flor pertencia a ele. Atualmente na brincadeira, ele é responsável por cuidar do céu para a chegada do Calango, além de prolongar o dia e a noite (depende do horário da apresentação) para o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro possa aproveitar a brincadeira. Seu figurino é uma máscara que retrata a cabeça do personagem que é feita de sementes de Guapuruvu, arame e coro. Uma roupa feita de fitas de saco de lixo preta, saia de palha, meião e colares. A música do Gavião é:

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Gavião Quando Tu Voa

Gavião quando tu voa Gavião Eu me esqueço de alembrar Ô Gavião Das dores que aqui pousaram Gavião E não querem mais voar

Gavião ai meu penar Gavião Gavião Pisa no ar Gavião Gaviã quero avoar Gavião Gavião vem me pegar O Domador com o Elefante da Tromba D’Água: Baseado no mito, o grupo uniu dois personagens que e o Domador e ao mesmo tempo o Elefante da Tromba D’Água. Ele é uma parte do Rio. No mito, o personagem aparece inicialmente como uma cobra d´água, quando a Mata fala à Laía para ela ter cuidado, e logo depois como o próprio Rio em que o Pescador lança o arpão. O Domador surgiu na brincadeira do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro com o intuito de fazer com que o publico tivesse uma maior participação na brincadeira, além de retratar um dos elementos de força no cerrado, que é a Tromba D’Água que ocorre no tempo de chuva, nas cachoeiras. O personagem assim como o fenômeno tem o poder e arrastar tudo que vê pela frente. Na brincadeira, ele tem a missão de fazer uma lavagem final no terreiro, para que o Calango pudesse voar. Com influencia do circo, o grupo dois personagens em um. Da cintura para cima, ele protagoniza o Domador, ou seja, é aquele que doma a tromba D´água. Da cintura para baixo ele retrata o elefante. Ele é um dos personagens que chamam mais atenção, pois foi ele aparece no meio do público com suas pernas de pau. Suas cores são azul e amarelo, que remete a entidade Oxum, que como eu já havia descrito anteriormente, é a entidade das águas doces. Oxum também é o olho d’água, onde encanta seu filho Logun-Éde. É a cachoeira, o rio, que também tem a regência de seu filho. É a queda da água da cascata. Sendo assim, ele

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surgiu para se vingar do buraco que o Pescador fez com o arpão no Rio. A Tromba D´ água é o seu furor. Seu figurino é: pernas de pau, um elefante feito artesanalmente, terno com um estandarte feito de lantejoulas, que retrata as águas, o seu cabelo feito de arame e papel marchê e colares. A música para o Domador entrar é: Domador Sou Domador das águas docês Vim aqui pra me amostrar Ô Domador das águas docês Domador vem se amostrar Sou Domador das águas docês Vim aqui pra me amostrar Ô Domador levantes as águas Domador vou mergulhar Ê domador das águas docês Domador vem se amostrar Ê domador levante as águas Domador vou mergulhar A Caliandra: No mito ela surgiu através das gotas de sangue de menstruação de Laiá. Segundo a integrante Tatiana Reis, “a personagem não virou uma curandeira, nem uma fada, mas sim uma encantadora, que tem o dom de sentir o coração e os sentimentos das pessoas” e revela, “o público brinca muito com a idéia de quando alguém está com problema de coração, é só procurar a Caliandra que ela vai resolver”. Ela tem influência da entidade Nanã, que é um orixá da mata e que conversa com o orixá Ossaim, que é o verdadeiro rei das matas, filho de Oxalá e médico da tribo. Portanto, a Caliandra representa a mata e é durante a seca que ela está forte, viva e encantada. A personagem tem uma construção também de sensualidade, leveza e meiguice, e a cor do seu figurino é vermelho e alguns detalhes são verdes e amarelos. O figurino de Caliandra é um colar de arame revestido de fitas vermelhas que remete a imagem de uma gola de rainha, o vestido vermelho com lantejoulas verdes, por baixo do vestido há uma meia calça verde com folhas e miçangas bordadas que remete a imagem das fadas, saia de palha vermelha que traz referências dos indígenas e duas saias de filó utilizadas pelas bailarinas, proporcionando uma saia mais rodada ao figurino. A “maquiagem do rosto de Caliandra são galhos de flores e o cabelo é dividido em dois coques” declara Tatiana Reis.

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Caliandra é muito vaidosa e tem a missão de mexer com aquele que a observa. Os passos de Caliandra proporcionam uma brincadeira com as pontas dos pés, remetendo a meiguice das bailarinas, a leveza e movimentos das mãos têm referência da dança Flamenca. A música de Caliandra é: Vim da Mata Vim da mata Coro: Vim da mata Vim da mata Coro: Eu vim da mata Vim da mata Coro: Vim da mata Vim da mata Coro: Eu vim da mata Vim da mata Coro: Nesse terreiro eu vou Refrão Vim da mata Nesse terreiro eu vou pisar Vim da mata Nesse terreiro eu vou brincar Vim da mata Nesse terreiro eu vou dançar Vim da mata Nesse terreiro eu vou cantar

Mariasia: Por estar à espera do pescador junto ao Mar, a Mariasia tem uma ligação com o vento e com a entidade Iansã que é a rainha dos raios, dos ciclones, furacões, tufões e vendavais. Na dança e nos passos, Mariasia traz a leveza proporcionada pelos ventos e também pela sua meiguice. O figurino de Mariasia é marcado pelo excesso de fitas de cetim coloridas, com o intuito de mostrar o movimento das correntes de ar que a cerca. Segundo Ina Gonçalves “por ser uma personagem muito doce, o vestido é muito singelo marcado por excesso de fitas e bordados, os meiões é em azul degradê para demonstrar a ligação que ela tem com o Mar, um chapéu de plos bem chamativo vermelho que retrata os seus cabelos, boca de boneca avermelhada, retratando a imagem de uma boneca e também de uma menina-mulher que está esperando incansavelmente o seu amado voltar de uma missão e ela tenta sempre emitir ao público o amor que a fez esperar”.

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A Mariasia ama o Pescador independente de qualquer coisa. Ela sabe que o seu amado não vai voltar, quando ele a diz que está indo para o cerrado. A amiga dos ventos pressente. Ela é a única personagem do Seu Estrelo que não é um ser fantásico, ela tem uma ligação com o ser-humano muito intensa, pois ela tem as dores e amores dos humanos. O seu papel na brincadeira é trazer o vento para ordenar uma sintonia no terreiro e para tem o objetivo de limpar a roda, para o nascimento do Calango Voador. Ina acrescenta “que a personagem é muito especial, porque o Pescador apesar de bagunçar a brincadeira, ele é um ser sagrado e ele não se apaixonaria por qualquer pessoa”. As músicas de Mariasia são:

1. Canto Firmado

Eu vou seguir caminho Meus passos me levam aonde estiver Eu vou seguir caminho Meus passos me levam aonde estiver Um Samba Pisado Um canto firmado Eu vou pra onde eu quiser 2X 2. Mariasia De rosto inocente tão dócil e tão frágil Coro: Ela só pensa Ela ali pedia pra voltar Quem o seu amor todo ia entregar pois previa o risco que estava a passar Ao passar no cerrado Coro:Volto ao teus braços O menina tu cria juízo Coro:Tu cria juízo É só um aviso Coro:É só um aviso De rosto inocente tão dócil e tão frágil Coro:Ela só pensa Ela ali manda através do ar Mensagens de amor pra que possa chegar ao sistante Cerrado e ele ao escutar atendesse ao recado Coro:Volto aos teus braços O menina tu cria juízo

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Coro:Tu cria juízo É só um aviso Coro:É só um aviso A Dona Saudades: A personagem aparece na última apresentação do ano realizada pelo grupo, é a última a se apresentar e também é a encarregada pelo Seu Estrelo de cuidar do terreiro enquanto o grupo está descansando nas férias. Ela cuida de toda a saudade que os próprios integrantes e o público possuem entre o final de Dezembro até o final do carnaval – época que o grupo retoma as atividades. A personagem não tem um figurino específico, todos os anos ela muda de visual. Mas suas cores são o branco e o vermelho. A música da Dona Saudade é: Dona Saudade Seu Estrelo mandou sua nação descançar Laaaaaaaaiá

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Eu chamo a Saudade Laiá Pro terreiro ela cuidar Laiá Saudade tome conta Laiá Do Terreiro até eu voltar Laiá Eu vou sentir saudade Laiá Mas prometo não chorar Laiá Saudade vá embora Laiá Do Terreiro quando eu voltar O Capitão: Ele também é um personagem que entra no festejo do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro junto com os batuqueiros. Ele é o que rege os percussionistas e o seu instrumento é a Caixa. O Capitão nasceu através de um raio que caí numa árvore e sua ligação é com os trovões. O responsável por fazê-lo é o Tico Magalhães. Seu figurino é o rosto pintado de preto, um apito, uma blusa florida, uma calça, tênis e colares. E com o intuito de incluir todos os personagens do mito na brincadeira, o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro está com novos projetos para o início do ano de 2008. Estão em

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processo de construção, mais sete personagens, além dos descritos acima. Eles ainda eles estão na fase da constituição de uma identidade. Estão sendo construídos os figurinos e suas melodias. Entre os personagens, estão: Mané do Avesso: Como o nome já diz, ele é todo ao contrário. Ele não está incluso no mito, mas está presente na Roda. Ele é o responsável de fazer com que nada dê errado na brincadeira, tudo ele faz ao contrário. O Seu Estrelo faz um jogo com o personagem. Como ele faz tudo ao contrário, o Seu Estrelo pede a ele todos os seus desejos ao contrário, afim de que ele os realize de forma certa. Como por exemplo: O Seu Estrelo diz: - Mané do Avesso eu não quero que o Calango voe! O Mané do Avesso diz: Ele vai voar sim! Luz Belo: Ele é o irmão de Laiá e o responsável por cuidar dos sonhos alheios. Tudo o que os seres-humanos fazem é baseado nos sonhos, então, quando ele não está na realidade de cada pessoa, ele está nos sonhos. Na brincadeira do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, é ele que abre o mundo do sonho e da imaginação, para que o Calango se sinta a vontade para chegar e voar. Esperança: Essa é uma personagem que ainda não tem nome definido, mas que traz o sentimento de esperança entre todos que estiverem nas brincadeiras. Ela fica no reino de Luz Belo – que é o responsável pelos sonhos. Segundo Tico Magalhães “o sonho é o símbolo de que nossa esperança nunca morre. E o nosso sonho é que a brincadeira esteja viva dentro de nós para sempre”. Sete Lua – Ele é um personagem meio louco. Ele vai chegar à brincadeira recitando sete versos e vai incentivar o público a arte da improvisação. Seu Guaiá – Ele já se apresentou no II Festival de Brasília de Cultura Popular, mas ficou um ano sem se apresentar. Ele é um personagem muito feio e que tem a missão de assustar todo o mau-olhado. Ele retrata o Lobo-Guará – que é um símbolo presente no cerrado – é muito nervoso, e como ele é o animal de estimação do Seu Estrelo, ele então é o único que consegue acalmá-lo.

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O Seu Estrelo e a herança dos Mestres de Cultura Popular

Muitos brincantes que não possuem contato mais intenso e sério com a cultura popular, ao participar de alguns festejos, podem até pensar que “a brincadeira” é apenas entretenimento. Durante minha pesquisa de campo, a descoberta que mais me impressionou é a discussão sobre a importância da hereditariedade dos mestres de cultura popular tradicional em grupos de cultura popular ou de recriação atual. Ouvi falar muito sobre os mestres da Congada, do Boi-Bumbá, do Maracatu, do Cavalo-Marinho e de outras danças e folguedos, mas afinal, qual é a importância deles na cultura popular? O mestre é o principal condutor de uma tradição, pois em seus anos de vida há a memória de um saber coletivo. Ele, com toda sua carga de conhecimento, procura preservar a cultura de seus antepassados, desenvolvendo-a junto a sua comunidade a criação e até mesmo a inovação. Em suas veias circula saberes milenares. Todos os seus conhecimentos foram herdados de um mestre que existiu anteriormente a ele, e para dar continuidade antes de sua morte, ela foi repassada a fim de que alguém com embasamentos levasse para as gerações futuras todos os conhecimentos adquiridos de outros mestres. Ao mesmo tempo em que ele é o professor, ele é o brincante. Suas obras e criações são únicas e ao mesmo tempo revela um imaginário histórico e individual. Ele não é apenas um patrimônio imaterial de uma determinada cultura, mas é um tesouro cultural e patrimônio vivo do seu povo. Sua importância só passou a ter significado oficial, pelo poder público, quando passou a vigorar, no âmbito da administração pública estadual, o registro dos Mestres dos Saberes e Fazeres da Cultura Tradicional Popular, mas ainda são poucas as iniciativas de valorização destes defensores de nossa cultura. E é esse cuidado com os ensinamentos dos mestres, que o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro procura preservar. Em uma entrevista com Tico Magalhães ele me ensina o porquê de ter respeito não apenas em praticar a cultura popular, mas também ao escrevê-la e estudá-la. Na íntegra, vou descrever aqui como foi essa conversa:

Tico Magalhães – “Quando você pisa num lugar de cultura popular, você sempre se remete ao passado. Eu tenho dois mestres de formação que me ensinaram o Maracatu, que são os mestres Walter França e o Salustiano. A maneira como o Seu Estrelo toca e canta é realizada na postura do Maracatu do Baque Virado. A gente só toca com o tambor de lado,

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pois aprendemos que ao cruzar a corda, estaremos cortando energia, e para confirmar, na hora de tocar é sentido através do seu corpo que aquela é a melhor forma se segurar o tambor, pois você consegue tocar mais forte e com mais intensidade. Sendo assim, têm algumas coisas que a gente usa no grupo que tem uma energia, um significado e esse conhecimento deve-se aos nossos mestres e aos mestres de nossos mestres. O Abê é um instrumento dentro do Maracatu que lava o caminho, para que o cortejo possa passar. Todas as referências que temos aqui de outra cultura é feito com todo o respeito, pois temos essa ligação com o passado. Como já citei antes, o meu mestre é o mestre Walter, o mestre do mestre Walter é o Luís França, sendo assim, eu tenho uma ligação com o passado e com a história da prática que realizo. Quando você chega na casa desse mestre, ele te ensina que ele tem um outro mestre, e que esse mestre tem outro mestre e assim por diante, aí você pára para meditar que antes de você estar vivo, essas pessoas também tocavam e lutaram para preservar esse tambor entendeu? No decorrer dos tempos esses mestres enquanto guardava e repassava todos os seus aprendizados, ele também inovava, mas com todo respeito. Hoje eu e os componentes do Seu Estrelo tem inovado, mas nós sabemos que atrás disso tudo tem uma base e temos a missão de carregar tudo o que aprendemos com total responsabilidade. Quando eu fui pegar alguns elementos que há no Cavalo-Marinho em Recife, eu fui até o mestre Salustiano e pedi permissão para eu poder levá-los para colocar na nossa brincadeira, aí ele parou e falou com todo sentimento: - Você sabe que com isso você vai estar ajudando a preservar nossa cultura não é? Através dessa atitude você observa que é uma coisa tão séria carregar para eles um determinado elemento - como por exemplo, uma dança, um batuque, um personagem – pois é como se cada um dessas características tivessem uma vida e uma importância, e assim como nós seres-humanos, eles deveriam ser respeitados. E ele para permitir que eu herdasse esse elemento, fui observado e analisado, para que pudesse chegar à conclusão se eu tinha ou não respeito com a brincadeira dele e do seu povo. Ao ver esse temor, ele me deu a incumbência de preservar. Sendo que a partir daquele momento eu tinha de fazer muito bem feito, para que eu possa continuar nessa linha de preservação, porque se eu fizer mal as pessoas invés de achar bonito irão achar feio, e aquilo que era uma forma de ajudar eu acabo perdendo. O Seu Estrelo tem apenas três anos de vida, mas a gente carrega 300 anos de Maracatu nas costas”, e finaliza, “nós não tocamos o Maracatu, mas ele é a nossa raiz e tudo o que sabemos hoje é por causa dos mestres que tivemos e é por isso que devemos preservá-lo com a mesma intensidade de 300 anos atrás”.

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Através dos ensinamentos dos mestres, observei que grande parte, ou melhor, noventa por cento das criações realizadas no Seu Estrelo tem uma simbologia. Nada foi feito apenas por criar. Cada instrumento, personagem e dança tem um significado e uma vida. É como se existissem dois mundos: o mundo físico que é o real e o mundo imaginário. E é nesse universo utópico que esses elementos vivem. E apesar da cultura popular em geral proporcionar entretenimento ao seu público e até mesmo para os próprios componentes do grupo, ela tem um cunho religioso, místico e que deve ser preservado e respeitado pelos mestres e brincantes. Muitos observadores e apreciadores não sabem do peso e do simbolismo que há em nossa tradição, mas por quê? Uma estratégia, mesmo que implícita das culturas populares é o de não entregar tudo mastigado, pois o interessante é sair da padronização dos meios de comunicação de massa, ou seja, as pessoas que tiverem interesse e curiosidade vão descobrir aos poucos, que a cultura popular não é apenas uma brincadeira, mas também fé e crença.

Não é Maracatu. É o Samba Pisado

Muitas pessoas ao verem o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro tocar e que não sabem diferenciar os ritmos e batuques, se perdem e denominam a melodia como o Maracatu de Brasília. O ritmo gera realmente confusão para quem não o conhece. No inicio de minha pesquisa senti muitas dificuldades ao tentar diferenciar o que era o Maracatu Rural do Maracatu Nação e também qual era a divergência com o Samba Pisado que tanto o grupo falava. Mas antes de tentar compreender as diferenças entre os ritmos, pergunto: Porque o Seu Estrelo criou outro ritmo? Segundo Tico Magalhães “tem muita gente aqui em Brasília que não tem responsabilidade. Diz que faz uma coisa e não faz. Muitas vezes já peguei cartões escritos bem assim: Dou aula de Caboclinho23, de Frevo24, Maracatu e etc. Aí você olha e

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CABOCLINHO. Disponível em: Acesso em: 13/09/2007. O primeiro registro da dança foi realizado pelo padre Fernão Cadim, em 1584, no seu livro “Tratado e Terra da gente do Brasil”. Caboclinho é um folguedo de origem indígena, mas que no Nordeste significa a mistura do índio com o branco, e os denominados caboclinhos, são os filhos dessa união. A dança retrata batalha, caçadas e colheitas, além de possuir um cunho religioso. Os personagens da brincadeira são: rei (cacique), rainha (cacica), capitão, tenente, guia, contra-guia, perós ou indiozinhos, porta-estandartes, caboclinhos, caboclinhas, pajé, caboclinhos caçadores, princesas e curandeiro. A orquestra é formada pela: gaita ou flautim (de taquara, também chamado inúbia), caracaxás ou mineiros, tarol e surdo. Musicalmente, mantém forte ligação com os cultos de origem indígenas. Os caboclinhos utilizam em sua dança tangas e cocar de pena de aves, além de adereços como: pulseiras, braçadeiras em pena (caboclos), colares de contas e sementes (no pescoço), pequenas cabaças (na cintura), flechas grandes (para moças) preacas, que consistem em arcos com flechas retesadas, presas, que quando puxadas, produzem um estalido seco, marcando o ritmo.

