Migrações Luso-Brasileiras para a África Portuguesa no Século XIX e a Criação de Novos Espaços Urbanos e Sociais em Angola: algarvios, madeirenses e brasileiros no sul (Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cunene)

May 24, 2017 | Autor: C. Udelsmann Rodr... | Categoria: Migration, Angola, Moçâmedes
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Descrição do Produto

PORTUGAL BRASIL ÁFRICA

URBANISMO E ARQUITECTURA do ecletismo ao modernismo

coordenação de

José Manuel Fernandes Maria Lucia Bressan Pinheiro

Actas do Colóquio Internacional organizado pela UAL com a FAU-USP, realizado em Lisboa em 29 e 30 de Novembro de 2012 TÍTULO

Portugal, Brasil, África: Urbanismo e Arquitectura – Do Ecletismo ao Modernismo COORDENAÇÃO

José Manuel Fernandes, Maria Lúcia Bressan Pinheiro AUTORES

Ana Vaz Milheiro, Benedito Lima de Toledo, Cristina Udelsmann Rodrigues, Daniela Alcântara, Elisiário Miranda, João Campos, José-Augusto França, José Eduardo de Assis Lefèvre, José Manuel Fernandes, José de Monterroso Teixeira, Maria Lucia Bressan Pinheiro, Mônica Junqueira de Camargo, Raquel Henriques da Silva SIGLAS

FAU-USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo FAUTL – Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa FCSH – Faculdade de Ciências Sociais Humanas ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa IUL – Instituto Universitário de Lisboa UAL – Universidade Autónoma de Lisboa UM – Universidade do Minho UNL – Universidade Nova de Lisboa USP – Universidade de São Paulo COMISSÃO ORGANIZADORA DO COLÓQUIO INTERNACIONAL HOMÓNIMO

José-Augusto França, José Manuel Fernandes, Miguel Figueira de Faria COORDENAÇÃO TÉCNICA

Madalena Mira, Cristina Dias PAGINAÇÃO

Nuno Pacheco Silva IMAGENS CAPA E CONTRACAPA

Edifícios Esther e Arthur Nogueira, à esquerda, em foto de 1944 (Capa); Casa Rey Colaço, no Estoril, por Raul Lino, postal da colecção de JMF (Contracapa). DATA EDIÇÃO

ISBN

978-989-658-236-4 DEPÓSITO LEGAL

366061/13 EDIÇÃO

Caleidoscópio_Edição e Artes Gráficas, SA Rua de Estrasburgo, 26 – r/c dto. 2605­‑756 Casal de Cambra • Portugal Tel.: (351) 21 981 79 60 • Fax: (351) 21 981 79 55 e­‑mail: [email protected] www.caleidoscopio.pt

SUMÁRIO

Nota Prévia José Manuel Fernandes ............................................................................................................................ 7

Breve Apresentação Maria Lúcia Bressan Pinheiro .................................................................................................................. 10

Portugal e o Ultramar: contribuição e herança simbólicas José­‑Augusto França ............................................................................................................................... 13 capítulo 1

PORTUGAL e BRASIL Do século XIX a 1920: Neo-Classicismo, Romantismo, Ecletismo, Art Deco ............ 17 Declinações neoclássicas: o Teatro de São Carlos de Lisboa e o Teatro de São João do Rio de Janeiro – modelo e empréstimos José de Monterroso Teixeira .................................................................................................................... 19

Portugal­‑Brasil no século XIX: cruzamentos culturais em prol da definição de Pátria Raquel Henriques da Silva . .................................................................................................................... 33

Repercussão das ideias de Ricardo Severo e Raul Lino no debate cultural arquitetônico dos anos 1920 no Brasil Maria Lúcia Bressan Pinheiro ................................................................................................................. 47

Do ecletismo do fim do século ao Art Déco e ao modernismo: transformações espaciais da avenida São Luiz em São Paulo José Eduardo Assis Lefèvre ................................................................................................................... 69

capítulo 2

PORTUGAL e BRASIL Do Modernismo ao Moderno ...................................................................................................... 89 Ecletismo e Modernismo na arquitetura de Oswaldo Arthur Bratke Mônica Junqueira de Camargo ............................................................................................................... 91

1936­‑37, ano chave da arquitectura moderna, Portugal­‑Brasil José Manuel Fernandes ......................................................................................................................... 109

A tradição em Brazil Builds e o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal Ana Vaz Milheiro .................................................................................................................................... 133 capítulo 3

BRASIL e ÁFRICA ......................................................................................................................... 155 Migrações luso­‑brasileiras para a África portuguesa no século XIX e a criação de novos espaços urbanos e sociais em Angola: algarvios, madeirenses e brasileiros no sul (Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cunene) Cristina Udelsmann Rodrigues .............................................................................................................. 157

Três momentos na “estética de torna­‑viagem”: de uma homenagem a Viana de Lima aos impérios do espírito santo, passando pela arquitectura dos afro­‑brasileiros retornados ao golfo da Guiné João Campos ......................................................................................................................................... 171

capítulo 4

ÁFRICA e PORTUGAL ................................................................................................................. 181 Arquitetura Moderna: do Brasil a Portugal e África – alguma investigação e leitura Daniela Alcântara ................................................................................................................................... 183

No caminho de uma arquitetura racional: infraestruturas modernas em Moçambique Elisiário Miranda ..................................................................................................................................... 199 capítulo 5

Conferência de encerramento . .............................................................................................. 213 Unidade e diversidade nas manifestações no universo luso­‑brasileiro: ecletismo no fim do século em São Paulo Benedito Lima Toledo ............................................................................................................................ 215

Torre de Belém em Lisboa, foto JMF.

NOTA PRÉVIA José Manuel Fernandes Professor da FAUTL

Concebido como um conjunto, um colóquio internacional assente em comunicações e debates articulando as três realidades geo-histórico-culturais invocadas – Portugal, Brasil e África – a área temática escolhida foi a do Urbanismo e Arquitectura, sendo a época analisada a dos séculos XIX e XX. Reuniram-se para tal uma série de investigadores, professores e estudiosos das academias universitárias de Portugal e do Brasil - pretendendo-se com isso fazer um breve “ponto de situação” das principais linhas de estudo das realidades geográficas e históricas em presença. Na perspectiva da sua articulação e interacção, por via da análise das respectivas comunicações e sua discussão viva. Duas instituições principais participaram, congregando vários dos seus mais prestigiados membros – a Universidade de São Paulo, através da sua Faculdade de Arquitectura e Urbanismo (USP-FAU), e a entidade convidante e organizadora (de facto, co-organizadora, com a USP), a Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Mas professores de outras escolas tiveram igualmente um papel notável no desenvolvimento dos trabalhos, provindos da Universidade Técnica de Lisboa (FAUTL), da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL), da Universidade do Minho e do Instituto Universitário de Lisboa / Centro de Estudos Africanos (IUL/ISCTE/CEA). Foi neste quadro, durante os trabalhos que decorreram em 29 e 30 de Novembro de 2012, conseguido um assinalável conjunto de qualificadas apresentações, em grande parte inovadoras pela temática e época propostas – e que seguidamente foram depuradas e adaptadas à sua inserção no presente volume das Actas do encontro, quer ora se editam. Refiramos os sucessivos contributos, integrados e organizados numa série de painéis, que congregaram “Portugal e o Brasil”, “Brasil e África” e “Portugal e África”,

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criando-se assim as condições para a estruturação e articulação metodológica e científica das três grandes áreas abordadas. O intróito temático, breve, preciso e certeiro, foi o constante da apresentação por José-Augusto França – que sobreelevou o “princípio e o fim” da aventura trans­ oceânica lusitana de Oitocentos e Novecentos, em “Portugal e o Ultramar: contribuição e herança simbólicas”, com as referências às obras de José da Costa e Silva e de Pancho Guedes, respectivamente entre o dealbar do século XIX e a segunda metade do século XX. Em relação a “Portugal e Brasil”, os aspectos essenciais da arquitectura e do urbanismo de Oitocentos (até cerca de 1920), nas duas nações, foram abordados por José de Monterroso Teixeira (UAL), em relação ao Neo-Classicismo (“Declinações neo-clássicas: o Teatro de São Carlos de Lisboa e o Teatro de São João do Rio de Janeiro: modelo e empréstimos”), e em relação ao Eclectismo, por José Eduardo de Assis Lefèvre (USP), a partir de um estudo de caso significativo (“Do Ecletismo do fim de século ao Art Déco e ao Modernismo. Transformações espaciais da Avenida São Luiz em São Paulo”). Um segundo tema, que se revelou central na mesma área de assunto, foi o das transferências culturais no dealbar de Novecentos, entre os dois países, por via dos movimentos estéticos que então eclodiam, entre o Romantismo, o Ecletismo, a Casa Portuguesa e o Neo-Colonial, e através da acção de agentes culturais com personalidades como Ricardo Severo ou Lúcio Costa. Esta época preciosa e fulcral foi abordada por Raquel Henriques da Silva (UNL) em “Portugal-Brasil no século XIX: cruzamentos culturais em prol da definição de Pátria”, e por Maria Lucia Bressan Pinheiro (USP) em “Repercussão das ideias de Ricardo Severo e Raul Lino no debate cultural arquitectônico dos anos 1920 no Brasil”. Finalmente, o terceiro passo desta temática Portugal-Brasil - o do desenvolvimento do Modernismo e do Movimento Moderno, dos anos 1930 em diante - foi desenvolvido, a partir de estudos de caso, de exemplos edificados, e da análise dos processo culturais, sucessivamente por Mônica Junqueira de Camargo, da USP (“Ecletismo e Modernismo na arquitectura de Oswaldo Arthur Bratke”), por José Manuel Fernandes, da FAUTL (“1936-1937, ano chave da arquitectura moderna, Portugal-Brasil”), e por Ana Vaz Milheiro, da UAL e IUL/ISCTE (”A tradição em Brazil Builds e o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal”). No plano da secção “Brasil e África”, de difícil problematização pelo pioneirismo próprio do tema, e pela consequente escassez de estudos disponíveis, dois trabalhos arrojados marcaram o encontro, quer pela abordagem, antropológica cruzada com a geo-histórica, por Cristina Udelsmann Rodrigues, do IUL/ISCTE/CEA (“Migrações luso-brasileiras para a África Portuguesa no século XIX e a criação de novos espaços urbanos e sociais em Angola: algarvios, madeirenses e brasileiros no Sul / Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cunene”), quer pela diversidade

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e cruzamento de leituras, histórico-arquitectónico-simbólicas, por João Campos (“Três Momentos na ´Estética de Torna-viagem´: de uma Homenagem a Viana de Lima aos Impérios do Espírito Santo, passando pela arquitectura dos AfroBrasileiros retornados ao Golfo da Guiné”). A terceira secção, “África e Portugal”, igualmente com forte carga inovadora no aspecto das investigações já desenvolvidas, contou com os trabalhos de Daniela Alcântara (FAUTL) a partir de bem seleccionados ´estudos de caso´ (“Arquitectura Moderna: do Brasil a Portugal e África – alguma investigação e leitura”), e de Elisiário Miranda (UM), aplicado no aprofundar das realidades edificadas em Moçambique ´em campo´ (“No caminho de uma arquitectura racional: infraestruturas modernas em Moçambique”). Fechando os trabalhos, a proposta de Benedito Lima de Toledo (USP) apresentou uma brilhante síntese de leituras cruzadas Portugal-Brasil-Portugal, com o tema “Unidade e Diversidade nas manifestações culturais no universo luso-brasileiro”. Em suma, estes treze contributos foram, no seu conjunto, quer pela interrelação que permitiram quer pelos seus conteúdos motivadores, essenciais para a obtenção do “corpus” teórico-científico, totalmente original e cremos que fortemente inovador, que agora temos o gosto de publicar. Finalizando, Um agradecimento é devido a todos os participantes, pela sua disponibilidade e qualidade dos contributos, bem como aos atentos moderadores das várias mesas das apresentações – Professores Miguel Figueira de Faria, Helena Barreiros, José de Monterroso Teixeira e Ana Vaz Milheiro (sendo que os dois últimos também foram conferencistas). Um destaque é aqui devido ao Reitor da UAL, Professor José Amado da Silva, que abriu os trabalhos, ao Professor José-Augusto França, que como sempre se disponibilizou generosamente para a palestra inaugural, e ao Professor Lima Toledo, que infelizmente não pôde estar presente, mas cuja conferência de encerramento foi apresentada e lida pelo colega da USP, Prof. Assis Lefèvre. Outro agradecimento, muito importante, é devido à Professora Maria Lucia Bressan Pinheiro, que connosco (Miguel Faria e José Manuel Fernandes) organizou do outro lado do Atlântico, ao longo de meses, serena e porfiadamente, toda a logística e aspectos científicos essenciais ao bom resultado obtido. Outro agradecimento ainda, ao Secretariado da UAL (com coord. pela Dra. Madalena Mira), que todos os aspectos práticos e concretizadores apoiou e seguiu, e, naturalmente, à Editora Caleidoscópio, na pessoa do Dr. Jorge Ferreira, que como sempre, atenta e eficaz, permite agora esta resultante editorial sem a qual muito se perderia de todo o esforço realizado.

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BREVE APRESENTAÇÃO Maria Lucia Bressan Pinheiro

É com grande orgulho e satisfação que agradeço a dupla generosidade dos colegas portugueses José Manuel Fernandes e Miguel Faria – primeiro, pela oportunidade de contribuir na organização do Colóquio Internacional Portugal-Brasil-África, e segundo, pela publicação bi-nacional das atas do evento, bem como o convite para escrever uma breve apresentação a esse respeito. De fato, considero-me privilegiada pela inesperada oportunidade de dar continuidade a esforços de aproximação empreendidos por estudiosos renomados do Departamento de História da Arquitetura da FAU-USP - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo e o ambiente acadêmico português, iniciados há décadas atrás. São professores aos quais eu, como todos os seus numerosos ex-alunos, devo muito de minha formação, e por esta razão gostaria de relembrá-los aqui. Entre os primeiros – e devemos lembrar que tanto a USP, criada em 1934, quanto a FAU, de 1948, são instituições de ensino bastante jovens, especialmente em comparação com as instituições portuguesas – deve-se mencionar o Arq. Eduardo Kneese de Mello, um dos primeiros professores da disciplina “História da Arquitetura no Brasil”, que, inspirado pela realização do Inquérito à Arquitetura Popular Portuguesa, pleiteou uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian em 1968, desenvolvendo estudos sobre a herança mourisca na arquitetura brasileira. Seu exemplo foi imediatamente seguido pelos arquitetos João Walter Toscano, Carlos Lemos e Benedito Lima de Toledo – todos professores do Departamento de História da Arquitetura da FAUUSP, sendo que Benedito Lima de Toledo era assistente de ensino de Kneese de Mello, àquela altura. Nada mais adequado, portanto, que este mesmo pesquisador tenha, por intermédio de um seu discípulo e sucessor, José Eduardo de Assis Lefèvre, apresentado a conferência de encerramento do Colóquio, como já destacado por José

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Manuel. Um colóquio, aliás, aberto com a brilhante intervenção do Prof. JoséAugusto França, nome que nos é familiar – a mim e aos colegas brasileiros – pela sua presença obrigatória nas bibliografias das disciplinas de História da Arquitetura Brasileira. Mas os intercâmbios com Portugal contaram e contam, em nosso Departamento, com outros insignes pesquisadores: os professores Júlio Roberto Katinsky, Nestor Goulart Reis Filho e Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, voltados a temas de história da técnica e história da urbanização no Brasil. Especial menção é devida a Murillo de Azevedo Marx, um dos mais ativos protagonistas de tais intercâmbios, recentemente desaparecido. De tais esforços de aproximação resultaram muitos eventos científicos realizados na FAUUSP, promovidos pelos professores citados acima e que, a par de constituírem imperdíveis oportunidades de aprendizado, evidenciavam a necessidade quase obrigatória do estabelecimento de pesquisas conjuntas, já que é impossível compreender o arcabouço edilício efetivamente implantado em solo brasileiro sem o conhecimento das matrizes arquitetônicas de nossa metrópole. Como beneficiária destas iniciativas e dos numerosos estudos e publicações delas resultantes, tenho a certeza de que as contribuições do evento ora em epígrafe inspirarão outras tantas pesquisas, agora acrescidas de uma outra vertente investigativa riquíssima, mas ainda bastante incipiente entre nós: a das trocas arquitetônicas com as culturas africanas, aspecto inovador e instigante, como se pode comprovar pelos trabalhos aqui apresentados. Finalizando, gostaria de reiterar os agradecimentos já expressos pelo Arq. José Manuel Fernandes, aos quais quero acrescentar uma menção ao inestimável apoio do Diretor da FAUUSP, Prof. Marcelo de Andrade Romero, para viabilizar a participação da equipe brasileira no evento, bem como a publicação de seus resultados pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Também quero manifestar minha gratidão para com o Prof. João Mascarenhas Mateus, da Universidade de Coimbra, e minha querida colega de Departamento, Profa. Beatriz Mugayar Kuhl, através de quem fui efetivamente indicada para contribuir, pelo lado brasileiro, na organização desta auspiciosa iniciativa.

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12 Teatro de São Carlos, Lisboa, foto JMF

PORTUGAL E ULTRAMAR: CONTRIBUIÇÃO E HERANÇA SIMBÓLICA José­‑Augusto França Professor Catedrático Jubilado da UNL

Não deve haver conferências inaugurais em colóquios que são feitos para apresentar estudos e investigações inéditas, após os quais, sim, se conferenciará sobre conclusões ou (sempre mais interessantes) aberturas e percursos de pistas. No início desses trabalhos trazidos por quem trabalha os temas propostos, apenas poderá caber uma introdução destinada a mostrar ou lembrar o sentido que eles podem ter. Melhor: um sentido que tenha carga epistemológica. Esse será o meu papel de conferencista anunciado, na brevidade de algumas palavras. Um sentido de significado simbólico, na teia das relações dialécticas entre a arquitectura portuguesa e aquela que nos ultramares se praticou ao longo dos séculos da história comum. Situemo­‑nos então no princípio e no fim dessas relações mais historicamente significativas. Princípio civil de instalação e não militar de ocupação, que é sempre conjuntural. E foi estruturalmente que em 1812 o Príncipe­‑Regente D. João pensou (ou alguém por ele, e terá sido D. Rodrigo de Sousa Coutinho) em chamar à sua corte do Rio de Janeiro, onde encontrara refúgio contra a invasão dos exércitos napoleónicos e onde procurava instalar­‑se, o maior arquitecto português desse tempo. José da Costa e Silva já dera, na medida do possível, à corte lisbonense de sua mãe, o grande paço condigno, moderno de estilo neo­‑clássico (bebido em Bolonha e na Caserta de Nápoles) cuja construção fora e estaria interrompida. Na sua capital alternativa do Rio, a quatro anos de ter chegado, D. João precisava de assentar outro período da história de Portugal pela via simbólica maior que é a da arquitectura – e o já idoso Costa e Silva lá foi projectar o que pode, até lá falecer, sete anos mais tarde. Depois saberemos o quê e como, aguardando­‑se para

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isso a tese de doutoramento que em breve será apresentada nesta Universidade por de José de Monterroso Teixeira1. Simbolicamente, então, Costa e Silva foi chamado ao Brasil no início da fase política de instalação institucional, numa pátria que se desejava comum. Ao termo de outra instalação, e em outra parte do mundo, na Costa Oriental de África, o Estado português, após um longo período de história em que ali teve responsabilidades que à arquitectura também (e muito) competem, deixou lá ficar o seu melhor arquitecto de prática local e que se conta entre os maiores da sua profissão portuguesa de geração: Amâncio de Alpoim Miranda Guedes, pelo nome de Pancho Guedes conhecido e historiado já. Aos [ ] anos de idade, ele preferiu ficar para continuar a trabalhar em Moçambique, que era também terra sua, em 1974 – assegurando assim, moralmente e simbolicamente, as relações entre duas pátrias que separavam então uma história comum. Em 2009 uma grande exposição da obra de Pancho Guedes no Centro Cultural de Belém deu (finalmente !) a conhecer em Lisboa a obra deste arquitecto (e escultor) – mas já em 1977 a revista “Colóquio Artes”, da Fundação Gulbenkian, acolheu um excelente estudo estético de Salette Tavares sobre ela, e, em 1996, o júri do prémio anual de arquitectura da Associação Internacional de Críticos de Arte – AICA (secção portuguesa) resolveu atribui­‑lo a Pancho Guedes. Tenho gosto de ter estado activamente em ambas as circunstâncias. Estes dois casos, de princípio e de fim de um discurso histórico, demonstrarão, no plano simbólico da arquitectura, duas situações de consciência cultural – levando o melhor de uma criação moderna por via neo­‑clássica, para o Brasil, e deixando em Moçambique o melhor de uma criação moderna dos fins “pos­ ‑modernos” do século XX. Haverá certamente que reflectir, em termos históricos, sobre estes dois casos, para o entendimento das relações artísticas que constituem o programa deste Colóquio Internacional.

Nota do editor: José de Monterroso Teixeira apresentou já o seu trabalho de doutoramento, intitulado “José da Costa Silva (1747-1819) e a recepção do neoclassicismo em Portugal: a clivagem de discurso e a prática arquitectónica”. 1

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Edifício Leão Que Ri, em Lourenço Marques – Maputo, por Pancho Guedes, foto JMF

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16 Teatro de São Carlos em Lisboa, foto JMF

capítulo 1

PORTUGAL e BRASIL Do século XIX a 1920: Neo-Classicismo, Romantismo, Ecletismo, Art Deco

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18 Planta do Teatro de São Carlos, BNRJ

DECLINAÇÕES NEOCLÁSSICAS: O TEATRO DE SÃO CARLOS DE LISBOA E O TEATRO DE SÃO JOÃO DO RIO DE JANEIRO – MODELO E EMPRÉSTIMOS José de Monterroso Teixeira Professor da UAL

“A um dos cantos da praça está o Teatro Real de São João edificado em 1813, conforme se lê no seu frontão. Inspirou­‑se no Teatro de São Carlos, de Lisboa, com a sua arcaria de entrada e alpendre no alçado da direita.” F. A. Langhans, Uma Visita ao Rio de Janeiro em 1817

Sociabilidades e espaços de divertimento público Em meados do reinado de D. João V Lisboa foi agitada pelas representações teatrais, que se organizavam no designado Teatro do Bairro Alto, instalado no palácio dos condes de Soure, onde as polémicas óperas de bonifrates, de António José da Silva, o Judeu, fizeram sucesso entre 1733 e 1739. Este teatro foi atingido drasticamente pelos efeitos do terramoto de 1755 e, poucos anos mais tarde, voltou a ser reedificado, a partir dos anos de 1760, tendo o espectáculo de abertura sido realizado, logo, em 31 de Março de 1762. Lourenço da Cunha, que desenhou o risco da nova sala, intitulado pintor de arquitecturas e perspectivas, o que quer dizer cenógrafo, na sua prática procurava seguir Baccarelli, e

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tentava disputar a Bibiena a supremacia que este mantinha na produção cenográfica1. Foi ele juntamente com Joaquim Manuel da Rocha, o autor do pano da boca de cena, que integraram os artistas que o devolveram à cidade com responsabilidade artística. Aquele fora bolseiro de D. João V, em Roma de onde terá voltado em 17442 e aí terá tomado contato com os espetáculos mais atualizados na capital com grandes tradições operáticas. A sua protecção em Lisboa obteve­‑a, no começo da sua atividade profissional, com o apoio de Inácio de Oliveira Bernardes (1695­‑1781) seu condiscípulo de bolsa, que ao tempo dirigia o Teatro dos Congregados do Espírito Santo (oratorianos). Neste mesmo ano de 1762 noticia­‑se o começo das obras do novo teatro de corte da Ajuda, também iniciativa de D. José I, que terá utilizado um projeto de Giovanni Carlo Sicinio Bibiena, entretanto falecido dois anos antes, sendo deste autor o desenho para a igreja de Nossa Senhora do Livramento, erigida para comemorar o salvamento da rei do atentado contra si perpetrado, em 1759. Mário Sampaio Ribeiro, que ainda viu vestígios significativos do palco do teatro, atribui­‑o a Giacomo Azzolini3, considerando que era capaz de permitira a evolução de um esquadrão de Cavalos. Os estrangeiros que escrutinavam com minúcia os cómodos da família real louvavam as récitas com os mais apreciados músicos e cantores, de nível europeu. O teatro em 1772 foi descrito nestes termos “The house itself was of very contracted dimensons, the pit not beeing calculated to contain more than abou tone hundred and thirty individuals. Boxes, indeed, in the proper acception of the term, were only three; The King, Queen and Royal family being seated in gallery fronting the stage, elevated considerably above the body of the house”4. Em meados do século XVIII o abade António da Costa que, precisamente em 1749, abandonara o país, consigna na sua correspondência de Itália e de Londres, de modo a entusiasmar os seus leitores, uma exaltação dos teatros na sua monumentalidade, face à inexistência de tais equipamentos entre nós: “O Teatro por fora, ou a casa em que está a gente, que vê, é grandíssima e altíssima à proporção do teatro de dentro; é oval e tem seis andares de camarotes. Para V. M. entender um pouco mais ou menos o feitio de ambos os teatros, suponha que é como a Igreja de S. Ildefonso, ou como a dos Clérigos. Representa­‑se na capela­‑mor; e a gente MACHADO, Cyrillo Volkmar (1922), Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, escultores, architectos e gra‑ vadores Portuguezes, e dos Estrangeiros que estiverão em Portugal, (1. ª ed., 1823, coord. Teixeira de Carvalho e Vergílio Correia). Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 156­‑157 2 COSTA, Luís Xavier da (1935), As Belas Artes em Portugal durante o século XVIII. [s.l., s.n.], (Tipografia Colonial), p. ; DIAS; João Pereira (1947), “Dos momos e arremedilhos ao cenário sintético (encenação)”, in A Evolução e o espírito do teatro em Portugal, 2.º ciclo (1.ª série) das conferências promovidas pelo O Século, Lisboa, p. 35 3 RIBEIRO, Mário Sampaio (1947), “Teatro de Ópera em Portugal”, in A Evolução e o Espírito do Teatro em Portugal, 2.º ciclo, 2.ª série das Conferências promovidas pelo Século, pp. 88­‑89; V. tb GAMEIRO, Alfredo (1932), “A Ajuda de Outros Tempos”, in O Comércio da Ajuda, n.º 32, de 17 de Dezembro, pp. 4­‑5. 4 WRAXALL, Sir Nathanael William (1815), Historical Memoirs of My Own Time, Part the first, from 1772 to 1780. London, pp. 12­‑13. 1

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Figura 1 – Cenário de ópera, perspectiva acelerada per angolo In Ferdinando Galli Bibiena, Direzioni della prospettiva teorica correspondenti a quelle dell’architettura istruzione a’giovanni studenti di pittura, architettura nell’Accademia Clementina […]. Bolonha, 1725.

está no chão, a que chamam plateia, ou nos camarotes”5. Tópico que nos faz voltar à insinuação da irrelevância monumental caro a Francisco de Holanda na sua Da Fabrica que falece à cidade de Lisboa (1571).