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fala, como uma pessoa pode dar aula de tudo isso? É impossível isso acontecer, pois cada uma dessas práticas tem uma profundidade sabe? É de um mergulho muito intenso. Esses ritmos nos divertem, mas tem algo muito mais sensato do que um simples entretenimento. Nem em Recife você encontra uma pessoa que dá aula disso tudo, e olha, um morador de lá está o tempo todo se abastecendo, porque é uma prática que está viva e é de raiz, pois foi originada naquele lugar. Mas sabe por quê? A galera de Recife tem o respeito, um cara de Maracatu ele sabe que é de Maracatu e ele sabe que tem o mestre de Caboclinho entendeu? Não é só porque ele sabe dançar e tocar o Caboclinho que ele pode chegar dando aula. Muitas vezes você chega em Brasília e acaba ficando espantado, pois eu já fui assistir uma aula desses professores e durante a oficina observei que o cara não cantava, só ensinava o batuque. No final, eu cheguei e perguntei assim, você não sabe cantar não? Aí ele me disse, cantar e tocar é impossível. Mas como assim, eu pensei? Maracatu é canto e o toque, sem ele não existe, e como que o cara que diz que dar aula de Maracatu me fala que cantar e tocar é impossível? Se eu toco é porque eu canto, ambos estão ligados e tem uma simbologia”. O recifense Tico Magalhães me demonstra ao entrevistá-lo, uma revolta com a banalização que alguns percussionistas de Brasília têm dado com as práticas culturais de outros estados. Fazer cultura popular é muito mais complexo do que propor apenas um entretenimento entre os brincantes e apreciadores. Dentro da brincadeira, apesar dela se mostrar ingênua, tem todo um ritual, um significado e uma religiosidade. Desde alguns anos, com o crescimento considerável de apreciadores do Alfaia 25 e até mesmo do ritmo do

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VOLPATTO, Rosanse. Frevo, o tom do Carnaval Pernambucano. Disponível em: Acesso em: 18/09/2007. Frevo é uma dança de origem pernambucana, criada por volta do século XIX e que possui influência da Marcha e do Maxixe. A dança é muito acelerada e originou-se dos antigos desfiles quando era preciso que alguns capoeiristas fossem à frente, para defender os músicos das multidões, dançando ao rítmo dos dobrados. Assim nascia o Passo. Os dobrados das bandas geraram o Frevo, que foi assim chamado pela primeira vez em 12/02/1908, no Jornal Pequeno. Sua denominação é uma linguagem popular que vem do termo “ferver” e que significa fervura e agitação. Existem três tipos de Frevo: o Frevo de Rua que é puramente musical, Frevo - canção é constituído por uma introdução forte de frevo, seguida de canção, concluindo novamente com frevo e o Frevo de Bloco é chamado pelos compositores mais tradicionais de "marcha-de-bloco" e é característico dos "Blocos Carnavalescos Mistos" do Recife. Atualmente são catalogados cerca de 120 passos e os mais consagrados são: a tesoura, locomotiva, caindo nas molas, dobradiça, fogareiro e capoeira. Até as sombrinhas coloridas seriam uma estilização, mas que foi utilizadas inicialmente como armas de defesa dos passistas contra os conflitos entre os blocos de Frevo. A dança não exige roupa típica ou única. Geralmente a vestimenta é uma camisa curta e justa ou amarrada à altura da cintura. A calça também deve ser de algodão fino, colada ao corpo, com tamanho variando entre abaixo do joelho e acima do tornozelo, com predominância de cores fortes e estampadas. A vestimenta feminina se diferencia pelo uso de um short sumário, com adornos que dele pendem ou mini-saias, que dão maior destaque no momento de dançar. 25

BUMBO. Disponível em: Acesso em: 25/09/2007. Os Bombos de antigamente, hoje são chamados de Alfaias ou Zabumba. O termo provém do francês “alfaiate”, ou aquele que corta e produz sua roupa à mão. Como os negros produziam os seus próprios bombos, os franceses,

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Maracatu, batuqueiros e dançarinos de Brasília fazem seus cartões propagantícios e dizem dar aula do folguedo. Infelizmente o respeito tem sido perdido. A cultura popular tem virado para alguns praticantes, um mercado com o objetivo apenas de gerador de renda. Tico confirma que o Maracatu é canto, pois “só pela forma do mestre cantar, eu sei qual é o baque que eu tenho que fazer, eu sei qual é o toque que eu tenho que dar. O Seu Estrelo tem uma história e um processo de reinvenção. Foi construído o mito, o SambaPisado, a dança e os personagens, mas tudo foi feito com base e respeito. A gente faz questão de ir à Recife, de trazer os mestres e os grupos que a gente tem referência para a nossa cidade, e também fazemos a questão de voltar para o estado de Pernambuco e mostrar o que a gente está fazendo, para que o mestre veja e que tenhamos a sua bênção”. Apesar de Tico Magalhães ter a liberação para dar oficinas de Maracatu, para o recifense, a prática tem que ser dada pelo próprio mestre. “Apesar de eu ter essa abertura e de saber que eu tenho a permissão, eu acho pouco o que faço aqui em Brasília. As pessoas dizem que o ritmo do Seu Estrelo era o Maracatu, e eu sempre tento explicar que o Maracatu está em Recife, até porque ele não é apenas toque, tem o cortejo, tem todas as figuras e personagens. Então, muitas vezes eu até dava oficinas gratuitas, mas era com o intuito de chegar ao Samba Pisado. Portanto, é importante nós termos essa preocupação e esse cuidado com o que você está mexendo” declara. A partir destes princípios, o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, durante os ensaios foi dando aos seus batuques, um novo ritmo. Com influência do Maracatu Nação, ele tem em sua melodia a presença principal dos Alfaias, além da Caixa26 e o Gonguê27. Do Caboclinho o grupo traz as toadas do Caracaxá 28, que é um instrumento utilizado muito na percussão

portugueses e espanhóis passaram a chamá-los de “alfaias”, produto dos alfaiates. O instrumento é tocado com duas baquetas e produz um som bastante grave. No Brasil há presença significante no Boi Bumbá do Maranhão, no Maracatu de Pernambuco e na Congada de Minas. É feito com pele de cabrito ou carneiro dos dois lados, fixada por cordas de sisal. 26 CAIXA. Disponível em: Acesso em: 25/09/2007. Conhecido como Caixa ou Caixa-de-Guerra o instrumento como o nome já diz é uma caixa acústica com pele natural dos dois lados e esteiras na pele inferior. Possui altura um pouco maior que o tarol, sendo encontrado na orquestra em maior número que este. 27

O Gonguê é composto por duas chapas de ferro fundido com aço e ligadas entre si. De um dos lados sai um cabo do mesmo material, por onde o músico o segura enquanto o percute. Isto é feito com um comprido e fino bastão de madeira. Considerado um instrumento de muito destaque no Maracatu, o Gonguê é utilizado cotidianamente por artistas populares nas ruas de Recife. 28

Caracaxá é o nome que os Caboclinhos denominaram ao Ganzá. O instrumento é um tipo de chocalho, geralmente feito de um tubo de metal ou plástico em formato cilíndrico, preenchido com areia, grãos de cereais ou pequenas contas. O comprimento do tubo pode variar de quinze até mais de 50 centímetros. Os tubos podem ser duplos ou até triplos. Com pequenos movimentos giratórios, o músico é capaz de controlar a maneira como os grãos caem dentro do tubo, permitindo a variação de intensidade de acordo com os tempos fortes e fracos do

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indígena. Tem também o Abê 29que está presente literalmente no Afoxé30 e que sua percussão assemelha ao barulho de águas, portanto, o seu significado é de lavagem do ambiente, tirando o mal-olhado e as impurezas. O grupo criou uma nova pulsada para o Abê, que não existe em nenhum outro grupo. Foi um processo de criação do Seu Estrelo e por ele ser uma coisa mais solta, porque tanto no Afoxé ou no Maracatu Nação, o Abê dá uma segurada no ritmo, mas no Samba-Pisado, como tem o Caracaxá que também possibilita dar esse movimento ao batuque, o Abê acabou ficando livre para fazer o que ele bem quiser. O ritmo criado nas Alfaias é muito mais acelerado, é uma nova pulsada que vem da pisada, da dança dos personagens do Cavalo-Marinho, e é por isso que é denominado como Samba-Pisado, pois relembra o som da pisada na hora que os brincantes estão dançando. Os instrumentos que o compõe são a Caixa, o Gonguê, Caracaxá, Abê, Alfaia, Bombinho, a Matraca31 que vem do Bumba-meu-Boi e o Bajo que também é um instrumento utilizado no Cavalo-Marinho. Como já falei anteriormente, nada no Seu Estrelo e Fuá do Terreiro é feito apenas com o objetivo de fazer e de ser bonito. Tudo tem um significado. Assim como os personagens, os batuqueiros também têm uma definição. Eles são denominados como Tronco. Como o nome já diz, ele é parte do corpo à qual todos os membros são ligados. Cada ritmo. No samba o ganzá serve para fazer a marcação, sendo que os tempos são marcados por batidas fortes e os contratempos por batidas fracas. 29

O Abê ou Chequerê é um instrumento composto por uma cabaça e em sua volta há uma rede feita de linha de barbante ou nylon com miçangas. Sua percussão assemelha ao som do chocalho. 30

GOMES, Fábio. Disponível em: Acesso em: 10/09/2007. De origem Iorubá, a palavra Afoxé significa “a fala que faz ou faz alguma acontecer”. Segundo o musicólogo Guerra Peixe, o vocábulo deriva do sudanês ÀFOHSHEH e assemelha ao Maracatu de Recife. Na Bahia, o vocábulo indica a espécie de Maracatu salvadorense e que se denominava "as festas profanas dos terreiros baianos". Katarina Real se refere a um dos seus "informantes mais idosos sobre o maracatu, Seu Veludinho", como alguém que "lembra ter ouvido frequentemente no Recife, no passado, a palavra afoxé com referência aos maracatus". Segundo ele o nome maracatu "foi invenção dos homens grandes, maracatu nem tinha nome de maracatu. O nome era Nação. Na palavra africana, é Afoxé de África". As toadas realizadas nos cortejos são praticamente as mesmas cantigas ou orôs entoados nos terreiros afro-brasileiros. E acrescenta: "os orôs são puxados em solo e em seguida repetidos por todos, inclusive pelos instrumentistas. Geralmente quem realiza o solo é uma pessoa de status elevado dentro do grupo". Afoxé não é apenas um bloco carnavalesco, ele tem profunda vinculação com as manifestações religiosas dos terreiros de Candomblé, "já que seus praticantes estão fundamentalmente ligados ao culto dos orixás", como declara o antropólogo Raul Lody. Vem daí o fato de chamar-se o afoxé, muitas vezes, de "Candomblé de rua". Inclusive por homenagear um orixá, geralmente, o orixá da casa de candomblé a que pertence. Em Pernambuco, o afoxé ressurge com o Movimento Negro Unificado no final da década de 70, como uma das formas de se fazer chegar à maioria da população, o debate sobre consciência negra e liberdade, através da música. Os instrumentos utilizados são: Agogô ou Gonguê, Abe e os Atabaques que é um instrumento que foi originado dos troncos de árvore e cobertos com peles de animais, podem ser tocados deitados e em pé, também com o nome de tambor e utilizado pelos índios, serve para acompanhar as danças tribais e até passar mensagens, é utilizado também nos cultos de Candomblé e Umbanda. 31

A Matraca são duas pequenas tábuas de madeira, que ao bater uma na outra, fazem um som estridente.

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artefato tem alguma ligação com este elemento. Se ele está bem, todo o resto estará também. E no caso do grupo, são eles que trazem através do som (baque) e do canto, as figuras dramáticas do Mito do Calango Voador. O Tronco é composto por todos os Alfaias e a Matraca. Cada músico tem um nome de uma árvore típica do cerrado, como por exemplo: Baru, Caviúna, Guaperê, Dedaleiro, Barbatimão e Sucupira. Os Abês, Caracaxás e Bajo e ao serem tocados relembram o barulho dos mares, rios e cachoeiras. E como eles representam as águas, e as percussionistas(os), ao invés de terem o nome de uma árvore específica, possuem o nome de um rio brasileiro, como por exemplo: Rio das Almas e Santa Bárbara. O Gonguê representa o Ar e a Caixa simboliza o Fogo. Os figurinos são divididos em dois: 1. Todas as percussionistas usam vestidos com cores fortes e bordados. Os enfeites são feitos de lantejoulas e linhas, e cada um dos desenhos são ligados ao mito, e das próprias figuras que elas representam dentro dos elementos da natureza. E vale relembrar, que no grupo, assim como nos grupos de cultura popular tradicional, tudo é feito artesanalmente. Portanto, no Seu Estrelo é necessário aprender a bordar;

2. Os percussionistas utilizam blusas com estampas coloridas. Segundo Andressa Vianna “a blusa utilizada tanto pelos percussionistas como nos personagens masculinos, incluindo a Dona Morte, é uma coisa alinhada que emite a idéia de sempre estar arrumado. Essa característica é muito do interior, pois geralmente as pessoas vão para os seus cultos e para suas festas de roda muito bem arrumadas, e na maioria das vezes, as camisas são bem floridas, estampadas e bonita” e há também uma calça específica do seu personagem no Tronco. Segundo o integrante Isaac Nunes, “a ligação religiosa que o Tronco possui são com todos os antepassados que fizeram de alguma forma a cultura popular (mestres e brincantes), especificamente aos do Cavalo-Marinho e do Maracatu e também aos negros e africanos” e finaliza “quando tocamos, estamos trazendo várias entidades. Elas transitam pelo Tronco e chegam pelo som. Tocamos para todas elas, a única diferença são as loas que são diferenciadas”.

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Mas para explicar melhor as diferenças entre os três ritmos, segue o quadro abaixo: Maracatu Rural ou Baque Solto 

O ritmo é mais complexo e

Maracatu Nação ou Baque Virado 

acelerado; 

saudade de Recife (PE),

região

e

para

a

traz recordações das pisadas dos





por isto, que o ritmo denomina-se

do mar32 ;

Samba-Pisado;

segunda

Ele significa uma saudade carregada



pelos negros da África33;

Originou-se durante a crise que a

Ele tem uma semelhança com o barulho

comunidade

daquela região”;

precedeu



É uma manifestação originada do

para o Rei e a Rainha negros;





Os instrumentos tocados pelo

Os instrumentos principais são: apito do

Gonguê,

que do negro. O ritmo e a dança

mestre, o tarol, caixa de guerra, gonguê

Bombinho, Matraca e Bajo, o

trazem uma recordação do índio

e alfaias;

apito do Seu Estrelo e do

trompete, vozes, apito do mestre, os

chocalhos

Caracaxá,



O tambor (Alfaia) dá uma carga mais 

intensa no ritmo;

no

surrão

É um ritmo criado em Brasília e para Brasília;



Os personagens principais são: pelo rei, 

dos

rainha, dama-de-honra da rainha, dama-

cablocos de lança e os chicotes de

de-honra do rei, príncipe, princesa,

o nascimento do Calango Voador

burrical;

ministro, embaixador, duque, duquesa,

ou da Roda;

Há a ausência do Tambor (Alfaia);

conde, condessa, vassalos, damas-de-

mas há a Porca que dá um ritmo

paço (que portam as calungas durante o

veloz para o batuque;

desfile do maracatu), porta-estandarte,

Seu Estrelo, Laiá, Caliandra,

Os personagens principais são a

escravo sustentando a umbrela ou pálio

Mané Cheiroso, Mariasia, Luz

Porta-Bandeira ou Baliza, a Dama

(chapéu-de-sol que protege o casal real

Belo, Dona Morte, Domador e o

do Paço, as Porta-Buquês, as

e que esta sempre em movimento),

Elefante da Tromba D´Água,

Baianas, os Caboclos, os Caboclos

figuras

Pescador.

de Lança (com chapéu em forma

corneteiro, baliza, secretário, lanceiros,

de funil), caboclos de Pena e a

brasabundo (uma espécie de guarda

Boneca Aurora;

costa

Tem a presença dos Cablocos de

(percussionistas), caboclos de pena e

Lança, que é um personagem que

baianas.

de

do

animais,

grupo),

guarda-coroa,



O batuque é realizado para fazer

Os personagens principais são:

batuqueiros

assemelha a um índio; tem o ReiAmar que é o Cacique.

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Segundo Tico Magalhães, o barulho da descida e subida proporcionada pelas ondas no mar no navio, durante a vinda dos escravos ao Brasil, faz com que esse ritmo seja característico do Maracatu Nação. Quando as ondas batiam no casco da embarcação, os negros que vinham durante três a quatro meses, memorizavam a melodia o tempo inteiro, e vendo que aquele ritmo era sedutor, acabaram transcrevendo para os instrumentos musicais. Ele tem a característica do contra-tempo do mar. 33

Abê,

Capitão;

Os instrumentos utilizados: gonguê

bombo, porca, trombone de piston,



e

Tronco: Alfaia, Tambor, Caixa,

Tem mais influência indígena do

de duas campanas, mineiro, tarol,



Maracatu Afoxé

A dança é realizada em forma de cortejo

brasileiro;



do

Caboclinho,

Cavalo-Marinho;

campo;



Tem influência Nação,

Guerra

Mundial (1939 – 1945);



É um ritmo muito acelerado e

brincantes do Cavalo-Marinho, é

porque foi um ritmo criado naquela





do tambor;

Segundo Tico Magalhães “ele traz uma



O ritmo é bem mais lento devido o peso

Samba - Pisado

O Maracatu é uma pulsada que não existe na África, ele é esse transporte dos negros africanos para o Brasil Se eles não tivessem atravessado o mar, eles não teriam escutado a pulsada do mar e não teriam criado o ritmo. O Maracatu Nação foi criado em Recife (PE), sendo que ele carrega essa saudade da África.

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Projetos Toque Estrelado é um projeto social de oficinas culturais de percussão, de dança, de teatro e de circo. Em 2005, foi realizado no COSE – Centro de Orientação Sócio Educativo da Vila Planalto – com o apoio da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, o primeiro Toque Estrelado, que deu origem ao grupo Orquestra de Tambores Estrelados com jovens carentes da cidade. Em 2007, o projeto se realiza semanalmente com as crianças das escolas públicas da Vila-Planalto, que estão ligadas ao Projeto de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) do Governo Federal, uma brincadeira trabalhada em cima da rima de mestres e escritores. O projeto complementou seus trabalhos com oficinas de bordado e confecção de figurino. Deste trabalho nasceu O Boi Estrelado, uma nova brincadeira com uma nova lenda, idealizada com o intuito de fortalecer, promover e difundir a cultura popular em Brasília. São Batuque é um encontro que ocorre uma vez por mês no Clube da Imprensa, em Brasília, e que tem o objetivo de trazer uma vez por mês algum convidado importante de percussão. A finalidade principal é juntar as pessoas que trabalham com percussão musical. No inicio do evento todos os percussionistas se reúnem para aprender novos baques e logo depois tem apresentações individuais de grupos de Brasília e por último a apresentação do convidado especial. São cobrados ingressos: R$ 3 (três reais) até as dezenove horas e R$ 7 (sete reais) após as sete horas da noite. E quem levar seu Alfaia não paga a entrada. Festival de Brasília de Cultura Popular é o maior evento realizado pelo grupo. O evento é dedicado à comemoração ao nascimento do Calango Voador. É um encontro ligado ao mito, projetado pelo Seu Estrelo, mas é um evento de Brasília, para a comunidade de Brasília. Ele ocorre uma vez por ano, e o intuito era para que fosse comemorado no mês de agosto – mês do nascimento do Calango – mas como é um evento que exige autorização e estruturas da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, ele não tem uma data certa. O festival busca por meio da brincadeira, um diálogo entre os possuidores do saber e aqueles que bebem dele. Os mestres precisam ver, escutar e sentir o que está sendo feito com o seu conhecimento. Abençoando os novos grupos, que trazem em sua bagagem referências da cultura popular, sentirá que a luta pela preservação de nossa cultura está sendo perpetuada.