A real Ópera do Tejo Este registo é sinal de uma debilidade herdada de seu pai que D. José I quis erradicar, já que aquele estava mais perto de uma cultura musical vinculada à magnificência dos cerimoniais religiosos, persistência que reporta ao paradigma (de raiz ibérica) formatado pelo gosto seiscentista de D. João IV. Para a mudança de tal configuração fez contratar, em Itália, num primeiro momento, Giovanni Carlo Sicinio Bibiena (1717­‑1760) para a construção do Real Teatro de Salvaterra, onde a corte passava largas temporadas na época da caça. A prestação deste arquiteto foi devidamente apreciada pela sua qualidade, já que pertencia à linhagem ilustre dos cenógrafos italianos Bibiena, originários de Bolonha, e que conquistaram celebridade em toda a Europa. Um deles, Ferdinando Galli Bibiena (1656­‑1743) redigiu

Cartas do Abade de Sousa Costa, introdução e notas de Fernando Lopes Graça. Lisboa: [s.n.], 1946, (Gráfica Lisbonense), p. 65, cit. CARNEIRO, Luís Soares (2002), op. cit., p. 45 5

DECLINAÇÕES NEOCLÁSSICAS: O TEATRO DE SÃO CARLOS DE LISBOA  | 21 E O TEATRO DE SÃO JOÃO DO RIO DE JANEIRO

um tratado de arquitectura e de cenografia que vem a ser traduzido em Portugal6, no último quartel do século XVIII. Nesse andamento o rei D. José I pede-lhe que projecte o grande teatro que faltava ao complexo palatino da residência da corte, na Ribeira, e que entronca na lógica de engrandecimento dos últimos anos do Magnânimo com a projecção focada na Patriarcal. Ora, com tal ambição, o Teatro da Ópera do Tejo torna­‑se o correlato civil desta opulenta capela, a que Ludovice deu forma, na escala do complexo de Mafra em que se notabilizara, mas as disponibilidades financeiras do reino tinham se alterado. Na verdade o teatro vem redimensionar a vida e as práticas culturais com a introdução de récitas de alto nível cultural na capital. No Elogio Historico do Magnânimo Rei Dom José, que apropria, significativamente o atributo que a história confere a D. João V, enuncia­‑se o manifesto em que a casa da Ópera se tornou, como veículo de instrução, num tempo de iluminismo em disseminação: “Todas as cortes civilisadas da Europa tem para devertimento publico Cazas de Opera, em que se entretem não só as Familias Reais senão ainda a nobreza. […] Com que magnificencia e architectura ella fosse edificada, qual fosse a tribuna do Rei, qual a decoração, quaes os actores, qual a orchestra, ainda hoje haverá muito ou q.m se lembre de semelhante pompa, ou que tenha ouvido a seus Pays e Avós”7. De modo brusco a tragédia instalada com o nefasto terramoto do 1.º de Novembro de 1755 reduziu a cinzas o emblemático edifício, que catapultara Lisboa para a lista de capitais com teatros de primeira grandeza. Em simultâneo, a corte majorava um investimento já tradicional, na contratação de excelentes cantores, cujos ordenados mereceram sérios remoques – mas, pelo menos, a inscrição internacional era propalada pelos muitos viajantes estrangeiros, que escreveram sobre o país.

Uma inscrição neoclássica diferida no programa da reconstrução pombalina: a encomenda do Teatro de São Carlos Com o desaparecimento de cena do 1.º marquês de Pombal as questões urbanas e o tópico da capitalidade emergem em força e vêm a ser estes catalisadores a Vem a redigir L’architettura civile (1711) e Varie Opere di prospettiva (1703­‑1708). FREIRE, Daniel da Silva, Elogio Historico do Magnânimo Rei Dom José, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms. Azul, Códice 353; Vide CÃMARA, Maria Alexandra Gago da (1991), Os Espaços Teatrais na Lisboa Setecentista: Subsídios para o Estudo da Arquitectura Teatral. Tese de Mestrado, FCSH– Universidade Nova, Lisboa, Vol. I, Doc. XVI, pp. 304­‑305 6 7

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determinar, uma política de obras públicas, num contexto de exaltação monárquica, que a basílica da Estrela em si já sinalizara (1778). O que definiu uma estratégia para novos equipamentos de incidência coletiva, manifestada explicitamente na decisão de construir o novo Erário Régio (1789) a revelar­‑se como o empreendimento simbólico de um alinhamento de iniciativas que caucionavam o establishment mariano – revelando­‑se como uma cabeça de série, no seu gigantismo retórico. O leque das prioridades definidas programaticamente no Plano pombalino alargava­‑se, mantendo em adiamento sine die a (re)construção do palácio real, previsto para a zona de São João dos Bem Casados/Estrela, inscrito nas opções de Manuel da Maia. Pouco depois o Hospital de Inválidos de Runa (1792), iniciativa filantrópica patrocinada pela irmã da rainha, D. Maria Francisca Benedita, integra­‑se na mesma orientação, comungando de homóloga grandiosidade. O Hospital de Marinha, em Lisboa (1797), saído da determinação de Rodrigo de Sousa Coutinho, 1.º conde de Linhares, e na época secretário de Estado dos Negócios Ultramarinos, vincula ao crescendo de apostas em infra­‑estruturas de inscrição progressista, para conotarem uma política de modernização que à capital do Império assistia, num contexto de turbulências nacionais detectadas na Europa. De modo drástico, o fim do antigo regime desestabilizou a moldura da gestão e da representação políticas. Vejamos como se vai procurar colmatar um vazio deixado pela derrocada do teatro da Ópera do Tejo e como se gera uma dinâmica de investimento no contexto económico alimentado pelo capitalismo financeiro, em torno dos abastados capitalistas detentores dos rendosos monopólios do estado, como é o caso de Quintela, Porto Covo Bandeira, Sobral, Machado e outros. Mas antes atentemos no que se passava em Itália com a construção do Teatro de Ópera da cidade de Milão, infelizmente, também vítima de um demolidor incêndio, em 1776, e do processo de construção que, apresenta homologias significativas com o de Lisboa e com o teatro de São João, do Rio de Janeiro, numa sequência genealógica com sucessivos empréstimos.

O La Scala de Milão (1778) como novo arquétipo de teatro de ópera O arquiteto convidado, para o novo equipamento, foi Giuseppe Piermarini (1734­ ‑1808), que se instalara, em Milão, à volta de 1770, por proposta do seu já idoso mestre Luigi Vanvitelli (1700­‑1774), para tomar conta das remodelações do palazzo Ducale. Aqui veio a responder a várias encomendas e arquitectura civil entre as quais a Villa Reale de Monza, o palácio Belgiojoso, a casa Mellerio, entre outros. Entretanto, em 1776, a imperatriz Maria Teresa de Áustria vem a patrocinar a fundação da Accademia di Brera. Segundo a apreciação de um historiador

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italiano: “Verso quel tempo essendosi aperta nel palazzo di Brera, per opera delle Accademia di Belli Arti, vi fu chiamato all’insegno delle dottrine architettoniche, e vi rimase sino al 1799”8. Na altura ele era o arquiteto melhor preparado para receber a encomenda do Teatro alla Scala, projeto que visava substituir o teatro de Ópera da cidade, entretanto incendiado. De acentuar que o discurso artístico de Piermarini, absorvia as novas correntes do neoclassicismo, que apropriava a fusão com a permeabilidade à influência do legado de Vanvitelli, que recebera de modo taxativo em Caserta, o designado Versailles napolitano. Sobretudo porque o seu idioma afirmava uma rotura com as realizações do tardo barroco, persistentes na região lombarda e em Bolonha: era tido como perito “nell’arte della sesta”, isto é do compasso, que equivale a medida, equilíbrio e geometria, que convinham ao novo código classicizante, pelo que se demarcava “delle contorte linee della maniera barroca”9. O novo lugar para a reconstrução do teatro, que desaparecera, de modo sinistro, também incendiado, foi no largo onde existia uma igreja que remontava a 1381 e tivera como patrocinadora Regina Scala, mulher de Bernabó Visconti, passando a ser denominada de Senhora da Assunção della Scala10, dai a toponímia do sítio. O teatro foi reconstruído em muito pouco tempo, tal como aconteceu com o teatro de Lisboa e o do Rio de Janeiro. Os assinantes dos camarotes constituem, de imediato, um grupo dinamizador que intercede junto da imperatriz que, também de modo célere, fez despachar a autorização. Foram estes melómanos que financiaram a reconstrução com o projeto deste Guiseppe Piermarini chamado para este encargo. É de admitir, carecendo de pesquisa documental, que Rodrigo de Sousa Coutinho (1755­‑1812) nosso embaixador em Turim, a partir de 1779, terá feito eco da iniciativa e chamando a atenção para o inovador modelo de pagamento da construção, de ressonância liberal. É geralmente aceite que a linguagem arquitetónica por aquele adoptada traduz a recepção do neoclassicismo, mas numa versão moderada, a significar que as marcas da aprendizagem com Vanvitelli, o arquiteto tardo barroco, autor do referido palácio de Caserta, e seu mestre decisivo, se estenderam e que o peso das influências dos arquitetos do Cinquecento, de tanto impato no norte de Itália, reforçaram esta encadeamento da formação do seu léxico. Existe um quadro de Anton Raphael Mengs (1728­‑1779) representativo desta situação de encruzilhada de códigos, no momento da adopção do neoclassicismo e da persistência do gosto neo­‑cinquecentesco, em que Palladio vem a preponderar na consolidação das expressões individuais dos arquitectos desta geração. CAINI, Antonio (1862), Delle arti del designo e degli artisti nelle provincie di Lombardia dal 1777 al 1862 [...]. Milão: presso Luigidi Giano Pirola, pp. 14­‑15 9 Id., ibidem, p. 14 10 TORRE, Carlo (1674), Il Ritratto di Milano, diviso in tre Libri [...]..Milano: Federico Agnelli Scult. 1674, p. 297 8

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Figura 2 – Anton Raphael Mengs Retrato alegórigo de James Caulfiled, 1.º conde de Charlemont. Óleo sobre tela, c. 1756. Sob o busto de Andrea Palladio a inscrição: D [icatum] M [memorie] / M [arcii] Vitruvvi Pol [lio] ni/ Architect [i] / Pollion M [onumentum] B [ene] M [erenti] P [osuit]. Praga, Galeria Národiní, inv. n.º D0 4561

Considerações que são extensíveis ao percurso de José da Costa e Silva (1747­ ‑1819), como iremos apreciar, e às suas opções de linguagem arquitetónica. O retrato em causa realizado em Roma pelos anos de 1754­‑1756 representa James Caulfield, 1.º conde de Charlemont11, conhecido anticómano, que devotara nove anos ao seu “Grand Tour”, em Itália, Grécia, Turquia e Egipto. Enquanto alegoria a representação mostra a figura da Arquitetura, que parece aconselhar (o retratado) que não deva seguir (ou imitar) Vitrúvio, na sua superioridade arquitetónica, de grande mestre da Antiguidade, mas antes se deva orientar para o exemplo de Andrea Palladio (1508-1580). Este prefigura a articulação bem resolvida entre a teoria e a prática, posto que, juntamente com a sua actividade de projetista, autor de obras famosas, publicou textos teóricos e também as “Antiguidades de Roma”12, em que celebra o legado arquitetónico da cidade imperial, para além de ter realizado os desenhos para uma reedição comentada da obra de Vitrúvio da iniciativa de Daniele Barbaro. O gesto da Arquitectura não implica necessariamente uma crítica direta de Vitrúvio, mas procura atingir as vãs tentativas do diletante inglês, que queria ocupar­‑se da teoria. A Arquitetura indu­‑lo a abandonar os puros estudos teóricos e a voltar­‑se para a prática arquitetónica. Já no fundo do retrato o edifício com a Pertence à Galeria Národní, de Praga, n.º inv. DO 4561; foi igualmente belissimamente retratado por Pompeo Batoni, em que o mostra com o Coliseu romano ao fundo, (c.1753) 12 L’Antichita di Roma. Roma: Apresso Giulio Bolano, 1566. BNP, HG 10387 P. 11

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Figura 3 – Planta do Real Teatro de São Carlos, Lisboa, da autoria de José da Costa e Silva, 1792,assinada Giuseppe da Costa e Silva, GEAEM. Figura 4 – Planta do Teatro alla Scala de Milão, projeto do arquitecto Guiseppe Piermarini, 1776­‑1778, gravura do livro de sua autoria Teatro della Scala in Milano, Milão, 1789.

sua ordem de pilastras da ordem toscana parece referir­‑se à gramática usada por William Chambers (1723­‑1796), protagonista das correntes do neopalladianismo inglês13. Esta orientação vincula­‑se à reapreciação do legado palladiano na orientação da valorização do corpus da antiguidade clássica, interpretada por este tratadista e de enorme aceitação em Inglaterra. Ora, em 1778, José da Costa e Silva (1747­‑1819) que se encontrava na sua fase final do percurso letivo em Itália, cumprido a partir de 1769, passou por uma contrariedade com a partida, para Milão. de Carlo Bianconi (1732­‑1802) – convidado para assegurar a direção da recém formada Academia de Brera – ele que era o seu mestre venerado, em diferentes vetores, na Academia Clementina de Bolonha, que frequentava há cerca de nove anos. Assinale­‑se que nesse ano se inaugurou 13

Autor do influentíssimo Treatise on Civil Architecture, publicado em 1759

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Figura 5 – Planta do Real Teatro de São Carlos, Lisboa, da autoria de José da Costa e Silva, enviada para o Rio de Janeiro em 1811 (?). BNRJ. Figura 6 – Alçado do Teatro La Scala de Milão do arquitecto Guiseppe Piermarini, 1776­‑1778

Figura 7 – Vista da Fachada o Teatro La Scala, Milão, Bilhete­‑postal, séc. XX, princípios. Figura 8 – Real Teatro de São Carlos em Lisboa, c. 1839, gravura de Ch. Legrand, BNP.

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o Teatro alla Scala, com a proposta de Giuseppe Piermarini, numa atmosfera cultural que resgatou a cidade para um protagonismo em que a Accademia de Brera também participou. Admite­‑se que Costa e Silva, que regressará a Lisboa só no final de 1779, pudesse ter visto esta nova Casa de Ópera, já que os últimos anos da sua permanência em Itália foram aproveitados para fazer o seu Grand Tour, pelo que a hipótese é defensável. Da sua correspondência que no­‑lo revela, menciona­‑se o milanês ou o genovesado como locais de peregrinação. Já em Lisboa e depois do impactante projeto para o Erário vai ser chamado a projetar o grandioso teatro de Ópera, erigido para celebrar o nascimento da princesa D. Maria Teresa, primogénita da união do príncipe D. João com a princesa D. Carlota Joaquina, que veio a chamar­‑se Teatro de São Carlos (no princípio ainda Teatro della Principessa). Pina Manique foi o motor deste empreendimento, estabelecendo um modelo de financiamento, com recurso aos comerciantes de grosso trato, do emergente capitalismo financeiro e cujas receitas seriam destinadas à Casa Pia14. O que significa também que o Teatro passou a ficar na alçada da Intendência de Polícia. O irmão do conselheiro Joaquim Inácio da Costa Sobral (1728­‑1802), protector de Costa e Silva, durante a sua permanência em Itália, e que era Anselmo José da Cruz Sobral, Inspector das Obras Públicas (1791), e também opulento comerciante, representado através de seu filho Sebastião Sobral, mostrou­‑se figura agilizadora, garantido as verbas para a imparável rapidez do levantamento do Teatro15. O empréstimo direto do La Scala que se verifica na obra do teatro de São Carlos de Lisboa, iniciada em 1792, parece ser admitida e esta presunção ganha assim sentido. Se bem que a sua fachada recorre a outras influências italianas neocinquettcentescas, mais expressivamente, em Palladio, com o recurso ao bugnato no piso térreo, à estruturação planimétrica e ao emprego da colunata adossada, da ordem dórica, no piso nobre, que lhe atribui uma dimensão colossal. Ou em Vignola, precisamente, no seu desenho das pseudo pilastras de junta grossa fendida, dos corpos laterais, usados por este na villa Farnese, Caprarola (1573), o que contribui para a dimensão robusta, habitualmente, fixada na sua leitura arquitetónica.

FRANÇA, José­‑Augusto (1966), A Arte em Portugal no Século XIX, Vol. I. Lisboa: Editora Bertrand, p. ; SILVA, Raquel Henriques (1998), Lisboa Romântica. Urbanismo e Arquitectura, 1777­‑1874. Dissertação de doutoramento, FCSH­ ‑Universidade Nova de Lisboa, pp. 15 VASCONCELOS, João José de (1802), Elogio Funebre do Conselheiro Anselmo Jozé da Cruz Sobral, etc[…].Lisboa na Officina Nunesiana, p. 20, “Direi eu ser Elle o primeiro móvel, de haver na corte hum Teatro, que não cede na Grandeza, na Architectura, Magnificencia, e Decoração a nenhum dos mais famigerados da Europa? Acaso fallarei …?”. As eficazes provas dadas na inspecção das obras da real basílica da Estrela reforçaram a sua escolha. 14

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Figura 9 – Real Teatro de São João do Rio de Janeiro, gravura de Loeillot, 1835, BNRJ.

O Teatro de São João do Rio de Janeiro, no largo do Rossio Em 1811, já nos trópicos, o príncipe regente incrementou uma estratégia política de metropolitização do Rio de Janeiro com o patrocínio do levantamento de um teatro de Ópera que, tradicionalmente, anda atribuído ao engenheiro militar, marechal José Manuel da Silva (membro da Junta Diretiva do Arquivo Militar)16. Também o intendente da Polícia da cidade, Paulo Fernandes Viana (1758­‑1821), assume a liderança decisiva no ritmo das obras e na recolha dos fundos privados para o seu custeio, paralelismo a assinalar com o teatro de corte de Lisboa. Em reacção ao determinante convite de D. João, Costa e Silva vem a partir para o Brasil (1812) e sua incumbência prioritária foi a de terminar as obras em curso (1813), do Real Teatro de São João, para as quais, admite­‑se, terá mandado os projetos de Lisboa e, depois, seguidos na capital carioca, tendo em conta a proximidade de linguagem, entre os dois teatros. A complexidade técnica que um projeto desta envergadura exigiria, conhecimentos e preparação, nomeadamente sobre a tipologia da sala que seguia os novos protótipos, aquele engenheiro militar não teria. A planta do piso térreo, reveladora na atualizada forma de ferradura, que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, testemunhará o seu emprego local e ajuda a caucionar este pressuposto17. Define­‑se, assim, a apropriação de uma tipologia de arquitectura pública, vinculada ao neoclassicismo, cujo itinerário se vem a concluir no palco da nova corte na capital carioca18.

CAVALCANTI, Nireu (2004), O Rio de Janeiro Setecentista, a vida e a construção da cidade. Da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 372. 17 TEIXEIRA, José de Monterroso (2013), José da Costa e Silva (1747­‑1819) e a receção do neoclassicismo em Portugal: a clivagem e a prática arquitetónica. Tese de Doutoramento, Universidade Autónoma de Lisboa, pp. 546­‑563 18 LIMA, Evelyn F. Werneck (2009), “Arquitectura e dramaturgia: modelos iluminados da Corte refletidos na Casa da Ópera de Vila Rica e no Teatro de São João (1770­‑1822)”, Revista Convergência Lusíada, 24, 2º semestre, Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro, p. 177 16

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Figura 10 – A Verdade Triunfante, Elogio dramatico e allegorico para se representar no Real Theatro da corte do Rio de Janeiro. Na Impressão Regia, 1813, BNP.

A minúcia do memorialista Gonçalves dos Santos elogia o novo equipamento e compara­‑o com os melhores teatros da Europa, na necessidade de demonstrar que a cidade se perfilava nesta dimensão artística, cumprindo indicadores de modernidade no acesso público às manifestações de civilização. Ele refere testemunhalmente: “Este Real Teatro, situado no lado setentrional da espaçosa Praça do Rossio, traçado com gosto e construido com magnificencia, a ponto de emular os melhores teatros da Europa, tanto pelo aparato de formosas decorações, pompa do cenario, e riqueza do vestuario, quanto da grandeza e suntuosidade do real camarim, comodo, e asseio das diferentes ordens dos camarotes, amplidão da plateia, e outras qualidades”19. Conhece­‑se que o arquiteto Costa e Silva que se vê nomeado de todas as obras oficiais, teve como uma das suas primeiras tarefas supervisionar os trabalhos em andamento na Ópera. Aqui reencontrou o pintor Manuel da Costa chegado um ano antes, 1812, e que se encarregaria das pinturas ornamentais dos interiores (e posteriormente) até da cenografia, a retomar uma parceria que mantivera em obras tal

19

SANTOS, Luís Gonçalves dos (2008), op. cit., p. 321.

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como as do palacete Pombal, da capela do paço de Vila Viçosa e até no do Real Paço de Queluz. O corpo da fachada principal do teatro na sua morfologia tripartida faz avançar o pórtico central de aparelho de junta fendida, conferindo­‑lhe marca discursiva derivada de modelos neoclássicos reportados na recepção em cadeia aqui no Rio de Janeiro, e em Lisboa, à matriz milanesa.

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Portal sul da Igreja dos Jerónimos, foto JMF

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PORTUGAL­‑BRASIL NO SÉCULO XIX: CRUZAMENTOS CULTURAIS EM PROL DA DEFINIÇÃO DE PÁTRIA Raquel Henriques da Silva Professora da FCSH da UNL

“Deve notar­‑se que, neste século incrédulo, poetas e novelistas se comprazem em retroceder naturalmente aos costumes dos nossos antepassados, em introduzir nas suas ficções os subterrâneos, os fantasmas, os castelos e os templos góticos; como é poderoso o encanto das recordações que se enlaçam com a religião e a história da pátria”. Chateaubriand, O Génio do Cristianismo, 18021

Prólogo: o fascinante século XIX Um dos aspectos mais interessantes do século XIX, para quem estuda a sua cultura artística, é o seu carácter bifronte: por um lado, é herdeiro de poderosos adquiridos, que se mantêm activos nas academias e nas práticas delas decorrentes; por outro, questiona permanentemente essas heranças, reivindicando o direito à invenção, através da liberdade da expressão individual. A enérgica complexidade da cena artística contextualiza­‑se numa cultura, e também numa economia, que se Citado in Pedro Navascués Palácio, “Fundamentos da Arquitectura Neomedieval” in O Neomanuelino ou a reinvenção da Arquitectura dos Descobrimentos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/ Instituto Português do Património Arquitectónico, 1994 (catálogo de exposição comissariada por Regina Anacleto). 1

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movem entre o imparável percurso para a mundialização, empurrada pelas revoluções industriais, e a forte afirmação das nações, num jogo temível de confrontos que hão­‑se conduzir à primeira guerra mundial, dirimida entre os países europeus, mas que se estendeu aos territórios coloniais. O carácter contraditório do século XIX não será, eventualmente, maior do que o de outra qualquer época, mas, neste caso, o que está em elaboração é o mundo em que hoje vivemos, delineado por gente de quatro ou cinco gerações anteriores à nossa e que, no essencial dos seus empenhos e questionamentos, são nossos exactos contemporâneos. É esta alvorada do tempo e da cultura do presente que me fascina, tanto mais que os problemas então formulados continuam, para nós, em grande parte irresolutos. No caso português, o pessimismo, hoje dominante, sobre a possibilidade de sobrevivência do Estado e talvez mesmo da Nação, é o mesmo da intelectualidade fino oitocentista, quando gente tão notável como Eça de Queirós, Oliveira Martins ou Antero de Quental ‘provaram’, perante o seu tempo e para o futuro, que Portugal era a ‘choldra’, epíteto atribuído ao próprio rei D. Carlos I2. E, no entanto, apesar de Fernando Pessoa a acusar de ‘provincianismo’3, aquela foi uma geração brilhantíssima que, ao contrário das suas proclamações catastrofistas, deixou a prova definitiva da existência da Nação, através de obras­‑primas de talento, inventividade, plena actualização internacional e militantemente auscultadoras do futuro. Do meu ponto de vista – que raramente vejo enunciado por outros historiadores – o século XIX, quando visto, não na dimensão da micro­‑análise, mas no seu movimento conjunto, manifesta capacidade permanente de Regeneração. ‘Perdeu­‑se’ o Brasil, houve uma violenta guerra civil, extinguiram­‑se os conventos, falharam­‑se os alvores do desenvolvimento capitalista internacional, bem como da generalização da alfabetização, atingiram­‑se quantitativos impressionantes de emigração, assistiu­‑se à agonia da monarquia. Todavia, Portugal não soçobrou, entrando em 1900 guiado pela grande esperança republicana, pela crescente importância das colónias africanas, geradoras do desenvolvimento epocal. Guiado também pelas obras dos seus artistas que, depois do brilhantismo das heranças da Geração de 70, serão Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Amadeo de Souza Cardoso, marcados pela rebeldia e pelo modernista desejo de corte com o passado, para não Este tema tem sido amplamente trabalhado na história da cultura em Portugal. Mas a sua obra de referência é O Labirinto da Saudade. Psicanálise mítica do destino português de Eduardo Lourenço, Lisboa: Dom Quixote, 1978. Afirma o autor, na p. 26: ‘O século XIX foi o século em que pela primeira vez os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos, a sua imagem de povo com vocação autónoma, tanto no ponto de vista político como cultural. Que tivéssemos merecido ser um povo, e um povo com lugar no tablado universal, não se discutia. Interrogávamo­‑nos apenas pela boca de Antero e de parte da sua geração, para saber se éramos ainda viáveis, dada a, para eles, ofuscante decadência. Curiosamente, o exame de consciência parricida intentado ao «ser nacional» tinha lugar na mesma altura em que Portugal se religava, com algum êxito, a essa Europa, exemplo de civilização, cuja comparação connosco nos mergulhava em transes de melancolia cívica e cultural, tais como a obra de Eça os exemplificará para o nosso sempre. (…)’ 3 Fernando Pessoa, “Portugal entre Passado e Futuro”. [consult. 15/03/2013]. Disponível em: http://www.citador.pt/textos/ o­‑provincianismo­‑portugues­‑i­‑fernando­‑pessoa 2

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falar da força telúrica do poeta Teixeira de Pascoais que aqueles jovens tanto admiravam, nos primeiros anos do novo século. Mesmo para os mais cépticos – onde, definitivamente, não me encaixo – há um adquirido notável que o século XIX nos legou: o nascimento da grande nação brasileira, romanticamente representada por D. Pedro, Duque de Bragança e herdeiro rebelde da Coroa portuguesa. O seu gesto juvenil – metáfora mais do que rigor da História – foi a origem, em Portugal, da guerra civil, cujos resultados desastrosos se prolongaram por cinquenta anos, mas também de um peculiar relacionamento entre as elites dos dois países. Ele permitiu que a nova nação aprofundasse a sua imensa individualidade na geo­‑história da América Latina, mas também que Portugal se mantivesse, no tempo oitocentista, como a sua matriz cultural. Neste domínio, as trocas entre as duas nações foram então activíssimas em todos os campos, mais na literatura mas também nas artes plásticas, envolvendo ainda o coleccionismo. Neste texto, elaborado para o «Colóquio Internacional Portugal – Brasil – África: Urbanismo e Arquitectura, do Eclectismo ao Modernismo (sec. XIX­‑XX)», é a arquitectura que me interessa, ligada a dois tópicos fundamentais da cultura oitocentista ocidental: a questão de estilo nacional monumental, que em Portugal será o Manuelino, e o sonho de encontrar o molde e o modelo da Casa Portuguesa, para inscrever a encomenda privada de casas próprias com que as cidades procuravam ainda, mas já em vão, confrontar a sua densificação crescente. Em ambos os tópicos, foi determinante o que aqui designo por diálogo Portugal­‑Brasil. Trata­‑se de uma reflexão sobre investigações que não fui eu que realizei mas que procuro utilizar com uma perspectiva inovadora.

Francisco Adolfo Varnhagen e a invenção do Manuelino F. A.Varnhagen (1816­‑1878) nasceu em S João de Ipanema, região de Sorocaba, Estado de S. Paulo. Segundo António Paim4, o seu pai, engenheiro de minas alemão ali se instalara para trabalhar na Fábrica de Ferro que, nos primeiros anos do século XIX, fora mandada criar por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o mais notável In António Paim, ‘Varnhagen e os alicerces da historiografia brasileira’ in Francisco Adolfo Varhagen, História Geral do Brasil, org. por António Paim, Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, 2011, em linha: http://www.cdpb.org.br/ varnhagen_historia_geral.pdf (acedido: 9 de Abril de 2013), p. 4. Para uma visão actualizada da recepção crítica desta obra de Varnhagen, ver Evandro Santos, ‘A História Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen: apontamentos sobre o género biográfico na escrita da história oitocentista’ in História da Historiografia, Ouro Preto, nº 9, 2012, p. 88­‑105, em linha: www.ichs.ufop. br/rhh/index.php/revista/article/download/366/301 (acedido: 9 de Abril de 2013). 4

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ministro da rainha D. Maria I. Sem me alongar numa biografia que manifesta, com grandeza, as profundas transformações da História, interessa destacar a formação portuguesa de Varnhagen. Tendo vindo para Portugal em 1821, foi em Lisboa que estudou, licenciando­‑se em engenharia na Real Academia de Fortificação. Combateu na guerra civil, como voluntário do exército de D. Pedro e integra­‑se nos círculos intelectuais portugueses, tendo participado na revista Panorama, fundada em 1836 e dirigida por Alexandre Herculano. Paulo Pereira, em importante artigo5, ausculta a rede dos seus relacionamentos que contemplam D. Fernando II, o Cardeal Saraiva e Almeida Garrett. Terá sido através de um conterrâneo do rei e de seu pai, o Barão Von Eschwege, arquitecto do Palácio Nacional da Pena então em edificação, que se tornou membro da Real Academia das Ciências. Publicara já a sua primeira obra, Reflexões Críticas, onde estuda ‘um manuscrito do século XVI, contendo uma descrição geográfica, etnográfica e natural do Brasil durante a colonização quinhentista’ (PEREIRA, 1986: 295). A preparação deste trabalho exigiu­‑lhe conhecimentos de Paleografia e Diplomática que estudou na Torre do Tombo, certamente beneficiando, também aqui, do convívio com Herculano e com ele partilhando a paixão da investigação. Todavia, foram certamente as exigências da revista Panorama comprometida na divulgação de ‘conhecimentos úteis’, como assumia no seu próprio título, que conduziram Varnhagen a debruçar­‑se sobre a Mosteiro dos Jerónimos. A valorização da arquitectura medieval foi um grande tema de Herculano – como imagem idealizada da sociedade austera que consolidou Portugal – e, desde os estudos fundadores de James Murphy6 ainda no século XVIII, a questão do estilo da Batalha estava na ordem do dia. Contra a opinião corrente da sua origem inglesa, Herculano defenderá, no notável conto A abóbada7, que o seu arquitecto era o português Afonso Domingues, proclamando assim a originalidade e superioridade, ética e estética, da arquitectura portuguesa da época de D. João I. Nesses anos estava já a decorrer a campanha de restauro, dirigida por Mouzinho de Albuquerque, e o jovem Varnhagen certamente visitou o monumento e participou nas polémicas que estavam na ordem do dia. Por outro lado, e mais determinantemente, interessa referir o importante estaleiro que decorria em Sintra, com a edificação do Palácio da Pena, a obra­‑prima do romantismo português, ecléctica e exótica, marcada pelo gosto e intervenção directa do rei D. Fernando II, e servida pela dedicação de Eschwege. É possível que Varnhagen tivesse reservas em relação aos valores estéticos daquela obra Paulo Pereira, «Alguns Aspectos da Cultura Artística de F. A. Varnhagen», Romantismo – Da Mentalidade à Criação Artís‑ tica, Sintra, 1986, p. 293­‑327. 6 Sobre a importância de Murphy na divulgação do gótico do Mosteiro da Batalha, ver Maria João Baptista Neto, James Murphy e o restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XIX. Lisboa: Estampa, 1997. 7 Alexandre Herculano, A abóbada. O Panorama: jornal literário e instrutivo da sociedade propagadora dos conhecimentos úteis, 1839. Em linha: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_abobada. 5

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majestática, mas sabe­‑se que recorreu aos artífices do estaleiro para enriquecer o glossário que acompanhará a sua Notícia Histórica e Descriptiva do Mosteiro de Belém, publicada, sem nome do autor, no Panorama, em 18428 e editada, em folheto autónomo de 59 páginas, mais uma vez anónimo9, dedicado ‘Aos admiradores da architectura romantica’. Em Portugal, este é o texto fundador do entendimento do Manuelino como ‘estylo original portuguez’ que Varnhagen caracteriza através de ‘10 caracteres principais’ (PEREIRA, 1986: 299), dotando de espessura técnica, estética e decorativa uma apreciação que outros já haviam sugerido (nomeadamente Mouzinho de Albuquerque e Almeida Garrett) e oferecendo assim, à cultura portuguesa, um estilo arquitectónico caracterizador da sua identidade, como outros reivindicavam o gótico ou a renascença. Paulo Pereira, no artigo que tenho vindo a utilizar, analisa detalhadamente a cultura artística do jovem historiador, verificando o seu domínio das fontes portuguesas mas também a capacidade de as contextualizar internacionalmente. Considera ainda que a caracterização do Manuelino é pertinente, bem estruturada e fundamentada, nomeadamente pelo facto de valorizar o seu eclectismo com raízes góticas, clássicas e mouriscas. A este propósito, vale a pena citar o próprio Varnhagen: «Bem como a igreja d’aquelle mosteiro Belem, elle o claustro ata e infeixa com suas inredadas laçarias todos os géneros d’architectura, confundindo as tradições góticas e as reminiscências clássicas, a simplicidade normanda e a luxuriante riqueza moirisca. Domina porêm sobre tudo um pensamento nacional e próprio, uma idea de grandeza, de elevação e de entusiasmo, que geralmente characterizam aquella época (…)10. Não cabe nos objectivos deste texto, aprofundar a reflexão sobre o Manuelino e a análise do opúsculo de Varnhagen. Sabe­‑se que, a partir desta formulação cuja cientificidade epocal quis destacar, o tema dividiu os meios historiográficos portugueses, nomeadamente pela contra análise, muito rigorosa também, de Joaquim de Vasconcelos, que considerou que o Manuelino não era mais do que ‘acidentes de decoração’ sem qualquer personalidade estilística própria (PEREIRA, 1986: 315). Mas muitos outros haveriam de partir de Vernhagen para definir a alma portuguesa através da exuberância exótica do Manuelino, com uma fortuna crítica que teve considerável divulgação internacional.

O Panorama, t. I, 2ª s, 1842, ps 58­‑61, 99­‑102, 109­‑111, 125­‑126, 130­‑33, 138­‑40. Segundo Paulo Pereira, op. cit., p. 298, só um ‘13º capítulo’, publicado, em 1843, de novo na revista O Panorama é assinado, permitindo confirmar a autoria do conjunto da obra. 10 In Paulo Pereira, op. cit., p. 313­‑314. 8 9

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Mais interessante é considerar­‑se que, ao mesmo tempo que inventou o Manuelino para a História da Arte e para a fundamentação de uma cultura nacional, baseada em particularismo identitário, o autor fornecia a arquitectura contemporânea com a matriz de um revivalismo específico, para aprofundar e alargar o particularismo imagético português. Nascia assim a ideologia nacionalista que caracterizou o neo­‑manuelino, no momento preciso em que o rei D. Fernando II o propunha, em alguns aspectos compositivos, decorativos e iconográficos do seu Palácio da Pena. Neste domínio, a obra de Vernhagen foi igualmente profícua: imediatamente relacionada com a valorização da Torre de Belém (sobre a qual escreveu um artigo, em 1840, publicado também em O Panorama), o início do restauro e ampliação revivalista do próprio Mosteiro dos Jerónimos, e, a partir do final do século, com numerosas edificações que cobrem diversas tipologias arquitectónicas, públicas e privadas, em Portugal e em algumas cidades brasileiras11. O que me interessa sublinhar é que, sistematizando e formalizando, uma ideia que ‘iria correndo nos meios cultos’, na feliz expressão de Vergílio Correia (PEREIRA, 1986: 315), Varnhagen dotava a Nação com uma identidade expressiva da maior relevância, porque a grandeza da arte manuelina era a representação artística de uma época gloriosa, caracterizada pela ambição política de D. Manuel e pela gesta dos Descobrimentos. A esse período heróico, seguir­‑se­‑ia a fatal decadência (traduzida, artisticamente, pela servidão ao gosto romano) que aquela geração de intelectuais, combatente na guerra civil ao lado de D. Pedro, queria resgatar e refundar. Muito curiosamente, o autor da Notícia Historica… era um jovem historiador português, filho de alemão e nascido no Brasil, que pretendia estudar as origens da nova nação brasileira. A promissora carreira de historiador da arte não teve qualquer continuidade. Em 1841, pede e obtém a cidadania brasileira e será ao serviço da sua reivindicada pátria que, paralelamente a uma carreira diplomática, prosseguirá a sua obra de historiador, no quadro do prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Assim, se dotou Portugal com um estilo artístico identitário, ao Brasil doou a História Geral do Brasil, 1854­‑1857 que propõe também uma particularidade identitária, forjada no processo colonial e no processo da independência, ambos profundamente comprometidos numa matriz portuguesa12. Ao historiador interessa abrir este campo de reflexão, numa perspectiva de levantar questões sem pretender resolvê­‑las. Mas partindo de factos inquestionáveis que manifestam quanto a construção simbólica da nação, quer se trate de

Para inventário e problematização deste tópico, ver O Neomanuelino ou a reinvenção da Arquitectura dos Descobri‑ mentos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/ Instituto Português do Património Arquitectónico, 1994 (catálogo de exposição comissariada por Regina Anacleto). 12 Ver, para ampliação deste tópico, no contexto da cultura romântica, Pedro Telles da Silveira ‘Ficção, literatura e história através da «Crónica do descobrimento do Brasil» (1840) de Francisco Adolfo Varnhagen’ in História da Historiografia, Ouro Preto, nº 9, 2012, p. 34­‑54, disponível em http://www.ichs.ufop. br/rhh/index.php/revista/article/view/70/33 (acedido: 13 de Abril 2013) 11

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Portugal, quer do Brasil, foi, no século XIX, intensamente partilhada entre as elites das duas pátrias.

Ricardo Severo entre a Casa Portuguesa e a arquitectura Neocolonial Perante o dispositivo bifronte da cultura oitocentista já evocado, o tema da Casa Portuguesa é a outra fase do Manuelino/ Neo­‑manuelino, manifestando o mesmo desejo de representar a alma da Nação, através da arquitectura13. Trata­‑se de um tema transversal à cultura europeia e americana fino oitocentista que ganha em ser pensado em perspectiva bifronte, mais uma vez. Assim, a procura de um estilo histórico monumental (o Gótico para a Grã Bretanha ou a Alemanha ou a França, tal como o Manuelino para Portugal, o Isabelino para Espanha e o Classicismo para Itália…) visa ancorar a identidade pátria na cultura erudita, em processo acelerado de aprofundamento e complexificação (recorde­‑se que o Românico só então ‘nasce’, separando­‑se do Gótico). Mais circunscrito, o tema da ‘Casa’ (portuguesa, espanhola, francesa, americana ou brasileira…) significa a valorização das culturas não eruditas, ou menos entendidas como tal (o mourisco, nas culturas do sul da Europa, por exemplo…) que a etnografia está então a valorizar. Deste ponto de vista, começa a inventariar­‑se as culturas populares sem expressão escrita, tanto nas arquitecturas, como na literatura, nos rituais da festa e de práticas religiosas, no canto e na música, na gastronomia, nos saber­‑fazeres quotidianos. A descoberta e valorização das culturas populares pode e deve ser comparada com a descoberta e valorização das culturas não eruditas e não europeias, nas Américas, em África e nas regiões do Pacífico Sul que a mesma nascente etnografia começa a estudar e a coleccionar para os grandes museus da Europa. Estes, além de pretenderem representar a Nação, ambicionam também, no contexto colonial

Além da questão do Neomanuelino e da Casa Portuguesa, outros revivalismos devem ser considerados na cultura arquitectónica portuguesa, por exemplo o neo­‑românico. Por outro lado, de modo semelhante ao que noutros países europeus acontecia, permanecem, com forte capacidade discursiva, as práticas decorrentes do ensino académico, dominado pelos modelos franceses das Beau­‑Arts. E é indispensável considerar ainda as componentes mais inovadoras, e mais denegadas, da arquitectura do tempo, praticadas pelos engenheiros. Deste ponto de vista, as mais notáveis obras da arquitectura portuguesa de então são as pontes sobre o Douro, projectadas por Eiffel e Seyrig ou o Elevador de Santa Justa em Lisboa de Raoul Mesnier du Ponsard. Tratei em diversos textos estes temas, nomeadamente Raquel Henriques da Silva, –“A «Casa Portuguesa» e os novos programas, 1900­‑1920” in Portugal. Arquitectura do século XX. Portugal­‑Frankfurt 97, Prestel, Deusches Architektur­‑Museum/Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1997 (Catálogo de exposição comissariada por Ana Tostões); Raquel Henriques da Silva, ‘Portugal 1900: Urbanismo e Arquitectura’ in Portugal 1900. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 (catálogo de exposição comissariada por José Castelo Branco Pereira), p. 101­‑114 (também edição em inglês). 13

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da época, o domínio da Nação sobre o mundo. Está a nascer a História dos povos ‘sem História’ e sabe­‑se quanto essa questão foi determinante, por exemplo, para a afirmação das artes contemporâneas que descobrem e valorizam ‘o feio’ dos sistemas plásticos ditos primitivos, como um belo outro, mais enérgico e mais motivador que o cansado belo do cânone clássico. Em cada nação europeia, o ‘outro’ – que nos confronta e nos faz sonhar – não é apenas o ‘primitivo’ dos territórios coloniais, mas está ali, como Povo, agarrado à terra ou ao mar, à dura subsistência, quase nada beneficiando das economias urbanas e cosmopolitas, desconfiado delas, tendencialmente endogâmico e profundamente dependente de um cristianismo que, em tempos fundadores, soubera acolher crenças e rituais antiquíssimos. Como os ‘primitivos’, as crianças, os loucos ou os artistas ingénuos, o Povo não precisara de ir à escola para fazer arquitectura e todas as artes, e para lidar com o pensamento simbólico e as suas representações. E, mais importante ainda, era o Povo que encarnava os valores pátrios nos seus cernes mais significantes. Essa Pátria que, defendem os historiadores românticos – ainda que utilizando métodos positivistas, como Alexandre Herculano ou Francisco A. Varnhagen – é anterior aos Estados, subsiste às guerras e aos confrontos políticos, acumulando ao longo de tempos quase imóveis, os valores, os saberes e as crenças que são, em si mesmo, a Nação. Em Portugal, o inquérito às arquitecturas populares é coevo da discussão sobre se o ‘estilo nacional’ seria o manuelino ou o românico, mas também da generalização de um eclectismo fachadista que se instala nos bairros novos das cidades e nos territórios de veraneio, bebido em modas internacionais, inspirando­‑se ora em castelos ingleses, em chalets suíços, em palácios venezianos ou marroquinos. Contra essa dissolução do gosto, que Ramalho Ortigão designou por ‘horto psiquiátrico’14, interessava definir ‘a casa portuguesa’ que, sem recusar, peremptoriamente, as heranças classicistas, deveria sobretudo inspirar­‑se nas tradições edificatórias. O primeiro inquérito, realizado com alguma sistematicidade, deve­‑se a Rosa Peixoto com a finalidade de contextualizar a edificação da casa própria de Ricardo Severo que, na sua opinião, vinha ‘dilatar (…) o débil movimento promovido pela aspiração ainda indecisa da nacionalização do domicílio português’15. Não é objectivo deste texto reflectir sobre Rosa Peixoto, um dos pioneiros da etnografia portuguesa que, nesses anos iniciais do século, constitui uma espécie de variante epistemológica da pesquisa arqueológica. Mas não posso deixar de

In Ramalho Ortigão ‘A obra de Ventura Terra. A nova Câmara dos Deputados em Lisboa’, A Arte e a Natureza em Portu‑ gal, vol. III, Porto, 1903, recolhido in Obras completas de Ramalho Ortigão. Arte Portuguesa, vol. II, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1943, pag.198. 15 In Rosa Peixoto ‘A Casa Portuguesa’ in Rosa Peixoto, Obras. Vol. I: Estudos de Etnografia e Arqueologia. Câmara Municipal de Póvoa de Varzim, 1967, p. 153. Este artigo foi pela primeira vez publicado no jornal O Primeiro de Janeiro, Porto, 10, 12, 13 de Agosto de 1904 e republicado, com o elenco fotográfico definitivo em Serões, Lisboa, 2ª S., Vol. I, nºs 2, 3, 4, 1905. 14

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salientar o seu carácter negativista em relação ao tratamento do tema, contrariando uma linha dominante, mais lírica e mais rigorosa que antes evoquei. Utilizando sobretudo exemplares das arquitecturas rurais do Norte e do interior de Portugal (com um apêndice fotográfico de grande importância), o autor salienta a profunda articulação entre a natureza e a edificação, quer pelos materiais utilizados, quer por aspectos funcionais, quer pela implantação escolhida. Por isso, a arquitectura popular limitava­‑se a ser consequência dos condicionalismos geográficos, sendo eminentemente ‘simplista’, sem qualquer capacidade de gerar ‘o destaque duma casa ou casas de indefectível estilo nacional’. Indo mais longe, Rosa Peixoto afirma, sem qualquer hesitação, que ‘os interiores’ traduzem ‘o espírito nacional’, pela sua ‘tradicional penúria, índole rude e violentamente utilitária, indigência mental dum povo absolutamente carecido de faculdades artísticas’ (Peixoto, 1967: 160). A dureza deste julgamento, bastante inesperado para um etnólogo, alarga­‑se à avaliação das ‘casas senhoriais’ que ou são ‘modificação erudita ou a corrupção pedante da modesta casa de lavoura e mais frequentemente um tipo de importação francesa ou italiana’ (Idem: 161). Este estado das coisas arquitectónicas terá inspirado a melhor decisão a Ricardo Severo que, recordava Peixoto, ‘além de engenheiro é um arqueólogo ilustre’. Não havendo ‘um estilo de casa citadina’, ele coleccionou motivos construtivos e, sobretudo decorativos, com origens diversas que o autor enumera em seguida, sem perceber que, nessa descrição longa, minuciosa e variada, estava a provar a incorrecção do que antes dissera: poderia não haver um ‘estilo nacional’ de arquitectura mas não havia, definitivamente, ‘nem índole violentamente utilitária’ e muito menos carência de ’faculdades artísticas’. Este é assim um texto estranho e desequilibrado, manifestando incapacidade de compreender e analisar as problemáticas em questão, sobretudo porque pensa a arquitectura como decoração. No entanto, foi ele que lançou para a discussão o tema ‘casa portuguesa’, relacionando­‑o com a casa própria de Ricardo Severo, acabada de edificar no Porto e que, aos olhos actuais da crítica mais qualificada16, sempre foi considerada aquilo que é: um conjunto mal articulado de citações compositivas e decorativas, constituindo a pele de interiores convencionais, de um luxo urbano, predominantemente internacional. Apesar da fraca qualidade desta casa ela é, como bem frisou Pedro Vieira de Almeida, ‘um documento de real interesse na história da arquitectura moderna em Portugal’ (ALMEIDA, 1986:16). Mas é muito mais do que isso, se nos recordarmos

Cite­‑se, por exemplo, Pedro Vieira de Almeida in História da Arte em Portugal. Vol. XIV: A arquitectura moderna. Edições Alfa, 1986, p. 15: ‘Lida hoje, e independentemente das críticas então feitas, a Casa Ricardo Severo surge como tentativa de colagem em fachada de elementos díspares de um vocabulário ruralizante, elementos que só de maneira superficial, remetem para uma arquitectura vernácula, tentativa de colagem que tem a caracterizá­‑la, isso sim, uma linguagem de conjunto que resulta quase necessariamente desarticulada e inconsistente (…)’. 16

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que o seu proprietário e arquitecto é a figura fundadora do movimento ‘neocolonial’ na arquitectura brasileira, como bem salienta Maria Lúcia Bressan Pinheiro17. Este é um tema que tem larga e qualificada bibliografia brasileira onde os meus contributos seriam inúteis. O que quero salientar foi já enunciado também por Luís Alberto Fresl Backheuser: ‘Ricardo Severo foi um homem com duas vidas: uma em seu país natal e outra no país que o acolheu. Por isso mesmo é lembrado de forma diferente nessas duas pátrias. Enquanto em Portugal ele é reconhecido pelo seu tra‑ balho como arqueólogo e etnólogo, no Brasil foi um dos principais defenso‑ res da campanha pela arte tradicional e da consequente arquitetura neoco‑ lonial. Se nas terras lusas foi um pesquisador, no Brasil, um empresário bem sucedido e um intelectual que assumiu a tarefa de buscar e reforçar os laços entre os dois países. Mas suas experiências na juventude influenciaram sua maturidade, assim como a casa que construiu para si no Porto foi um ensaio para as obras posteriores na nova pátria’18. Se esta síntese é verdadeira, interessa realçar, no entanto que, de acordo, por exemplo, com M. Lúcia Bressan Pinheiro, a obra arquitectónica de Severo no Brasil muito deve ao ‘ilustre arquitecto Ramos de Azevedo, de quem Severo se tornara sócio em 1908, imediatamente após seu retorno de Portugal’ (PINHEIRO, 2011: 71). Em relação aos objectivos deste texto, o que pretendo não é estudar este tópico mas, tão só, reverificar, depois do caso anterior de Varnhagen, uma espécie de aliança para acção entre duas pátrias em processo de identificação: o velho Portugal, desejando definir­‑se no contexto europeu com marcas culturais próprias, capazes de se sobreporem à sua fragilidade económica e ao sentimento de decadência, predominante entre as elites culturais; e o jovem Brasil que, antes de um poderoso repúdio modernista, define a sua particularidade, no seio da América latina, pelas heranças portuguesas e os dinamismos da sua cultura contemporânea que, na literatura e também nas artes plásticas, têm importante fortuna crítica na burguesia brasileira cosmopolita. Ricardo Severo (Lisboa, 1869 – S. Paulo, 1940) formou­‑se em engenharia na Academia Politécnica do Porto e foi, desde a sua juventude, um entusiasmado arqueólogo e etnólogo amador, empenhado, como Rosa Peixoto, em seguir o exemplo de Carlos Ribeiro e Nery Delgado que haviam fundado a arqueologia por-

Maria Lucia Bressan Pinheiro – Neocolonial, modernismo e preservação do património no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. Universidade de São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 35 18 Luis Alberto Fresl Backheuser – A Casa do Arqueólogo. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2006, p. 39. 17

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tuguesa, em contexto internacional e com plena actualização19. Tendo colaborado, com numerosos artigos na revista da Sociedade Carlos Ribeiro, intitulada Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes (1887­‑1898), Severo empenhou­‑se, com os meios gerados pelo seu casamento com Francisca Santos Dumont, em S. Paulo, 1993, em fundar a revista Portugália: Materiais para o estudo do povo português de que foi proprietário e director, entre 1899 e 1908, ano em que regressou ao Brasil e aí se instalou definitivamente. Dando continuidade à revista da Sociedade Carlos Ribeiro, a Portugália visava estudar, nas palavras de Severo, ‘os verdadeiros elementos da vida e do carácter nacional, a nossa razão de ser e da nossa história’,‘o substractum da nacionalidade’ para inaugurar ‘um novo período de renascença dentro da própria nacionalidade, que (era) também a renascença de um velho povo’20. Misturava assim linhas determinantes da investigação arqueológica da época, em termos internacionais (nomeadamente as que se debruçam sobre as antigas culturas da Pré­‑História) com a ideologia nacionalista que é marca determinante da cultura portuguesa do início do século XX, tendencialmente menos cosmopolita e aberta do que a da Geração de 1870 a que haviam pertencido os seus mestres. Para o Brasil, levou, tal como Varnhagen no passado, o rigor do método e a convicção da teoria de que resultará um levantamento importante de motivos da arquitectura colonial, encomendado ao pintor José Wasth Rodrigues21 e a proclamação da tradição como chão seguro da modernidade e da inovação: ‘Não procurem ver, meus senhores, nesta veneração tradicionalista, diluída em nostálgica poesia do passado uma manifestação de ‘saudo‑ sismo’ romântico e retrogrado. Com efeito, para criar uma arte que seja nossa e do nosso tempo, cumprirá, qualquer que seja a orientação, que não se pesquisem motivos, origens, fontes de inspiração, para muito longe de nós próprios, do meio em que decorreu o nosso passado e no qual terá que prosseguir o nosso futuro. Ficará bem explícito que não se intima ao artista de hoje a postura inerte da esfinge, voltada em adoração está‑ tica para os mitos do passado, mas sim a atitude viva do caminhante que, olhando o futuro, tem que seguir um caminho demarcado pela experiência Ver, para desenvolvimento deste tópico, João Luís Cardoso, ‘As investigações de Carlos Ribeiro e de Nery Delgado sobre o «Homem Terciário»: resultados e consequências na época e na actualidade’ in Estudos Arqueológicos de Oeiras. Oeiras, Câmara Municipal, 1999/2000, p. 23­‑54. Em linha: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/2364/1/Carlos%20 Ribeiro%20e%20o%20homem%20terci%C3%A1rio.pdf (acedido: 14 de Abril 2013). 20 In Joana Melo de Carvalho e Silva, ‘Nacional ou cosmopolita: a cidade moderna de Ricardo Severo’ in IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. S.Paulo, 4 a 6 de Setembro de 2006, p. 7/8. Em Linha: www.anpur.org.br/revista/rbeur/ index.php/shcu/article/.../1127 (acedido: 14 de Abril 2013). 21 In Maria Lucia Bressan Pinheiro, op. cit., p. 71. Vale a pena citar: (Ricardo Severo querendo) ‘munir­‑se de conhecimentos necessários para construir à maneira tradicional brasileira – tal como fizera em sua casa portuense – encomendou ao pintor paulista recém retornado de França, José Wasth Rodrigues um levantamento sistemático da arquitectura colonial brasileira’. 19

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Figura 1 – Varanda na Casa do Cipreste em Sintra, por Raul Lino, foto JMF.

e pelo estudo do passado, e cuja única diretriz é o progresso e a glória das artes nacionais’22. Não sendo este o local para reflectir sobre os equívocos deste discurso, simultaneamente ideológico e coniventemente pragmático, resta­‑me realçar, pela última vez o que, na minha opinião, une os dois casos de estudo abordados: a plena actualização da cultura portuguesa oitocentista cuja desejada e reivindicada identidade foi, para Adolfo Varnhagen e Ricardo Severo, alargada à construção da identidade da nação brasileira.

22

In Joana Melo de Carvalho e Silva, op. cit., p. 17.