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Segundo Danielle Freitas “o objetivo do festival é firmar uma data para a celebração da cultura popular em Brasília, ou seja, fazer com este grande evento entre no calendário das festividades da capital. O encontro é realizado em três dias (sexta, sábado e domingo) e um dos objetivos é trazer mestres, grupos tradicionais e de recriação para que seja realizada uma troca de saberes, não apenas entre os realizadores, mas também entre os novos brincantes da comunidade. O evento é composto também, por debates sobre políticas públicas para as culturas populares e feiras de artesanato. Raio da Selestina é um projeto de estudo realizado uma vez por mês na Casinha. O objetivo é unir os grupos populares de Brasília, para chegarem e apresentarem o seu trabalho, ou seja, é uma reunião com o objetivo de se realizar uma troca de saberes entre os brincantes. A programação é composta por debates, vídeo e documentários com o intuito de aprender um pouco mais sobre as práticas referentes à cultura popular. Estandarte é pego algum objeto de importância para uma criança e é construído um estandarte para ela. Este é um projeto que primeiramente é realizado um estandarte individual, logo depois um estandarte da família. Ele foi um projeto construído pelo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, mas que foi concretizado atualmente apenas no Instituto Grimário, em Recife. O Espetáculo é um projeto que visa reunir e narrar as três partes do mito, principalmente a terceira parte, que é o nascimento de Brasília. Ele está em processo de construção e será apresentado no dia 21 de abril de 2009, aniversário de 50 anos da cidade. Quando o grupo faz a Roda em suas apresentações, o grupo não tem muita preocupação de contar a história em si, o objetivo é fazer com que os personagens cheguem e quem quiser se envolver mais terá que ler o mito. Já o Espetáculo tem o objetivo de narrar toda a história mitológica criada pelo grupo.

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3. TECENDO CULTURAS

3.1 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO CULTURAL DO PÉ DE CERRADO

A Gênese

Em 1999, a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, em Brasília, teve a iniciativa de por em cartaz na capital federal, a peça A Pena e a Lei, do escritor Ariano Suassuna. A partir da direção musical comandada por Pablo Ravi e Bruno Ribeiro, surgiu o grupo musical Pé de Cerrado. Para a formatação da trilha sonora e da sonoplastia, a direção tinha que realizar a composição das letras construídas por Ariano Suassuna. Como os ritmos e as letras já estavam semi-prontas pelo escritor, e eram baseadas na cultura popular nordestina, a equipe tinha que realizar pesquisas através de CDs, livros, mestres e brincantes o que eram os ritmos abordados pelo autor a fim de que a composição tivesse uma verdadeira ligação e semelhança com as essências e origens abordadas. Após um mês em cartaz, o grupo dá continuidade às apresentações. A partir do forró pé-de-serra e de músicas tradicionais brasileiras como as de Alceu Valença, Mestre Ambrósio, Dominguinhos, Hermeto Pascoal, Luiz Gonzaga e outros, o grupo passa a ser referência nos eventos culturais de Brasília. Com o decorrer da construção da identidade do Pé de Cerrado, dois dos quatro componentes resolvem abandonar o grupo devido a problemas pessoais. E com a necessidade, os músicos Fernando Fernandes, Pablo Fagundes, Bruno Maciel e Rafael Black se integram aos poucos, estabilizando novamente o conjunto. Mas porque o nome Pé de Cerrado? Segundo Pablo Ravi “no início da formação do grupo, Brasília estava na onda de surgir grupos artísticos que focassem a natureza e os elementos do Cerrado. Era Cerrado pra cá e pra lá. E desta maneira resolvemos colocar a palavra Cerrado em nosso nome, e por causa também da influência do ritmo Pé de Serra que era bem marcante em nossas apresentações, denominamos o nosso grupo como Pé de Cerrado”.

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Os ensaios Todas as segundas e terças-feiras, o grupo Pé de Cerrado se reúne no Porão do Rock34, no Stúdio Sonar, com o objetivo de aperfeiçoar suas músicas. Às dez horas da noite, aos poucos os componentes chegam e fios, microfones, caixas de sons são conectadas e instrumentos afinados. Eis que em meio à tecnologia se começa o ensaio. Em harmonia todos começam a tocar o Bumba-meu-Boi, Xote, Baião, Ciranda, Maracatu e Frevo. O clima do local muda e é dado o início da magia transmitida pelas toadas do grupo. Tem dias que eles ensaiam para as apresentações e para o aprimoramento do grupo, mas tem momentos que são realizadas semanas de gravações com cada instrumento, para que o próprio grupo montasse de forma artesanal suas músicas, harmonias e melodias para as faixas do seu segundo CD. Após duas horas, todos cansados começam a guardar os seus instrumentos e a desligar todos os microfones. Já está tarde e é preciso descansar para o próximo ensaio que ocorrerá na terça-feira no mesmo horário. Bom, é assim que se inicia a rotina do Pé de Cerrado. No inicio de minha pesquisa todos os ensaios eram nas segundas e terças-feiras, das vinte duas horas à meia noite, mas como o horário era complicado, pois todos já estavam cansados, atualmente o grupo ensaia todas as segundas-feiras no mesmo horário e nas quintas-feiras, das quinze às dezessete horas.

A Pesquisa

A proposta de formar um grupo de pesquisa da cultura brasileira teve início desde a formação da peça a Pena e a Lei, de Ariano Suassuna descrita anteriormente. Segundo Pablo Ravi, “na época da peça, como fazíamos parte da direção musical, o escritor Ariano Suassuna dava a letra para a gente, direcionava os ritmos e a gente tinha que fazer a melodia e harmonia da música para que pudéssemos apresentar. Mas para conhecer os ritmos que ele descrevia, a gente tinha que fazer uma pesquisa, nós ouvíamos vários CDs sobre determinado ritmo, tentava descobrir a origem dele e como ele era feito pelos mestres e pela comunidade. Foi a

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O Porão do Rock é um movimento que tem repercussão musical em todo o Brasil. Foi através da idéia de reunir em um único show, cerca de 15 bandas independentes que ensaiavam no subsolo da quadra 207 da Asa Norte de Brasília (local onde o grupo Pé de Cerrado ensaia) que se originou, em 1998, o festival Porão do Rock que ocorre todos os anos na capital federal. O local justamente conhecido como o Porão do Rock, abriga vários estúdios de ensaios, onde desde 1994, interagem artistas de vários estilos.

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partir daí que surgiu a idéia de estar pesquisando. A peça ficou muito legal e foi isso que nos motivou a continuar”. O grupo cultural Pé de Cerrado, após a crise da saída de dois integrantes, se estabiliza no ano de 2000, colocando em prática toda a motivação de realizar a pesquisa sobre os ritmos, danças e jeitinhos do povo brasileiro. O percussionista Rafael Black afirma “que o conjunto sentiu a necessidade de trazer para dentro do grupo, suas influências de raízes familiares e até mesmo de sua comunidade”, e acrescenta, “minha família é toda do Maranhão, e a partir do momento que eu entrei no grupo, o Pé de Cerrado ainda tocava muito forró pé-de-serra, mas com o tempo, incentivei os meninos a buscar outras influências, novos ritmos, e com isso a gente foi atrás da cultura popular exatamente para trazer essas influências. Eu fiz algumas viagens específicas para conhecer os ritmos do Maranhão que lá são inúmeros os tipos de folclore, entre eles o São João, o Tambor de Crioula 35 e os sete modelos bem diferenciados de Bumba-meu-Boi que existe lá e que variam os instrumentos que são tocados, a forma de cantar, dançar, além dos figurinos. Fui também para Recife que é outro pólo cultural fantástico, e foi a partir daí que a gente começou mesmo a fazer essa fusão do som do Pé de Cerrado com os elementos folclóricos. Nós não conseguimos fazer literalmente os ritmos que estudamos como eles são, porque estes grupos de raízes são muito grandes, tem muita percussão, tem vinte caras tocando tambor, muitas vezes chegam a ter cerca de 100 pessoas envolvidas em cantar, dançar e tocar. Então a gente tem buscado fazer da nossa maneira, e a partir do momento que eu trouxe alguns ritmos, os componentes já começaram a compor com a nossa poesia e hoje em dia nós temos o nosso Coco36, Ciranda37, Frevo, Maracatu, Bumba Meu Boi, Tambor de Crioula e mais variados ritmos de nossa cultura popular brasileira”. 35

FERRETTI, Sérgio Figueiredo. A presença do Tambor de Crioula nos Terreiros de Mina. In: Tambor de Crioula: ritual e espetáculo. São Luís: SECMA. 1995. p. 11-114.Publicado no Diário Oficial da União, em 17 de maio de 2007, o Tambor de Crioula foi registrado no Livro de Registro das Formas de Expressão, do Ministério da Cultura, como patrimônio cultural do Brasil. De origem negra, a dança é tocada por homens em três tambores (tambor grande, meião e crivador) feita com tronco de árvores e com peles de animais. Dançado por mulheres, o Tambor de Crioula foi trazido para o Maranhão, pelos escravos que chegaram para trabalhar e que posteriormente formaram o primeiro quilombo da região, o Quilombo de Frechal. A dança encontrou apoio do escravo cozinheiro, São Benedito, que trabalhava na casa grande e que havia o costume de roubar comida para alimentar os negros que estavam sendo castigados nos troncos. Por sua coragem, passando por cima dos senhores de escravos, após a sua morte ele foi transformado em santo e em padroeiro do Tambor de Crioula. A dança não possui uma base e fundamento religioso, mas apesar de ser considerada uma dança profana, por ser uma brincadeira para divertimento e lazer, o folguedo muitas vezes é usado para promessas a São Benedito. Na dança as mulheres costuma seduzir com olhares e movimentos de cintura os seus parceiros. Sendo considerada uma dança sedutora. A mulher (coreira) entra na roda, faz reverência dançando para os três tambores e parte para o centro. Uma outra dançarina pede licença à primeira para dançar e tomar conta da roda. O pedido é feito através da punga ou umbigada. Este gesto representa também uma passagem de energia via ventre, desejando boa fertilidade e saúde ao rebento uma da outra. 36

PIMENTEL, Altimar de Alencar. Coco de roda. João Pessoa: Fundo de Incentivo à cultura Augusto dos Anjo, 2005. Coco é uma dança praticada nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, sobretudo em Alagoas. O ritmo foi

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Assim como Rafael Black, os outros cinco componentes começaram a estudar suas raízes, com o intuito de se auto-conhecerem e descobrirem um pouco mais sobre o seu país e a região que os constituíram e que os influenciaram de certa forma, musicalmente. Fernando Fernandes tem parentes no Ceará e no Espírito Santo, Pablo Ravi tem pai paulista e mãe goiana, Bruno Maciel é mineiro e meio carioca, Bruno Ribeiro é capixaba, Pablo Fagundes tem a mãe cubana e o pai mineiro. Com toda essa riqueza de etnias o grupo passou a buscar uma identidade que ainda não está constituída. Segundo Fernando Fernandes “o Pé de Cerrado ainda está em processo de construção de uma identidade, se você me pergunta o que é o grupo Pé de Cerrado hoje, eu ainda não vou saber lhe responder. Esse processo de construção tem sido complexo devido às nossas influências que são inúmeras e porque ainda estamos no início de uma carreira”. O Pé de Cerrado não é um grupo de cultura popular, mas é um grupo que toca ritmos culturais e que é constituído por músicos profissionais formados na Escola de Música de Brasília, e que possui o objetivo de agregar várias culturas brasileiras, entre elas, do Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Rafael Black afirma que o grupo não possui a característica de ir para a rua “nós ficamos muito no estúdio e na construção de arranjos e

trazido pelos negros da região da Angola. A dança possui várias nomeclaturas como Coco-de-Roda, Coco-deEmbolada, Coco-de-Praia, Coco-do-Sertão, Coco-de-Umbigada, Coco-de Ganzá e até mesmo Coco de Zambê. Por mais que haja várias denominações, acredita-se que o folguedo surgiu quando os negros para aliviar as dores do trabalho, que era quebrar os cocos secos com os pés, embalados pelo barulho que faziam, eles cantavam e dançavam. Há relatos também que a dança se originou da hibridação entre a cultura dos escravos e dos indígenas, principalmente na instrumentalização, no ritmo e na marcação das melodias. A dança é realizada em roda ou em fileiras mistas, de conjunto e de pares, que vão ao centro e desenvolvem movimentos ritmados, tendo como destaque o passo da umbigada. O Coco possui dois ritmos distintos, o "tropé" ou "tropel", que é um sapateado vigoroso, marcado pelos pés descalços ou tamancos pesados de madeira e que se ajusta a execução dos instrumentos musicais. Os instrumentos utilizados são o zabumba (tambor), "pife", flauta, ganzás, chocalho, viola, pandeiro, cuícas, maracás e bombos. As feiras nordestinas é um lugar onde se pode ver e ouvir o Coco improvisado, falando das dificuldades, dos problemas sociais e das paixões. Celebrado por muitos artistas, como Gal Costa, Gilberto Gil e Alceu Valença, o Côco foi redescoberto nos anos 90 em Recife, pela via do Mangue Beat, através do trabalho de grupos como Chico Science & Nação Zumbi e Cascabulho. Eles chamaram a atenção para artistas recifenses contemporâneos, mais próximos da raiz musical, como Selma do Côco, Lia de Itamaracá e Zé Neguinho do Coco. 37

RABELLO, Evandro. Ciranda, dança de roda, dança da moda. Recife: Editora Universitária (UFPE), 1979. Apesar de a Ciranda ser conhecida como uma prática infantil, ela também é uma dança de roda realizada pelos adultos. De origem portuguesa, o folguedo apareceu no litoral norte de Pernambuco, segundo a história, ela foi adaptada pelas mulheres dos pescadores que enquanto esperava o retorno de seus maridos, cantavam e dançavam. O movimento realizado pela Ciranda imita os movimentos do oceano, seu ritmo é embalado por suas ondas e são realizadas sempre com o pé esquerdo. A dança não tem preconceitos e limites contra raça, sexo e idade, todos que quiserem podem participar. Começa com uma roda pequena que vai aumentando, e à medida que as pessoas chegam para dançar, abrindo o círculo e segurando nas mãos dos que já estão dançando. Tanto na hora de entrar como na hora de sair, a pessoa pode fazê-lo sem o menor problema. Quando a roda atinge um tamanho que dificulta a movimentação, forma-se outra menor no interior da roda maior. A música é executada por um grupo denominado “terno”, colocado no centro da roda, tocando instrumentos de percussão (bumbo,tarol, caixa, ganzá) e de sopro (pistons e trambone).

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solos. Estamos muito centrados no trabalho profissional de apresentar em palco, e até mesmo por sermos um grupo pequeno a gente não tem condições físicas para ir para a rua como os músicos populares que fazem cultura popular, mas o nosso intuito é resgatar a tradição, divulgá-los pelo Brasil e até mesmo no exterior”. Além de pesquisar os ritmos brasileiros, Pablo Fagundes realizou uma pesquisa sobre mil tipos de madeiras da Amazônia que podem ser usados na construção de instrumentos musicais. Fagundes declara que ao concluir o curso de Engenharia Florestal na Universidade de Brasília (UnB), ele realizou pesquisas e encontrou finalidade para mais de 10 espécies de madeiras, entre eles tauari, copaíba, maçaranduba, açoita-cavalo e dentre outras. O trabalho resultou numa parceria com a empresa Hering, uma das maiores produtoras de instrumentos musicais no mundo. E todo o conhecimento alcançado serviu também de influência para o aperfeiçoamento e implementação de vários instrumentos de percussão no próprio grupo. E como a pesquisa é a alma da banda, Pablo Ravi revela que uma das maiores fontes de inspiração está no Museu de Vinil, localizado no Guará, cidade-satélite de Brasília, que conta com mais de cinco mil discos raros. “Nesse lugar a gente conseguiu discos muito mais importantes e difíceis de encontrar, como os do Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda e do Antônio Nóbrega”. Desta maneira, a curiosidade, a pesquisa, a criação, o estudo e a prática foram as forças principais para que o grupo Pé de Cerrado se constituísse divulgando a tradição cultural brasileira. Infelizmente o grupo ainda está muito centrado nos ritmos nordestinos. Pablo Ravi comenta que “quando a gente foi gravar um comercial para uma empresa, teve uma dupla do estado do Mato Grosso que tocaram um sertanejão e eles nos diziam que aquilo que era. Nós não queremos ficar presos só na cultura nordestina, porque também já teve vários momentos que a gente foi tocar para certas empresas e elas exigiram coisas da região Sul e a gente não tinha nada em nosso repertório, sendo assim, a pesquisa nunca pára, estamos num processo e nosso intuito é sempre está compondo em cima das coisas que nós vemos e aperfeiçoando“.

A energia através das composições

As palavras têm poder, este é o lema do Pé de Cerrado. Segundo Bruno Maciel “nós sempre procuramos estar falando coisas boas ao nosso público, nós acreditamos que nossas músicas possuem uma energia. Em nossas letras procuramos falar sobre ecologia, reverência a

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Deus, a Mãe Natureza, ao Pai Eterno e a outros elementos que possuem força” e acrescenta “quando você está numa massa de gente, a sua palavra naquele momento tem intensidade, se você parar e disser para todos que estiverem ao seu redor, vamos ficar doidão, vamos se drogar, com certeza isso vai acontecer. Agora quando a gente tenta jogar essa energia boa que há dentro de cada ser humano, tenho convicção que as pessoas que estiverem ali conosco vão estar nem que seja temporariamente, com uma paz de espírito. A gente sempre reza antes de tocar em uma apresentação, uma coisa que sempre falamos é que nós queremos ser um instrumento da paz e do amor. Todos nós almejamos ser um único instrumento musical, assim como o violão e a sanfona, a gente quer ser um instrumento tocado por Deus e que através de nós seja levantada a bandeira da paz e da alegria”. Durante conversas com os componentes do Pé de Cerrado, notei que apesar de eles proporcionarem um entretenimento ao publico, eles carregam a ideologia de levar através das suas apresentações uma energia espiritual e de bem estar. Admiradores e praticantes do Xamanismo38, o grupo acredita no trabalho como canal de cura, no conhecimento do poder das plantas, pedras, dos espíritos animais e seres da natureza e na devoção ao Sol, a Lua, as Estrelas e no reconhecimento da presença de Deus em todas as manifestações do Universo. Através da utilização de instrumentos de poder como os tambores, maracás e dentre outros, nós seres humanos podemos chegar aos estados alterados de consciência. Segundo os Xamãs, é possível sentirmos uma ligação com a natureza. Nos rituais xamânicos é trazida a consciência de que somos apenas um "microcosmo", que somos parte de "algo maior" e que somos filho da Terra, parte de uma Terra Viva. Através da ligação da vida com a natureza, nos tornamos parte de uma comunidade global e o início de uma vida pautada na sabedoria é encontrado nas folhas, nos movimentos dos ventos, no poder transformador do fogo, nos espíritos ancestrais e na jornada da alma. Pablo Ravi declara que “teve um período que eu comecei a trabalhar com o lado da espiritualidade e muitos integrantes da nossa banda começaram a caminhar nessa estrada junto comigo e estamos nessa busca até hoje. Nós freqüentamos a Matri Sadam lá na cidade do Alto Paraíso (GO) que trabalha dentro do Xamanismo. A faixa cinco do nosso primeiro CD, denominada Oração, é uma ciranda que foi feita em homenagem a este lugar que freqüentamos. Ela diz assim:

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ARTÉSE, Léo. O que é Xamanismo? Xamanismo. Disponível em: . Acesso em: 20/09/2007

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Oração Vai pedindo a força Vai chamando a Luz Vai sinta a energia Vai que nos conduz Vai agradece ao Pai Vai pelo momento Vai siga na vida Vai agradecendo Vai pra dentro da mata Vai clame a mãe-divina Vai corre pra nascente Vai beba água cristalina. E vai cantando essa ciranda Com seu coração Plantando sementes De amor na imensidão. Vai sinta o poder Que a cultura traz Vamos todos juntos Clamar a paz Reverencie ao Sol Cante para as ondas do mar Toque para a irmã Lua E deixe a fogueira queimar Na união de nossas mãos Com calor e com pureza Dancem feitos nossos índios Adorando a natureza. E vai cantando essa ciranda Com o seu coração Plantando sementes De amor na imensidão “Em oração, nesta música nós falamos dos elementos e a energia que possuem ali naquele lugar. E essa espiritualidade foi uma coisa que brotou dentro da gente, tanto que algumas vezes os próprios componentes dizem para pararmos de falar muito em Deus, para tentarmos fazer músicas falando mais da nossa cidade. Isso já está tão dentro de nós que muitas vezes não conseguimos largar, estamos sempre agradecendo, sempre conectados a mãe natureza e a gente vê que isso faz a diferença no nosso show” e acrescenta, “teve uma vez que fomos tocar em uma festa junina lá no Guará, o clima estava tão pesado que estávamos morrendo de medo. Nós tocamos e não teve nenhuma briga. Quando terminamos, arrumamos nossas coisas e fomos embora, no outro dia nos deram à notícia que após a nossa saída teve até tiro. Então você pode observar que tudo é energia”.