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Bibliografia ALMEIDA, Pedro Vieira – História da Arte em Portugal. Vol. XIV: A arquitectura moderna. Edições Alfa, 1986. BACKHEUSER, Luis Alberto Fresl – A Casa do Arqueólogo. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2006. LOURENÇO, Eduardo – O Labirinto da Saudade. Psicanálise mítica do destino por‑ tuguês. Lisboa: Dom Quixote, 1978 O Neomanuelino ou a reinvenção da Arquitectura dos Descobrimentos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/ Instituto Português do Património Arquitectónico, 1994 (catálogo de exposição comissariada por Regina Anacleto). PEIXOTO, Rosa – ‘A Casa Portuguesa’ in Rosa Peixoto, Obras. Vol. I: Estudos de Etnografia e Arqueologia. Câmara Municipal de Póvoa de Varzim, 1967. PEREIRA, Paulo – ‘Alguns Aspectos da Cultura Artística de F. A. Varnhagen’ in Romantismo – Da Mentalidade à Criação Artística, Sintra, 1986, p. 293­‑327. PINHEIRO, Maria Lucia Bressan – Neocolonial, modernismo e preservação do património no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. Universidade de São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. SILVA, Joana Melo de Carvalho e – ‘Nacional ou cosmopolita: a cidade moderna de Ricardo Severo’ in IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. S.Paulo, 4 a 6 de Setembro de 2006, p. 7/8. Em Linha: www.anpur.org.br/revista/rbeur/index. php/shcu/article/.../1127 SILVA, Raquel Henriques da –“A «Casa Portuguesa» e os novos programas, 1900­ ‑1920” in Portugal. Arquitectura do século XX. Portugal­‑Frankfurt 97, Prestel, Deusches Architektur­‑Museum/Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1997 (Catálogo de exposição comissariada por Ana Tostões) SILVA, Raquel Henriques da – ‘Portugal 1900: Urbanismo e Arquitectura’ in Portugal 1900. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 (catálogo de exposição comissariada por José Castelo Branco Pereira), p. 101­‑114.

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46 Faculdade de Direito, S.Paulo, vista parcial (acervo particular)

REPERCUSSÃO DAS IDEIAS DE RICARDO SEVERO E RAUL LINO NO DEBATE CULTURAL ARQUITETÔNICO DOS ANOS 1920 NO BRASIL Maria Lucia Bressan Pinheiro Professora da USP

Numa década pautada pela emergência da problemática da identidade nacional, duas vozes com sotaque lusitano alcançaram significativa repercussão entre as elites intelectuais brasileiras. Trata­‑se do erudito engenheiro e arqueólogo diletante Ricardo Severo (1869­‑1940) e do arquiteto de formação anglo­‑saxônica Raul Lino (1879­‑1974), ambos interessados, de maneiras diversas, no movimento da “Casa Portuguesa”, que marcou as primeiras décadas do século XX em Portugal. Severo, plenamente inserido na alta sociedade paulista e radicado definitivamente no Brasil desde 1910 – após uma estadia de cerca de dez anos no Porto1 –, exerceu aqui importante papel no despertar de um interesse pela arquitetura brasileira dos primeiros séculos, que viria a consubstanciar­‑se no movimento conhecido como “Neocolonial”. Sua contribuição pioneira foi reforçada, de forma indireta, pelos projetos e escritos de Lino, que, constituindo importante vetor de divulgação e popularização do ideário Arts & Crafts – devidamente filtrado pela cultura arquitetônica portuguesa –, enriqueceram tal debate. O presente trabalho discutirá a contribuição de ambos para o panorama arquitetônico brasileiro em geral e, mais especificamente, para os anos de formação de dois intelectuais emblemáticos da cultura brasileira da primeira metade do século XX: Mário de Andrade e Lúcio Costa.

Estabelecido em São Paulo por volta de 1892, Severo retornou ao Porto entre 1897 e 1907, após seu casamento com Francisca Santos Dumont. Para sua biografia, ver GONÇALVES, 1977. 1

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As propostas de Severo foram enunciadas em duas conferências intituladas A Arte Tradicional no Brasil. A primeira, proferida em São Paulo em julho de 19142, em meio a um grande surto de transformações urbanas nas principais cidades do Brasil, constituía uma exortação aos “jovens arquitetos nacionais” a iniciar “uma nova era de Renascença Brasileira...”. Logo de início, Severo explicitou seu entendimento da arte como “fenômeno coletivo”, afirmando que “a Arquitetura [...] é a mais social de todas as artes”, indo muito além das “obras­‑primas dos artistas geniais” e “manifestando­‑se nos artefatos humildes do povo”. O objetivo da palestra é, claramente, demonstrar a qualidade e adequação da arquitetura brasileira do período colonial – que ele denomina Arte Tradicional – e, ao mesmo tempo, ressaltar suas origens portuguesas. Para Severo, as semelhanças climáticas entre Portugal e o Brasil permitiram que as formas tradicionais portuguesas, decantadas de diversas correntes migratórias ao longo de séculos, “aqui se estabelecessem com naturalidade, enraizando­‑se e resistindo, como na velha metrópole, à invasão das influências cosmopolitas”. Apresentou então alguns exemplares da arquitetura residencial brasileira, destacando seus elementos construtivos tradicionais, como telhados, beirais, janelas, portas, rótulas etc. – uma abordagem absolutamente fora do usual, naquele momento. Pouco usual era também a importância conferida por Severo à arquitetura residencial anônima que compunha o tecido urbano das cidades, em detrimento dos edifícios excepcionais. Com efeito, revelando­‑se leitor atento de John Ruskin3, o engenheiro afirmou: ....há que ponderar que o caráter de uma cidade não lhe é dado por seus monumentos, colocados em pontos dominantes, grandes praças ou lugares históricos. Ligam esses locais as ruas e avenidas, marginadas por casas de variado destino; e são estas que dão a característica arquitetônica da cidade; com efeito, o monumento é uma exceção, a casa é a nota normal da vida quotidiana do cidadão, é como uma lápide epigráfica de sua ascendência e de sua história. Numa referência à recém­‑iniciada construção da nova catedral de São Paulo4, Severo não se furtou a criticar o caráter importado do estilo adotado – o neogótico –, ressaltando: Proferida em 20/7/1914, a conferência foi publicada na íntegra pela própria Sociedade de Cultura Artística em 1916, na obra Conferências 1914­‑1915, pp. 37­‑82, de onde foram extraídas as citações que se seguem. 3 Na Lâmpada da Memória – a sexta dentre as “Sete Lâmpadas da Arquitetura” –, Ruskin afirmara: “Até hoje, a atração das mais belas cidades [da Itália e da França] reside não na riqueza isolada de seus palácios, mas na decoração requintada e cuidadosa das menores moradias de seus períodos de maior esplendor” (RUSKIN, 2008, p. 60). 4 A pedra fundamental da nova catedral de São Paulo foi colocada em 6/7/1913. 2

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Figura 1 – Ilustrações da conferência A Arte Tradicional no Brasil. Fonte: SEVERO, 1916, pp. 59, 61, 63,72.

Melhor fora pois reproduzir a própria tradição do que a alheia..., e pelo mesmo motivo, de que é conveniência política e de interesse patri‑ ótico a unificação de todos os caracteres que constituem a alma nacional. (grifo nosso) Em conclusão, Severo procurou afastar de sua exortação qualquer laivo de anacronismo, afirmando que: Não procurem ver, meus senhores, nesta veneração tradicionalista, dilu‑ ída em nostálgica poesia do passado, uma manifestação de “saudosismo” romântico e retrógrado. Com efeito, para criar uma arte que seja nossa e de nosso tempo, cumprirá, qualquer que seja a orientação, que não se pesqui‑ sem motivos, origens, fontes de inspiração, para muito longe de nós pró‑ prios, do meio em que decorreu o nosso passado e no qual terá que pros‑ seguir o nosso futuro. Ficará bem explícito que não se intima ao artista

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de hoje a postura inerte da esfinge, voltada em adoração estática para o passado, mas sim a atitude viva do caminhante que, olhando o futuro, tem de seguir um caminho demarcado pela experiência e pelo estudo do passado, e cuja única diretriz é o progresso e a glória das artes nacionais (grifo nosso). Em março de 1917, evidenciando o sucesso de sua conferência de 1914, o engenheiro português foi convidado a palestrar perante o Grêmio Politécnico da Escola Politécnica de São Paulo5. Dessa vez, Severo propôs a utilização, para o estudo da arquitetura brasileira, do método de “investigação direta”, próprio da etnografia e da arqueologia, em oposição à pesquisa documental, privilegiada pelos historiadores – justificando–se com as seguintes palavras: A arqueologia não é apenas o estudo da antiguidade, analisada como uma ossatura morta, ou dissecada como um cadáver em laboratório de anatomia. Não se prende às coisas do passado, como petrificações imo‑ bilizadas na rocha sedimentar que é seu eterno jazigo. Estuda manifesta‑ ções da vida da humanidade, fases de civilização; analisa as criações do homem como integrações da coletividade, em determinado meio e tempo. (grifo nosso) Reiterou sua visão da arte como fenômeno coletivo, transmitido pela experiência, bem como sua defesa da arquitetura residencial, cotidiana, que constitui a trama básica e confere caráter a nossas cidades, tornando­‑as capazes de resistir ao “aluvião cosmopolita”. Ressaltou que, para a arqueologia, tudo – desde as mais rústicos ruínas – se reveste de significado: Não se mede uma civilização pela grandeza de seus monumentos; nessa avaliação intervém a arqueologia, para a qual ciência as mais rústicas ruí‑ nas têm um valor máximo e o mais modesto edifício tem uma brilhante significação, pela natureza dos seus materiais, técnica construtiva, caráter arquitetônico, época, estilo ou escola, seu destino e tradição. A menção à “natureza dos materiais” e à “técnica construtiva” era absolutamente inusitada, no período.

Proferida no dia 31 de março, a conferência foi publicada na Revista do Brasil, ano II, vol. 4, jan­‑abr 1917, pp. 394­‑424, de onde foram extraídas as citações que se seguem. 5

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Figura 2 – Pranchas apresentadas por SEVERO na segunda conferência A Arte Tradicional no Brasil. À esquerda, a primeira tipologia, composta por igrejas paulistas; à direita, os números 9 e 10 correspondem ao terceiro tipo, dentre outras tipologias identificadas. Fonte: SEVERO, 1917, Estampas I e II.

Assim, Severo propunha a utilização de uma metodologia empírico­‑científica oriunda da arqueologia para o estudo sistemático da arquitetura brasileira, ao mesmo tempo em que advogava a produção contemporânea de uma arquitetura de base tradicional, noção lançada já em 1914. A título de exemplo, apresentou um “grosseiro esboço” sobre nossa arquitetura religiosa, capaz de “orientar o estudo das artes no Brasil” segundo o método proposto. Apresentou então cinco tipos genéricos de edifícios religiosos, “segundo o critério arqueológico da sua composição arquitetônica”, sendo o primeiro tipo composto por igrejas paulistas de grande simplicidade. Para Severo, a beleza desses templos “não se percebe com os olhos, mas com o coração”, referindo­‑se também à sua técnica construtiva – a taipa de pilão, considerada então um símbolo do atraso e da pobreza da antiga Capitania de São Paulo – com palavras carregadas de empatia: “só o culto do passado é que nos faz perceber a linguagem das ruínas, traduzir o encanto e a poesia dessas grosseiras fábricas de taipa, amassada com

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Figura 3 – Exemplos do Neocolonial na arquitetura residencial em São Paulo. Acima, à esquerda, exemplar já demolido, na Avenida Higienópolis; abaixo, exemplos existentes no bairro de Perdizes. Fonte: 109, set. 1929 (reprodução de José Rosael); fotos da autora.

a própria terra que nos alimenta a vida e nos dilui a morte na perpétua alma do universo”. Os demais tipos mereceram comentários mais sucintos, com exceção do terceiro tipo, composto pelas igrejas do Rosário e de S. Francisco de Assis em Ouro Preto, e a Igreja do Carmo de S. João Del Rei, casos em que, segundo Severo, “a paixão pelas linhas curvas passa dos elementos decorativos da arquitetura ao próprio plano da igreja” – originalidade que atribuiu ao Aleijadinho, numa rara referência à autoria das obras analisadas6: “Pode dizer­‑se que este tipo de plano curvilíneo é original nessa parte do Estado de Minas, como se fosse composição do mesmo arquiteto (o “Aleijadinho”) da segunda metade do século XVIII”. Incluindo o conceito de estilo em sua visão social da arquitetura, Severo buscava evitar preconceitos ditados pelo gosto ou pela moda – o que constituía uma atitude avançada na segunda década do século XX:

Cabe notar que essa hipótese – errônea, uma vez que nem a Igreja do Rosário de Ouro Preto, nem o Carmo de São João Del Rei são do Aleijadinho – seria retomada várias vezes por autoridades como Rodrigo Mello Franco de Andrade e Mário de Andrade (PINHEIRO, 2011). 6

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Entretanto, aquele estilo [barroco] é, como o gótico, das mais belas expressões artísticas duma época e dum meio social, tem uma legitimidade tão legal quanto o dogma clássico das ordens arquitetônicas dos panteões Greco­‑romanos. Na arte não há estilos privilegiados. Com tais idéias, Severo lançou as bases para o movimento que logo ficaria conhecido como Neocolonial, e que se mostraria capaz de promover significativa mobilização simbólica, extravasando os estreitos círculos acadêmicos e alcançando grande popularidade em meios bastante diversificados. Tratando­‑se de uma proposta ancorada na arquitetura, que exige para sua concretização o comprometimento efetivo de recursos vultosos, tal feito não pode ser menosprezado. Curiosamente, entretanto, seu bem­‑sucedido empenho em valorizar a arquitetura tradicional brasileira nunca se traduziu em quaisquer veleidades preservacionistas de sua parte.

Mário de Andrade: “A Arte Religiosa no Brasil” e “De São Paulo” As ideias de Ricardo Severo impressionaram fortemente um jovem escritor então em princípio de carreira: Mário de Andrade, que logo viria a tornar­‑se um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX. Em 1920, Mário escreveu uma série de artigos sobre “A Arte Religiosa no Brasil” claramente motivada pelas conferências de Severo. De fato, nesses escritos, Mário, várias vezes, retoma e complementa os temas abordados pelo engenheiro português, fazendo até mesmo pequenas retificações. É fácil compreender seu entusiasmo: discorrer sobre a arquitetura colonial brasileira, identificando técnicas construtivas, motivos ornamentais recorrentes ou soluções de planta inovadoras – por mais sumárias que fossem as análises empreendidas, quase meras descrições – era algo inédito até então. É evidente, nos artigos, a preocupação de Mário com o que ele considerava a decadência da arquitetura religiosa no início do século XX, diante da miscelânea de estilos empregados nas novas igrejas, na qual predominava o neogótico. Nesse sentido, perguntava­‑se: “Que divisar senão uma parva desorientação e um tresloucamento lamentável?... Há ainda artistas cristãos, não há mais arte cristã, com normas exatas, com diretriz firme e determinada” (ANDRADE, 1920a, p. 96). Entusiasmou­‑se, portanto, com a sugestão de Severo sobre o aproveitamento de elementos arquitetônicos coloniais como fonte de inspiração para a arquitetura

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residencial do período, comparando­‑os a “um tesouro abandonado onde os nossos artistas poderiam ir colher motivos de inspiração” (ANDRADE, 1920a, p. 96). Apropriando­‑se do roteiro tipológico apresentado em 1917 pelo engenheiro português, Mário identificou três centros principais de irradiação da arquitetura religiosa brasileira: Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e seus principais artistas: Chagas, Mestre Valentim e o Aleijadinho. Buscava, assim, individualizar os principais artistas de cada região, ao contrário da ênfase de Severo no caráter anônimo e coletivo das igrejas brasileiras, e sua filiação genética à arquitetura portuguesa. Citando textualmente alguns trechos da conferência de Severo, Mário também endossou com entusiasmo sua hipótese relativa à originalidade das plantas curvilíneas mineiras, que vinha ao encontro da tônica nacionalista de seus escritos. Assim, afirmou que, em Minas Gerais, “o estilo barroco estilizou­‑se”, e as igrejas assumiram “caráter mais bem determinado e, poderíamos dizer, muito mais nacional”: ... na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é o amor da linha curva, dos elementos contorcidos e inesperados – passa da deco‑ ração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem só na decoração posterior, mas também no risco e na projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves. Com esse caráter assume a proporção dum verdadeiro estilo, equiparando­‑se, sob o ponto de vista histórico, ao egípcio, ao grego, ao gótico. E é para nós motivo de orgulho bem fundado que isso se tenha dado no Brasil (ANDRADE, 1920c, p. 103, grifo nosso). Entretanto, tal como Severo, Mário não chegou a manifestar qualquer preocupação quanto à preservação da arquitetura religiosa brasileira; defendia veementemente, aliás, a necessidade de renovação das igrejas paulistanas: Neste orgulhoso estado de São Paulo, que se não podia, com justiça, contentar com as velhas igrejas, pardieiros a esfrangalhar­‑se, foi necessário substituir tudo. Onde fomos buscar inspiração? Em Portugal, que nos deu o que possuímos? Ou nos progressos dessa dádiva, realizados na vastidão do Brasil? Nada disso. Queríamos ser progressistas, reformadores, cubistas, fomos buscar o que não era nosso, imitamos sem altivez, copiamos sem engenho... (ANDRADE, 1920c, p. 109) Não criticava, portanto, a demolição de templos coloniais, mas a escolha errônea do estilo a ser empregado nas novas igrejas.

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Figura 4 – O Neocolonial nas comemorações do Centenário da Independência do Brasil, em 1922. Acima, a remodelação do antigo Largo do Piques, em São Paulo, que passou a ser chamado de Ladeira da Memória, projeto de Vitor Dubugras. Abaixo, aspectos da Exposição do Centenário, no Rio de Janeiro: à esquerda, vista geral a partir da Porta Norte; à direita, Pavilhão das Pequenas Indústrias, projeto de Nestor Figueiredo e C. S. San Juan. Fonte: Acervo FAUUSP;. Rio de Janeiro, Ed. do Annuario do Brasil, 1923, s/p.

Mário parece ter encontrado resposta para suas inquietações a partir da exortação do próprio Severo, pois, na primeira de suas crônicas “De São Paulo”7, manifestava explicitamente seu entusiasmo pela nova tendência neocolonial: São Paulo, mais uma vez e em outro terreno, vai glorificar­‑se, reatando uma tradição artística que o Aleijadinho de Vila Rica, o gênio inculto do portal de S. Francisco de Assis, em Ouro Preto, e da escadaria de Congonhas encetou e que nenhum ousara continuar. E Brecheret, cujas forças artísti‑ cas rapidamente se maturam ao calor de empecilhos e rivalidades, não só renova o passado em que a Bahia deu Chagas, o Rio Mestre Valentim e Minas João [sic] Francisco Lisboa, como realiza o ideal moderno de escul‑ tura, templo onde pontificam Bourdelle, Lembruck, Carl Millés e Mestrovic (Ilustração Brasileira n. 3, nov 1920).

“De São Paulo” era uma seção regular sobre “o movimento artístico e literário da gente paulista” publicada de novembro de 1920 a maio de 1921 na revista carioca de cultura Ilustração Brasileira, a cargo de Mário de Andrade (PINHEIRO, 2011). 7

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A referência aos grandes mestres coloniais nos remete a seus artigos sobre arquitetura religiosa. E a menção à “renovação do passado” e à “realização do ideal moderno” em Brecheret prenuncia a Semana de Arte Moderna, marco do Modernismo no Brasil, que teria lugar em fevereiro de 1922 – e da qual o próprio Mário seria um dos mais engajados promotores. A seção de arquitetura da Semana de Arte Moderna compunha­‑se de um projeto neocolonial do arquiteto polonês Georg Przyrembel, além de alguns desenhos de inspiração art déco realizados por outro estrangeiro, o espanhol Antônio Garcia Moya8. Não foi por acaso, portanto, que, em fevereiro de 1921 – exatamente um ano antes da realização da própria Semana – Mário elogiava declaradamente “o glorioso estilo neocolonial, que um grupo de arquitetos nacionais e portugueses, com o sr. Ricardo Severo à frente, procura lançar” (Ilustração Brasileira n. 6, fev 1921). Em que pese o entusiasmo público de Mário de Andrade, o grande vetor de divulgação do Neocolonial foi a Exposição do Centenário da Independência, inaugurada em setembro de 1922 no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o Neocolonial também protagonizou as obras patrocinadas pelo governo estadual em comemoração ao evento, projetadas pelo arquiteto francês de formação argentina Victor Dubugras.

Raul Lino e a Casa Portuguesa Em seus artigos sobre arquitetura religiosa, Mário de Andrade também referiu­‑se nominalmente ao arquiteto português Raul Lino, outro importante personagem de nossa trama narrativa9. Lino, de formação inglesa e alemã, retornara a Portugal em 189710, um período de fortalecimento do movimento republicano, que culminaria com a implantação da república em 1910. Clima propício a sentimentos nacionalistas, que certamente estimulou o movimento de valorização da arquitetura tradicional que viria a ser conhecido por “Casa Portuguesa”, no qual estiveram envolvidos estudiosos de várias áreas – entre eles, o próprio Lino, Ricardo Severo e o historiador Rocha Peixoto.

Ver a respeito AMARAL, 1992, p. 155. Ver ANDRADE, 1920c, p. 110. Severo não fizera qualquer referência a Lino nas conferências analisadas, porém Mário possuía um exemplar de A Nossa Casa em sua biblioteca particular, atualmente no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 10 De formação inglesa, Lino concluiu seus estudos na Alemanha, onde frequentou a Handwerker und Kunstgewerbeschule de Hannover, entre 1893 e 1897. Lá trabalhou também com Albert Haupt, grande estudioso do Renascimento em Portugal (RIO­‑CARVALHO, 1986, p. 174). 8 9

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Figura 5 – Primeiros projetos de Lucio Costa. À esquerda: residência/atelier do pintor Rodolfo Chambelland no Rio de Janeiro (1923), já demolida. À direita: projeto para a Residência Arnaldo Guinle, em Teresópolis (não construída). Fonte: Ilustração Brasileira 33, mai. 1923; Terra de Sol, Vol. III, jul.­‑set. 1924.

No movimento da Casa Portuguesa, destacava­‑se, marcada pelas tendências inglesas de derivação Arts & Crafts do fim do século XIX11, a arquitetura residencial de Raul Lino, destacando­‑se a Casa Montsalvat, o Solar dos Patudos e a sua própria moradia, a Casa do Cipreste. Em tais projetos, transparece a busca de um ambiente doméstico de cunho tradicional intimista e acolhedor, alheio às convenções programáticas e plenamente identificado com seus moradores, privilegiando a funcionalidade das plantas, a singeleza das soluções formais e o uso dos materiais locais – tudo perfeitamente harmonizado com o meio físico. Essas ideias estão presentes também no livro A Nossa Casa – Apontamentos sobre o Bom Gosto na Construção das Casas Simples, de 1918, muito popular no Brasil na década de 1920, sendo encontrado com facilidade em bibliotecas domésticas naqueles anos12. No livro, estão presentes noções basilares do Arts & Crafts, como o princípio da verdade dos materiais13 e o projetar “de dentro para fora”. Nunca se comece por pensar no aspecto exterior duma casa (a não ser dum modo muito vago) antes de ser bem estudada a sua planta. O cará‑ ter essencial das fachadas duma casa reside nas suas proporções gerais, e estas só podem ser determinadas depois de haver uma planta definitiva (LINO, 1923, p. 21). Recorde­‑se que o Arts & Crafts é, por assim dizer, um desdobramento das ideias de John Ruskin. Ver a respeito William Morris e a SPAB (PINHEIRO, 2004). O termo Arts & Crafts, utilizado para designar a atividade de William Morris e Philip Webb, só foi cunhado em 1887, período de sua maior divulgação na arquitetura através de William Lethaby e C. R. Ashbee (CUMMING & KAPLAN, 2002). Assim, apresenta­‑se por vezes sob outras denominações como Domestic revival, ou English Free Architecture (PEVSNER, 1981). 12 Um indício de tal popularidade é relatado pelo próprio Lino (1937, p. 67), quando de sua vinda ao Brasil, em 1935. Em sua visita ao Palácio do Itamaraty, então sede do Ministério das Relações Exteriores, o ministro José Carlos de Macedo Soares disse­‑lhe que comprara A Nossa Casa muitos anos antes, em sua primeira viagem a Portugal, na década de 1920. 13 Afirma ele:“É de péssimo gosto usar coisas fingidas quando se não pode ter as verdadeiras” (LINO, 1923, p. 56). 11

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Também é reiterada a visão de William Morris sobre a arte como expressão do prazer no trabalho14: “Ninguém emprega qualquer motivo ornamental sem por isso querer produzir uma sensação de agrado; ora não é admissível que esta se nos possa transmitir sem que tivesse primeiro existido na pessoa que compôs o referido motivo” (LINO, 1923, p. 37). Baseada em tais princípios, a obra de Lino parece ter impressionado um jovem estudante do curso de arquitetura da ENBA – Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro: Lucio Costa, cujos primeiros projetos apresentavam pontos em comum com a arquitetura residencial inglesa de inspiração Arts & Crafts. Tais afinidades tanto podem estar relacionadas ao período em que Lúcio morou na Inglaterra (1910­‑1914), como também à ampla circulação daquele ideário pelo mundo afora, do qual um dos arautos fora justamente Raul Lino. Cabe mencionar que, desde o início da década de 1920, Lúcio Costa fazia parte do círculo do médico pernambucano e diletante das artes José Mariano Filho, o mais insigne representante das ideias de Ricardo Severo no Rio de Janeiro. De fato, Lucio teve destacada participação nos concursos de projetos neocoloniais por ele promovidos, além de ter se beneficiado do patrocínio da Sociedade Brasileira de Belas­‑Artes – então presidida por Mariano Filho – para viajar a Diamantina, em 1924, com o objetivo de estudar a arquitetura colonial brasileira. A par de tal proximidade com José Mariano, muitos dos escritos de Costa daqueles anos têm claras afinidades com as idéias de Raul Lino no livro A Nossa Casa. É o caso, por exemplo, da entrevista que Lucio concedeu ao jornal A Noite, a respeito do projeto com que concorrera ao “Prêmio Heitor de Mello” promovido por José Mariano Filho em 192315. Nessa entrevista Lúcio condenava o ideal de perfeição doméstica então vigente, em que imperava o apreço pelo “novinho”, “pintadinho”, “bonitinho”, afirmando: O ideal em arquitetura doméstica não é essa casa de aspecto eterna‑ mente novo, reluzente, lustrada, polida, que parece gritar­‑nos: ‘Cuidado, não me toquem! Cuidado com a tinta!’ Não... longe disso. A verdadeira casa é aquela que se harmoniza com o ambiente onde situada está, que tem cor local; aquela que nos convida, que nos atrai, e parece dizer­‑nos: Seja ben‑ vindo! (In PINHEIRO, 2011, p. 183) Ora, em inúmeros trechos de A Nossa Casa, Lino advogava as qualidades plásticas da caiação e de materiais opacos de revestimento, insurgindo­‑se contra o uso

14 15

Ver a conferência “Art under Plutocracy” proferida em Oxford, em 14/11/1888 (MORRIS, 1947, pp. 245­‑6). O concurso foi vencido por Ângelo Bruhns, cabendo o segundo lugar a Lucio Costa e o terceiro a Nereu Sampaio.

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Figura 6 – Aspectos do projeto de Lucio Costa que obteve o 2º. lugar no “Prêmio Heitor de Mello”, concurso promovido em 1923 por José Mariano Filho. Fonte: 43, mar. 1924.

de materiais brilhantes, como a tinta à óleo: “... nós não nos podemos habituar à pintura a óleo; dá­‑nos sempre uma impressão semelhante à de quando vemos uma pessoa que passeia uma capa de borracha nova por um dia de sol” (1923, p. 33). Na mesma entrevista, criticando a formalidade e rigidez imperantes na arquitetura residencial do período, Lucio discorre sobre a harmonia que deve existir entre a casa e seu morador: Com o mesmo amontoado de moedas que se faz uma casa pretensiosa, inexpressiva e fria, de uma complicação que nada exprime... pode­‑se fazer uma jóia de arquitetura, um paraíso onde se viva; uma casa rica de simplici‑ dade, de beleza, de conforto; que pareça viver conosco e conosco sen‑ tir; que tenha personalidade; que esteja em harmonia com o temperamento daquele que nela mora... Uma casa que tenha alma, enfim (In PINHEIRO, 2011, p. 183). Toca aí no cerne das preocupações de Raul Lino, que dedicou ao tema inúmeras passagens de seu livro, como: “... o mais agradável que pode haver numa casa é o adivinhar­‑se pelo exterior e o perceber­‑se pelo interior que ela foi feita à medida das ideias sensatas do seu dono, para melhor satisfação nos seus deveres e para maior alegria nos seus ócios” (LINO, 1923, p. 26). Também vislumbram­‑se afinidades de Lucio com Lino em obras como a residência neocolonial mesclada de hispanidad do pintor Raul Pedrosa, projetada por Lucio e Fernando Valentim no bairro carioca das Laranjeiras (c. 1925). O projeto caracteriza­‑se pelo respeito às características do terreno e até mesmo à vegetação pré­‑existente – da qual foi preservada uma frondosa mangueira, conforme o desejo do proprietário. Informalmente implantada no terreno, a residência, despreocupada

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Figura 7 – Casa da rua Rumânia, Rio de Janeiro, projeto de Lucio Costa e Fernando Valentim, c. 1925. Notar sugestão de tronco de mangueira no primeiro plano do desenho. Fonte: Architectura no Brasil no. 26, fev/mar 1926, p. 86.

quanto a convenções compositivas de simetria e ostentação, inspira conforto e acolhimento. Formalmente distante da arquitetura residencial de Raul Lino, o projeto atende aos preceitos Arts & Crafts de adequação ao morador, ao clima e ao local, por ele preconizados. Ressalte­‑se a presença de elementos vazados em “V”, característicos da obra de Lino e por ele denominados “muros arrendados de tijolo” (LINO, 1923, p. 74), detalhe ornamental que, apesar de inexistente na arquitetura colonial brasileira, é encontrado em praticamente todas as obras neocoloniais de Lúcio Costa. De qualquer forma, em que pese sua popularidade fora dos círculos estritamente acadêmicos, as idéias de Raul Lino alcançaram repercussão menos explícita do que as de seu compatrício Ricardo Severo, o patrono do Neocolonial. E o Neocolonial disseminou­‑se por inúmeras cidades brasileiras, encontrando adeptos tanto entre arquitetos e engenheiros civis como entre empreiteiros e profissionais da construção em geral, não só na década de 1920, mas também nos anos 1930 e 1940. Largamente empregado na arquitetura residencial, o Neocolonial alcançou destaque também na arquitetura escolar, principalmente durante a gestão de Fernando de Azevedo na Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal, entre 1927 e 1930. Dentre as escolas por ele construídas, especial destaque cabe à Escola Normal (atual Instituto de Educação) do Rio de Janeiro, objeto de concurso que tornava obrigatório o emprego do Neocolonial para os projetos concorrentes. Inaugurada em 1930, a Escola Normal inspirou inúmeros projetos escolares posteriores, entre os quais a grandiosa Escola Rural de Seropédica, no Estado do Rio de Janeiro, as escolas rurais construídas por Fernando Costa no Estado de São Paulo, e até mesmo o imponente edifício da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, construído sobre os escombros do antigo convento franciscano que abrigava a faculdade desde 1827. Paradoxalmente, seu projeto foi elaborado pelo Escritório Severo e Villares, do qual Ricardo Severo era titular. Pouco antes de assumir a Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal, Fernando de Azevedo escreveu no jornal O Estado de São Paulo – OESP uma série de artigos intitulada “Arquitetura Colonial”, defendendo a adoção do Neocolonial para edificações escolares, por suas implicações identitárias e cívicas. Para tanto, valeu­‑se de entrevistas e depoimentos de destacados adeptos daquela tendência,

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Figura 8 – Acima, Escola Normal do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, principal realização de Fernando de Azevedo na Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal. Perspectiva e detalhe da entrada principal. Abaixo, Escola Rural em Seropédica, Estado do Rio de Janeiro e Faculdade de Direito, São Paulo. Fonte: A Casa no. 58, fev. 1929; fotos da autora; acervo particular.

como Ricardo Severo, o primeiro entrevistado16, que defendeu a importância da tradição aliada à atualização da arquitetura: A arquitetura, como todas as artes, procurará adaptar­‑se às condições do tempo, do lugar, de meios próprios da vida moderna; terá que adaptar­‑se ainda aos novos processos mecânicos de construção; para esse fim procu‑ rará formas novas. Na orientação, porém, dessa pesquisa ou invenção de novas formas, está o ponto crítico (PINHEIRO, 2011, p. 73, grifo nosso). Mostrando­‑se plenamente de acordo, portanto, com o modus operandi do ecletismo arquitetônico, esclareceu que, em sua contribuição para “esta campanha tradicionalista, erradamente alcunhada de retrógrada e anacrônica”,

Severo foi entrevistado em 15/04/1926, seguindo­‑se José Wasth Rodrigues, em 16/04/1926; Alexandre Albuquerque, em 17/04/1926, e José Mariano Filho, em 29/04/1926 (PINHEIRO, 2011), 16

REPERCUSSÃO DAS IDEIAS DE RICARDO SEVERO E RAUL LINO NO DEBATE  | 61 CULTURAL ARQUITETÔNICO DOS ANOS 1920 NO BRASIL

Figura 9 – Projetos de Ricardo Severo: à esquerda, Hospital da Beneficência Portuguesa de Santos, Estado de São Paulo; ao lado, Residência Rui Nogueira, em São Paulo. Fonte: Acervo FAUUSP.

Por nenhum princípio se pretende estabelecer, sob pretexto de um determinado estilo colonial, neo­‑colonial ou nacional, um molde de arcaica rigidez no qual tem de vazar­‑se a natural expansibilidade da arte moderna; pretende­‑se tão somente marcar na composição das cidades e na arquitetura das casas públicas e privadas, um ou outro caráter que fixe indelevelmente a tradição nacional (PINHEIRO, 2011, p. 73, grifo nosso). Nessa entrevista, Severo apontou algumas obras recentes de sua autoria, como a Casa José Moreira, o hospital da Beneficência Portuguesa de Santos e o projeto para a sede da Sociedade de Cultura Artística, em São Paulo. O segundo entrevistado por OESP foi o pintor paulista José Wasth Rodrigues, que fora encarregado por Severo de estudar e registrar in loco a arquitetura colonial brasileira, com vistas à criação de repertório ornamental básico a ser utilizado pelos adeptos do Neocolonial. Porém, ao contrário do engenheiro português, seu mentor intelectual, Wasth Rodrigues manifestou preocupação explícita quanto às demolições e descaracterizações de edificações coloniais, chegando mesmo a sugerir ... a fundação de uma Sociedade ou Comissão de Arquitetos com ple‑ nos poderes junto aos governos e às Cúrias para embargar as demolições e impedir que as restaurações sejam feitas com o sacrifício da “fisionomia característica” do edifício. Em minhas viagens tive ocasião de ver, com espanto, templos góticos e bizantinos exatamente onde se levantavam, havia pouco, antigas igrejas coloniais (PINHEIRO, 2011, p. 73).

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Figura 10 – Levantamento de vãos e planta da Igreja de S. Francisco de Assis e aquarela da Igreja do Rosário, em Ouro Preto, pelos politécnicos Carlos Gomes Cardim Filho e José Maria da Silva Neves, respectivamente. Fonte: Boletim do Instituto de Engenharia, no. 63, ago. 1930, pp. 59­‑ 62.

O terceiro entrevistado na série “Arquitetura Colonial” foi o engenheiro­‑arquiteto e professor da Escola Politécnica Alexandre Albuquerque17, que desde 1921 vinha realizando “excursões técnicas” com seus alunos, levando­‑os a cidades como Itanhaém, Ouro Preto, Tiradentes e Congonhas do Campo. Nessas viagens, os alunos realizavam desenhos e levantamentos in loco de edifícios importantes. Albuquerque justificou a realização de tais viagens afirmando: “Para estimar o colonial é preciso conhecê­‑lo. É necessário viajar e longamente meditar em frente de cada monumento” (PINHEIRO, 2011, p. 160). Assim como Wasth Rodrigues, Alexandre Albuquerque foi um dos primeiros adeptos do neocolonial a manifestar preocupações concretas com a defesa do patrimônio histórico e artístico nacional, elencando um conjunto de medidas práticas nesse sentido na entrevista concedida a OESP. Coincidência ou não, após a série de artigos, dois órgãos estaduais voltados à preservação de seus respectivos patrimônios foram criados: as Inspetorias de Monumentos Nacionais da Bahia, em 1927, e a de Pernambuco, em 1928.

Alexandre Albuquerque possuía um exemplar de A Nossa Casa, adquirido em 1920 e com parágrafos destacados, e também de Casas portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitetar das casas simples (1933) (ALBUQUERQUE, 2006, p. 10). 17

REPERCUSSÃO DAS IDEIAS DE RICARDO SEVERO E RAUL LINO NO DEBATE  | 63 CULTURAL ARQUITETÔNICO DOS ANOS 1920 NO BRASIL

O Neocolonial também alcançou grande destaque no IV Congresso Panamericano de Arquitetos, realizado no Rio de Janeiro, em julho de 1930, abordando temas ligados ao dilema ¨Modernismo x Tradição¨, nas quais predominaram as posições dos adeptos da tendência. José Mariano Filho foi, inegavelmente, a presença individual mais destacada no evento. A grande repercussão alcançada pelo Neocolonial nos anos 1920 adentrará a década seguinte, mas o mesmo não acontecerá com o entusiasmo de Mário de Andrade e de Lucio Costa, que mostra sinais de arrefecimento a partir de então. Muitas são as razões que concorrem para tal mudança, sendo impossível abordá­ ‑las adequadamente aqui18. Mas é significativo constatar que, em ambos, as ressonâncias neocoloniais vão se transmudar num forte interesse pela preservação da arquitetura tradicional brasileira insuspeitado até então, e que emergirá no contexto de criação do nosso primeiro órgão de preservação do patrimônio: o SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1936. Nesse momento, veremos que tanto Mário de Andrade como Lúcio Costa assumem papel­‑chave nos quadros do SPHAN, de forma análoga ao engajamento de Raul Lino, desde 1934, na Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais de Portugal (DGMN). De fato, Mário de Andrade participou animadamente das atividades envolvendo a criação e organização do SPHAN, a partir de 1936, sendo imediatamente nomeado delegado regional do órgão em São Paulo. Nessa capacidade, foi incumbido de realizar um inventário dos principais bens culturais paulistas para fins de tombamento – tarefa para a qual os trabalhos de Ricardo Severo constituíram sua bibliografia básica, conforme seu relatório de 16/10/1937 e correspondência trocada com Rodrigo Mello Franco de Andrade, primeiro diretor da instituição19. Por sua vez, a presença de Lúcio Costa no SPHAN, desde 1937, caracteriza­ ‑se pelo seu profundo envolvimento na preservação do patrimônio brasileiro e sua ascendência junto aos técnicos da instituição – aspectos que não podem deixar de estar relacionados, ao menos em parte, ao seu precoce contato direto com a arquitetura colonial brasileira, na década de 1920. Como conclusão, verificamos que a exortação nacionalista de Ricardo Severo repercutiu fortemente na cultura brasileira das primeiras décadas do século XX, caracterizada pela busca da identidade nacional, que permeou o modernismo e a emergência de uma consciência patrimonial. Seu papel – e, de forma menos

Ver a respeito PINHEIRO, 2011, pp. 200­‑227 e 240­‑247. ANDRADE, Mário. Mário de Andrade: Cartas de Trabalho. Brasília: MEC/SPHAN­‑Fundação Pró­‑Memória, 1981, pp. 60, 81, 84 e 99. 18 19

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Figura 11 – Casa Rey Colaço, no Estoril, por Raul Lino, postal da colecção de JMF.

explícita, porém patente, também o de Raul Lino – nos anos de formação de dois dos mais importantes personagens daquele período, Mário de Andrade e Lucio Costa, é indispensável para a compreensão aprofundada não só do debate cultural dos anos 1920, mas também de seus importantes desdobramentos na década de 1930, no Brasil.

REPERCUSSÃO DAS IDEIAS DE RICARDO SEVERO E RAUL LINO NO DEBATE  | 65 CULTURAL ARQUITETÔNICO DOS ANOS 1920 NO BRASIL

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— John Ruskin e as Sete Lâmpadas da Arquitetura – repercussões no Brasil. In: RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. São Paulo: Ateliê, 2008. — Neocolonial, Modernismo e Preservação do Patrimônio no Debate Cultural dos Anos 1920 no Brasil. São Paulo, EDUSP/FAPESP, 2011. — William Morris e a SPAB. In: Rotunda no. 3, 2004, pp. 22­‑32. (www.iar. unicamp. br/rotunda/rotunda03.pdf) RAMALHO, Maria Lucia Bressan Pinheiro. Da Beaux­‑Arts ao Bungalow – uma amostragem da arquitetura eclética no Rio de Janeiro e em São Paulo. Dissertação de Mestrado FAUUSP, 1989. RIBEIRO, Irene. Raul Lino, Pensador Nacionalista da Arquitetura. Porto, FAUP, 1994. RIO­‑CARVALHO, M. História da Arte em Portugal. Do Romantismo ao Fim do Século. Lisboa, Alfa, v. 11, 1986 RODOLFO, João de Souza. Luís Cristino da Silva e a Arquitetura Moderna em Portugal. Lisboa, Dom Quixote, 2002 RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Cotia, Ateliê Editorial, 2008. SANTOS, Paulo. Presença de Lúcio Costa na Arquitetura Contemporânea do Brasil. Rio de Janeiro, datilografado, 1960. SEVERO, Ricardo. A Arte Tradicional no Brasil. In: Sociedade de Cultura Artística. Conferencias 1914­‑1915. São Paulo, Typographia Levi, 1916. — A Arte Tradicional no Brasil. Revista do Brasil ano II, vol. 4, jan­‑abr de 1917, pp. 394­‑424. XAVIER, Alberto (org.). Lúcio Costa: Obra escrita. Brasília, UnB, 1966, mimeo.

REPERCUSSÃO DAS IDEIAS DE RICARDO SEVERO E RAUL LINO NO DEBATE  | 67 CULTURAL ARQUITETÔNICO DOS ANOS 1920 NO BRASIL

Biblioteca Municipal Mário de Andrade, S. Paulo (acervo LAP-FAUUSP) 68

DO ECLETISMO DO FIM DO SÉCULO AO ART DÉCO E AO MODERNISMO: TRANSFORMAÇÕES ESPACIAIS DA AVENIDA SÃO LUIZ EM SÃO PAULO

José Eduardo de Assis Lefèvre Professor da USP

Introdução A adoção de uma determinada forma de projetar e construir nas cidades está condicionada por fatores históricos, geográficos e de cultura urbana que integram contextos específicos. Fazem parte destes contextos influências e transferências provindas de fora. Identificar a temporalidade da ocorrência destas influências e transferências é essencial para compreender os processos de absorção e criação de modelos em momentos determinados. Particularmente estranhas para quem não está familiarizado com o tema são as razões que levaram uma cidade, que em 1836 apresentava 21.393 habitantes1 (incluindo freguesias que hoje são municípios da Região Metropolitana), a apresentar em 2012 11.376.685 habitantes no município e 19.956.590 na sua Região Metropolitana2. A cidade de São Paulo começou de fato a crescer rapidamente a partir da década de 1870 a 1880, quando teve lugar uma ampla reconstrução sobre sua antiga estrutura, substituindo edifícios feitos em taipa de pilão por construções que empregavam a alvenaria de tijolos de barro3. Essa reconstrução se deu sob a égide 1 2 3

ARAÚJO FILHO, in AZEVEDO,1956, Vol. II, p. 175. IBGE, 2012. TOLEDO, 2004.

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do ecletismo que, naquelas circunstâncias, representava a modernidade. Mas, nos anos de 1920 a 1950 ocorreu a progressiva substituição daquelas construções ecléticas relativamente recentes por edifícios em altura, empregando estruturas de concreto armado. Na arquitetura desses novos edifícios a adoção do Art Déco e do Modernismo é que se constituiu em signo de modernidade. Analisar as mudanças na arquitetura à luz das transformações sociais e econômicas em curso permite avaliar as motivações que conduziam essas mudanças.

Quadro histórico e geográfico da cidade de São Paulo O Padre jesuíta Manuel da Nóbrega chegou à Bahia em março de 1549, chefiando o grupo de jesuítas que veio com o primeiro Governador Geral Tomé de Sousa. Tendo já visitado outros locais da colônia, em fevereiro de 1553 acompanhou o Governador Geral em visita à Capitania de São Vicente4, cuja capital, a Vila de São Vicente, havia sido fundada em 1532. Percorrendo a região, Manuel da Nóbrega encontrou um local adequado para instalar um assentamento jesuítico, que correspondesse à sua visão: afastado de onde já estivessem estabelecidos colonos portugueses e que fosse ponto de convergência dos caminhos percorridos pelos indígenas5. Situado próximo a uma aldeia indígena, em ponto um pouco elevado, que permitisse dominar a vista dos arredores, mas próximo de cursos d’água que permitissem pesca, abastecimento de água e meio de transporte por barcos. Em carta a Portugal, Manuel da Nóbrega relata que, em 29 de agosto de 1553, reuniu cerca de cinquenta catecúmenos para ficarem sob a orientação de dois irmãos jesuítas em local vizinho a uma aldeia indígena, que era a de Piratininga6. Ali foi construída uma pequena casa, em que foi celebrada missa inaugural na data de 25 de janeiro de 1554, data de conversão do apóstolo São Paulo, que foi mais tarde adotada como a data de fundação da cidade de São Paulo. No entanto, apenas em 1560 o local passou a sediar uma vila, quando ocorreu, por determinação do terceiro Governador Geral, Mem de Sá, a transferência da Vila de Santo André da Borda do Campo, fundada em 1553, para São Paulo de Piratininga, com a concomitante mudança de nome7. As razões para essa mudança estavam nas dificuldades de recursos naturais para sustentar a sua população e dificuldades de conseguir TOLEDO, 2003, p. 85. PETRONE, 1995, p. 44. KEHL, in BUENO, 2004, p. 92. 7 TOLEDO, 2003, p. 111. 4 5 6

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segurança, devido às características do terreno plano em que Santo André fora implantada. Originada daquele pequeno assentamento jesuítico, São Paulo desenvolveu uma notável importância durante o período colonial, em razão de sua singular e estratégica localização geográfica8. Separado do litoral atlântico pelas escarpas da Serra do Mar, que atingem os 800 metros de altura sobre o nível do oceano, o planalto já mencionado constitui um dos mais importantes entroncamentos de caminhos terrestres de uma vastíssima região9. Estes caminhos, já utilizados pelos indígenas, foram intensamente percorridos pelos colonos, desbravadores e comerciantes ao longo do tempo, servindo de rotas em direção ao interior e à América Espanhola, em direção ao Sul da colônia, em direção à região das minas no século XVIII, em direção ao Rio de Janeiro e em direção ao litoral. Da pequena plataforma triangular escolhida pelos jesuítas se descortinava, graças à vegetação rala dos Campos de Piratininga, o vale do Rio Tietê e seus afluentes imediatos, o Tamanduateí e o Anhangabaú, enquadrados pelas elevações da Serra da Cantareira a Norte, da Serra de Mogi das Cruzes a Leste, da peculiar configuração do Morro do Jaraguá, a Oeste, ficando às costas o espigão que é o divisor de águas com o vale do Rio Pinheiros, outro afluente do Tietê. Todos estes rios fazem parte da Bacia do Rio da Prata, cuja foz se localiza a cerca de 2200 quilômetros de distância pelas estradas atuais. O núcleo urbano de São Paulo constituiu o nó de convergência desses caminhos, dada a brecha que o vale do Rio Tietê configura entre as ramificações da Serra da Mantiqueira a Norte e das Serras de Paranapiacaba10 e Taxaquara a Sul, e a suave transição, a Leste, entre a bacia do Rio Tietê e a bacia do Rio Paraíba do Sul, rio de cerca de 1130 quilômetros de extensão que cruza parte do Estado de São Paulo e praticamente todo o Estado do Rio de Janeiro. Este conjunto de características geográficas favoreceu a implantação das posteriores estradas, ferrovias e rodovias, em traçados próximos aos antigos caminhos, reforçando o caráter nodal e polar da urbe paulistana. No entanto, apesar desse papel, talvez precisamente por ele, a cidade de São Paulo não apresentou crescimento demográfico significativo até o início do século XIX, permanecendo como um pequeno núcleo urbano na colina original, ligado a um conjunto de outros núcleos localizados à distância de poucos quilômetros11. Apenas com o desenvolvimento da cultura do açúcar na segunda metade do século XVIII12, no quadrilátero formado pelas cidades de Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí, que inclui os importantes núcleos de Itu e Campinas13, e, AB’SABER, in BUENO, 2004, p. 26. AB’SABER, 2004, p. 100. AB’SABER,2007, p. 63. 11 PETRONE, 1995, p. 114. 12 TOLEDO, 2003, p. 255. 13 PETRONE, 1968. 8 9

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posteriormente, com a expansão da cultura do café em meados do século XIX pelas encostas dos rios Mogi e Tietê, é que a cidade passou a crescer, cada vez mais rapidamente. Este crescimento ligado à exportação do açúcar e do café estava diretamente conjugado ao crescimento da cidade de Santos14, por cujo porto passavam as mercadorias exportadas e os bens importados, acrescidas, com a inauguração de ferrovia ligando as duas cidades em 186715, por levas de migrantes que demandavam as áreas de plantio. Como parte desse processo resultou o desaparecimento quase total das construções da cidade anteriores ao século XIX, conservando­‑se algumas edificações religiosas do século XVIII e o traçado das ruas do antigo núcleo e dos caminhos que ligavam aos núcleos situados em seus arredores. A análise dos seus edifícios permite compreender os significados que a arquitetura e sua linguagem tinham para a cultura da sociedade no momento de sua construção. Na cidade do século XVIII sobressaíam as construções religiosas e os raros edifícios públicos de dimensões um pouco maiores que as residências. Entre estas, os sobrados de dois pavimentos se destacavam. Na área urbana, as construções se encostavam lado a lado, embora nem sempre as empenas se recobrissem totalmente. Nos arredores da área urbana, casas isoladas em meio a propriedades mais amplas, conhecidas como chácaras16, serviam de residência semi permanente para algumas famílias, conjugando a vantagem da proximidade ao núcleo urbano com a possibilidade de desfrutar da presença de árvores frutíferas e alguns animais para consumo doméstico. Muitas dessas casas repetiam o partido muito antigo do período bandeirista. A taipa de terra socada era o material utilizado por excelência. A riqueza do açúcar possibilitou que se iniciasse um processo de mudanças na área urbana, com uma presença maior das atividades comerciais, ligadas à passagem de rotas comerciais e ao crescimento da sua população, visível por volta de 1850. A partir de meados do século, com a expansão da cultura cafeeira pelos vales do interior do Estado, as mudanças se aceleraram na Capital. A introdução de um material antiquíssimo, o tijolo de barro cozido17, pouco usual na região, possibilitou a ocorrência de novidades na construção. A acumulação de riquezas nas mãos dos produtores de café levou a mudanças nos hábitos e costumes. Enquanto, na sua maioria, os fazendeiros do açúcar eram muito ligados à terra e à área de produção, os produtores de café tinham normalmente origem urbana e eram, desde a corte do Rio de Janeiro, capitalistas que investiam na agricultura para aumentar sua riqueza18. Resultado disso foi o fato de as casas das fazendas de café incorporarem

LANNA, 1996, p. 54. MAZZOCCO, 2005, pp. 29, 66. MATOS, in AZEVEDO, 1956, Vol. II, p. 87 17 LEMOS, 1985, p. 39. 18 LEMOS, 1999, p. 136. 14 15 16

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elementos da arquitetura urbana e também ocorrerem em seguida mudanças nas características das casas urbanas. As casas passaram a incorporar elementos de conforto e de representação, com espaços destinados ao convívio social, com mobiliário e objetos de decoração importados. A substituição da taipa pelo tijolo permitiu o aumento das aberturas para o exterior. A presença maior de vidros nas janelas possibilitou interiores mais claros. A disseminação de novas formas de iluminação artificial possibilitou que a vida noturna adquirisse uma importância antes inexistente. A linguagem eclética na arquitetura se sobrepôs à austera arquitetura de poucos ornamentos antes vigente19. O desenvolvimento da produção cafeeira desencadeou em São Paulo um processo de crescimento, irreversível até hoje, que logo ultrapassou o âmbito agrícola. A atração de mão de obra, que na segunda metade do século XIX passou do trabalho escravo para o dos imigrantes europeus, principalmente italianos, aumentou drasticamente a população rural e urbana. A implantação das ferrovias, diretamente associada à expansão cafeeira, constituindo um binômio circular acumulativo, ensejou o aparecimento de uma rede de cidades interligadas pelos trilhos. A passagem do trabalho escravo para o assalariado nas fazendas levou a que estas passassem a integrar francamente o circuito de consumo de bens antes produzidos internamente, em unidades semi­‑isoladas20. A riqueza produzida pelo café levou a uma diversificação na demanda de produtos de consumo, cuja distribuição foi enormemente facilitada pelo transporte ferroviário e marítimo, possibilitando a importação de bens dos mais diversos, de materiais de construção a mobiliário, louças, cristais, tecidos, tudo enfim que uma burguesia em ascensão estava ávida por consumir. E que uma massa de trabalhadores necessitava consumir. O crescimento do comércio em escala e diversidade criou as condições para a implantação de indústrias voltadas para atender à demanda, iniciando um processo de substituição de importações, que se intensificou por ocasião da Primeira Grande Guerra. As primeiras indústrias instaladas pertenciam ao ramo têxtil e de produtos alimentícios, seguidas pelas de implementos agrícolas e vestuário. A cidade de São Paulo, capital política e administrativa, dispunha de espaços adequados para a implantação das indústrias. Situada a meio caminho entre as fazendas e o porto, permitia a comunicação fácil com o interior e com o exterior do país. E com a Capital Federal, através do Vale do Paraíba, a zona pioneira do café no Estado, pelos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil. As famílias paulistas de maior poder aquisitivo se dedicaram a ampliar a sua riqueza através de empreendimentos concomitantes nos três campos, da agricultura, do comércio e da indústria. Alguns imigrantes constituíram grandes fortunas na indústria e no

19 20

LEMOS, 1999, p. 133. SINGER, in SZMRECSÁNYI, 2004, p. 176.