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Ligado ainda ao lado espiritual, o Pé de Cerrado teve muitas influências dos indígenas. Na música citada acima, há na introdução um canto de exaltação a natureza realizado pelos índios da tribo Tingui-botô presentes no Estado de Alagoas. “Em um determinado dia levamos alguns índios para a Matri junto com a gente. A pessoa que estava guiando a sessão disse para mentalizarmos naquele momento a seca, pois já era época de setembro para novembro e ainda não tinha chovido e as plantas já estavam precisando. Simplesmente no meio do trabalho eles começaram a cantar e a dançar o ritual da chuva e nesse dia a gente tinha levado vários tambores. Nós fomos para fora da oca, começamos a bater o tambor e a cantar, foi juntando nuvens e mais nuvens e deu uma chuviscada. No outro dia caiu um pé d´água fortíssimo. Então através dessa ligação com os indígenas, com a energia que eles nos emitem e com a fé em Deus, nós fazemos nossas letras e os nossos rituais. Nós não temos um templo, nem uma igreja porque sabemos que a natureza é o nosso próprio altar, porque nós sentimos a presença de Deus viva ali, e é isso que o público e críticos podem ver em nossas letras, pois estamos constantemente colocando o lado espiritual da gente, e nós devemos até tomar cuidado para não ficarmos gospéis demais”, declara Pablo Ravi.

Com o Pé na Recriação

Brasília, conhecida nacionalmente como a capital do rock, ainda possuía uma grande ausência de grupos que tocassem e que valorizassem os ritmos da cultura popular brasileira. Com essa necessidade, o conjunto teve a iniciativa de colocar em suas apresentações e em seu CD, variados ritmos característicos do nosso Brasil a fim de que os brasilienses passassem a conhecer e a valorizar a cultura regional. O Pé de Cerrado não é um grupo de Maracatu, nem de Bumba-meu-Boi, nem de forró Pé-de-Serra, mas sim um grupo de diversidade cultural. Em uma só vez eles tocam Maracatu com música instrumental, Baião com Afoxé, ou seja, a mistura é a essência do grupo. “As pessoas vivem perguntando para a gente bem assim: Vocês é um grupo de que afinal? Eu falo, a gente é um grupo de tudo poxa! Nesse primeiro CD nós mostramos o Nordeste, quem sabe no próximo já mostramos o Centro-Oeste, depois o Sul e quem sabe daqui a pouco o Mundo? Quem sabe a gente também não viaja para a África e para a Índia e se aperfeiçoa na cultura de lá? E quem sabe também a gente começa a difundir a música folclórica do Mundo?”, e acrescenta, “o nosso sonho é fazer com que as pessoas curtam mais as músicas regionais, pois tenho certeza que você nunca ouviu numa rádio popular um Coco ou um Tambor de Crioula.

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Isso todo mundo pode observar, já vi música eletrônica, um Reggae, Axé, MPB, Hip Hop americano, mas em toda essa diversidade de escolhas, não tem nada folclórico que se destaque. O nosso intuito não é o de ser um grupo de sucesso, pois sabemos que isso é difícil e temos a real noção de que aquilo que tocamos está fora dos padrões da massa dos meios de comunicação. Mas acredito que o sonho de todos do grupo é viajar mostrando a música brasileira lá fora de uma maneira ampla e diversificada. Somos um grupo que toca um monte de coisa em um só momento e é esse o nosso diferencial. O Pé de Cerrado não inovou porque essa não é a nossa proposta, temos muitos grupos aqui que possuem essa iniciativa, posso citar como exemplo, o Seu Estrelo e Fuá do Terreiro. Eles fizeram fusões, colocaram batidas mais variadas, já o Pé de Cerrado faz uma mistura musical com a proposta de sermos mais regionalistas. Esse ecletismo nosso é para concentrarmos muita coisa em um trabalho só e fazermos da melhor maneira para que a sociedade possa conhecer e apreciar”, declara Rafael Black. Aí leitor, vem aquela história de você pegar um ritmo cultural com a proposta de fazêlo bem. Como já havia dito anteriormente, quando narro à questão do respeito que o grupo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro carrega em suas práticas, apesar de ambos os grupos possuírem intenções diferentes, o Pé de Cerrado também leva essa missão. Na cultura popular, muitos elementos são construídos não apenas para acrescentar e abrilhantar uma brincadeira. Para que muitos ritmos ainda estivessem vivos em nossa cultura até hoje, vários mestres e praticantes lutaram contra o preconceito para que houvesse certa valorização. Em minha jornada como pesquisadora deste trabalho, observei que nada é feito apenas por fazer, tudo tem um significado, uma ideologia e uma importância nem que seja para um pequeno grupo. O Seu Estrelo pegou elementos do Cavalo-Marinho, Caboclinho e do Maracatu e implementou em sua brincadeira, e segundo Tico Magalhães “nós temos a missão de guardar essa tradição e fazê-la da melhor forma para que aqueles que o verem, possam apreciar e a valorizá-lo”. Assim também é o Pé de Cerrado, eles possuem o dever de tocar da melhor forma o Maracatu, o Coco, o Xote, o Baião e dentre os outros ritmos. Porque apesar das melodias entoadas proporcionarem um entretenimento e até muitas vezes se parecerem ingênuas, atrás de todos esses elementos, há a história de uma minoria de pessoas que acreditaram que aquela prática tinha importância à vida deles e para sua comunidade, e que seria necessário lutar contra qualquer repressão para repassá-la, divulgá-la e propor a valorização para as gerações futuras, para que ela continuasse viva, respeitada e que por fim fosse um registro cultural do nosso país.

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Apesar de Brasília ainda não ter uma identidade cultural fixa, o Pé de Cerrado trabalhou em cima dessa ausência e iniciou um movimento entre os jovens que havia o objetivo de propor a valorização dos ritmos brasileiros. O grupo não inovou, mas fez uma recriação e uma adaptação da cultura popular, mas com embasamentos de mestres, ensinando os brasilienses a apreciar não apenas o rock, mas também as raízes brasileiras. Rafael Black entusiasmado declara que “muitos grupos aqui em Brasília pegam várias culturas, bate de uma vez só no liquidificador, coloca no copo e dá o suco para o público beber. Já nós temos a proposta de utilizar várias culturas, mas pegamos o Coco, colocamos no liquidificador, damos a nossa pitada e servimos o suco. Sendo assim, colocamos da mesma maneira os outros ritmos e servimos individualmente, e é o público que vai escolher qual é a melhor opção, portanto abrimos um leque de escolhas para o conhecimento”. Além dos ritmos regionais e da composição própria, o grupo incluiu em suas práticas a valorização da música instrumental. Estudantes da Escola de Música de Brasília, os componentes do Pé de Cerrado tiveram a proposta de incluir os seus aprendizados e teorias no grupo. Segundo Pablo Ravi “a música instrumental sempre foi uma coisa muito reservada, não é uma coisa que se vê sempre em qualquer show. Foram poucas as vezes que eu consegui ver a cultura popular unida à música instrumental. Vemos isso no Clube do Choro39, mas todo mundo fica sentadinho quietinho. Foi essa coisa de estar tocando e de repente abrir para o solo da gaita, abrir para o solo do violão, dos instrumentos de percussão e da sanfona, e ao mesmo tempo incentivarmos a apreciação acompanhada com a dança, foi o que acrescentamos em nossa brincadeira”. Como o grupo é pequeno, e a proposta é a de trazer em suas apresentações vários elementos da cultura popular, o grupo também tem como característica propor a inclusão de diversos grupos culturais brasilienses em suas brincadeiras. Durante o festejo, o Pé de Cerrado tem uma equipe de apoio composta com cerca de trinta pessoas. Entre os convidados estão:

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CLUBE DO CHORO. Histórico. Disponível em: < http://www.clubedochoro.com.br/> Acesso em: 18/11/2007 “A transferência da Capital do Rio de Janeiro para Brasília trouxe para o Distrito Federal uma grande leva de funcionários públicos, entre os quais se incluíam alguns ilustres chorões. O citarista Avena de Castro, o flautista Bide, o percussionista Pernambuco do Pandeiro, o saxofonista Nilo Costa, o trombonista Tio João e o violonista Hamilton Costa, entre outros, se juntaram aqui à pianista Neuza França, à flautista Odete Ernest Dias, ao percussionista Valci e ao cavaquinista Francisco Assis Carvalho. Inicialmente, as reuniões aconteciam nas próprias casas dos chorões. Na década de 70, vieram as primeiras apresentações em espaços públicos, com grande sucesso. Um desses shows foi assistido pelo então governador Elmo Serejo Farias, que, empolgado com o que viu e ouviu, cedeu as instalações de um antigo vestiário do Centro de Convenções para as reuniões dos músicos. A partir daí, veio a decisão de fundar o Clube do Choro de Brasília, concretizada no dia 09 de setembro de 1977.”

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Seu Estrelo e Fuá do Terreiro: Em várias apresentações os grupos se apresentam juntos, unindo a pesquisa com o Samba-Pisado. Os Irmãos Saúde: dupla de palhaços que saíram do circo para o palco e o objetivo é levar o público a ser criança. Durante o espetáculo são realizadas brincadeiras musicadas pelo Pé de Cerrado com os palhaços. Os irmãos se apresentam com o Pé desde o início da banda; Centro de Tradições Culturais de Sobradinho: Dona Esilene, mulher do Seu Teodoro, trouxe o Cacuriá. A equipe realizou artesanalmente uma Burrinha constantemente utilizada no Boi-Bumbá para que o Pé de Cerrado se apresente e interaja com o público; Grupo Tamnoá: Criado por Randal Andrade e formado por crianças do Paranoá (DF), atua na valorização cultural, com ênfase no Maracatu. Em espetáculos de maior porte, reforça a percussão do Pé de Cerrado em apresentações de Maracatu, Côco e Ciranda; Mestre Jorge Marino: Mestre de frevo, há mais de 20 anos, trabalha com pesquisa de danças populares. É professor da Fundação Athos Bulcão, da Secretária de Cultura do DF. Nas apresentações sempre quando é tocado o Frevo, o mestre entra na brincadeira animando o público e ensinado os passos de uma das danças brasileiras mais complicadas de se aprender: o Frevo. Flor de Babaçu-DF e Flor de Pequi-GO: As danças folclóricas incluem Tamborde-Crioula, Bumba-meu-Boi e Cacuriá. Os grupos desenvolvem trabalho social com crianças de famílias menos favorecidas em Pirenópolis (GO) pela conscientização e valorização cultural. A Diversidade Cultural como Prática Gravado entre abril de 2003 a abril de 2004, é impossível pegar o CD do Pé de Cerrado sem se impressionar com a sua capa. Ao observar a imagem, me remeto às pinturas da artista Tarsila de Amaral40. Mas porque essa comparação? Suas obras estão marcadas pelas organizações geométricas do movimento Cubista (1907-1914), sendo que estão presentes ritmos sinuosos e volumosos. Com a presença de cores fortes, quase sempre primárias ou com tonalidades metálicas, suas invenções procuram retratar a vida urbana. Seus desenhos possuem contrastes e volumes, e podemos verificar em seu trabalho a oscilação na hora de pintar os pés e as mãos de seus personagens. Assim também é a capa do CD do grupo. Um

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TARSILA DO AMARAL. Bibliografia. Disponível em: Acesso em 20/10/2007.

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trabalhador da vida urbana está indo em direção ao seu ganha-pão, com mãos e pernas sinuosas ele é marcado por cores fortes, que são o vermelho, amarelo, verde metálico e marrom. “Essa imagem é um quadro que ganhamos do DJ e pintor Pezão. Agora fazendo uma releitura da obra, o que me parece é que o desenho é o auto-retrato de um guerreiro que está levando os troncos nas costas para fazer um tambor de crioula ou algo parecido. Ela também nos remete a imagem de um trabalhador rural e até mesmo um trabalhador da própria cultura popular. Quando eu falo guerreiro, ao mesmo tempo me baseio na nossa missão. Nos consideramos lutadores, e as nossas armas são os instrumentos musicais, assim como ele está trazendo esses troncos de árvore. A gente quis demonstrar isso. Nós estamos levando a cultura nas costas, e essa é a nossa batalha, assim como a dos mestres e alguns brincantes”. O CD é constituído por doze músicas. A faixa doze é de domínio popular e as demais são de autoria dos integrantes Pablo Ravi, Pablo Fagundes, Bruno Maciel, Bruno Ribeiro e os convidados Sério Lelis e Douglas Omena. 1. A faixa um, denominada Fogo e Mar, é um Cacuriá41. Segundo o mestre Alauriano Campos de Almeida42, a dança é uma mistura de samba, marcha, valsa e "chorado". O folguedo é típico do Estado do Maranhão e os instrumentos normalmente utilizados são as caixas, ou seja, os pequenos tambores. O Pé de Cerrado traz uma recriação ao ritmo, trazendo o acréscimo da Viola Caipira, Flauta Kenacho, Flauta Transversal, Ganzás, Pandeirões, Matracas e Tambor Onça. Nos grupos tradicionais de Cacuriá, as músicas tratam de temas prosaicos, quase sempre regionais, como a seca, os animais nordestinos e a vegetação do sertão. O Pé de Cerrado traz inicialmente a mensagem de paz. A natureza é a energia que motiva, transforma, restaura e limpa a vida humana. 2. A faixa dois, denominada Boizinho do Pé de Cerrado, como o nome já diz é um Bumba-Meu-Boi. Os instrumentos normalmente utilizados são o Maracá, Matraca, Pandeirão, Tambor Onça, Tamborinho e Tambor de Fogo. Já no Pé de Cerrado são utilizados apenas Pandeirões, Matracas e o Tambor de Onça. Na melodia, o grupo pede licença para o público para que o boizinho entre na brincadeira trazendo a 41

ENTRECANTOS. D.Teté. Disponível em: Acesso em: 25/10/2007. “O cacuriá é uma dança executada ao som das caixas do Divino - pequenos tambores. Criada há mais ou menos trinta anos. Dançado em roda nas ruas da capital do Maranhão, o cacuriá tem suas origens na Festa do Divino Espírito Santo. Após o derrubamento do mastro do Divino, que encerra a obrigação religiosa, as caixeiras fazem seu bambaê ou carimbó: é a parte profana da festa, quando as tocadoras podem "vadiar". 42

A GAZETA. Cacuriá: Nova dança passa a integrar o folclore maranhense. São Paulo, 1975. Disponível em: Acesso em: 20/10/2007.

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memória, toda beleza do Brasil. Durante a toada é explicado que esse ritmo tocado veio do Maranhão, e ao mesmo tempo eles agradecem ao Pai Eterno, a Mãe Divina e a São João por tudo que já foi na vida e por aquilo que ainda virá. Nas apresentações o grupo traz consigo a Burrinha. Ela aparece em alguns grupos de Bumba-meu-Boi e trata-se de um cavalinho ou burrinho pequeno feito de forma artesanal, com um furo no centro por onde entra o brincante. A burrinha fica pendurada nos ombros do brincante por tiras similares à suspensório, proporcionando uma maior brincadeira entre grupo e público. O Boi foi criado pelo grupo Cacuriá Filha Herdeira, de Sobradinho - cidade do Entorno localizado em Brasília. 3. A faixa três, denominada Coco43 do Instante, como o nome também já diz é o gênero Coco. A melodia fala sobre várias histórias e episódios que aconteceram no mesmo instante que os homens pisaram na Lua.

No decorrer da letra é abordada a

simplicidade das crianças ao brincar na rua, a solidão de um homem no bar, o pescador em luta do seu ganha-pão em frente ao mar, o anseio de uma idosa ao atravessar uma calçada, é abordado também, a violência urbana que acabou matando um inocente, e até mesmo um velório, furacão, divórcio e sexualidade. Os instrumentos utilizados são flautas, Alfaia, Pandeiro, Mineiro, Ganzá de Caboclinhos e o Gonguê. 4. A faixa quatro, denominada Xote dos Sonhos, é um Xote. O folguedo é uma dança típica de Portugal do século XIX. Ela foi trazida ao Brasil pelos colonizadores europeus, e é uma dança sensual, lenta e romântica, no qual é dançado em casal. O primeiro e o maior divulgador do Xote foi o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Segundo o compositor Pablo Ravi “essa música eu tinha sonhado que havia namorado uma menina que eu nunca havia visto na minha vida. De repente eu acordei apaixonado pela mulher e cadê a mulher? Voltei a dormir para vê se a achava novamente e acabei não conseguindo achar nunca mais”. A música teve participação especial do músico pernambucano, Dominguinhos, os instrumentos utilizados são a Sanfona, Violão, Gaita, Flautas, Baixo, Zabumbatera, Triângulo e efeitos instrumentais. 5. A faixa cinco, já descrita anteriormente é denominada Oração. E o seu gênero musical é uma Ciranda. Ela foi uma homenagem a Matri Sadam, localizado em Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros (GO). A música tem muita influência dos indígenas. Ela 43

VOLPATTO, Rosane. Disponível em:< http://www.rosanevolpatto.trd.br/dancaxote.htm> Acesso em: 25/10/2007.