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comércio. Algumas empresas de capital estrangeiro se estabeleceram solidamente em segmentos de infraestrutura, como o ferroviário, com a São Paulo Railway, desde os anos 1860, e na geração de energia elétrica para consumo domiciliar e industrial, associada à implantação de rede de transporte por carris elétricos, conhecidos aqui como bondes, com a São Paulo Tramway, Light and Power, que começou a operar em 1900. Na cidade de São Paulo as famílias mais abastadas começaram, vindas de outras casas na Capital ou no interior e por volta dos anos 1870­‑1880, a se instalar em residências de um novo tipo, construídas afastadas dos limites dos lotes urbanos, em terrenos de antigas chácaras que foram sendo loteadas para atender à demanda por maior conforto e privacidade. Conhecidas como palacetes, as maiores eram efetivamente inspiradas em palácios europeus. O primeiro loteamento voltado para esse perfil foi o de Campos Elíseos, iniciativa de dois empreendedores alemães que, em 1879, adquiriram uma chácara, efetuaram o seu loteamento e arruamento, com um lucro de 800 % 21. A rede de cidades conectadas à Capital foi um dos fatores que proporcionaram a São Paulo um forte mercado interno22 capaz de sustentar um crescimento que sobrepujou sucessivas crises na agricultura e na indústria e, consequentemente, no comércio, até à sua condição atual de maior cidade do Brasil, baseada principalmente no setor terciário23. Este trabalho está baseado em pesquisa a respeito da formação e das transformações por que passou uma área bastante reduzida que hoje faz parte do Centro Novo de São Paulo. Tendo passado por todas as transformações ocorridas nos últimos 150 anos, seu estudo detalhado permitiu compreender o sentido dessas transformações, analisando as relações entre espaço e sociedade.

As sucessivas transformações da rua São Luiz24 O objetivo deste trabalho não é tecer um relato da sucessão de preferências por linguagens arquitetônicas, mas procurar entender as decisões tomadas e as suas razões. Foi escolhido um reduzido recorte espacial para aprofundar o conhecimento a seu respeito e, assim, enfocar questões que se repetiram em outras áreas da cidade. TOLEDO, 1996, p. 40. SINGER, in SZMRECSÁNYI, 2004, p. 190. LUNA, in SZMRECSÁNYI, 2004, p. 352. 24 Todas as informações relativas a este assunto encontram­‑se em LEFÈVRE, 2006. 21 22 23

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Os Palacetes Nascido em Amarante, em 1746, Luiz António de Souza Queirós tornou­‑se, no Brasil, um homem muito rico, dono de muitas propriedades, urbanas e rurais, e figura de projeção social, sendo distinguido com o título de Brigadeiro. Entre suas muitas propriedades estava uma chácara localizada na bifurcação de dois caminhos que ligavam a cidade ao interior da Província. Nela havia uma casa, conhecida como a sede da Chácara Velha. Essa chácara ficou como herança para um de seus filhos, Francisco António de Souza Queiroz, em 1819, com o falecimento do Brigadeiro Luiz António. Com o correr dos anos, sete dos treze filhos deste Francisco António, que se tornou Senador e Barão do Império, construíram casas para morar na área da chácara, dividida em lotes para essa subdivisão familiar. Destas casas, duas já estavam construídas em 1881 e uma, a sede da Chácara Velha, seria reformada e ampliada em 1898. As demais foram construídas entre 1881 e 1899. Todas isoladas das divisas dos lotes, palacetes. O Ecletismo era a linguagem arquitetônica destes palacetes, construídos com tijolos e com materiais de acabamento importados trazidos do porto de Santos pela São Paulo Railway, inaugurada em 1867. As preferências culturais dos proprietários se refletiam nas construções, de inspiração francesa ou alemã, ou italiana, posteriormente. Os Souza Queiroz eram germanófilos e mantinham estreito contato com a Alemanha nessa época, para educação dos filhos, tratamento de saúde, contratação de pessoal para as fazendas e para serviço doméstico. Suas casas, como era usual na época, abrigavam famílias numerosas, com pessoas de gerações diversas morando em seus amplos espaços. Os seus interiores eram sobrecarregados com móveis, tapetes, lampadários, espelhos, objetos de decoração dos mais diversos, se beneficiando das novidades da iluminação a gás e, depois de 1900, da iluminação elétrica. Os jardins fronteiros para as ruas permitiam que as construções fossem vistas em meio à vegetação. Os amplos terrenos permitiam que, aos fundos, as árvores frutíferas proporcionassem o prazer da produção anual de jabuticabas, pitangas, uvaias, goiabas e outras frutas locais. As instalações de serviços incluíam cocheiras, garagens para veículos, fogões a lenha para preparo de doces como goiabadas, em grandes tachos. À exceção de uma, todas estas casas davam para uma estreita rua que cortava a área da antiga chácara ao meio, o antigo Beco Comprido, que depois ganhou o nome de Rua São Luiz. Sendo uma família bem estabelecida desde o início do Império, os proprietários das casas não tinham a menor necessidade de demonstrar a sua afluência. A rua foi arborizada com jacarandás mimosos, o que lhe emprestava uma característica marcante, principalmente na época de sua floração, de setembro a novembro. Porém, eventos pessoais e familiares, inseridos no processo geral de transformações da cidade, levaram à subdivisão dos lotes

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Figura 1 – A Rua São Luiz em 1925. Foto do acervo do Circolo Italiano.

originais, à venda de alguns imóveis a outras famílias e à inserção de mais casas entre as originais. Por volta de 1930 havia ali um total de dezoito casas, todas ecléticas.

Os Edifícios em Altura Os processos de verticalização da área central e de alargamento de ruas para acomodar as necessidades de circulação de veículos levaram a uma radical substituição das antigas casas por prédios em altura, o que foi favorecido, na Rua São Luiz, pelas generosas dimensões dos antigos lotes. Os dois primeiros edifícios, projetados e construídos entre 1935 e 1939, apresentam uma combinação de Modernismo e Art Déco. Os seguintes, construídos na década de 1940, como o Edifício Princesa Isabel, apresentam o predomínio de um ecletismo com inspiração francesa. Os edifícios dos anos 1950 são, em sua maioria, modernos. É importante salientar que, nesses anos, ocorria uma polaridade entre ecletismo e modernismo. De um lado, a cidade vivia um clima de ufanismo com o crescimento e de identificação com o

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progresso, com manifestações como a criação dos museus de arte como o MASP, fundado em 1947, o MAM, em 1948, a realização das Bienais Internacionais de Arte, cuja primeira edição ocorreu em 1951, as comemorações do IV° Centenário de fundação da cidade, em 1954, que resultou, entre outras coisas, na criação do Parque do Ibirapuera e dos seus pavilhões, obra magistral do arquiteto Oscar Niemeyer. E, de outro, o ecletismo empregado em edifícios residenciais, voltado para atrair uma parcela da burguesia para morar em prédios de apartamentos. Serão apresentados seis edifícios: os dois primeiros e mais antigos, dois modernos de meio de quadra e dois modernos de esquina. Esta seleção foi feita com o objetivo de salientar as dificuldades de aplicar os princípios modernos desenvolvidos para edifícios em altura como blocos isolados expostos à luz do sol a construções a serem feitas na cidade tradicional, com suas ruas­‑corredor.

O Edifício Esther Este edifício é considerado o primeiro prédio moderno de São Paulo. A área em que foi construído era parte do terreno ocupado pela casa de Augusto de Souza Queiroz, na esquina da Rua Ipiranga com a Rua 7 de Abril. Em janeiro de 1935 foi efetuada a venda do imóvel à Usina Esther S.A., uma empresa familiar que produzia açúcar de cana. Ao realizar a venda do antigo lote, seus proprietários previram a criação de uma pequena rua para permitir o aproveitamento imobiliário do interior da quadra. Esta pequena rua, posteriormente denominada Basílio da Gama, ficava junto à divisa com o imóvel vizinho, a antiga casa construída para Luiz António de Souza Queiroz. O edifício Esther foi projetado para o local após um concurso entre arquitetos e construído entre 1936 e 1938. O projeto inovador desse prédio, dos arquitetos cariocas Álvaro Vital Brazil e Adhemar Marinho, previu dois blocos edificados e uma nova pequena rua separando os blocos, mantendo a integração em subsolo com uma garagem única. Os dois blocos se complementam: um, isolado de todos os lados e primeiro a ser concluído, que é o próprio Edifício Esther, e o outro, que arremata a volumetria da quadra, é o Edifício Arthur Nogueira. A solução de separar o projeto em dois blocos permitiu realizar um bloco totalmente isolado, visível de todos os lados, atendendo plenamente aos princípios modernos de estrutura independente, fachada livre, janela em plena largura, terraço jardim e pilotis, ocupados com lojas e com a circulação de entrada. O segundo bloco constitui um pano de fundo para o bloco principal e arremata a construção com o restante da quadra. A criação da rua, integrada à trama viária da cidade, permitiu multiplicar por três a testada comercial, com lojas dos dois lados dessa rua interna.

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Figura 2 – Edifícios Esther e Arthur Nogueira, à esquerda, em foto de 1944. À direita, a casa construída para Luiz António de Sousa Queiroz, um dos filhos do Senador, já sem boa parte do jardim, desapropriado para alargamento da Rua São Luiz. Acervo C.S.B. Julien.

Os elementos internos de comunicação visual e os elementos metálicos de corrimãos das escadas são claramente Art Déco, em uma combinação extremamente frequente nessa época.

A Biblioteca Municipal Mário de Andrade A Biblioteca Municipal foi construída na área da sede da antiga Chácara Velha, que, a esta altura, era a residência de Nicolau de Souza Queiroz, filho do Senador. Sua construção se estendeu de 1938 a 1941. No ano de 1926 instalou­‑se à vizinha Rua 7 de Abril nº 37, a Biblioteca Municipal. A transferência para um prédio próprio, localizado em um grande terreno arborizado não foi decorrência apenas da necessidade de mais área, mas, principalmente, do projeto cultural ambicioso de Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade Paulistana e do diretor da Biblioteca Municipal, Rubens Borba de Morais, ambos intelectuais integrantes do grupo que organizou a Semana de Arte Moderna de 1922 e do grupo que integrava a equipe do ilustre Prefeito Fábio Prado, nomeado em 1934. O projeto arquitetônico do prédio é de autoria do arquiteto francês Jacques Pilon, formado em Paris em 1932 e em atuação em São Paulo a partir de 1933. O prédio apresenta grande afastamento de outras construções, o que permite que possa ser

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Figura 3 – Biblioteca Municipal Mário de Andrade em fase final de construção. Fotos de 1941. Acervo LAP– FAUUSP.

visto por todos os lados, principalmente depois de criada a Praça Dom José Gaspar, que circunda o prédio em sua parte posterior. A importância e prestígio do cargo de diretor da Biblioteca podem ser avaliados pela amplidão da sua sala, ligada a um grande terraço descoberto, que descortina a vista da Praça Dom José Gaspar. Nos anos 40 e 50, a instalação das sedes de jornais, como “O Estado de São Paulo”, ocorrida em 1952 no prédio da Rua Major Quedinho na continuação da Rua São Luiz, projetado em 1946 pelo escritório do mesmo arquiteto Jacques Pilon, sob a responsabilidade do arquiteto Franz Heep, e dos “Diários Associados”, na Rua 7 de Abril, 230, em prédio do início dos anos 40, veio trazer mais atividade intelectual e cultural para as suas imediações. A instalação do Museu de Arte de São Paulo, no prédio dos Diários, por iniciativa de seu proprietário, Francisco de Assis Chateaubriand, foi mais um passo na consolidação da importância do Centro Novo no ambiente cultural da cidade. A presença de grandes cinemas, teatros, livrarias, constituía fator de atração para a população já acostumada a frequentar o Centro. Dentro desse panorama, a Biblioteca Municipal ocupava uma situação de destaque e abrigava sistematicamente eventos como conferências e concertos de câmara no seu auditório.

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Figura 4 – O projeto do Edifício Moreira Salles. Biblioteca FAU USP.

O Edifício Moreira Salles Em novembro de 1942, Walter Moreira Salles adquiriu um terreno na Rua São Luiz onde, antes do seu alargamento, havia duas casas geminadas. Apenas em janeiro de 1951 foi apresentado à Prefeitura o pedido de aprovação de projeto de autoria do arquiteto Gregori Warchavchik, para construção de um prédio de apartamentos. A construção começou em 1953. O projeto previa dois apartamentos de dois dormitórios por andar, do 1º ao 16º pavimento; e um apartamento, também de dois dormitórios, por andar, do 17º ao 19° pavimento. O projeto do Edifício Moreira Salles é moderno, mas, como mencionado, a aplicação dos princípios arquitetônicos modernistas foi condicionada pela localização do lote no meio da testada da quadra e pela legislação em vigor à época, que obrigava a ausência de recuos laterais até o 11º pavimento e recuos de 2,50m a partir do 12º. A composição das fachadas para duas ruas, que segue as perspectivas

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conservadas na Biblioteca da FAUUSP, usa o recurso de combinar elementos envidraçados em balanço com as superfícies mais recuadas da alvenaria de fechamento. Esta solução, até certo ponto, é formalista, pois não há correspondência entre o tratamento externo da fachada e a utilização interna do apartamento, ao menos na frente para a Rua São Luiz: nos apartamentos do 1º ao 12º andar, estes elementos envidraçados correspondem às salas, constituindo uma espécie de ‘jardim de inverno’ fronteiro, onde o piso é cerâmico; porém nos apartamentos do 12º ao 19º andares, este ‘jardim de inverno’ não existe, e as aberturas em vidro do piso ao teto correspondem aos dormitórios centrais, nos quais o escurecimento precisa ser feito por cortinas.

O Edifício Ouro Preto O terreno em que havia existido a casa nº 14 da Rua São Luiz permaneceu vazio desde a demolição da casa para alargamento da via, em 1941, até à construção do Edifício Ouro Preto, concluído em 1958. Após idas e vindas quanto ao programa a ser seguido na nova construção, se uso residencial ou de escritórios, a escolha foi para uso residencial, sendo convidado o arquiteto Franz Heep para desenvolver o projeto. Em meados dos anos cinquenta, Heep desfrutava de prestígio no meio imobiliário por seus projetos, entre os quais se destacava o já mencionado edifício sede do jornal “O Estado de São Paulo”, situado no prolongamento da Rua São Luiz, na esquina da Rua Major Quedinho, inaugurado em 1953. O projeto de Franz Heep para o Edifício Ouro Preto é exemplar da qualidade da obra desse arquiteto, rigorosamente funcional e formalmente muito bem resolvida. Trata­‑se de um prédio de dois apartamentos por andar, de três e de dois dormitórios, de padrão médio­‑alto, sem ser luxuoso, mas bem resolvido na distribuição interna e com qualidades espaciais acima do padrão comercial da época. O prédio segue a regra do recuo frontal e também os recuos laterais de 2,50m a partir do 12º pavimento. Com a necessidade de obedecer a esses recuos laterais, o arquiteto trabalhou a volumetria e a forma do prédio de maneira a caracterizar dois volumes sobrepostos, tratados diferenciadamente e separados por uma faixa de sombra. No bloco inferior, onde ficam os apartamentos de três dormitórios, a superfície da fachada segue o plano das fachadas vizinhas, com uma prumada de terraços em balcão saliente, com parapeito de concreto na frente e tubos metálicos nas laterais. Este desenho do balcão é leve e produz um efeito interessante com o recesso sombreado do terraço, que fica para dentro do plano da fachada. Este terraço constitui ponto de interesse para o ambiente da sala de estar, possibilitando a comunicação com o exterior através de caixilho que ocupa todo o vão. O restante da fachada do volume inferior é ocupado por caixilhos de correr

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Figura 5 – Edifício Ouro Preto ao centro, Edifício Moreira Salles à direita e Edifício Princesa Isabel, entre este e o conjunto Metropolitano. Publicado em AU 53.

que ocupam todo o vão estrutural, com venezianas metálicas externas na altura do vão, o que confere à fachada uma movimentação constante, que depende do uso dos apartamentos. O arquiteto já havia utilizado este efeito, com sucesso, em outros prédios. O apartamento do 12º andar não apresenta balcão fronteiro, e sim terraços decorrentes dos recuos laterais. O peitoril desse terraço constitui um arremate superior, quase uma cimalha, para o volume inferior, e se liga à linha de arremate dos recuos dos prédios vizinhos. O volume superior do prédio, mais estreito, é destinado aos apartamentos menores, de dois dormitórios, e apresenta um tratamento formal e funcional totalmente distinto do empregado no volume inferior. Primeiramente, toda a fachada se projeta em balanço, constituindo um terraço comum para os dormitórios e a sala – o que cria uma sombra que destaca o volume do corpo superior e reforça suas linhas horizontais. A sensação de peso dos parapeitos destes terraços é minimizada por uma estreita linha vazada entre a laje e o parapeito, que também é arrematado por um tubo metálico para diminuir sua altura, sem prejuízo para a segurança.

O Conjunto Metropolitano Em outubro de 1959 a Companhia São Paulo de Hotéis e Imóveis adquiriu o imóvel que se localizava na esquina da Rua São Luiz com a Praça Dom José Gaspar,

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Figura 6 – O Conjunto Metropolitano em 1967. Foto tomada do prédio do jornal O Estado de São Paulo. Agência OESP.

aberta em 1942. Para desenvolver o projeto de arquitetura que comportaria o vasto programa previsto pelos proprietários, envolvendo uma torre de escritórios ligada a uma galeria para lojas, restaurantes, cinema e estacionamento, foi realizado concurso fechado vencido pelos arquitetos Salvador Candia e Giancarlo Gasperini. Seu projeto apresenta notáveis qualidades arquitetônicas e urbanísticas, principalmente quanto à inserção na paisagem, articulando a ligação entre a Praça Dom José Gaspar e a Rua São Luiz. Como se trata de uma torre alta, com 19 pavimentos de escritórios sobre um bloco horizontal de duas sobrelojas acima do térreo, isolada das divisas e apresentando o mesmo tratamento em todas as faces, sua visibilidade é muito grande, tanto ao olhar dos pedestres como das pessoas nos prédios próximos. A preocupação com a visibilidade integral do edifício levou à incorporação, na volumetria da torre, dos volumes de caixas d’água e casas de máquinas de elevadores, usualmente desprezados arquitetonicamente, mas importantes para a paisagem. A torre não apresenta uma fachada predominante sobre as demais: todas são importantes. O bloco horizontal articula a circulação de pedestres na ligação da praça com as ruas São Luiz e Basílio da Gama: através dele, o espaço das calçadas se amplia tanto para o alto – onde há dois níveis de sobrelojas – como para baixo, onde também há lojas, restaurantes e bares em praça rebaixada. Este projeto somente foi aprovado junto à Prefeitura após mudança na legislação que obrigava a encostar o prédio nas divisas laterais do lote. Ou seja, após a aceitação oficial de uma característica moderna de projetar edifícios em altura.

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Figura 7 – O Edifício Itália c. 1970. Publicado em AU. Foto Hugo Segawa.

O Edifício Itália O Edifício Itália, o mais alto prédio da cidade e um dos mais famosos, foi construído no local de uma das residências da família Souza Queiroz, adquirida em 1923 para servir de sede a um clube da elite da colônia italiana, o Circolo Italiano. Em 1953, o clube realizou uma concorrência internacional de arquitetura, com a participação dos arquitetos Gio Ponti, Gregori Warchavchik e Franz Heep, em associação com a empresa de Otto Meinberg, entre outros. O projeto vencedor foi o de Franz Heep, e as obras foram iniciadas em 1956­‑57, tendo se prolongado até 1966, em razão de diversas dificuldades surgidas, especialmente com as fundações. O programa do Edifício Itália incluía, além das instalações para o clube, torre para escritórios, lojas no térreo dispostas em galeria interna, auditório para teatro e garagem. A intenção de monumentalidade é explícita no projeto do Edifício Itália, que deveria conter uma forte carga simbólica para a coletividade italiana de São Paulo. O projeto é muito bem sucedido neste aspecto, tornando­‑se um símbolo para a própria cidade e um ponto de atração para os visitantes da capital, especialmente pela presença de mirante e restaurante instalados nos últimos andares da torre. A inserção do prédio na paisagem foi muito bem concebida, aproveitando o ângulo agudo da esquina formada pelas avenidas Ipiranga e São Luiz, para criar

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um “cenário” para salientar o bloco isolado da torre. Assim como ocorre com o Conjunto Metropolitano, o Edifício Itália faz a articulação visual e espacial de duas vias, no caso as avenidas Ipiranga e São Luiz. As duas alas mais baixas que constituem o pano de fundo para a torre neutralizam parcialmente a presença dos prédios vizinhos. Ao nível do solo, a galeria comercial que faria a integração entre as calçadas das duas avenidas revelou­‑se exígua, resultando na desvalorização das lojas mais internas. Para agravar a situação, hoje, por razões de segurança, a circulação pela galeria encontra­‑se fechada com grades.

Considerações Finais As sucessivas e rápidas mudanças ocorridas na cidade de São Paulo levaram à ocorrência de manifestações de diversas formas de arquitetura nos séculos XIX e XX, de acordo com a criação, difusão e incorporação de diferentes ideias e tendências. Os exemplos escolhidos permitem avaliar o engenho e criatividade dos arquitetos em atuação em São Paulo ao enfrentar os dilemas de projetar uma arquitetura de qualidade e adequada ao momento de sua concepção, atendendo às necessidades próprias dos seus promotores, inclusive de representação, aos condicionantes legais e financeiros, mas comprometida com uma visão cultural da produção arquitetônica.

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São Paulo (In AU 53).

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Edifício Gustavo Capanema, antigo Ministério da Educação e Saúde 88 do Rio de Janeiro, por Lúcio Costa e equipa, com Niemeyer, foto JMF.

capítulo 2

PORTUGAL e BRASIL Do Modernismo ao Moderno

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90 Vila Serra do Navio, 1955.

ECLETISMO E MODERNISMO NA ARQUITETURA DE OSWALDO ARTHUR BRATKE Mônica Junqueira de Camargo Professora da USP

Ecletismo e modernismo: etapas de um processo As relações entre a produção arquitetônica do ecletismo e do modernismo entendidas, hoje, como mais próximas do que uma suposta ruptura pretendida pelas vanguardas, têm instigado muitas investigações que têm contribuído para uma melhor compreensão de ambos os movimentos. A dificuldade em estabelecer o fim de um e o começo do outro aponta para uma imbricada interpenetração dos princípios da arquitetura eclética na arquitetura moderna. A pesquisa de Peter Collins publicada, em 1970, com o título de Changing Ideals of Modern Architecture, com base em textos publicados em meados do século 19, especialmente nas revistas The Builder e Revue Générale de l’Architecture, aponta que, já naquele momento, muitos deles, geralmente de historiadores e críticos de arquitetura, criticavam o apego da maioria dos arquitetos aos estilos do passado e clamavam por uma nova arquitetura, que se livrasse da subserviência à cópia e recuperasse sua vitalidade progressiva. Por exemplo, a Revue Générale de l’Architecture, em 1849, publicou um desenho alegórico mostrando Minerva, a deusa das artes, montada em uma locomotiva chamada Progresso, com o subtítulo: Respeito ao Passado, Liberdade no Presente e Fé no Futuro (COLLINS, 1998, p. 135). Essa leitura de Collins não só deslocou a reivindicação por uma ruptura com os estilos do passado creditada às vanguardas do início do século 20 para

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meio século antes, como sugere que a arquitetura moderna é uma etapa de um processo mais amplo, cujo fim não tem como prever. A publicação de 2008 de Anthony Vidler – Histories of the immediate present. Inventing architectural modernism, apresenta uma nova leitura com base em outros documentos, como os textos de Emil Kaufmann analisados no capítulo Neoclassical Modernism, que desde a década de 1920, estabelece a diferença entre o clássico e o classicismo, hoje conhecido como neoclassicismo, e recupera as ideias de Kant sobre a autonomia da vontade como premissa fundamental da liberdade burguesa. O seu artigo – Von Ledoux to le Corbusier faz uma leitura pioneira sobre o ecletismo do século 19. A partir dos estudos sobre Ledoux, Kaufmann associa a divisão do projeto em funcionalidade e expressão formal, com a mudança da unidade barroca para o sistema pavilhonar do século 19, que constituiu, segundo ele, um indicador do princípio de isolamento que se equiparava à emergência da consciência individual moderna (Apud VIDLER,2008, p. 17). Processo e autonomia são conceitos pertinentes para a exploração desses movimentos e de suas interelações, especialmente no contexto brasileiro, sendo a trajetória do arquiteto Oswaldo Arthur Bratke um campo bastante profícuo. Se a busca dessa autonomia, na interpretação de Vidler, provocou nas vanguardas do início do século 20 a ruptura com o passado, no contexto das Américas pode ser interpretada, frente à delicada conjuntura europeia deflagrada pela primeira guerra mundial, como a ruptura com a supremacia cultural das metrópoles europeias, provocando uma introspecção em suas próprias raízes que resultou, nos países americanos, no movimento neocolonial, mais uma referência no leque dos estilos históricos, tendo cada país o seu matiz. No Brasil, o movimento neocolonial teve como principal referência o barroco do ciclo do ouro, especialmente a produção das Minas Gerais e cumpriu uma etapa fundamental no processo de elaboração da arquitetura moderna.

Ecletismo e Modernismo em São Paulo No Brasil, a diversidade da produção eclética ampliou­‑se proporcionalmente à extensão territorial do país, tomando como referência apenas dois contextos, São Paulo e Rio de Janeiro, verificam­‑se manifestações muitos distintas. Enquanto na capital do país a linguagem do novo classicismo foi introduzida pela missão artística francesa na segunda década do século 19, a nova linguagem chegou a São Paulo com os imigrantes ou com os arquitetos que foram estudar no exterior, que coincidiu, não por acaso, com as grandes transformações sociais, políticas e econômicas que afetaram a cidade de São Paulo de forma distinta.

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A cidade de São Paulo foi um dos poucos núcleos do período colonial implantado no interior. Considerando a desproporcional relação entre a extensão territorial conquistada e a população portuguesa, o início da colonização marcado por uma estratégia defensiva priorizou a ocupação do litoral, com pouca atenção às terras distantes a mais de cem quilômetros da costa. A sociedade paulista, por ter se mantido isolada dos outros núcleos coloniais e também da metrópole, desenvolveu­‑se em intenso convívio com os índios, absorvendo muito de sua cultura. Os documentos revelam uma sociedade marcada por peculiaridades que a singularizam em relação ao resto da colônia portuguesa, com a maioria da população constituída por mamelucos, o que fez com que os portugueses de São Paulo absorvessem alguns de seus costumes. As primeiras construções foram instalações provisórias, com coberturas de sapé, que revelavam mais da cultura autóctone do que do secular legado construtivo português. Com o reconhecimento das possibilidades locais, dos escassos recursos construtivos, associado às disponibilidades do conhecimento técnico e da mão de obra dos primeiros colonizadores, entre eles um mestre taipeiro, a taipa de pilão representou a melhor opção, tendo predominado praticamente como a única, até o último quartel do século 19. A Vila de São Paulo e seus arredores foram, então, edificados sobre a lógica construtiva da taipa, determinante da própria implantação da cidade, do traçado das ruas, do tamanho dos lotes e das principais características arquitetônicas de suas construções, como escreveu Lemos (1976:105): “a taipa tornou­‑se a marca registrada da sociedade bandeirante. Por onde passou o paulista, a taipa ficou”. Esboçou­‑se na produção desses primeiros séculos, os fundamentos de uma tradição, qual seja, a da arquitetura como ofício, em que a criação arquitetônica se dá em estreita sintonia com as questões construtivas, cuja forma é consequência e não causa das soluções propostas aos desafios programáticos e técnicos. Esse processo criativo foi transmitido por meio dos ofícios sob a tradição familiar até o século 19 quando se institucionalizou a educação profissional. A chegada da mão de obra imigrante provocou mudanças substanciais na arquitetura, que associada à introdução de novos materiais, de técnicas construtivas, de programas e de gostos alteraram irreversivelmente os padrões arquitetônicos paulistanos que levou à criação, em 1868, de um Departamento de Obras Públicas. Aos engenheiros estrangeiros deve­‑se a introdução do conhecimento científico na área da construção e da linguagem do novo classicismo. As necessidades intelectuais e práticas surgidas pela nova condição da capital paulistana passaram a demandar cada vez mais profissionais capacitados para atender à crescente solicitação de novos serviços e à complexa expansão urbana, provocando no prazo de dois anos a instalação na cidade de duas escolas de engenharia: em 1894, a Politécnica e em 1896, a Mackenzie, propiciando­‑se a

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constituição, a partir de então, de uma classe de profissionais, que paulatinamente passou a ser reconhecida pela sociedade e a influir nos rumos da cidade. A Escola Politécnica de São Paulo1, criada por Antonio Francisco de Paula Souza, foi idealizada sob os princípios positivistas de Augusto Comte e baseada no método de Roger Bacon, com o curso de arquitetura organizado por Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851­‑1928), também autor do projeto do seu edifício e personagem importante na constituição da cultura arquitetônica paulista. A ampla atuação2 de Ramos de Azevedo foi decisiva para a estruturação da formação e da profissão de arquiteto, instituindo uma próxima relação com a engenharia, e definindo a construtora como seu campo de trabalho, e não com menos destaque para a difusão do ecletismo como linguagem arquitetônica, que transformou completamente a paisagem da capital paulistana, identificada por alguns historiadores, a partir de então, como São Paulo – Belle époque. Essa clara referência à cultura francesa contextualiza as bases do ecletismo paulistano, com forte e evidente relação com os princípios do funcionalismo e do racionalismo. Segundo Cristina Wolff Carvalho (2000:137): Ramos deu uma abordagem moderna e eficiente ao canteiro de obras. (...) Na busca da racionalidade no projeto e na construção, todos os aspectos e etapas concernentes à execução do edifício seriam por ele pensados. O projeto supõe a finalidade, distribuição e articulação das atividades, solução estrutural, pertinência dos materiais a serem adotados, resoluções de ques‑ tões afeitas ao conforto, higiene e salubridade e, ainda supõe fidelidade ao caráter da edificação. Esse forte vínculo com a construção, corroborado pela criação do segundo curso de arquitetura na cidade também em uma escola de engenharia – Mackenzie, com o passar do tempo, constituiu um dos traços do caráter da arquitetura paulista e facilitou a entrada dos princípios racionalistas e funcionalistas do novo classicismo que dominou a arquitetura europeia do século 19. Os arquitetos formados nessas escolas eram induzidos a explorar a simetria axial; a regularidade do ritmo dos vãos; o alinhamento das aberturas nos diversos pavimentos; a declarada caracterização da fachada e do acesso principal pelo avanço do corpo central marcado pelas colunas no pavimento superior; a valorização dos elementos característicos das ordens arquitetônicas, especialmente as colunas e o entablamento; e o uso dos materiais em perfeito equilíbrio estereotômico. Sobre o curso de arquitetura na Escola Politécnica ver FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli ensino e profissão em São Paulo. São Paulo: FFLCH, 1996. 2 Sobre o arquiteto ver LEMOS, Carlos. O Escritório Técnico Ramos de Azevedo. e CARVALHO, Cristina Wolff de. Ramos de Azevedo. 1

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Essa arquitetura eclética que rapidamente substituiu a colonial e dominou a paisagem paulistana até meados do século 20, foi, na mesma velocidade, substituída em seguida pela moderna, num fenômeno tipicamente paulistano de se construir encima de e não ao lado de. Assim, quase todos os arquitetos ativos na primeira metade do século 20 conviveram com o ecletismo e o modernismo. A institucionalização recente do ensino de arquitetura em São Paulo não oferecia resistência à mudança da referência clássica para o novo classicismo, pelo contrário, as propostas dos exercícios de composição tinham, muitas vezes, como tema as variações do neoclassicismo, e a produção corrente valia­‑se da livre combinação dessas muitas variantes. Assim, no meio paulistano, racionalismo, funcionalismo e ecletismo não foram princípios discordantes e sim concomitantes e interpenetrantes, prevalecendo um sentido experimental na produção desse período, quando se verifica um mesmo arquiteto realizando projetos ora neo­‑gótico, ora Luís XV, ora neo­‑renascentista, inclusive art noveau e mesmo, ainda que com menos frequência, moderno. Com raras exceções, quase todos arquitetos formados na primeira metade do século 20 na cidade de São Paulo, apresentam em sua produção inicial um conjunto nada desconsiderável de obras experimentais de difícil classificação estilística, mas que não deixam de constituir um acervo valioso para uma melhor compreensão da relação entre o ecletismo e o modernismo. Dentre eles, Oswaldo Arthur Bratke (1907­‑1997) tem uma trajetória bastante ilustrativa desse processo.

A contribuição da arquitetura de Oswaldo Arthur Bratke Formado engenheiro­‑arquiteto na Escola de Engenheria Mackenzie, em 1931, Bratke foi, a seu tempo, um dos profissionais mais ativos da cidade de São Paulo, tendo projetado entre os anos de 1930 e 1960, mais de 1500 projetos dos quais 90% executados, cuja arquitetura se distinguiu pelo apego que sempre manteve às questões construtivas. Para Bratke, a construção da forma exigia o maior respeito pelos processos do fazer e pelos materiais nela comprometidos e implicados. A predominância dos programas residenciais entre seus projetos, se por um lado, impôs uma escala as suas experimentações, por outro, possibilitou­‑lhe um diversificado leque de inovações. A burguesia paulistana consolidada na primeira metade do século 20, apesar de sua origem rural, mostrou­‑se ávida pelos novos padrões socio­‑culturais, que incluía uma dinâmica experiência urbana.

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A mudança de hábitos de viver repercutiu fortemente sobre a domesticidade da morada paulistana, sendo um dos primeiros desafios, convencer a sociedade da necessidade de uma nova organização do espaço doméstico para atender ao novo padrão de vida. Segundo Bratke: as pequenas coisas têm grande valor histórico no desenvolvimento da arquitetura. Veja a simples modificação de uma planta. Era uma coisa rígida: você entrava na casa por um hall central, à direita havia a sala de jantar pin‑ tada de verde, à esquerda uma sala de visitas vermelha... da sala de jantar ia­‑se para a cozinha, da sala de visitas para os dormitórios, através de longos corredores. Para acabar com isso, conjugávamos a sala de estar com a de jantar. As primeiras que fazíamos eram em forma de L, para o cliente aceitar, ele ainda exigia que houvesse uma porta de separação que em caso extremo podia fechar, mas... “esquecíamos” de fazer essa porta... Superar essa fragmentação do interior das casas burguesas, defasada das expectativas dos novos hábitos de morar, constituiu uma importante tarefa. O espaço doméstico era quase sempre constituído de vários cômodos para funções específicas, mas nem por isso adequados às novas necessidades de seus moradores. Por exemplo, apesar dos vários cômodos, o banheiro continuava único e de tamanho exagerado, inadequado para atender a uma família numerosa, para o que Bratke sugeriu a separação das peças sanitárias em ambientes isolados de modo a permitir o uso simultâneo, chegando a soluções muito sintéticas incluindo a previsão de uma banheira retrátil. A área social, antes voltada para a rua, demandava pequenas aberturas para garantir a privacidade. Com o novo agenciamento proposto pelo arquiteto, a casa passou a ter uma distribuição mais racional dos espaços, integrando­‑os à circulação de modo a ter ambientes mais amplos de acordo com as exigências da vida moderna. A incorporação da edícula, normalmente composta pelo quarto e banheiro de empregados, garagem e lavanderia, ao corpo principal da casa e seu deslocamento dos fundos para a frente, foi uma alteração no programa residencial aparentemente simples, mas que sofreu muita resistência por parte dos moradores. Essa herança geralmente atribuída a uma estrutura social escravocrata, sintetizada por Gilberto Freire no binômio Casa Grande – Senzala, refere­‑se também aos tempos em que o transporte era feito por animais, exigindo um lugar para abrigá­ ‑los, daí sua localização nos fundos das residências. Já o automóvel sempre teve para a sociedade moderna um papel simbólico, seja de conferência de status social ou de fetiche moderno, que lhe garantiu uma posição de mais visibilidade na casa moderna, compartilhando quase sempre a entrada da casa.

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Figura 1 – Residência na Rua Canadá, anos 1930.

Os terraços, pátios internos, jardins de inverno, tanto no pavimento inferior como no superior, foram uma constante em quase todas as suas obras, que com o tempo foram se expandindo em pérgulas e passadiços. As aberturas foram se tornando mais generosas, para promover, além da ventilação e insolação, a integração entre interior e exterior, uma das características mais constantes de sua obra. Com raras exceções, as suas obras foram executadas em estrutura de concreto armado, vedação em alvenaria e os materiais para acabamento variando entre o tijolo, a pedra e a madeira. No início, os telhados eram invariavelmente de duas ou quatro águas e, dependendo do partido adotado, poderiam apresentar mansardas. A cobertura era de telhas francesas ou capa­‑e­‑canal sobre estrutura de madeira, apenas com forro de estuque e sem laje, depois introduzindo a telha de fibrocimento. De seus primeiros projetos há pouca documentação, entretanto, as disponíveis revelam composições em estilos variados, raramente simétricas, porém harmônicas, e com uma clara justificativa racional, de cunho construtivo, para os elementos decorativos. Seus dez anos de intensa atividade frente à Construtora Bratke & Botti (1932­‑1942), vencendo o desafio de resolver arquitetonicamente os problemas da construção, renderam­‑lhe conhecimento suficiente para interpretar com muita autonomia, as questões racionais e funcionais na arquitetura. Esse seu profundo conhecimento, fruto da experiência do canteiro de obras, foi o caráter mais evidente de sua arquitetura. Mesmo com o uso de linguagens variadas, seus projetos guardavam uma certa unidade baseada na racionalidade construtiva, sem disfarces ou falsificações.

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Figura 2 – 1ª Residência de Bratke, 1947. Figura 3 – Planta da 1ª residência do arquiteto, 1947.

A partir de 1942, com a morte de seu sócio, Bratke fechou sua construtora e dedicou­‑se exclusivamente ao projeto. Até o final dos anos 1940, havia projetado mais de 450 casas, edifícios de escritórios, apartamentos, indústrias nos quais foi experimentando materiais, técnicas e formas, aproximando­‑se cada vez mais de uma linguagem moderna. É compreensível que nos edifícios comerciais e nas indústrias a introdução de uma relação harmônica entre os princípios racionalistas e funcionalistas e a sua composição plástica tenha oferecido menos resistência do que nas residências. As suas próprias casas são marcos importantes de sua trajetória. A primeira casa que fez, em 1947, para ele mesmo à rua Avanhandava foi uma primeira síntese das questões enfrentadas até então. Uma planta compacta, cujo programa se distribui em um bloco único, com o espaço interno dividido apenas por armários e com alvenaria somente nas paredes que separam o interior do exterior. Com o avanço das experiências, seja de materiais, técnicas ou formais, Bratke foi abandonando o repertório dos estilos históricos e criando sua própria interpretação dos princípios modernos, cuja maturidade foi alcançada no projeto da sua segunda residência (1950) no Morumbi. Ao decompor a complexidade do problema arquitetônico, Bratke conseguiu desenvolver uma linguagem própria, baseada na estrutura independente, na modulação espacial e no jogo de planos e superfícies, em estreita relação com a movimentação do sol e da luz, da articulação sensível dos vários espaços, da economia do sistema construtivo, da integração do interior e exterior, de modo a conseguir a maior eficiência funcional com o menor custo possível. O racionalismo como processo de pensamento se converteu, assim, em forma moderna, que Bratke passou a explorar sem qualquer hesitação, criando praticamente uma tipologia, tal como definida por Argan (1992, p. 37), não como um modelo, mas

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Figura 4 – 2ª residência do arquiteto, 1950. Figura 5 – Residência Joly, 1950.

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“um esquema que traz em si a possibilidade de variantes segundo as necessidades contingentes. O princípio tipológico é a busca de conteúdos inerentes à forma do edifício como coisa em si, cuja função específica se insere num sistema de valores: a natureza, a razão, a sociedade, a lei”. Seu orgulho pelo simples, sua sensibilidade às formas puras, o desejo de clareza e de modéstia, foram os meios pelos quais atingiu seu modelo de ordem formal e funcional. Para Bratke, nenhuma forma existia em si, a priori, mas era obtida como ação do construir, juntar e compor. A obsessiva busca da qualidade arquitetônica, a qual não dissociava projeto e execução, levou­‑o a criar um processo de trabalho, no qual só reconhecia a autoria do projeto se o mesmo tivesse a qualidade construtiva por ele imposta. Se o arquiteto só pode conceber e construir aquilo que é, de fato, capaz de desenhar, descrever ou moldar com suas próprias mãos, a passagem dos canteiros de obras para o escritório de projeto significou uma mudança radical no seu processo de trabalho. A presença menos constante nos canteiros e a decorrente ênfase maior à expressão do desenho colocaram­‑no frente à delicada relação entre a técnica de desenho e a concepção arquitetônica, exigindo uma maior precisão no dimensionamento dos projetos e um maior domínio teórico de complexos pormenores técnicos de modo a conseguir expô­‑los claramente no papel. Esse desafio fez com que desenvolvesse um método de projeto, no qual o detalhamento era protagonista e que se tornou uma referência para sucessivas gerações de arquitetos. A sua casa no Morumbi, outro marco na sua trajetória, inseriu­‑o definitivamente no rol dos arquitetos modernos, sem contudo cerceá­‑lo de novas experimentações. Paralelamente às casas, a diversificação de programas que passou a enfrentar: edifícios residenciais e comerciais, indústrias, clubes, hospitais, escolas, fóruns e até mesmo uma cidade inteira, lhe proporcionou constantes desafios que foi respondendo com novas experimentações, porém segundo a mesma tipologia. Na casa Joly (1953) Bratke explorou a máxima potencialidade do novo repertório formal, lançando quatro módulos estruturais, dos quais apenas um abriga o programa, enquanto os outros três apenas emolduram a paisagem. O empreendimento para a exploração das jazidas de manganês na região da Serra do Navio, no território do Amapá, em meados dos anos 1950, foi das experiências modernas mais bem sucedidas do Brasil, não só como atividade econômica, mas, sobretudo no âmbito do urbanismo, da arquitetura e do design. Aqui, o arquiteto assumiu a responsabilidade não apenas pelo projeto, mas pela sua viabilização e execução, tomando todas as decisões necessárias para o cumprimento de prazos e de custos. Os desafios desse empreendimento foram muitos: a magnitude da escala, as condições geográficas, o prazo, a disponibilidade de materiais e de mão de obra. O isolamento característico e problemático das company towns, no

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Figura 6 – Vila Serra do Navio, 1955.

caso dos Núcleos Habitacionais do Amapá assumiu uma dimensão ainda maior. As jazidas de manganês estavam localizadas praticamente sob a linha do Equador, em plena selva amazônica, portanto, sob um clima equatorial com alto índice pluviométrico, e totalmente isoladas de qualquer centro urbano. O empreendimento envolveu o projeto e construção de: acampamentos provisórios nas frentes de trabalho; um porto fluvial para navios de grande calado, dotado de um píer fixo e um píer flutuante; uma estrada de ferro com bitola de 1,435 m, na extensão de 194 km; instalações industriais destinadas à extração, movimentação e beneficiamento do minério; além das duas vilas residenciais, destinadas aos empregados da Companhia e suas respectivas famílias. A complexidade desse projeto frente à precariedade das condições da área era uma experiência sem precedentes, que tinha a pretensão de criar um núcleo urbano que superasse as imposições sociais contratuais e sobrevivesse ao período de mineração, tornando­‑se uma cidade aberta com ótima qualidade de vida. As duas vilas fariam parte do município de Macapá e foram concebidas segundo o mesmo partido arquitetônico e urbanístico, de modo a configurar uma identidade que permitisse relacioná­‑las enquanto complementares de um projeto maior, ainda que totalmente autônomas. Planejadas segundo a ideia do core, tal como havia sido discutido no VIII CIAM realizado em 1951 em Hoddesdon – um centro cívico que estimulasse a convivência e a sociabilidade, a Vila Amazonas foi implantada no estuário do rio Amazonas a 20 km ao sul da cidade de Macapá, e a Vila Serra do Navio a 200km, no topo de duas elevações suaves, separadas por um pequeno vale, próximo à estação ferroviária e distante do rio para prevenir possíveis inundações. O centro cívico das Vilas foi conformado pelos edifícios administrativos, comerciais, pela escola, Igreja e por um clube social, que se comunicavam por meio de passadiços cobertos que serviam de anteparos tanto para as chuvas como para o

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Figura 7 – Esquema unidade habitacional, casa ecológica.

sol. Os edifícios e as áreas comerciais do centro cívico foram dispostos ao redor de uma praça, onde a comunidade poderia desenvolver suas atividades, promovendo intercâmbios culturais e comerciais, em função do qual localizar­‑se­‑iam as quatro áreas habitacionais. A setorização das moradias foi determinada hierarquicamente, refletindo explicitamente a estrutura da Companhia. Não houve qualquer tentativa de enfrentar a estrutura social existente, apenas dar as melhores condições habitacionais a toda população, independente da classe social. Na Vila Serra do Navio, dada a topografia, verificam­‑se duas áreas distintas: uma mais ampla, onde se concentra a maior densidade e onde estão localizados o centro cívico e as habitações operárias, e a outra onde estão as moradias dos funcionários graduados, ligadas por uma via dupla, a única de todo o projeto. Entre esses dois bairros, está o centro esportivo, pensado de modo a cumprir um importante papel de integração funcional e social. A definição do tamanho da cidade, enquanto densidade demográfica e ocupação territorial, foi resultado da busca da relação ideal entre espaço construído e área livre, tendo em vista as necessidades programáticas e a imensidão do lugar. Segundo Bratke: dentro da vastidão e grandiosidade da região, ao mesmo tempo sua pequena densidade demográfica, o sentido espacial toma características especiais, de importância predominante, tanto no sentido econômico da construção quanto da conservação dos serviços e espaços públicos. Assim, o adensamento exagerado é medida econômica não justificável, diante da imensidão regional. A separação também exagerada traz, como conseqüên‑ cia, a conservação onerosa e talvez impraticável. A conformação do terreno, o clima e a estética também devem ser fatores determinantes da proporção entre espaço construído e espaço livre3.

3

Apud RIBEIRO, op. cit. p. 41.

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O projeto para a unidade habitacional é o melhor desempenho do arquiteto no conjunto de sua produção arquitetônica. Apesar da documentação que realizou sobre a maneira de viver dos nativos que esparsamente ocupavam a região, Bratke não se deixou seduzir pelo bucolismo de suas instalações, vale lembrar, totalmente precárias. Com larga experiência no programa habitacional, Bratke atingiu aí um modelo perfeito de adequação de programa, condições climáticas, econômicas e materiais disponíveis. Uma solução que reuniu os princípios da mais sofisticada racionalidade e funcionalidade. Com pleno domínio da física aplicada, o estudo por ele desenvolvido para essas residências, com o intuito de minimizar os efeitos do intenso calor e excessiva umidade, constitui uma obra prima. As aberturas, protegidas por beirais pronunciados, atingindo 1,20m, foram criteriosamente dispostas para proporcionar a ventilação cruzada. O efeito térmico causado pela cobertura de telhas de cimento amianto foi amenizado por abertura nos beirais, de modo a garantir que uma camada de ar circulasse entre o forro de madeira e as telhas, criando um colchão de ar responsável pelo isolamento térmico. Todas as aberturas foram resolvidas sem a utilização do vidro, vedadas apenas com venezianas, móveis e/ou fixas, elementos vazados e telas para a proteção contra os insetos. As venezianas basculantes de madeira, uma criativa e amadurecida interpretação dos brises soleil corbusianos, foram desenhadas especialmente para as condições e materiais locais. Essa casa, anos mais tarde, quando o tema da ecologia passou a ser uma preocupação arquitetônica, foi batizada de “casa ecológica”, ganhou vários prêmios, sala especial em Bienal de Arquitetura, publicações e comentários da crítica especializada. A unidade operária era composta de dois ou três dormitórios, uma sala, banheiro, cozinha e tanque na projeção do beiral, permitindo a apropriação mais livre do espaço, dependendo de cada família. Os cômodos com necessidade de instalação hidráulica: cozinha, banheiro e área de serviço, foram projetados contíguos, permitindo que numa única parede se concentrasse toda a instalação – a parede hidráulica, de modo a facilitar a obra e economizar os materiais. A adequação do projeto aos moradores, que passariam a ter uma nova vida em condições muito diversas de seus locais de origem, foi um dado fundamental na definição do partido arquitetônico, portanto conhecer o modo de vida dos habitantes e estimular uma vida em comunidade de uma população sem qualquer vínculo afetivo entre si, eram necessidades primordiais. A precariedade das condições de moradia da população, que habitava ou passava pela região e que viria a ser a maioria da mão de obra operária, foi uma preocupação que o arquiteto se dispôs a enfrentar. Como introduzir novos padrões de higiene e conforto sem menosprezar a cultura local. A substituição da rede pela cama, o convívio com a energia elétrica, a introdução de eletrodomésti-

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cos e especialmente do banheiro, que impunha novos hábitos de higiene, foram cuidadosamente estudados de modo a minimizar seus impactos. A qualidade arquitetônica e urbanística desses núcleos urbanos foi destacada não apenas pela crítica especializada, mas pelos indicadores sociais, como aqueles apontados pelo relatório sobre as cidades de companhia, feito pelo IPT – Instituto de Pesquisa Tecnológica da USP. Nesse relatório, a qualidade de vida constatada nas vilas Amazonas e Serra do Navio supera em muito outros projetos existentes, mesmo os realizados mais recentemente: A qualidade dos equipamentos comunitários, assim como sua gestão, participaram decisivamente na obtenção de um alto índice de fixação dos empregados à empresa, principalmente nos níveis operário e médio, o que tornou possível encontrar até netos de alguns dos primeiros empregados. Um dos equipamentos mais elogiados eram os hospitais. Segundo declara‑ ções dos próprios moradores, estes eram bem equipados e contavam com equipes médicas de ótimo nível. Mas também o âmbito preventivo da saúde foi especialmente cuidado. Em sua planificação, previram­‑se procedimentos que permitiram assegurar em plena Amazônia, índices desprezíveis de inci‑ dência de moléstias tropicais4 . Em seus projetos seguintes, houve um aperfeiçoando da tipologia, decorrente da análise crítica da validade de certas soluções, sobretudo construtivas, com os ajustes necessários mesmo que para isso fosse necessário descartar algumas experiências. Por exemplo, na terceira casa que fez para ele, Bratke retomou o telhado e o beiral, segundo ele importantes como proteção à construção, porém, sem qualquer apelo historicista, mantendo­‑se firme na sua abstração formal. Depois que fechou o escritório em meados dos anos 1960, Bratke dedicou­‑se ao desenho e à pintura. São registros de viagens sem qualquer pretensão artística, mesmo assim, são desenhos interessantíssimos. Com grande destaque à arquitetura, seus quadros resgatam quase sempre construções vernáculas, curiosamente nunca obras modernas. Apesar da opção pelo Figurativismo para pintura, nunca abandonou o Abstracionismo para arquitetura.

4

FARAH, 1993 p. 18 e 19.

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Considerações Finais No contexto brasileiro, se, por um lado, é possível constatar uma imbricada interpenetração dos princípios funcionalistas e racionalistas característicos do ecletismo na arquitetura moderna, e um amplo conjunto de composições ecléticas realizadas por arquitetos que depois assumiram a linguagem moderna, por outro, verificamos que muitos dos arquitetos que optaram pela arquitetura moderna não mais cederam a qualquer manifestação historicista, entendida aqui, como a aplicação de elementos históricos. Assim foi com Lucio Costa, Vilanova Artigas, Kneese de Melo, Ícaro de Castro Melo e alguns outros formados na primeira metade do século 20, estabelecendo assim, não apenas uma ruptura de linguagem, mas a própria maneira de conceber a arquitetura, que deixa de ser uma concepção sistemática e passa a ser uma concepção metodológica, como explica Argan: O arquiteto que se propõe a representar o espaço utiliza certos elemen‑ tos formais que tem a sua disposição e que compõe em seu edifício. O arqui‑ teto que pretende fazer ou determinar o espaço não pode aceitar as formas arquitetônicas pré­‑estabelecidas, (...) terá que inventar sucessivamente suas próprias formas5 . O arquiteto moderno, portanto, não representa um espaço, uma realidade que não lhe pertence, mas vai determinando­‑a através das próprias formas arquitetônicas. Entendendo sistema como um conjunto de afirmações logicamente relacionadas entre si, e o método como o processo daquele que não aceita os valores dados, mas que pensa determiná­‑los por ele mesmo através do fazer, podemos dizer que o ecletismo ainda se pautava pelo sistema enquanto a arquitetura moderna pressupôs um método. A arquitetura de Bratke criou um método e manteve reconhecida autonomia em relação aos seus pares, em afinada sintonia com os problemas de sua época. Embora suas primeiras obras não expressassem uma linguagem moderna, tampouco utilizavam elementos da arquitetura clássica. Não abriu mão da qualidade construtiva, mesmo quando se afastou do canteiro de obras, insistiu na economia espacial e construtiva e nunca se deixou seduzir pela originalidade ou pelas acrobacias estruturais, pois para ele, estrutura sempre deveria ser a mais econômica. Sem pregar a revolução social, acreditava na contribuição do espaço construído ao bem­‑estar social. A arquitetura de Bratke, a partir de meados da década de 1940, caracteriza­‑se como moderna sem a pretensão de ser revolucionária.

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ARGAN, 1984, p. 18.

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Bibliografia ARGAN, Giulio Carlo. El concepto del espacio arquitectónico desde el Barroco a nuestro dias. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 1984. ( primeira edição 1961) CAMARGO, Mônica Junqueira de. Oswaldo Arthur Bratke: uma trajetória de arqui‑ tetura moderna. São Paulo: FAU/Mackenzie, 1995. Dissertação de Mestrado. CAMARGO, Mônica Junqueira de. Princípios de arquitetura moderna na obra de Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo: FAU/USP, 2000. Tese de Doutorado. CAMARGO, Mônica Junqueira de. Poéticas da razão e construção: conversa de paulista. FAU/USP, 2009. Tese de Livre­‑Docência. COLLINS, Peter. Los ideales de la arquitectura moderna; su evolución (1750­‑1950). Barcelona: GG, 1998 (5ª edição). FARAH, Flávio e FARAH, Marta Ferreira Santos. Vilas de mineração e de barragens no Brasil: retrato de uma época. São Paulo: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, 1993. RIBEIRO, Benjamin A. Vila Serra do Navio: comunidade urbana na selva amazônica, um projeto do arquiteto Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo: Pini, 1992. SEGAWA, Hugo e DOURADO, Guilherme Mazza. Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo: Proeditores, 1997. SOLÀ­‑MORALES, Ignasi de. Inscripciones. Barcelona: GG, 2003. VIDLER, Anthony. Histories of immediate present. Inventing architectural moder‑ nism. Cambridge: MIT Press, 2008.

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Segunda residência de Bratke, 1950.

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108 Edifício Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, foto JMF.