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invoca a força e a energia espiritual, mas ao mesmo tempo é uma forma de agradecimento a Deus e a mãe-divina, que é a Natureza. Os instrumentos utilizados são: Violão, Violão de 12 cordas, Deedjerdoo, Baixo, Caixa, Alfaia, Tambor de Fogo, Mineiro e o canto indígena da tribo TinguiBotô (AL). 6. A faixa seis, denominada Água no Mundo, é uma mistura de Afoxé com Baião. O grupo tenta alertar a população de que está acabando a água no mundo. E ao mesmo tempo conversa com o público: Se acabar a água o que vou fazer? Sendo assim, eles lembram que é necessário evitar o desperdício e a poluição. E o melhor que podermos fazer pelo bem na natureza, assim o façamos. Os instrumentos utilizados são a Flauta, Sanfona, Violão, Baixo, Zabumbatera, Ganzá de Caboclinhos, Mineiro, Triângulo e Ilú. 7. A faixa sete, denominada Paraibola, é uma Embolada44. Gênero musical que tem origem no Nordeste brasileiro, mais freqüente na Zona Litoral e mais raramente na zona rural, ele possui características de ser uma melodia declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos. Para Câmara Cascudo, (dicionário do folclore), a embolada tem como característica o refrão e a estrofe de seis versos. Já para Leonardo Mota 45, seria um martelo, com estrofe de dez versos com cinco sílabas. Um dos principais músicos da Embolada foi o pernambucano Manezinho Araújo, que fez grande sucesso nos anos 40 e 50 com suas emboladas, com destaque para "Veja como o coco é bom", "As metraia dos navá", "Quando a rima me fartá" e "Cuma é o nome dele", entre outras composições. A composição do Pé de Cerrado retrata a vida de um músico que narra através dos versos, sua história e as dificuldades ao viajar pelo Brasil. Enquanto o músico segue a viagem, conhecendo as cidades e vislumbrando a paisagem do seu país, ele critica a ambição dos gringos em terceirizar e privatizar as terras e a mata brasileira, e afirma, que enquanto o mundo não acabar e o Brasil não ser todo vendido, eles vão pagar para ver o oco, ou seja, eles não irão desistir até acabar com tudo.

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INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIN. Embolada. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: Acesso em: 25/10/2007) 45

MOTA, Leonardo. Cantadores; poesia e linguagem no sertão cearense. 3ª ed. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, [1962].

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Os instrumentos utilizados são a Sanfona, Violão de sete cordas, Violão, Gaita Diatônica, Baixo, Zabumbatera, Pandeiro, Alfaia e o Gonguê. 8. A faixa oito, denominada Rapidinha, é um Baião instrumental. É uma música veloz e os instrumentos utilizados são a Sanfona, Violão, Gaita Diatônica, Baixo, Zabumbatera e Triângulo. 9. A faixa nove, denominada Maracatu Pra Tu, é um Maracatu instrumental. A melodia é uma homenagem ao gaitista brasileiro, Gabriel Grossi. Os instrumentos utilizados são a Gaita Cromática, Baixolão, Baixo Elétrico, Tamboritos, Caixa, Alfaia, Gonguê, Mineiro, Tambor de Fogo, Abê, Tambor de Onça e Tamboritos. 10. A faixa dez, denominada Clarão, é um Baião. A música retrata a idéia de que cada hora é um milagre e que tem o seu brilho e valor. Cada segundo que temos na vida, deve ser aproveitado como se fosse um tesouro. Muitos indivíduos ousam alcançar o futuro, mas o tempo devora tudo. Os instrumentos utilizados são Violão, Triângulo, Sanfona, Flautas, Baixo e Zabumbatera. 11. A faixa onze é denominada Filhos do Cerrado, e é um Frevo. A melodia retrata a idéia de que o grupo é um filho do Cerrado, que canta de coração para as pessoas que possuem sede de alegria e animação. Eles se autodenominam como seis calangos que plantaram uma semente de paz e união, na Terra mãe. Eles anseiam a liberdade, felicidade e luz. E emitem a mensagem de que o amor move tudo, vira fogo, canção, ventania, traz sossego, alivia a solidão. 12. A faixa doze, denominada Vamo Simbora, é um Tambor de Crioula de Domínio popular. Com participação do Mestre Felipe (MA), é iniciada a brincadeira. Ele inicia a toada dizendo: “São Benedito é um santo preto, que é o dono da brincadeira de tambor, que é feito a machado, sentado a fogo, tocado a murro, dançado a cosso”. Os instrumentos utilizados são o Tambor Grande, Socador e Crivador.

Reeducando o Público

"O Pé de Cerrado tem um trabalho bem diferenciado, mas não podemos defini-lo como um grupo de cultura popular. Eles são músicos profissionais e sua base é mais ligada como, por exemplo, a grupos como o Quinteto Violado, que não são grupos tradicionais. Claro que eles têm um contato muito intenso com a cultura, mas para ser um grupo de cultura popular já é um outro passo. Eles possuem uma preocupação e uma busca em pesquisar as

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raízes e que acabaram incluindo isso dentro do grupo, mas que é uma outra estrutura. Mas é importante ressaltar que o grupo não deixa de ter uma importância imensa aqui em Brasília, pois ele ajudou a valorizar muito a nossa cultura e talvez, eles sejam um dos maiores conjuntos de importância aqui dentro da cidade quando a gente começa a falar de cultura popular, pois eles ajudaram a abrir um caminho que anteriormente não havia. Mas ser ou não ser, não tira o mérito do trabalho. Por exemplo, o Chico Sciense & Nação Zumbi não é um grupo de cultura popular tradicional, eles eram muito ligados ao mundo comercial, tinha umas raízes populares loucas, pois o Maracatu deles ao comparar com o do tradicional é muito diferente, mas a importância que eles possuem é imensa, pois eles foram os divisores das águas dentro de Pernambuco e a importância que ele tem para cultura popular é muito profunda”, comenta Tico Magalhães. O Pé de Cerrado foi um dos primeiros grupos de Brasília, do século XXI, que passou a reeducar o público e contribuiu para a popularização da cultura popular. Mas como assim? Segundo o integrante Bruno Maciel “já vi muita gente que parou de ir às trances da vida para dançar quadrilha, Maracatu, Frevo e Xote. Nós tínhamos um evento semanal que era a Ensaio Aberto, que durou um ano. Segundo minha concepção, nós iniciamos um processo de doutrinação. Todo mundo só queria Baião e a gente falou, a gente vai continuar a tocar o Maracatu, no inicio havia muitas reclamações, mas chegou em um momento que as pessoas começaram a se acostumar e a apreciar a diversidade cultural do nosso país. Antigamente os sinônimos de forró eram dançar coladinho e beijar na boca, e hoje, eu já observo que o público tem mais respeito e admiração, pois a cultura brasileira tem muito mais a ser oferecido e que deve ser respeitada. E apesar de ainda haver muito estranhamento e preconceitos, nós somos constantemente chamados para tocar nas festas do Arena e em festas de Forró". "A gente hoje vê playboy dançar Ciranda, patricinha que está doida para ouvir e cantar o Côco, então essa nova apreciação tem sido fantástica, porque sabemos que ajudar a valorizar nossa cultura é uma missão nossa, pois fazemos bem à vida de muitas pessoas com essas músicas. Muitas vezes nem temos noção, mas quando a gente consegue se conectar com as coisas espirituais aí nós conseguimos enxergar literalmente o bem que a nossa recriação tem feito”.

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Projetos

Ensaio Aberto: Todas as quartas-feiras, de setembro de 2002 a setembro de 2003 o grupo realizou semanalmente um Ensaio Aberto, na Associação dos Funcionários do Banco de Brasília. O projeto possuía um repertório amplo com um estreito contato com o público. Houve participação de músicos consagrados como Hermeto Pascoal, Carine Corrêa, Mário Filho e Teófilo Dias. Foram convidados também grupos de cultura popular de Brasília e tribos indígenas do estado de Pernambuco, Bahia e Alagoas. Os ingressos eram a preços populares e havia desconto caso houvesse doações de alimentos. O público era composto em média por cerca de 1.000 pessoas. As tribos Fulni-ô, Tingui-Botó, Pankararu, Xavante receberam alimentos arrecadados pelo projeto. Mais de 40 toneladas arrecadadas foram distribuídas a diversas aldeias. A parceria com a FUNAI viabilizou o transporte até as aldeias. Várias tribos participaram do projeto. Com cantos e danças que encantaram o público, numa oportunidade inédita, no Distrito Federal, de divulgação da cultura indígena e das etnias brasileiras. Projeto Pé Convida: Realizado no ano de 2004, o projeto era uma realização independente da banda. O objetivo era a união de grandes instrumentistas da cidade, que tinham o intuito de homenagear grandes mestres da música brasileira, sempre nas últimas quartas-feiras de cada mês. O projeto era realizado na sala Cássia Eller, na Funarte, em Brasília. Os espetáculos eram divididos em duas partes. A primeira, de maior duração, acontecia no teatro, com a participação do convidado do mês e música instrumental. Na segunda, outros convidados executavam números folclóricos do lado de fora do teatro, em volta da fogueira.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caindo na Rede de Brincadeiras

Desde o século XIX, a brasilidade tem sido moldada pelos os brasileiros, através da elaboração de símbolos, mitos, melodias e de brincadeiras com a finalidade de construir uma identidade e um ideal nacional. Segundo o presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, José Almino de Alencar46, quando iniciado o Segundo Reinado (1831-1840), o imperador D. Pedro II, promoveu a pesquisa oficial do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o objetivo de que fosse realizado à caça oficial do nosso passado, ou seja, passariam a ser enumerados os nossos sítios históricos, narrados os incidentes que poderiam ser denunciados como patrióticos e decretadas expedições científicas para o interior do país. A partir desta pesquisa, surgiu uma gama de estudiosos, ensaístas e publicitas, como por exemplo, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, dentre outros, com o objetivo de estudar elementos da cultura do Brasil, promovendo um debate emblemático sobre a identidade de nós brasileiros que está em vigor até hoje. E com todo o anseio de conhecer a verdadeira história das raízes de nossa etnia e os porquês da nossa diversidade cultural, estudiosos e brincantes “se uniram” para tornar vivas as caras do nosso Brasil. Com esta luta pelo autoconhecimento, aos poucos foram tendo visibilidade histórias, expressões e práticas culturais locais e regionais que anteriormente eram ignoradas e até mesmo pressionadas para o seu fim. Aos poucos, o Governo Federal foi abrindo e ampliando os seus espaços para as discussões sobre o nosso patrimônio e, em 2001, na 31ª Conferência Geral da Unesco, foi adotada a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, com o objetivo de firmar a diversidade como um patrimônio comum da humanidade. Com a ampliação das discussões, a luta de resistência cultural brasileira foi ganhando força. Apesar do processo ainda ser lento e fraco - pois praticantes lutaram anos contra a repressão que ainda existe - comunidades têm levantado e batalhado para que suas práticas culturais ganhem valor, em meio a tantas já valorizadas e registradas.

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ALENCAR, José Almino de. Mesmice e Novidades: Identidades, Diversidades. In: MINISTÉRIO DA CULTURA - SECRETARIA DA IDENTIDADE E DA DIVERSIDADE CULTURAL. Diversidade Cultural Brasileira. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, pág 9-12.

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Retomo o pensamento de Pascal47 sobre a diversidade cultural. “Uma cidade, um campo, de longe, é uma cidade e um campo; mas à medida que alguém se aproxima, são casas, árvores, telhas, folhas, ervas, formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso se envolve sob o nome de campo.” Assim é o Brasil. Antigamente, o que era visto superficialmente, foi ganhando novas observações e olhares. O que era analisado de longe, aos poucos foi ganhando vida e reconhecimento, nem que seja por uma pequena parte da sociedade. E foi o que aconteceu com a cultura brasileira também, pois com o anseio de conhecer seu país, estudiosos começaram a valorizar os estudos referentes às nossas práticas culturais. Eis que passaram a ser moldadas e divulgadas as nossas identidades. E a diversidade passou a ser observada, analisada e admirada, pois o Brasil não era apenas uma terra de índios e negros escravizados e sem cultura, mas sim uma terra em que mana “leite e mel”, rica no Samba e na Congada; nas Cavalhadas e no Tambor de Crioula; na Catira e no Maracatu além de outras manifestações. Mas a modernidade (no sentido da industrialização) também passou a ter força, e o capital produtivo começou a se ampliar, e os avanços tecnológicos dos meios de comunicação e de transporte se intensificaram. A construção de estradas de ferro, a rapidez, a segurança e o conforto dos transportes aumentavam dia após dia. A distância entre as capitais e Estados diminuíram. As inovações nos meios de comunicação, com o aperfeiçoamento do telégrafo também colaboraram para que o alcance rápido entre as regiões ganhassem força, contribuindo para uma ágil troca de informações. A forma de organização da sociedade também passou a sofrer modificações, e a migração da comunidade rural para a cidade se tornou relevante. Segundo Walter Benjamin, 48 os indivíduos passaram a ter novas formas de se relacionar e a modernidade implementou um novo elemento nos relacionamentos nas grandes cidades: a impessoalidade. E com toda a evolução, o tradicional e o moderno passaram a fazer parte de um mundo de divisões, ou seja, passou-se a conceber uma “alta cultura” - que nos remete as elites - a “cultura popular” – que é a do povo - e a “cultura industrial” – que é embasada na cultura de mercado. Com este processo de modernização, as manifestações folclóricas do nosso país passaram ser ameaçadas de extinção. Não se sabia se a cultura popular, ou seja, se as práticas

47

48

Pascal: Pensées, Édition Garnier, Paris, 1955, pg. 65.

BENJAMIN, W. Charles. Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1995 (Obras escolhidas, v.3).

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culturais do povo iriam resistir à pressão da indústria cultural. Será que a modernidade e a tradição poderiam se relacionar sem perder suas referências e identidades? Segundo Hermano Vianna, muitos folcloristas tradicionalistas ou mesmo jornalistas apaixonados por “raízes” os que levam ao pé-da-letra – simplificando – a primeira frase da definição de folclore do Dicionário de folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (“É a cultura do popular, tornada normativa pela tradição”), olham com horror para essas novas festas, considerando-as apenas uma deturpação da verdadeira cultura tradicional local, da verdadeira ciranda, do verdadeiro boi, e assim por diante. Muitas vezes seria até uma perversão, imposta pela indústria cultural (...) para destruir aquilo que o povo deveria cultivar como verdadeiro, tendo uma atitude de respeito diante das regras recebidas, a tanto tempo, de geração a geração. Seria então necessário preservar o verdadeiro tradicional, indefeso diante da avalanche dessas novas tradições bastardas, que não poderiam de maneira alguma ser consideradas verdadeiramente tradicionais. As discussões emblemáticas referente à preservação da cultura popular de raiz ainda não se têm uma resposta. Ao remetermos aos dias atuais, podemos verificar que o popular na América Latina não é o mesmo quando apresentado pelos folcloristas, antropólogos, comunicólogos e pelos políticos nas décadas passadas. Muita coisa mudou. A tecnologia, o excesso de informações, experiências e conhecimentos foram influenciando os indivíduos. O meio social foi contribuindo para novas apreciações a partir da exigência e dos modismos emitidos pelos meios de comunicação e pelo avanço tecnológico, e a tradição depositada pela criatividade do homem camponês foi se modificando ao lado da modernidade. A industrialização e a mídia contribuíram para que o popular fosse visto, agora, de forma diferenciada. Muitos folcloristas acreditaram que novas maneiras de olhar e praticar as brincadeiras de nosso país fosse uma ameaça às tradições populares. Segundo a cientista social Vivian Catenacci49, a mídia, na medida em que trabalha com as manifestações populares - mito, folhetim, festa, humor, superstição - incorporando-as à cultura hegemônica, assume um papel de concorrente do folclore. O popular é visto pela mídia através da lógica do mercado, já para os comunicólogos não é o resultado das diferenças entre locais, mas da ação difusora e integradora da indústria cultural. O popular é dessa forma o que vende, o que agrada multidões e não o que é criado pelo povo. O que importa é o popular enquanto popularidade. Além disso, para o mercado e para a mídia, o 49

CATENACCI, Vivian. Cultura Popular: entre a tradição e a transformação. São Paulo em Perspectiva, 15º Volume, São Paulo, 2001. Disponível em: Acesso em 25/10/2007.

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popular não interessa como tradição, ou seja, como algo que perdura. Ao contrário, o que tem popularidade na indústria cultural deve ser, após atingir o seu auge, relegado ao esquecimento, a fim de dar espaço a um novo produto que deverá ser acessível ao povo, ser do gosto do povo, enfim, ser popular. A idéia de popular foi desvirtuada. As táticas da mídia ditam o que deve ser valorizado ou não, o que é bom ou ruim, o que é divertido ou não. A idéia de que a verdadeira cultura do povo é algo inferior “se intensificou”, e assim o seu conceito e a importância na sociedade se distorceram, em atribuições como algo sem sucesso, antigo, feito por gente pobre e sem graça. No Brasil, a cultura nunca foi uma questão prioritária. Muito pelo contrário, sua anunciação em alguns locais - por exemplo, em determinados meios de comunicação provoca, não generalizando, uma sensação de mal-estar. Sua discussão sempre fica no final da fila. Ao observar as programações televisivas, há um enorme contraste ao comparar com o tempo concedido aos temas econômicos. O espaço reservado à cultura é curto, cheio de informações leves e superficiais, suas temáticas são as últimas a serem abordadas, comentadas e discutidas. Apesar de toda problemática, a modernidade em determinados momentos tem também contribuído intensamente para a divulgação e para o fazer da cultura popular, pois tem possibilitado uma maior comunicação entre as próprias práticas culturais das mais diversas regiões, proporcionando a quebra de preconceitos, por exemplo, que a verdadeira cultura tradicional não se relaciona e não troca informações com outras práticas. Mas ao mesmo tempo, tem possibilitado um espaço para a discriminação. Segundo Canclini, o popular é, nessa história, o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegaram a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos “legítimos”, os espectadores dos meios massivos que ficam de fora das universidades e do museus, “incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e estilos. Para o autor, o moderno se opõe ao tradicional da seguinte forma: Moderno

Tradicional

=

Culto

=

Popular

=

Hegemônico

=

Subalterno

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Os modernizadores extraem dessa relação a moral de que seu interesse pelos avanços, pelas promessas da história, justifica sua posição hegemônica, enquanto o atraso das classes populares as condena à subalternidade. Se a cultura popular se moderniza, como de fato ocorre, isso é para os grupos hegemônicos uma confirmação de que seu tradicionalismo não tem saída; para os defensores das causas populares torna-se outra evidência a forma como a dominação os impede de serem eles mesmos. Mas afinal, a cultura popular perde sua identidade quando ela utiliza elementos da modernidade? Para Carlo Ginzburg50 assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um. Sendo assim, a cultura em geral não é algo estático, no decorrer do tempo ela sofre transformações pelos indivíduos que de alguma forma a praticam. Existem estudiosos e até mesmo brincantes que acreditam que uma cultura não pode influenciar a outra, e que ela deve lutar contra o controle da modernidade, mas para Hermano Vianna, a cultura é uma obra aberta, pois grupos diferentes sempre incluem novidades, que podem ou não vir a ser adotadas por todos os praticantes e virar uma regra. Contudo, nas práticas culturais sempre há espaço para entrada e saída de conhecimentos e particularidades de uma ou mais culturas. Com a comunicação entre as sociedades e com as trocas de seus conhecimentos, ideologias e visões, as culturas e o seu fazer vão sendo modificadas mesmo que implicitamente, por mais que haja resistências por parte de quem vê, faz ou pratica. Para muitos apaixonados pela idéia de preservação das “raízes”, modificar a cultura de nossos antepassados é uma perversão, ou seja, é uma tradição bastarda e que não pode ser considerada como tradicional ou como verdadeiro. Mas afinal o que é verdadeiro? O que é o tradicional? Para tentar responder, podemos citar a dramatização do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, no III Festival Brasília de Cultura Popular. Na abertura do evento foi realizado o espetáculo “O Encontro da Moderna Criatura com a Santa Tradição”. O objetivo era reunir, em uma única brincadeira, as novas e modernas criaturas criadas pelo Seu Estrelo com as tradicionais e fantásticas figuras do Cavalo-Marinho Boi Pintado do Mestre Grimário. A idéia foi apresentar ao grupo pernambucano e também ao público, os elementos herdados do CavaloMarinho no Seu Estrelo, além das adaptações que estão sendo realizadas com estes mesmos elementos no conjunto.

50

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes, Companhia das Letras. 1995, pg 25.

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Em certo momento os músicos, ou melhor, o “Banco” do Cavalo-Marinho tocava para um personagem chegar e brincar com o público, depois o “Tronco” tocava para que um personagem do mito chegasse e se apresentasse com o intuito de mostrar especificamente, aos mestres, como têm sido trabalhados os elementos herdados pelo grupo, na capital federal. Ao final, unidos, a moderna criatura brincava com a Santa Criação, e ambos festejavam com o público, como se fossem um só. A partir desta iniciativa, conota-se que os mestres Grimário e Salustiano que estavam presentes no local, aprovaram e abençoaram a inovação que o Seu Estrelo realizou, porque se não tivessem aceitado a inovação, não estariam unidos fazendo a brincadeira. Na minha concepção, são os mestres e os grupos de tradições que tem que dizer se a cultura pode ou não pode ser modificada. A partir do momento em que eles aceitaram a transformação, a brincadeira pode continuar a ser realizada. Tico Magalhães comenta que “o mestre Salustiano ao ver os arcos – que simbolizam um arco-íris – do Cavalo-Marinho nos disse que a forma que o grupo tem utilizado o arco, ás vezes é muito mais explorado do que os próprios grupos de raízes. Ele nos falou que a gente faz um movimento conhecido como Rosa do Vento, que há muito tempo deixou de existir dentro dos grupos tradicionais e que inconscientemente a gente tem feito. E como o mestre é muito inquieto, ele achou interessante ver novos movimentos, mas ao mesmo tempo ver um movimento tão tradicional que não existe mais. E é engraçado isso, pois dentro de um movimento que criamos, nós acabamos voltando e recriando. E a nossa recriação já passa a ter um novo foco, pois pegamos uma coisa que estava morta e damos novamente a ele, a vida”. Os brincantes do Seu Estrelo sabem que suas práticas são frutos de uma inovação e de recriação baseada em referências, embora, para muitos observadores e futuros praticantes, aquela brincadeira seja tradicional. E eles sabem também, que suas práticas são um fruto da hibridação. No entanto, o que para mim hoje pode ser considerado uma recriação, amanhã para o outro, pode não ser. O que hoje para mim é tradicional, pode ser uma recriação para outro brincante do passado. Desta forma, afirmar muitas vezes o que é tradicional e o que é a verdadeira cultura popular é muito relativo. Depende daquele que a observa e a pratica. Seguindo o raciocínio de Vianna, nossa cultura popular faz parte de uma rede de brincadeiras brasileiras. Cada festejo é um nó que fortifica esse circuito, estando assim, interligada a todas as outras brincadeiras. Tudo circula entre as festas, na rede das festas: pedaços de melodias; versos; instrumentos musicais; detalhes de indumentária; falas de encenações teatrais. Cada mestre de brincadeira, ou cada brincante, não atua como o espectador passivo de uma tradição secular sobre a qual não tem nenhum controle e só pode

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preservar. Seu papel é mais de um DJ, ou qualquer outro produtor musical cibernético, que faz suas próprias colagens a partir de determinado conjunto de elementos: o gigantesco e multiforme banco de dados da biodiversidade brincante brasileira. Cada mestre recombina os retalhos de várias outras brincadeiras, justamente por isso as brincadeiras estão em permanente transformação, confusão. Sendo assim, podemos verificar que nenhuma tribo, mesmo a de aparência mais primitiva, viveu isolada culturalmente. De alguma forma, por mínima que tenha sido, ela sofreu alguma influência dessa diversidade cultural que temos. Então, a cultura não é algo homogêneo e que não pode se misturar, se ela fosse caracterizada desta forma, seu sinônimo seria de petrificado ou morto. Podemos compará-la como uma massa de bolo que está prestes a assar. Ela tem sua receita original, mas caso o boleiro desejar implementar mais alguma substância, não em excesso, ele pode se transformar em um bolo mais saboroso, ou seja, ele foi modificado, mas não perdeu as verdadeiras essências da receita original. É importante haver troca e experiências, só a diferença não basta. Um determinado grupo pode inventar uma coisa diferente aqui, mas ao mesmo tempo outro grupo pode inventar uma outra coisa lá e, futuramente, essas práticas diferentes podem se unir e produzir uma novidade importante para aquela sociedade ou até mesmo para a humanidade. Para o escritor Gilberto Velho 51 a essência cultural é a permanente transformação. Mas é necessário e de extrema importância também à preservação dessa rede, para que ela possa crescer firme e saudável e que haja a possibilidade das informações circularem internamente e não apenas um nó específico.

A Circulação das Brincadeiras Populares em Brasília

Brasília, a mais nova cidade conhecida como patrimônio cultural da humanidade, tem passado por um processo importante e intenso, desde o final dos anos 90, no que se refere à valorização da cultura popular. Fruto de sonhos de uma política, da imaginação de um arquiteto, dos traços revolucionários de um urbanista, a capital é a mais pura prova de que o Brasil é rico, híbrido e diversificado.

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VELHO, Gilberto. Unidade e fragmentação em sociedades complexas. In: Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edtor, pg. 11-30, 1994.

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Segundo dados do IBGE52, 46.7 % da população que reside em Brasília, são nascidos na capital e 73.2% dos habitantes possuem menos de 40 anos de idade. Através das estatísticas, nota-se que há a ausência de uma “certidão de nascimento” cultural, visto que a cidade é muito nova e ainda não teve tempo suficiente para criar raízes. Esses dados sugerem que Brasília não possui uma identidade, devido à mistura das correntes migratórias durante a construção da capital. Incentivada pelo governo de Juscelino Kubitschek, aos poucos a onda de êxodos dos mais variados pontos do Brasil, cresceu para o Planalto Central. Seria a capital federal um caldeirão de culturas e práticas, dificultando a constituição de uma identidade própria? Pessoas de todo o país migraram para a nova cidade. Costumes e práticas regionais passaram a estar presentes. Forrós, serestas, rocks, sambadas de terreiro, sambas de rodas baianos, funk, sertanejo, Hip Hop, rap, pagodes cariocas, igrejas Evangélicas, Católicas e terreiros de Umbanda e Candomblé apresentam-se nas ruas e esquinas de Brasília. Consagrada há muitos anos como a capital do rock, Brasília fora anunciada. E as raízes, hibridações e influências em nossa terra, que são típicas do nosso país, por onde estão? Cansados da ausência de um jeitinho brasiliense, mas ao mesmo tempo interligada com as origens; brincantes, mestres, estudiosos e militantes tem lutado para que nossa cidade construa um novo cenário cultural, mas tendo como referência os vários regionalismos. Além do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e o Pé de Cerrado, multiplicaram-se os grupos que batalham para a valorização de práticas culturais brasileiras. Hoje posso afirmar que Brasília não é mais conhecida apenas como a capital do rock, mas também como um palco do nascimento de grupos de recriação, constituído por jovens, que possuem como foco a cultura popular tradicional. Mas porque a definição de grupos de recriação? É muito perigoso tachar movimentos e práticas culturais, mas esta denominação foi criada pelo servidor público do Ministério da Cultura, Hernesto Olivença. Mas por quê? Quando um grupo chega ao Ministério para se incluir dentro de um edital ou em algum projeto do MinC, é necessário que esses grupos se autodenominem, como por exemplo, de Cultura Popular, Circo, Dança e entre outras. E foi o que aconteceu com Tico Magalhães, atualmente o pernambucano é agente cultural de Brasília, e ao pleitear o trabalho, ele teve que se padronizar nas categorias do MinC, no âmbito da cultura, o que ele seria. Em todas as opções, Tico foi definido como integrante do Grupo 52

IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2005.

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Especial, que incluíam também os negros e homossexuais. Ele não se categorizou como Cultura Popular, porque no seu dia-a-dia, sua prática cultural inclui o circo, a dança, o teatro e a música. Podemos citar como exemplo também, a criação de categorias até mesmo em Recife. A prefeitura da capital passou a definir os grupos culturais em diversas classes: Maracatu Rural, Maracatu Nação e entre outros. Tem grupos que era misturado, ou seja, que tinha os instrumentos de Maracatu Rural, mas que também tinha elementos do Nação, e esses conjuntos foram perdendo característica tradicionais para poderem se encaixar numa categoria que o governo criou. Mas como acreditar na idéia de que a cultura tradicional é hegemônica se os próprios grupos de raízes tiveram que abrir mão de alguns elementos para se encaixar nas divisões que almejavam? E qual é a relação da construção de categorias ao comparar com a definição de recriação citada acima? Segundo Tico Magalhães “Hernesto achou que essa palavra definiria a importância desses grupos que não são tradicionais, mas que trabalham com cultura popular de uma forma tradicional, ou seja, que não possuem o tempo de tradição, mas que há uma tradição, que há o respeito e que as mantêm e as perpetuam mesmo que seja de uma forma diferenciada, ou seja, brincando, recriando e não copiando. A gente acaba tendo um rótulo e que se torna importante, porque se nós não somos tradicionais seremos o que?” e acrescenta “um grupo de recriação não é um grupo qualquer, que só porque toca Maracatu, se defini assim. Esses conjuntos têm a ligação com a tradição e com o passado dos mestres, e também com os ensinamentos e com o porquê daquela prática. Mesmo que eu more em Brasília e toque Maracatu, eu tenho que saber por que aquilo que eu faço é realizado daquela maneira. Nada que você for pegar de uma cultura é em vão, tudo tem um significado, desde a maneira de segurar uma baqueta, até como eu danço, de como eu faço um passo e como canto. Então é importante entender o porquê o Maracatu é usado dessa maneira, para que eu não quebre elementos e características de brincantes que lutaram anos para preservar aquela prática e inconscientemente divulgá-la de uma forma distorcida. Então a tradição na verdade é um fio condutor que se você for puxando, ele nos leva até o passado e se de alguma forma eu quebrar esse fio, vai ter um momento que eu vou olhar para trás e não vou ver nada. E muita coisa que eu brinco hoje, eu não vou entender amanhã e nem a sua história. Então quanto mais forte esse fio estiver e eu puder conduzi-lo para o passado e o presente será importante entendeu? Então os grupos mais fortes de recriação, possuem uma tradição”. Posso citar como exemplo, a Associação Cultural e Ambiental Tamnoá, criado em 2003, que tem o objetivo de diminuir o envolvimento de crianças, adolescentes e jovens nos

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tipos de crimes registrados do Distrito Federal, resgatar crianças de baixa renda, fomentar o aprendizado das culturas brasileiras por meio do aprendizado musical, despertar o olhar por meio da fotografia e aumentar a auto-estima de cada integrante. O Tamnoá, sigla que vem de Tambores do Paranoá, é uma Organização não governamental - ONG que oferece aos jovens da comunidade das cidades-satélites de Brasília, Paranoá e de Itapuã, aulas gratuitas de montagem de instrumentos, aulas de música e de fotolata – que é uma câmara fotográfica feita de lata. Além do acompanhamento sócio-pedagógico com as crianças e adolescentes participantes do projeto. Durante os encontros da ONG são ensinados aos participantes variados ritmos de nossa cultura popular, entre elas, Coco, Maracatu e Congada. Mas pelas ruas de Brasília, devido os toques e batuques constantemente apresentados em eventos, o grupo é conhecido como o conjunto brasiliense de Maracatu do Baque-Virado. Os participantes tocam diversos instrumentos como tambor, alfaia, abê, caixa e gonguê. E ainda há a presença da rainha Josefa Leonardo de Oliveira, de 78 anos. O Tamnoá apesar de tocar Maracatu, eles não são um grupo de cultura popular tradicional, mas sim um grupo de recriação. Eles pegaram o ritmo tradicional Baque-Virado, passaram a ter referências de mestres e brincantes e a transformaram. E qual é a ligação da idéia de recriação abordada por Hernesto ao se referir a alguns grupos de cultura popular de Brasília, com a noção de hibridismo cultural? Segundo minha concepção, posso afirmar que a idéias de recriação e hibridação são muitos semelhantes, pois a partir da troca de elementos, podem surgir novas ações. No dicionário Aurélio, o hibridismo é proveniente do cruzamento de espécies diferentes, ou seja, a partir de duas ou mais culturas pode surgir uma nova. Para Canclini, a hibridação é um processo sociocultural no qual, estruturas e práticas discretas que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Como o mundo, devido à industrialização, tem facilitado a conexão entre as mais diversas pessoas, costumes e mundos, a fácil troca de experiências tem proporcionado o surgimento de novas ações culturais. O processo de hibridação tem uma importante contribuição no meio social, pois tem diminuído as desigualdades entre as culturas e tem contribuído para que a comunidade se aproprie, conheça e pratique não só a sua, mas ao mesmo tempo, a de outros. Mas exige-se cuidado com o que está sendo mexido, pois a cultura é muito mais intensa e ideológica do que apenas um entretenimento. O escritor ainda afirma que a hibridação, como processo de interseção e transações, é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se converta em

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interculturalidade. As políticas de hibridação serviriam para trabalhar democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza as guerras entre culturas. Podemos escolher viver em estado de guerra ou em estado de hibridação. Viver harmoniosamente e aceitar as diferenças são escolhas a serem tomadas. Imagine se os homens escolhessem viver sem aceitar e suportar o diferente? O mundo já estaria em total guerra. Assim é o que acontece com a cultura também, o processo exige uma conexão entre os indivíduos, caso contrário os duelos seriam excessivos e a sociedade passaria por um processo de catástrofe. Então, a partir da união de elementos e práticas, há possibilidade do surgimento de uma sociedade mais reflexiva, menos preconceituosa e mais disposta a aceitar as mais diversas tradições. Sendo assim, unir várias tradições e juntas, criar novas práticas é possível, e a cada dia este processo tem crescido mais não só em Brasília, mas em todo o Mundo. Através da hibridação, você pode recriar costumes e brincadeiras inovadoras, mas é importante relembrar que a inovar, não significa esquecer as origens, tradições, resistências e histórias. E como prova de que Brasília tem aberto um espaço interessante para as culturas brasileiras, vamos verificar abaixo o nome de alguns músicos, grupos e ONGs brasilienses que tem trabalhado em cima da recriação, a cultura popular tradicional: Antônio Bráulio de Carvalho: Nascido na cidade Mineira Três Corações, Antônio tem uma relação com a viola que remonta à infância e aos festejos de Folias de Reis, com os quais sempre esteve envolvido. Estudou na Escola de Música de Brasília, com o professor Marcos Mesquita e, em 2005, participou do Festival Internacional de Verão da Escola de Música de Brasília, sob a coordenação do professor Roberto Corrêa. Beirão e os Filhos de D. Nereide: Cearense de nascimento, brasiliense por formação, Beirão participou dos concertos musicais que marcaram época nas décadas de 70 e 80, divulgando a música nordestina juntamente com o seu “Projeto Cordel”, em Brasília. Sem abandonar as influências nordestinas como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, dentre outros, incorporou ao seu estilo influências da MPB e do Rock brasileiro, criando um estilo próprio que vai além da simples “fusão” e incorporando elementos estruturais criando sonoridade envolvente, dançante e bem-humorada, marcas registradas do seu show. Bumba-meu-Boi do Seu Teodoro: Nascido em 1920, no Maranhão, Seu Teodoro veio para Brasília em 1963 e, desde então, mantém a tradição do Bumba-Meu-Boi no Centro de Tradições Populares, em Sobradinho. Começou pelo boi de zabumba e desde o ano de 1979 toca o estilo de pandeiro grande, que é o estilo tocado na região de Pindaré, no noroeste

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do estado. O grupo tem em média 40 brincantes e tem sua excelência musical extraída de ganzás, matracas, bumbos e pandeirões. Cacai Nunes: Considerado pernambucano de Brasília, é parte de uma geração de músicos que bebem na fonte do tradicionalismo, para desenvolver uma linguagem contemporânea. Seduzido pela riqueza do instrumento, Cacai Nunes tratou de explorar suas possibilidades, agregando de maneira peculiar e contemporânea, diversos ritmos da música brasileira. O músico explora a Viola fazendo uma fusão moderna em ritmos como o choro, samba, baião, tango, entre outros. Centro Cultural e Social Grito de Liberdade – Mestre Cobra: Constituído em 15 de setembro de 2005, trata-se de uma associação sem fins lucrativos. E tem como principais finalidades promover a defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao patrimônio cultural, histórico, artístico e natural, operando em linhas de ações prómelhoramento da qualidade de vida da sociedade; criar mecanismos que colaborem para implementar a prática e disseminação de artes da cultura negra brasileira; desenvolver projetos culturais em geral, e em particular, os que possam impulsionar a prática da Capoeira em todas as suas modalidades, para crianças, jovens, adultos e idosos, com a cuidadosa preservação das raízes desta arte popular brasileira, com os seus costumes, metodologias de treinamento, respeitando os ensinamentos dos velhos mestres transmitidos através das gerações, desde a escravidão no Brasil; realizar, organizar, promover ou participar de eventos culturais, como shows, debates, conferências, seminários, cursos e congressos; preservar e promover a raça negra; manter serviços de assistência social às comunidades mais necessitadas. Cacuriá Filha Herdeira: Dança folclórica típica do Maranhão. Foi criada há mais de 30 anos e nasceu a partir do Carimbo de caixa, tocado na Festa do Divino. O grupo Cacuriá Filha Herdeira foi fundado em Sobradinho, em maio de 1993, por Dona Eliense de Fátima, filha de Seu Laurindo e Dona Florinda, os criadores do ritmo em São Luís do Maranhão. Durante 11 anos, o grupo teve como sede o Centro de Tradições Populares do Seu Teodoro, em Sobradinho. Casa de Farinha: O sexteto traz em seu trabalho as influências das diversas formações de seus integrantes, em teatro, conservatórios, Jazz, além do interesse pela fusão de elementos tradicionais com ritmos modernos e pelas heranças culturais trazidas pelos candangos que vieram construir Brasília. A musicalidade do grupo revela a identificação com os cancioneiros, catiras, folias, congadas, Bumba-Meu-Boi e maracatus. Uma das características marcantes do grupo tem sido a utilização exclusiva do canto e percussão,

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inclusive com instrumentos alternativos, como folias de zinco, molas, panelas, despertadores, entre outros. Chico de Assis e João Santana: Dupla de cantadores com raízes familiares nordestinas, Chico de Assis é violeiro, nascido no Rio Grande do Norte e João Santana, brasiliense, filho de piauienses. Eles resgatam tradições do sertão, com influências da literatura de cordel e do repente, entoam violas e apresentam composições que passam pelo Xote, Coco, Baião, Xaxado e Arrasta-pé. Mantêm as modalidades dos repentes nordestinos e, ao mesmo tempo, acrescentam mais balanço e ritmo. Cia. Articum: Surgiu em 1994, de um grupo de artistas de Taguatinga que sentindo a necessidade de um movimento cultural, reuniu música, o teatro e a dança em um único espaço. Hoje é uma associação cultural que conta com os núcleos culturais: Forró pé-de-serra, Bumba-meu-Boi, Teatro de Bonecos, Oficinas (bonecos gigantes, boizinho, matracas. Danças e cantos populares). É também uma mistura de elementos candangos formadores e informadores de saberes regionais, trazidos por cidadãos que, em Brasília, aportam, chegando das várias regiões do país. Família Vagamundi e Flamini: O grupo é a união de vários artistas do Chile, Argentina e do Brasil, que se encontraram em Brasília e descobriram desejos parecidos em meio ao diverso mundo do circo. Com a contínua pesquisa de linhagens e habilidades circenses, desenvolvem vários números mesclando suas aptidões com a cultura popular. Estão sempre presentes em festivais, eventos, festas e não deixam o mais tradicional espaço para shows e a rua. Jorge Marino: Nascido em Rosário do Sul (RS), o mestre que atualmente tem 65 anos, nasceu com o frevo no sangue. Tido como referência do frevo e do forró em Brasília, Marino desenvolveu o Frevo Relax, que tem como objetivo, unir movimentos vibrantes de ritmos folclóricos brasileiros - Frevo, Forró e Ciranda - com técnicas naturais, como automassagem e relaxamento. O efeito é a combinação de frenesi e relaxamento, movimento e estática, som e silêncio que Jorge Marino cria uma nova modalidade de terapia, misto de dança, ginástica e meditação, voltada para o equilíbrio e autodesenvolvimento do ser humano. Depois de adotado a capital federal como lar, Jorge tem ensinado aos brasilienses sua arte. Grupo Coletivo: É um grupo de pesquisa que tem especial interesse em miscigenar e recriar ritmos originando músicas que revelem, ao mesmo tempo, de origens brasileiras e africanas com instrumentações diversas. As músicas surpreendem pelo ritmo forte que apresentam, somados as intervenções harmônicas e melódicas de guitarra e baixo.

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Movimento Rua de Circo: O grupo foi criado com o intuito de fortalecer a difusão e a promoção das atividades circenses. Atua, unindo tendências da cultura popular, do circo itinerante e da arte contemporânea. Ponto de Cultura Invenção Brasileira: Conveniado desde 2005 aos Pontos de Culturas – iniciativa do MinC – O Invenção Brasileira tem o objetivo de fortalecer experiências que utilizem a cultura popular como ferramenta educacional. A ONG oferece a população biblioteca, videoteca, um centro de cultura digital, um grupo de teatro comunitário e uma oficina de construção de mamulengos. O fundador e coordenador do Ponto é o artista popular Chico Simões. Mamolengueiro há mais de duas décadas, ele deu início ao projeto para ensinar a arte às gerações futuras. Roberto Corrêa: Reconhecido internacionalmente por seu trabalho com a Viola Caipira e com a Viola de Cocho (instrumentos típicos do Mato Grosso). Sua obra está fundada em sérias e profundas pesquisas sobre as tradições musicais do interior do Brasil e incluem a publicação de diversos trabalhos e a gravação de discos solos e parcerias com importantes nomes da música brasileira. Zé Mulato e Cassiano: Representam, de forma autêntica, o modo de vida do povo dos grandes sertões do Brasil. Nasceram em Passa Bem, sudeste de Minas Gerais e vieram para Brasília em 1969 tentar a vida. O fato de serem irmãos ajudou no entrosamento da dupla que se formou em 1974 e gravou o primeiro disco em 1978. Praticam a moda de viola, cateretês e cururus buscando a maior autenticidade da música caipira, sem misturas. Hoje eles são referências da música sertaneja e mantêm a inspiração na convivência com as pessoas e a sabedoria do povo do interior. Além da abertura que Brasília tem proporcionado para a formação destes grupos musicais e teatrais, entre os dias 14 e 17 de setembro de 2006, no Complexo Cultural Funarte, foram realizados paralelamente, promovidos pelo Ministério da Cultura: o II Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares e o I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares, que teve como objetivo promover a diversidade e a integração do Brasil com a América do Sul sob a ótica das tradições populares. O evento foi um momento de aprendizagem sobre as formas de expressão e celebrações das manifestações culturais de cada país, possibilitando a consolidação das práticas culturais dos países participantes do encontro. Tais tradições são formadas a partir das fusões entre as culturas populares ibéricas, indígenas e africanas e, apesar dessa intensa "miscigenação cultural" na América do Sul. Até então o intercâmbio cultural mais incorporado e difundido na sociedade brasileira são a influência européia e, mais recentemente, a dos Estados Unidos.

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E motivados pelo evento citado acima, no dia 23 de setembro do mesmo ano, brincantes, mestres e militantes da cultura popular se reuniram, na sala Cássia Eller do Complexo Cultural Funarte, para criar o Fórum de Cultura Popular Tradicional do Distrito Federal e do Entorno, que tem como objetivo discutir políticas públicas para a cultura, fortalecer a comunicação e o (re) conhecimento mútuo, compartilhando vivência, experiência e valorizando os diversos saberes, além de ser realizado um mapeamento dos grupos existentes na capital federal e ao seu redor. O Fórum ainda está ativo, e suas reuniões acontecem às terças-feiras, de quinze em quinze dias, no Complexo Cultural Espaço Renato Russo, localizado na quadra 508 da W3 Sul. Tem sido promovido também, pela Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal e das administrações regionais o “Encontro Culturais”, no Guará, Candangolândia, Cruzeiro, Gama, Planaltina e Sobradinho. O evento percorre o Distrito Federal organizando apresentações de artistas locais. O projeto tem edições mensais e coloca no palco expressões artísticas de todas as cidades do DF. Este ano as cidades receberam 87 atrações artísticas vindas da Candangolândia, Vila Planalto, Taguatinga, Brazlândia, Sudoeste, Guará, Estrutural, Park Way, Plano Piloto, Cruzeiro, Ceilândia e Santa Maria. A ação não é marcada literalmente por apresentações de grupos de recriação, mas já é uma iniciativa de propor aos brasilienses, o conhecimento sobre cultura de sua cidade. Têm sido realizados também, Festivais de Cultura Popular em diversas cidades, como por exemplo, Taguatinga e Sobradinho. Com parceria do Ministério da Cultura – MinC – este é um evento concebido como um espaço interativo com rodas de prosas e oficinas de transmissão de saberes entre mestres e brincantes. Além dos festivais, tem acontecido pelos bares e casas de shows de Brasília uma onda de trazer mestres e brincantes para demonstrar suas práticas culturais para os brasilienses. Podemos citar como exemplo, o Arena do Forró que tem o objetivo de realizar semanalmente, um evento direcionado aos admiradores do forró pé-de-serra, ou os seguintes bares: Calaf, Chaminé, Feitiço Mineiro, Casa do Maranhão e dentre outros, que possuem a iniciativa de divulgar a música brasileira aos seus consumidores. Desta maneira, aqui estão descritas apenas algumas ações que governantes e moradores de Brasília tem proporcionado à valorização da cultura popular. Aos poucos, essa terra, caracterizada muitas vezes como fria, formal, triste e ausente de uma identidade própria, tem criado, recriado e inovado brincadeiras típicas do nosso país. Aos poucos tens se aflorado, assim como uma menina tímida, quem anseia se mostrar como verdadeiramente és. Verdadeiro fruto do cerrado, essa capital, é recheado de riquezas e

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tesouros escondidos. E é o brasiliense unido a sua imaginação que tem feito dessa Brasília, um incrível mundo de histórias e diversidades.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS Anexo I: O Mito

Tudo está contido em um mesmo arco, o fazer e o encantar. Representar, contar, cantar e dançar as histórias de nossa espécie, estimulando o prazer de criar o já sabido, o pressentido e reconhecido por nossas almas. O Brasil passa por um grande momento em sua cultura. E ela, que em um certo período adquiriu um ar de mercado, de produto, volta a procurar sua origem espontânea e reencontra-se sendo cuidada por mestres e grupos tradicionais. Neste reencontro nos deparamos com nossos mitos, com seres fantásticos do imaginário popular brasileiro. Estas figuras que habitam a mente de nosso povo são coloridas, espertas, alegres, têm memória, afetividade e existência própria. Cada criatura e personagem de nossa tradição popular traz em si um profundo retrato de nossas vidas. O Mito do Calango Voador, alimentado através das músicas, danças e brincadeiras do grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, busca povoar com novos seres este incrível imaginário popular brasileiro. Levar para este mundo sobrenatural modernas figuras ligadas ao cerrado, terra do grupo.

A MITOLOGIA

Parte I - A História do Surgimento da Noite. Ou Como Nasceu Seu Estrelo, o Gavião e a Caliandra. No tempo em que só existia o dia, no mundo várias coisas já viviam e todas tinham um ruído, um canto, uma fala. E assim toda vez que aparecia mais um barulho novo, uma nova criatura tomava vida.

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O que não existia era à noite. Foi neste tempo que LAIÁ surgiu. Filha de um cantar da MATA. Junto com LAIÁ nasce seu irmão, LUZBELO. Ele é formado pelo silêncio do canto da mata, pela pausa, pela inspiração da respiração. Por isso não tem forma. Por ter sido formado nos momentos em que a mata puxava o ar para dentro do seu corpo, ele pode penetrar qualquer outro ser, embaralhando os pensamentos de quem dorme, fazendo com que as criaturas sonhem entrando em seu mundo. LUZBELO é o dono dos sonhos. LAIÁ cresce entre as árvores e os bichos, se enfeita com as penas dos pássaros. No tempo em que só existia o dia, LAIÁ dormia acalentada pelas Sombras. As Sombras, no tempo em que só existia o dia SOL se arrastavam de um lado para o outro, sonhavam em subir pro céu assim como os pássaros. De tanto sonhar com isso inventam de inventar uma grande ave. Pegam as penas do cocar de LAIÁ enquanto ela dormia e fazem um pássaro negro em plena luz do dia. Foi assim que surgiu o GAVIÃO. As sombras então se agarraram na ave, que voa com elas para o céu. Mas quando as sombras chegam no céu, ele fica escuro. O dia escurece. Os bichos se agitam. Aflita a Mata procura Laia, que de besta não tinha nada, e já tava escondida. Quando as sombras chegam ao céu se faz surgir à noite. Pela primeira vez na terra foi possível vê as Estrelas e a Lua. Foi um susto, um encantamento, uns bichos começaram a uivar, outros se cagaram todinho, mas no fim todos se renderam ao luar. Até hoje, todo dia as sombras sobem com o gavião e transformam o dia em noite e depois com o plumado descem transformando a noite em dia. Com a noite acontecendo todo dia e o dia aparecendo todo dia depois da noite, os dias começaram a ser contados e com seu passar, cresce ainda mais Laiá. Um dia sentada numa pedra LAIÁ menstrua, corre gritando assustada com o seu sangue, lá pra dentro da Mata. Por onde LAIÁ passa vai deixando pingos de sangue. As flores morrem de rir, zombando da cara de assustada de LAIÁ. A Mata, sua Mãe, pede para LAIÁ se acalmar e diz que não tem necessidade nenhuma dela está assustada, que todo aquele sangue nada mais é que a vida molhada. Para mostrar a LAIÁ a beleza desse momento a Mata transforma os pingos de sangue de LAIÁ em Caliandras, cada pingo vira uma linda flor vermelha.

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Para se vingar das flores, que ficaram rindo do medo de LAIÁ, a Mata não deixa a chuva tocar seu corpo, fazendo assim com que todas as flores muxem, as únicas que ficaram inteiras foram as Calindras. Até hoje são elas que embelezam as Matas do Cerrado quando a seca acontece, mas isso é outra história. LAIÁ se torna mulher e numa noite estrelada andando até os limites da mata, descobre o RIO. O RIO refletia o céu, e assim estava inteiramente coberto de estrelas. LAIÁ se apaixona por ele. Mas a MATA tem medo do Rio, tem receio que LAIÁ se afogue. Então a Mata diz pra LAIÁ que o Rio na verdade é uma grande cobra que rasteja pela Terra, que engole as criaturas e as deixa vivas dentro dele, transformando todas em peixe. Diz para LAIÁ tomar cuidado com ele. LAIÁ fica com medo, mas não pensa em outra coisa a não ser nele. Mas numa noite enluarada, LUZBELO, o dono dos sonhos, visita LAIÁ e leva ela para conhecer o RIO. LAIÁ que dormia profundo, sonha com o Rio entrando nela, possuindo todo seu corpo. O Rio pula para fora do leito e se deleita com LAIÁ, molhando a moça todinha por fora e por dentro. O céu estava lindo e iluminava ainda mais o sonho de LAIÁ, fazendo com que as estrela do Rio do seu sonho brilhassem ainda mais. LAIÁ acorda toda encharcada e de tão bonito que acha seu sonho, resolve pegá-lo e o coloca dentro de uma árvore. Do sonho de LAIÁ é gerado SEU ESTRELO, que fica dentro da árvore até seu nascimento. Quando Seu Estrelo nasce, é LAIÁ que faz seu parto, tirando o seu próprio filho de dentro do ventre da árvore. Ele nasce numa noite coberta de estrelas e LAIÁ resolve levá-lo para o Rio, para que este pudesse vê seu filho. Mas ao se aproximar do Rio, LAIÁ é engolida por ele, é levada por suas águas. Seu Estrelo se salva e a Mata o protege. As criaturas da Mata dizem que LAIÁ virou uma sereia, que o Rio apaixonado por ela não teve coragem de transformá-la por inteira em peixe, fazendo isso só em uma metade, da cintura para baixo. As criaturas dizem também que Laiá de vez em quando aparece cantando, imitando o canto da Mata que vez com que ela surgisse. Um canto lindo cheio de estrelas.

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Parte II - O nascimento do Calango Voador.

No tempo em que a noite já existia, conta-se que depois de um longo inverno tropical, com vários relâmpagos e trovões, as últimas Nuvens choraram, despedindo-se do Mar. Nunca as Nuvens e o Mar haviam ficado tanto tempo juntos. O Mar sacudiu-se, bailando suave, lambendo a praia. As Nuvens chorando, faziam cair sobre a Terra uma chuva encantada e cheia de amor pelo Mar. E foi sem perceber que as nuvens lançaram na Terra todo seu amor. A chuva invadiu a Terra, molhando todo seu corpo. Esta acabou se encantando pelo Mar. Não demorou muito para que a Terra, ávida de Mar, demonstrasse a ele os seus encantos e o deixasse apaixonado. E num verão cheio de amor e carícias, a Terra resolve se entregar ao Mar. Porém, firme no firmamento, havia o Sol, que há tempos desejava a Terra. O astro rei, ao saber de tudo, enciúma-se e conta o caso para a Lua. Essa morria de encantos pelo Mar. Então, Lua e Sol combinam de enganar a Terra. Na noite marcada pela Terra para se entregar ao Mar, o Sol, antes de se esconder, diz pra Terra que a Lua está grávida do Mar. A Terra não acredita e espera a Lua aparecer. A Lua aparece no distante horizonte, esplendorosa, linda, imensa, branca, redonda e brilhante, tão cheia que era impossível não acreditar que ela estava realmente embuchada. A Terra irada, não se abre para receber o seu amado. Mas o Mar, ignorando a armação arquitetada pelos astros, avança impetuoso, trazendo do seu corpo agitado uma onda gigantesca, vinda do mais distante oceano, pronta para aquele ato. Desiludida, a Terra se fecha, rochedos começam a surgir, emergindo da água, e a onda que avançava se quebra por inteira, derrubando uma embarcação que na beirinha do mar descansava. Um casal, que no barco estava (Tereza e Nicolau), é lançado impetuosamente ao mar. A imensa espuma daquela onda quebrada se espalha pela enseada como um verdadeiro gozo, e entra de todas as maneiras em Tereza, a mulher de Nicolau. Nicolau era tão bom nos barcos que fazia, que quase todos aqueles que resolviam atravessar o Mar encomendavam um barco feito por ele. Nicolau era tão bom e confiava tanto nos seus barcos, que nunca aprendera a nadar. Por isso, depois da inesperada investida da gigantesca onda, seu barco soçobrou e Nicolau afogou-se. Tereza conseguiu se salvar, mas sem perceber, trouxe dentro de seu ser o gozo do Mar, e assim, acabou carregando um filho deste em seu ventre. Com uma tristeza profunda, morrendo de raiva e enfraquecida, a Terra deixa-se enganar mais uma vez pelo Sol. Ele consegue convencê-la de que para se vingar, a Terra

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deveria se entregar para ele. A Terra concorda e assim que o dia raiou, deixou os raios do Sol penetrarem por todo o seu corpo, iluminado-a e aquecendo-a inteira. Depois de uma semana, quando a Lua apareceu toda minguante, a Terra viu que fora enganada, mas tarde já era, pois já esperava um filho do Sol. Com vergonha do Mar e vendo que fora ludibriada, a Terra resolve ter seu filho em outras paragens, bem longe dali. Deu à luz no Planalto Central, no Reino da Mata, e seu rebento é logo transformado em um Calango, para que assim fosse difícil de ser encontrado. No Cerrado e dessa maneira, nasce o filho do Sol e da Terra. O Mar só ficou sabendo que a Terra ficou grávida do Sol quando a Lua contou, assim que o Calango nasceu. Tereza também tem seu filho, este cresce junto ao Mar e vira um hábil Pescador. Pega tudo que quer, até o mais arredio dos que nadam profundo, mesmo misteriosas e encantadoras criaturas aquáticas não se lhe escapavam. O Mar fica desconfiado com tanto destemor, pensa que aquele menino só podia ser um dos filhos seus. Encantado com o menino Pescador, logo adota o garoto, já que o seu filho com a Terra não vingou. Um dia quando o Pescador já adulto voltava de uma pescada, encontrou na beira do Mar, mareada e majestosa, a bela Mariasia. Quando o Pescador viu Mariasia, foi amor à primeira vista. E de tanto amor e de tanto amar, decidiram se casar. E assim, preparando a cerimônia, o tempo, que nunca espera, passou. Perto do casamento, o Pescador, que já havia dado uma verdadeira constelação de estrelas do mar a Mariasia, pediu então ao Mar a sua Lua, sempre vista por ele em noites de luar. Esse seria o presente de casamento perfeito para Mariasia, assim achava o Pescador. O que o Pescador não sabia é que aquela Lua que ele via dentro do mar não era a verdadeira, mas apenas seu reflexo. A Lua pertencia ao céu, por isso toda vez que ele mergulhava para pegar a Lua, essa se desfazia. O Mar, ainda cheio de raiva pela traição da Terra, resolve enganar seu filho. Ele diz para o Pescador que para pegar a Lua que desejava, o rapaz tinha que matar um animal sagrado que vivia distante dali, no cerrado. O Mar disse que este animal sagrado é que tinha aprisionado a brilhante lua dentro Mar. O Pescador, sem querer mais explicações e cheio de amor por Mariasia, aceita a missão de ir embora para caçar o Calango. Voltando de sua pescaria, o filho do mar avisa a Mariasia que antes de se casar queria dar-lhe um magnífico presente e que seria preciso viajar para esse seu desejo realizar. Mariasia sente por meio dos ventos que algo de errado está pra chegar, mas vendo os olhos de mar do pescador resolve deixar o seu amado buscar o tal presente.

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O Mar então, faz crescer de si uma enorme onda. Uma carruagem com cavalos feitos de água do mar. É nessa carruagem que o Pescador sobe as águas dos rios, invertendo o curso natural das águas. A onda do mar sobe pelo rio até sua nascente. Mas antes de partir, recebeu do Mar um arpão tão poderoso que qualquer mortal comum perderia a vida ao ser tocado por ele; netúnica arma. Ao chegar no lugar indicado pelo Mar, a carruagem de águas salgadas se desfaz e o Pescador chega enfim ao cerrado. Mariasia, que sempre ficava na beira do mar à espera do Pescador, começa a perceber os rumos dos ventos. Com o Pescador distante, se vê triste e chorosa, pedindo para o lamentoso coração se aquietar. Então, por meio da amizade que conquistou com o vento, começou a mandar mensagens de amor para o Pescador. Devido ao longo percurso, o vento sabendo que palavras não percorrem tamanhas distâncias e com pena de Mariasia, faz com que as mensagens se transformem em borboletas. Dessa forma, as borboletas chegam até o Pescador, dançam em sua volta e depois procuram as flores do Reino da Mata para descansar. O Pescador, encantado com a leveza daquelas borboletas, vai atrás delas. Entrando no Reino das Flores, o Pescador se depara com a Caliandra, flor mais linda que existe no Cerrado. Lembra-se de Mariasia e pega a flor. Mas de repente, vê um Gavião se aproximando, que avança em vôo para cima do Pescador e diz que aquela flor é dele e ninguém tem o direto de colhê-la. O Pescador se protege, cai no chão e pega seu arpão para investir contra a ave de rapina. Mas depois de pensar um pouco, lembra-se de sua missão, então pede pro Gavião se acalmar e com o arpão na mão, fala que só devolve a flor se o Gavião falar onde o Calango costuma aparecer. O Gavião, com medo do arpão e querendo a Caliandra, diz então onde o Calango se maloca. O Pescador agradecido devolve carinhosamente a Caliandra e vai ao lugar referido. Depois de muito esperar, o Pescador vê o Calango chegando. O bicho pára e ofegante descansa sob o Sol. A Terra sente o pior e avisa ao Sol que observe aquela criatura. Bem devagar o Pescador se aproxima, pega o seu arpão e prepara-se para lançá-lo. Nunca havia errado um alvo, nem muito menos deixado algum bicho escapar, tão astuto ele era. Mas no momento do golpe, o Sol manda um brilho forte, um pedaço de seu corpo-fogo, para o céu-da-boca do Calango. Sentindo em sua boca o poder do fogo, o filho da Terra estira sua língua. O brilho do Sol reluz da boca do Calango e cega o Pescador por um instante, ofuscando-lhe as vistas. Mesmo assim o Pescador lança o seu radiante arpão.

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O arpão atinge de raspão o dorso do Calango, e atravessa o rio, fazendo um enorme buraco ao tocar o chão. O Pescador corre e mergulha no Rio, pega seu arpão afim de ainda alcançar o Calango. Mas quando esse tira o arpão sente o mundo tremer. O Rio ferido pela arma do caçador, faz surgir das suas águas um imenso Elefante com uma Tromba D´Água gigantesca. O Elefante D´água sai do buraco feito pelo arpão, com suas patas e sua tromba d´água vai destruindo tudo o que há em seu caminho. É aí que a Terra, sentindo que o seu filho não pode se salvar e que vai ser arrastado pelas águas do rio enfurecido, pede pro Ar salvar ao seu filho. O Ar assim dá asas ao Calango, e este consegue voar, livrando-se da poderosa Tromba D´Água do Elefante do Rio. Corre um boato entre os bichos do Cerrado, que as asas do Calango foram tiradas do Gavião, aquele que falou para o Pescador onde o Calango aparecia. O Elefante, com pisadas pesadas, atropela o Pescador que de tanta dor desmaia. Acorda embaixo das patas, descendo pelo leito formado de pedras. O filho do Mar dá um giro e rodopia. O Elefante puxa-o pra baixo, o Pescador dá um pinote e nas costas do enorme bicho ele sobe. Nas costas do Elefante ele levanta o seu arpão, que fere tudo o que por ele é tocado. Mas, na hora de atingir aquele monstro de água, sente um puxão e vê que o arpão fora roubado de sua mão pelo Calango de Asas, o Calango Voador. O Elefante novamente puxa o Pescador para o fundo e os dois vão se embolando e descendo leito abaixo. O leito vai se abrindo e só pára perto do Mar. O Calango Voador esconde o arpão em uma nuvem e esta fica tão carregada que até hoje ao primeiro atrito de outra nuvem, solta raios pra todos os lados. Dizem que o Elefante e o Pescador foram brigando até o mar e toda vez que o Mar se enche, tenta jogá-lo pra cá, mas depois que perde a força e se esvazia, o rio o manda de volta pra lá, numa disputa de força sem fim. A água nunca mais parou de jorrar do buraco feito pelo arpão do Pescador. Em período de chuva no cerrado, até hoje, grandes elefantes surgem com suas trombas d´água, arrastando tudo que há pelo leito. Todo ano, quando o Calango Voador resolve matar sua sede e esfriar sua língua, que fica seca e quente por causa do pedaço do sol que traz em sua boca, um período de seca acontece e castiga o cerrado e as águas diminuem de volume. Quando enfim o Calango mata sua sede e pára de beber toda a água do rio, as águas sobem novamente, enchendo as corredeiras e as cachoeiras.

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Foi assim, de amor e desamor, de temor e destemor, que surgiu o Calango Voador, reverenciado rebento, filho da Terra e do Sol, afilhado do Ar, lendária criatura, mito dos ritos de cá.

Parte III - A Mata e a Triste Criatura Comedora de Homens

Em TERRAS ALÉM-MAR, bem longe do cerrado, surgiram homens que nem cantavam e nem dançavam. A natureza, nem direito sabia, como haviam surgido aqueles homens, talvez de um canto mal cantado. Até um certo momento, viviam em paz com a natureza. Até que começaram a se multiplicar sem parar. De tanto se multiplicar os homens viraram uma praga para a natureza nas Terras-Além Mar. Era preciso destruir aquela praga antes que os homens se multiplicassem ainda mais. A natureza tentou destruir os homens com suas forças naturais, mas os homens que nem cantavam e nem dançavam conseguiram resistir. A natureza então decidiu criar um homem que pudesse derrotar os homens que ali, nas Terras Além-Mar, já existiam. Um canto foi cantado pela natureza e assim surgiu o homem que acabaria com os outros homens. Este homem, como os outros nem cantava e nem dançava, mas construía coisas. Com a ajuda da natureza foi construindo de tudo, abrigos, ferramentas, armas e máquinas, até chegar a maior de suas construções, aquela que ia engolir todos os homens. Foi para esta construção que este homem surgiu, foi para isto que ele foi criado pela natureza, para construir a GRANDE COISA. A GRANDE COISA começou bem simples, mas foi ficando cada vez mais complicada. Dentro dela havia um fogo que comia madeira, a COISA soltava fumaça. Começou parecida com uma casa, que tinha grande boca e olhos de fogo vermelho. A COISA se arrastava com seus pés de roda. Logo já vinha com outra casa grudada e mais uma. A COISA começou a engolir os homens e conforme engolia, ia ficando cada vez maior. O que era parecida com um bicho-casa rapidamente já havia se transformado em uma cidade. A CIDADE assim surgiu e como um grande monstro foi engolindo cada vez mais homens, todos que via. Os homens que eram engolidos viravam escravos do Comandante, daquele que gerou a COISA. A GRANDE COISA ficou tão grande que a natureza ficou com medo e tentou parar seu crescimento. Vendo o mal que tinha feito, à natureza tentou falar com o homem que ela criou para engolir os homens, mas o Comandante já não tinha ouvidos para mais ninguém. Comandando a COISA sentia-se o dono do mundo. A natureza então tentou parar aquilo a

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força, mas de nada adiantou. Ela já estava enorme e ao mesmo tempo que ia engolindo os homens ia também destruindo a natureza. A COISA já tinha crescido tanto que começou a ocupar toda a TERRA ALÉM-MAR. Já tava tão grande que para chegar de um lugar para o outro dentro dela, os homens começaram a construir estradas. Alguns homens que tinham sido engolidos pela COISA como escravos, agora já mandavam nos outros homens. Eram escolhidos pelo criador da GRANDE COISA para controlar os escravos e as suas revoltas. Em troca ganhavam lugar privilegiado dentro da criatura. A COISA vai ocupando espaços, destruindo matas, poluindo os rios, devastando toda a Terra Além-Mar. Ela ganha força, transforma a sua natureza. Ganha novas formas, novas ferramentas, endurece, ganha cheiro, fumaça, luz, ganha sons. Sons que já não criavam mais ninguém. Barulhos. Cada barulho surgia tentava ser mais alto e barulhento que os outros. O tempo foi passando e o Comandante que achava que nunca morreria, morreu. Mas deixou sucessores. E todos eles conduziam a COISA do mesmo jeito que seu criador. Na verdade ninguém mais nem sabia se a COISA era mesmo controlado por alguém ou se já fazia as coisas por conta própria. Mas sempre tinha um Comandante ou pelo menos alguém que dizia que comandava a GRANDE COISA. Já havia muitos homens e mulheres dentro da COISA. Muitos deles já haviam nascido dentro dela e nem sabia como era vida fora da criatura, achavam que era impossível viver fora da estrutura dela. Alguns conseguiam sair da COISA, ela já estava tão grande que existiam algumas passagens, buracos para fora do seu corpo. Muitos homens saiam e voltavam trazendo plantas, semente de árvores, frutos, bichos e pedaços da mata para dentro. Outros que conseguiam achar estes buracos saiam para sempre. O fato é que na TERRA ALÉM-MAR já não existia mais tanta natureza fora da COISA. Ela havia destruído quase tudo. Não se tinha muito para onde correr. E assim, os homens foram se adaptando a viver dentro da GRANDE COISA, da grande CIDADE. Alguns homens lá de dentro ainda tentaram mudar o destino da enorme criatura, mas eram sempre impedidos pelos donos do poder. Como também as rebeliões internas puxadas pelos escravos, que acabavam sempre abafadas. Depois de conquistar toda a TERRA ALÉM-MAR, a Coisa chega então à praia, ao Mar. O Mar e suas Criaturas sem entender direito o que era aquela coisa preparam-se para enfrentá-la. A guerra começou e até hoje ainda não parou. Os comandantes da COISA inventaram máquinas que flutuavam pelo mar. Cheios de coragens, os homens saiam da

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COISA e invadiam as águas salgadas. De tanto investirem contra o mar, os homens e a COISA atravessaram o oceano e chegaram enfim a nossa terra. Desembarcaram em terras alheias sem nenhuma cerimônia. E como fizeram nas Terras Além-Mar chegaram com a COISA engolindo os homens que aqui existiam e destruindo tudo. Mas diferente dos homens de lá, aqui os homens dançavam e cantavam. Diferente de lá os homens daqui se misturavam com a natureza e tudo era uma coisa só. Os homens daqui então tocaram e dançaram para a GRANDE COISA e por incrível que pareça ela parou. Nunca tinha visto tal dança nem muito menos escutado tal som. Encantada com homens daqui ela se deitou e ficou sem engolir mais ninguém. Por alguns instantes foi possível acreditar que os homens e a COISA pudessem viver em harmonia. Mas os homens lá de dentro, os Comandantes da GRANDE COISA, ficaram em agonia. Não entendiam como aqueles homens tão primitivos tocando e dançando tinham conseguido parar a COISA. Pensaram que só podia ser feitiço. Sem perder tempo começaram a fazer barulho lá dentro, ligaram todas as máquinas, fizeram a COISA soltar fumaça, assustando os homens da nova terra. Era tanto barulho que vinha de dentro da COISA que ela já não escutava mais ninguém, muito menos o cantar dos homens da mata. Era tanta fumaça que a COISA não enxergava mais os homens dançando e assim ela mais uma vez se levantou e continuou sua jornada, destruindo e engolindo todos que perto dela estavam. A GRANDE COISA foi crescendo destruindo tudo e engolindo os homens. A coisa vinha abrindo caminho pela floresta, rasgando a Terra, entrando a força em suas entranhas. Do corpo da GRANDE COISA saiam duras máquinas, piche, luzes, enormes tentáculos mecânicos que onde tocavam ficavam grudados. Estava tão imensa que para chegar de um lado para o outro da COISA, os homens inventaram máquinas voadoras, pássaros mecânicos. Não parava de crescer, era um monstro em evolução. E assim vinha arrastando-se direto para o cerrado. No cerrado, Seu Estrelo foi avisado e rapidamente reuniu todo seu povo. Chamou também o Calango Voador, convocou a Mata e os homens de tudo que é lado para se juntar na batalha contra a GRANDE COISA que se aproximava. Veio gente de tudo que era canto. Homens que largaram suas famílias para tentar segurar o tal monstro. Cada homem trazia consigo a fé, as riquezas e os saberes de seu lugar. Vários desses homens vieram fugidos da GRANDE COISA. Massacrados lá dentro do monstro, sem direito a suas vidas, decidiram fugir e lutar junto com aqueles que estavam do lado de fora contra a ENORME CRIATURA. Alguns destes homens fugidos tinham entendido, ainda dentro da COISA, que com toda aquela destruição o mundo estaria

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condenado. Por isso junto com Seu Estrelo, a Mata e o Calango inventaram de construir uma nova COISA, uma fabulosa criatura. Uma nova cidade que abrigaria todos os homens que para o cerrado vieram para enfrentar a CRIATURA COMEDORA DE HOMENS que estava para chegar. Era preciso atrelar todas as forças. A esperança enchia o ar e no meio do cerrado, em um lugar marcado com um X, começou a construção dos homens. Os homens decidiram dar asas a sua CRIATURA em homenagem ao Calango Voador, o filho do Sol e da Terra. E assim rapidamente cercada de sacrifícios estava pronta à fabulosa CONTRUÇÃO. Uma Criatura Moderna, que levava dentro dela a esperança dos homens. Seu Estrelo e o Calango Voador comandariam os seres da Mata, todos estavam prontos para confronto. A GRANDE COISA por fim chegou, com seus olhos vermelhos, cuspindo fogo, soltando fumaça. A Mata lançou um canto, os homens tocaram e dançaram pros seus santos, Seu Estrelo jogou seus feitiços, o Calango seu raios de sol. Cada qual ser da mata deu sua investida. A cidade feita de asas foi pra cima da GRANDE COISA. E assim a COISA de novo parou. Estava perdida com tamanha ofensiva. Estava de novo encantada, agora com os cantos da mata. Sua estrutura tremia, como se o canto entrasse em cada uma de suas peças, em cada um de seus parafusos, parecia que ia se desmontar. Seus olhos de luz piscavam. A bicha foi se desestruturando, caindo em pedaços, abrindo espaços dentro de si. Com isto a Mata, o Ar, o Sol foram logo entrando. De repente a GRANDE COISA se viu bonita, enfeitada de flores e árvores, de canto e encanto. Até o Calando Voando por dentro da COISA voou. Os trabalhadores, os escravos, os loucos e operários lá de dentro, gritaram pela liberdade. Rapidamente se juntaram com os homens da cidade de asas e tentaram tirar o poder daqueles que os maltratavam. Parecia que a GRANDE COISA estava domada. Mas foi ai que a coisa desandou. Os Comandantes da GRANDE COISA logo se arrumaram e com suas máquinas de guerra, de barulho e de fumaça, acabaram com revolta criada e fizeram novamente a COISA se mexer. Sem escutar o canto da natureza, cega em meio a tanta fumaça, controlada a força e a lapada, a COISA sem graça deu seu contragolpe. Muito maior que a fabulosa CRIATURA criada pelos homens do cerrado que vieram de tudo que é de lado, a GRANDE COISA não demorou muito para dominar a cidade de asas. A batalha foi suada, de um lado a grande máquina, do outro os homens e a força da mata. No meio de tanto barulho e tanta fumaça, o Calango Voador sumiu. Alguns dizem que ele morreu. Alguns que ele foi pego depois de cair de cansaço, sufocado pelas nuvens de fumaça que cobriam até o sol e que está preso em uma enorme

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gaiola dentro da GRANDE COISA. Outros dizem que ele voou até seu pai, o Sol, para de novo se esquentar. Tem mais uns que falam que ele se escondeu dentro do cerrado pra juntar suas forças e que a qualquer momento vai voltar. Seu Estrelo sentiu que num confronto direto não teria ganhadores, os dois lados perderiam. A GRANDE COISA acabaria com a Mata e com o fim da Mata os homens também se destruiriam. A luta era mais sutil. Sabia também que o Calango Voador tinha que está ao seu lado, não tinha chance sem o filho da Terra e do Sol. A batalha foi vencida pela GRANDE COISA, mas a guerra ainda não. Seu Estrelo entendeu que para lutar era preciso estar dentro da COISA. Não adiantava ficar de um lado e a COISA do outro. Percebeu que só puxando a força da natureza lá pra dentro da COISA era possível tentar domar aquela triste criatura. Também tinha que achar o Calango. Foi aí, que Seu Estrelo juntou de novo seu povo e contou seu novo plano. Disse que era preciso os homens e as criaturas da mata se dividirem. Uns ficariam do lado de fora da COISA, outros entrariam. Com isso Seu Estrelo se afastou e cavou um buraco com as mãos. Um buraco do tamanho do seu corpo. Seu Estrelo entrou no buraco e se plantou. Nasceu do buraco uma árvore imensa, no lugar dos frutos cresceu estrelas. Os homens que iram entrar na COISA comeram as estrelas e ficaram alimentados do corpo estrelado de Seu Estrelo. Alimentados deixaram a COISA os engolir. Hoje, estes homens e mulheres dançam e cantam pra Seu Estrelo, trazendo para perto deles e para dentro da COISA a força da natureza. Recebem, hora dentro da COISA hora fora, Seu Estrelo e sua Falange. Contam e transmitem em suas brincadeiras, para seus filhos e seu povo, a história do Calango Voador. Alimentados de Seu Estrelo, nutrem-se da esperança de que um dia o Calango novamente aparecerá e junto com outros homens encantarão novamente a GRANDE COISA, dando fim a guerra entre a Triste Criatura Comedora de Homens e a Natureza.

Criação e amarração Tico Magalhães

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Anexo II: Os grupos

Figura I e II - O grupo: Seu Estrelo e Fuá do Terreiro

Figura III: Tico Magalhães com o figurino DO do Capitão

Figura IV: De cima para baixo: A base do Tronco: o alfaia, Estandarte do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro e os batuqueiros na Casinha.

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Figura V: Mané Cheiroso e os arcos do Seu Estrelo, herdados do Cavalo-Marinho

Figura VI: A Parteira Figura VII: O Pescador, Caliandra e o Seu Estrelo

Figura VIII: Laía e as suas vaidades

Figura IX: Mariasia à espera do seu amado, o Pescador.

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Figura X: O Domador e o Elefante com a sua Tromba D’Água

Figura XI e XII: Dona Morte, Bio Eclipse e o Boi do Cavalo-Marinho do Mestre Grimário

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Figura XIII: Caliandra e o Gavião

Figura XIV e XV: Nasceu o Calango voador. Os arcos são herdados do Cavalo-Marinho.

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Figura XVI: Seu Estrelo e Fuá do Terreiro à direita e personagens do Cavalo –Marinho à esquerda.

Figura XVII: O Tronco e o Rio Santa Bárbara e Rio das Almas

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Figura XVIII: Seu Estrelo e o Pé de Cerrado na Casinha

Figura XIX: Detalhes do Bio- Eclipse Com sua beleza e encanto faz relembrar na brincadeira do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, a presença dos mestres e brincantes que se foram, mas que jamais foram esquecidos.

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Figura XX, XXI e XXII: O Pé de Cerrado

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Figura XXIII: Os chapéus de fita utilizados no Bumba Meu Boi do Maranhão

Figura XXIV: Capa do primeiro registro musical do Pé de Cerrado

Figura XXV: Ritual e reverência ao tocar a música Oração. Melodia feita em homenagem a Matri Saddam – Localizada na cidade de Alto Paraíso (GO).

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