1936­‑37, ANO CHAVE DA ARQUITECTURA MODERNA, PORTUGAL­‑BRASIL UM TEMPO FULCRAL NA AFIRMAÇÃO DA ARQUITECTURA MODERNISTA, EM PORTUGAL E NO BRASIL: 1936­‑37, ENSAIO DE LEITURA COMPARATIVA. NESSE MESMO TEMPO, DOIS ARQUITECTOS, DOIS MUNDOS, EM DIÁLOGO: RAUL LINO ARGUMENTA COM LÚCIO COSTA

José Manuel Fernandes Professor da FAUTL

Intróito e resumo dos conteúdos A arquitectura inovadora, procurando uma clara ruptura com a tradição e o passado, ecléctico e romântico, que designamos de MODERNISTA (afirmadora do MODERNO), aconteceu em Portugal e no Brasil, com nitidez, nos tempos transformadores da década de 1930. Dois edifícios, historicamente exemplares, que iremos destacar, marcam, simbolica e operativamente, sem dúvida, a expressão dessa transformação, em cada um desses países. Possuem uma expressão muito diferenciada, pelas distintas escalas, arrojos, dimensões, programas e contextos. Esses dois imóveis foram edificados em torno da data chave dos anos 1936­‑37, nas respectivas capitais políticas dos dois países: falamos da nova Casa da Moeda em Lisboa, por Jorge Segurado, complexo desenvolvido entre 1934 e 1941­‑48, cujo principal e simbólico edifício administrativo, de escritórios, estava concluído

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em 1937; e do famoso Ministério da Educação e Saúde Pública do Rio de Janeiro (actual Palácio Gustavo Capanema), conjunto dominado pela famosa “torre” de gabinetes, em vidro e “brise­‑soleils”, erigido entre 1936 e 1945, por equipa projectista de Lúcio Costa, integrando Óscar Niemeyer. Nesses exactos anos aconteceu igualmente um encontro/desencontro entre duas figuras-chave (talvez, num certo sentido, “AS” figuras­‑chave), respectivamente, das arquitecturas portuguesa e brasileira: Raul Lino, paladino da visão culturalista e tradicionalista da arquitectura lusitana, e Lúcio Costa, decano da visão moderna, urbanista, patrimonial e igualmente com base cultural sólida, do Brasil. Os factos mais marcantes do seu diálogo, ocorrido aquando da viagem do arquitecto português ao Brasil (em 1935), estão narrados (pela evidente impressão que produziram no autor) numa obra de Lino, “Auriverde Jornada”, publicado precisamente em Julho de 1937. Livro que se comenta, a título de remate destas nossas considerações e análises.

Portugal e a arquitectura modernista O contexto, as mudanças Após o tempo convulso e profundamente politizado dos primeiros anos pós Implantação da República, a vida portuguesa, em quase reacção à abundância de sucessivas crises sociais (as revoltas, os atentados) de fomes e mortes (a participação portuguesa na Grande Guerra), pareceu centrar­‑se gradualmente em temas onde a cultura foi de algum modo dominante – hoje, olhando este período dos anos 1920, parece ser claramente de destacar o chamado Modernismo Português, que na literatura, na poesia e na pintura geraram obras de intensa ruptura com as expressões tradicionais, desde Sá Carneiro, Almada e Souza Cardoso, ao universal Pessoa. A emergência do movimento reaccionário do 28 de Maio de 1926 (com a tentativa “Ditadura Nacional”), conjugada com a crise internacional que se seguiu à queda da Bolsa de Nova Iorque em 1929, foram determinantes em Portugal para a criação de uma nova realidade política, social e económica (o “Estado Novo”) que teve reflexos estruturantes na modernização da paisagem portuguesa, rural e urbana. Ao mesmo tempo que se estabilizava e institucionalizava o regime de Salazar, nos iniciais anos de 1930, a arquitectura assumia paulatinamente um protagonismo que desde os meados do século XIX (com o Fontismo) perdera. Pela mão do Governo, e de um personagem chave, tão providencial como o Ditador de Coimbra, o engenheiro­‑ministro Duarte Pacheco (e, em certa medida, o “segundo homem”

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do regime, Ministro das Obras Públicas em 1932­‑36 e de 1938 até à morte em 1943), iniciou­‑se de forma sistemática e centralizada a aplicação de uma “técnica política” que os “regimes de recuperação” pós­‑crash de 1929 igualmente aplicavam nos seus espaços, desde Roosevelt a Hitler – e que ficou conhecida como a “Política de Obras Públicas”. Numa época em que não havia ainda televisão, a arquitectura exprimia neste quadro uma função representativa e simbólica do poder, de grande importância.

A ruptura do Modernismo De facto uma verdadeira ruptura da produção arquitectónica nacional, em linguagem e tipologias, fez­‑se a partir dos anos de 1925­‑30, quando a mudança do regime político permitiu, num quadro autoritário, garantir gradual estabilidade social e económica, dar um novo alento aos construtores civis e investidores actuando no quadro urbano (legislação proteccionista, incentivos, 1928), e dinamizar a produção industrial (nomeadamente do cimento, 1928­‑29), ao mesmo tempo que se propiciava o uso de novas tecnologias (regulamentação do betão armado, 1930); tudo isto, que o Estado Novo iria aproveitar para a referida “Política de Obras Públicas” (com apogeu em 1932­‑47) convergiu para a emergência de uma nova geração de autores arquitectos, e a correspondente eclosão da primeira Arquitectura Modernista em Portugal, afirmada e praticada entre 1925 e fins dos anos 1930. Os sinais iniciais foram claros: o concurso para os novos Liceus (1929­‑31), com selecção dominante de obras de desenho moderno; a exposição do I Salão dos Independentes, com obras marcantes da nova geração (na S.N.B.A., 1930); e a adopção generalizada, em muitas obras de habitação e de equipamentos, do gosto geometrista e estilizado Art Deco, que rarefazia o uso da decoração nas fachadas, preparando assim o caminho para uma expressão construtiva e espacial abstracta e purista, facilitadora da modernização, por via da simplificação e da estandartização formais. Assinalem­‑se os principais autores da primeira geração modernista, quase toda formada (referem­‑se as suas datas de formação) nos últimos anos da I República: Cristino da Silva, 1918; Pardal Monteiro, 1919; Carlos Ramos e Cottinelli Telmo, 1921; Jorge Segurado, 1924. Deste modo, o período pós­‑1925­‑26, correspondendo politicamente, como se disse, à afirmação inicial do regime do Estado Novo, assistiu a fases bem marcadas, em termos da linguagem arquitectónica dominante. Numa fase inicial, houve a difusão de obras de expressão modernizante, por via da influência internacional da recente fase de afirmação do “Movimento Moderno” (que tivera apogeu euro­‑internacional em 1919­‑1927, segundo Leonardo Benevolo), quer em edificações de habitação e equipamentos, ainda com elementos decorativos,

1936-37, ANO CHAVE DA ARQUITECTURA MODERNA, PORTUGAL-BRASIL | 111

Figura 1 – Capitólio, Lisboa, 1925-31 (foto JMF, 2010).

embora simplificados e geometrizantes (provindos do ”Art Deco”, 1925­‑1935) – quer no chamado “Modernismo Radical”, em obras com volumetrias abstactas e completa ausência de decoração. Neste contexto desempenhou especial papel a acção do Estado, por via sobretudo do ministro Duarte Pacheco, que deu lugar à (já referida) intensa “Política de Obras Públicas”, com inúmeros equipamentos modernizantes de iniciativa pública espalhados pelo país, desenhados pela citada “geração modernista” dos arquitectos, e recorrendo crescentemente ao uso de tecnologias inovadoras de construção, como o betão armado. De facto, e com maior intensidade nos anos de 1925­‑1938, afirmou­‑se a inovadora tendência do Modernismo Arquitectónico, com utilização crescente da nova tecnologia do betão armado e exibindo um gosto formal e fachadista de base “Art Deco” simplificado. Os dois edifícios que habitualmente se consideram percursores desta tendência em Portugal são a Garagem do Comércio do Porto (por Rogério de Azevedo, de 1928­‑32), e a sala de espectáculos do Capitólio, em Lisboa (por Cristino da Silva, de 1925­‑31). A acção urbanística e arquitectónica do Estado Novo correspondeu a uma política de edificação (equipamentos, infraestruturas, habitação), que na prática apoiou a (e foi apoiada pela) geração dos arquitectos modernistas – numa primeira fase, com edificações funcionalistas e “quase” puristas, sobretudo em Lisboa: por Pardal

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Monteiro (Instituto Superior Técnico, de 1927­‑35); por Cassiano Branco (sobretudo em programas da iniciativa privada, como o Cinema Éden, de 1933, e o Hotel Vitória, de 1934­‑36), por Carlos Ramos (Pavilhão de Oncologia, de 1927­‑33), e por Jorge Segurado (Casa da Moeda, de 1934­‑41, com António Varela), entre outros.

A arquitectura como nova protagonista – símbolo do processo de transformação e modernização do País – e a Geração Modernista É neste quadro e segundo esta leitura que se poderá considerar a arquitectura (prolongada no urbanismo e na paisagística) como um dos temas mais “fortes” do país nesta década – entre 1930, com o advento dos liceus estatais modernistas (Beja, Coimbra), a fundação da Universidade Técnica e a construção do conjunto do Instituto Superior Técnico (1927­‑35) e do Instituto Nacional de Estatística (1931­ ‑35) – e o “canto do cisne” de uma certa crença no progresso internacionalizado, centrado na tecnologia, que a Exposição do Mundo Português de 1940 ditou e sancionou (sendo a “viragem” das dinâmicas preponderantemente modernizadoras para as dominantemente neo­‑tradicionais, situada a meio da década, algures entre 1936 e 1938). É também na observação desta época e quadro que a expressão “Arquitectura Modernista” assume analiticamente cabal sentido. Utilizada por José-Augusto França, na sua “Arte em Portugal no Século XX”, publicada em 1974, adoptei­‑a depois, nos fins dos anos 1970, para estudar mais especificamente aquele tipo de produção edificada, em artigos saídos na revista “Arquitectura” de Lisboa (1979­‑1980). A manifestação Modernista da arquitectura, finalmente eclodia – décadas depois de se ter verificado nas outras manifestações culturais, da literatura à pintura – porque só com as “Obras Públicas” fruto de uma continuada estabilização política e económica se possibilitou a sua afirmação social e cultural, de forma verdadeiramente sistemática, difundida e generalizada. Uso a expressão “Modernista” no sentido de uma “tentativa de fazer moderno” – e aqui “moderno” relaciona­‑se com as propostas do chamado “Movimento Moderno” da arquitectura, que entre 1919 e 1927, como se disse (segundo Leonardo Benevolo, 1974), tinha desenvolvido também, na Europa, um percurso tentativo, com obras ocasionais e polémicas (de Le Corbusier a Mies Van der Rohe, de Rieveld a Gropius) e finalmente frustrado pela crescente e ampla reacção neo­‑tradicionalista. Os agentes desta Arquitectura Modernista constituíram a que se designa habitualmente por “primeira geração” dos arquitectos modernos (França, 1974), com uma série de autores, nascidos nos finais do século XIX e formados nas Escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto, de que se mencionaram já alguns nomes neste

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texto. Importa aqui, como João Vieira Caldas já assinalou (Lisboa, 1997), dizer que eles foram de algum modo “órfãos culturais” – isto é, ao contrário da correspondente geração europeia, que teve na fase da Arte Nova internacional (1893­‑1910) os seus mestres e orientadores, pré­‑modernistas mas com produção importante que preparou o advento desse mesmo modernismo – eles surgiram, ao contrário, em Portugal, numa postura de descontinuidade, em plena ruptura com as práticas romântico­‑ecléctico­‑revivalistas, ainda imperantes no País nos anos 1910­‑20. O arquitecto Raul Lino (1879­‑1974), que com o Movimento da “Casa Portuguesa” (1898­‑1914) poderia ter sido um pilar dessa seguinte geração, não trilhou uma via de abertura cultural à modernidade; Ventura Terra (1866­‑1919) ou Marques da Silva (1869­‑1947), pré­‑modernos e experimentalistas na prática profissional, ou não sobreviveram o tempo necessário, ou não influíram cultural e pedagogicamente nas escolas segundo esta via de modernização. E assim a “Primeira Geração Modernista” surgiu isolada, e como que espontaneamente – o que indiciou também a sua fraca preparação teórica e a sua fragilidade conceptual, que ditaria a escassa duração da sua prática e linguagem inovadoras (o “Efémero Modernismo” de que fala Nuno Portas, 1976). Mas há que apresentar outros temas, convergentes com o da Arquitectura Modernista, para entender cabalmente o surgir desta prática no Portugal dos anos de 1930. Porque, antes (e a par) da acção determinante do Estado, houve uma primeira etapa do “processo modernista”, que importa ressaltar: a da iniciativa privada, traduzida, sobretudo depois de 1928­‑29, em novas tipologias experimentais, de equipamentos urbanos, e no surto de construção imobiliária, de “novo gosto”, dos “prédios de rendimento” e para venda, de habitação colectiva. De facto, este processo e etapa serviram­‑se, de forma convergente, de vários novos temas: – o de uma rápida evolução tecnológica, com a gradual vulgarização do uso do betão armado (usada pela primeira vez nos pavimentos de um prédio de rendimento da av. Barbosa du Bocage, em Lisboa, por Norte Júnior, precisamente no ano de 1930, pelas suas propriedades de resistência e isolamento) – em detrimento dos materiais correntes na construção, há séculos, da alvenaria à madeira e aos estuques – e que o acesso à produção abundante de cimento encorajava); – por outro lado, utilizaram a nova legislação prometedora, que isentava de impostos os investidores na construção urbana, na realização dos prédios habitacionais de iniciativa privada; – finalmente, este surto e tecnologia ligavam­‑se com a difusão de um novo padrão estilístico, mais geometrizado e decorativamente muito simplificado (por comparação com o Eclectismo Romântico de 1900), cripto­‑moderno, o chamado Art Deco (abreviatura de “Artes Decorativas”) que, na decoração, no design e na arquitectura se difundiram rapidamente pela Europa, a partir da exposição homónima de Paris em 1925.

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Assim, os novos bairros residenciais que surgiram em Lisboa, desde cerca de 1930, como logo depois um pouco por todo o país, desde os mais modestos (Bairro Santos, do Rego) aos mais luxuosos (Bairro Maria Amália) difundiram este novo tipo de habitação plurifamiliar, claramente transicional entre a tipologia tradicional e a modernizante, quer como estrutura (paredes de alvenaria versus pisos parciais de betão armado), quer como desenho (alguma decoração aposta nas fachadas lisas, mas tendência para a sua geometrização), quer como funcionalidade (espaços interiores convencionais, mas grandes envidraçados nas traseiras, para as marquises das cozinhas). Nos referidos estudos da revista “Arquitectura”, e mais tarde na “Arquitectura Modernista em Portugal” (1993), pude propôr duas fases / tendências bem diferenciadas nesta produção: uma, do “Modernismo Art Deco”, ainda com decoração floral, geometrizada, e vestígios classicizantes (pilastras) nas frontarias; outra, designada de “Modernismo Radical”, com a preponderância de formas abstractas (varandas prismáticas, salientes), e quase total ausência de decoração nas fachadas (ou decoração “abstracta”) – e onde pontificou Cassiano Branco |1897­‑1970|, com uma vasta obra de prédios de fachadas geometristas e dinâmicas, embora convencionais no programa interno (Rua Nova de São Mamede ns.3­ ‑9, 1935; Avenida Pedro Álvares Cabral, ns.44­‑48, 1936; Avenida Defensores de Chaves n.27, 1937, em Lisboa). Também, na mesma época, embora pontualmente, tinham surgido obras arrojadas do ponto de vista estético e construtivo, dentre as quais é habitual salientar duas das mais qualificadas, ainda existentes (e classificadas): o “Capitólio”, sala de espectáculos no Parque Mayer de Lisboa, por Luís Cristino da Silva (1896­‑1976), de 1925­‑31 (evidenciando a potência nova do cinema e o mundanismo do “music­ ‑hall”, num espaço poli­‑funcional, tridimensional e “transparente”); e a Garagem do “Comércio do Porto”, na avenida dos Aliados /da Liberdade, por Rogério de Azevedo (1898­‑1984), de 1928­‑32, com a ampla, lisa e purista fachada de gaveto, marcando com agudeza o advento urbano do automóvel, inserido num conjunto arquitectónico ao serviço dos órgãos mediáticos da imprensa.

A “Política das Obras Públicas” e suas “séries tipológico­‑funcionais” Para além destas experiências equipamentais urbanas, pontuais, e dos surtos de prédios “para alugar e vender”, foi de facto a acção governamental, com a organização de uma política centralizada de urbanização e de edificação, consubstanciada em planos, em séries programadas de equipamentos, de infra­‑estruturas, de

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bairros para famílias pobres, que o Estado Novo se afirmou, controlou o desemprego e a fome – e dinamizou a estrutura social, relançando a economia e os sistemas produtivos. Embora com um fundo ideológico neo­‑tradicional (o Corporativismo medievalista) e autoritário, o Estado Novo utilizou – dir­‑se­‑ia de modo conceptualmente oportunista – nesta primeira fase da sua acção crescente e afirmativa, até cerca de 1940, uma visão “Moderna”, progressista, assente na tecnologia e nas estruturas, com concretização de formas e espaços modernizantes, para a consecução dos seus objectivos. Foi um Estado servido pelos novos grupos de técnicos, com jovens gerações informadas, e actualizadas – engenheiros, arquitectos, urbanistas e paisagistas, cuja pós­‑formação ou especialização também apoiou internacionalmente (casos do urbanista Faria da Costa |1906­‑1971|, formado em Paris em 1935; e do paisagista Francisco Caldeira Cabral |1908­‑1992|, formado em Berlim, 1936, proponente da nova implantação “orgânica” do Estádio do Jamor em 1937). Ou foi uma acção de fundo político­‑tecnico, por convite a autores de reconhecido prestígio (Etienne de Groer, urbanista, em 1938, para o Plano Director de Lisboa e outros). De um modo ou de outro, o chamado “Regime”, sob a orientação, no sector das Obras Públicas, de Duarte Pacheco, durante quase toda a década, soube imprimir uma marca, uma imagem de fundo, coerente e estruturante, que perdurou durante décadas. Num certo sentido, não será exagero afirmar que o século XX, na sua essência de modernidade assente na dimensão tecnológica, foi lançado em Portugal apenas no segundo quartel de Novecentos, pelo Estado Novo e através da sua política de edificação e urbanização, interligada e coerente. Há que destacar as frentes de “afirmação modernista” desta política oficial de Obras Públicas: – em primeiro lugar, e como estuturação global das intervenções a edificar, o arranque dos processos institucionais de urbanização e de planeamento, com a feitura de planos, onde sobressai o primeiro plano territorial, o Plano de Urbanização da Costa do Sol, em 1935­‑36, por Alfred Agache |1875-1959|, retomado por Etienne de Groer em 1938, que também elaborou o Plano Director de Lisboa (de 1938­‑48) e os planos de várias outras cidades portuguesas, na Península (Évora, Coimbra) e nos espaços coloniais (Luanda); outras intervenções significativas, referem­‑se ao Plano de Urbanização do Porto, onde trabalharam arquitectos italianos como Marcello Piacentini |1881-1960| e Giovanni Muzio |1893-1983|; na verdade, inúmeros arquitectos estiveram envolvidos em dezenas de planos, ante­‑planos e estudos de urbanismo, que se tornou um tema organizador do território português desde esta época; – as infraestruturas, onde se destacam as estradas, pontes e viadutos, em betão armado, e onde pontifica a figura emérita do engenheiro Edgar Cardoso |1913­ ‑2000|, formado na Universidade do Porto em 1937; refiram­‑se a Estrada Marginal,

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Figura 2 – Liceu de Beja, anos 1930 (foto Mário Novais, col. JMF arquitecto).

iniciada nos finais da década, a par da Auto­‑Estrada Lisboa­‑Cruz Quebrada, com o Viaduto de Duarte Pacheco sobre Alcântara, bem como as redes de estradas regionais modernas, que organizaram o conjunto territorial numa nova dimensão de acessibilidades e velocidade; estes sistemas foram complementados com a nova infra­‑estrutura aeroportuária (Aerogare por Keil Amaral |1910­‑75|, de 1940, só inaugurada já em 1943), portuária (as Estações Marítimas, da Rocha Conde de Óbidos e de Alcântara, por Pardal Monteiro |1897­‑1957|, dos anos 1934­‑39, embora só inauguradas em 1943­‑48), e ferroviária (as inúmeras estações por Cotinelli Telmo |1897­‑1948|, onde se destacam as peças modernistas da Estação Sul e Sueste em Lisboa, de 1930­‑32, ferro­‑fluvial, e de Vila Real de Santo António, de 1940); – a intervenção paisagística, onde se pode incluir o Estádio Nacional, de 1937­ ‑40, por Caldeira Cabral (a concepção geral de implantação) e Jacobetty Rosa |1901­‑1970|, a Tribuna de Honra); – as chamadas “séries equipamentais”, onde as tipologias eram definidas muitas vezes a partir de projectos­‑tipo, com variantes que garantiam a sua adequação a cada caso ou lugar concreto, e onde a expressão dominante modernista, geométrico­‑abastracta, foi gradualmente impregnada por elementos formais passadistas, ao longo da década: os Liceus de 1930 (de Beja, por Cristino da Silva

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|1896­‑1976|; masculino de Coimbra, por Jorge Segurado |1898­‑1990| com Carlos Ramos |1897­‑1969| e Adelino Nunes |1903­‑48|; Filipa de Lencastre em Lisboa, com a parte desportiva edificada, no Quelhas, por Carlos Ramos; e o liceu definitivo, por Jorge Segurado, no Bairro do Arco do Cego); as filiais da Caixa Geral de Depósitos (por Cristino da Silva, em Castelo Branco, de 1938, Guarda, de 1939, e Leiria de 1940, com plantas geométricas e dinâmicas, mas onde começam a infiltrar­‑se os atavios decorativos do neo­‑tradicional); os edifícios dos Correios (por Adelino Nunes, em dezenas de vilas e cidades, como Estoril, 1939­‑42, Setúbal, de 1938, Leiria, Aveiro, Figueira da Foz); os bairros sociais (o tema do habitat social, colectivista, é o “grande ausente” desta fase inovadora, e não é por acaso), onde a única afirmação de desenho modernista (depois alterado com coberturas “aportuguesadas” em telha) foi a do conjunto do Bairro do Alvito, por Paulino Montez |1897­‑1988|, em 1938 (só finalizado em 1947); as prisões (a obra cimeira de Alcoentre, por Raul Rodrigues Lima |1909­‑79| e Cottinelli Telmo, de 1937­‑44); e muitas outras obras, dentro desta senda equipamental; – as obras da área da Saúde, com o marcante Pavilhão de Rádio, em Sete Rios, por Carlos Ramos, de 1927­‑33, o Instituto Navarro de Paiva, na Luz­‑Benfica, de 1931, de ritmo e volumetria bauhausiana, e ainda o Hospital de Cascais, ambos do mesmo autor, de 1933; – as chamadas Obras singulares: a notável Casa da Moeda, no Arco do Cego, em Lisboa, por Jorge Segurado, de 1934­‑41; ou o conjunto da Cidade Universitária, iniciado o projecto por Pardal Monteiro em 1936, mas só concluído décadas depois; – são ainda de mencionar as obras e monumentos efémeros de celebração, como a tribuna para o “Ano X da Revolução Nacional”, em 1936, no Parque Eduardo VII, por Paulino Montez; e o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris de 1937, por Keil do Amaral. Esta vasta seriação, exemplificativa e necessariamente incompleta, mostra o forte investimento edílico do Estado Novo ao longo dos anos de 1930, no que se poderia designar de “fase heróica”, ou de afirmação, com a sua clara filiação na linguagem internacionalista da arquitectura – a qual, com a passagem da década, e o dramático mergulhar na II Guerra Mundial, rapidamente descambaria numa tendência neo­‑tradicional, decorativista, historicista e regionalista – a exemplo do que sucedeu noutros países europeus.

Equipamentos privados de significado colectivo: um processo paralelo ao do Estado Novo Como se disse, a década de 1930 teve em Portugal uma intensa fase de construção de equipamentos, dentro da Arquitectura Modernista; a moda do Art Deco, e do

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Figura 3 – Salão de Jogos Monumental, Lisboa, anos 1930 (foto JMF, c. 1980).

“Moderno”, além do chamado “espírito da época”, mundano e cosmopolita, com o fascínio pela electricidade, pela luz, pela velocidade, pelos automóveis e aviões, todo um conjunto icónico construtor de um novo universo de formas de significado urbano e colectivo, explica em grande parte esta opção – contaminada porém, desde meados da década, por sinais crescentes de um “resvalar conservadorista”. A iniciativa privada e local acompanhou o passo do Estado Novo, com a edificação de uma série de equipamentos inovadores, dentro da mesma linha de linguagem arquitectónica, e pelos mesmos autores. Refiram­‑se alguns dos exemplos mais marcantes. Nos inícios da década, as obras realizadas exprimem em geral um sentido mais aberto e inovador – embora com grande diversidade de opções, são experimentalistas, internacionalistas, puristas ou “futuristas”, nas formas e volumes: o conjunto do Jardim Cinema e Garagem Monumental, na avenida Pedro Álvares Cabral, em Lisboa, de 1930, por Raul Martins |1892­‑1934|; a Garagem e Stand da Ford Lusitana, ao Parque Eduardo VII, por Pardal Monteiro, de 1930; o Éden Cinema e Teatro, nos Restauradores, e o Vitória Hotel, na avenida da Liberdade, ambos em Lisboa, por Cassiano Branco, de 1929­‑31 (só completado em 1937, por outro autor) e 1934­‑36, respectivamente; o edifício do Rádio Clube Português, na Parede, por Tertuliano Lacerda Marques |1883­‑1942| e o filho Vasco, de 1934; ou ainda a Lota de Massarelos, no Porto, por Januário Godinho |1910­‑1990|, de 1932.

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Figura 4 – Hotel Vitória, Lisboa, anos 1930 (foto JMF, 2007).

Passados os meados da década, já se sente mais o tema do compromisso, ou as formas de transição, menos radicais, aceitando volumes e superfícies curvas com mais facilidade, bem como os novos decorativismos: é o caso exemplar da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, na avenida de Berna em Lisboa, de 1934­‑36 (Prémio Valmor de 1938), por Pardal Monteiro, que foi defendida contra os neo­ ‑tradicionais como “inevitável obra moderna” pela importante figura do Regime, o Cardeal Gonçalves Cerejeira; e da sede do jornal “Diário de Notícias”, na Avenida da Liberdade lisboeta, de 1936­‑38 (Prémo Valmor de 1940), também por Monteiro, que, apesar da elevada qualidade técnico­‑construtiva e da poética “industrial”, indicia alguma “nova monumentalidade”, e o regresso a um sentido verticalizante, de teor clássico. O Café Portugal, no Rossio de Lisboa, por Cristino da Silva, de 1938, confirma esta assunção decorativa, com base em volumetrias e materiais modernos, na arquitectura comercial; e o Coliseu do Porto, por Cassiano Branco, de 1939­‑41, integra de modo grandioso e total a dimensão expressiva monumentalizante. Resta referir dois pequenos exemplos, raros – e por isso mesmo significativos – de habitações unifamiliares urbanas, totalmente seguidoras da estética do Movimento Moderno internacional dos anos 1920: a moradia na avenida Columbano Bordalo Pinheiro, n.87, por Cassiano Branco, de 1937 – evocando a escola holandesa, de Gerrit Rietveld |1888-1964| e Pieter Oud |1890-1963|, e a Casa Honório de Lima, no Porto, por Viana de Lima |1913­‑1991|, de 1939­‑40, onde os ecos claro da

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estética de Le Corbusier são pela primeira vez, de modo completo, concretizados em Portugal. Mas são também, à sua maneira, o sinal de um “Canto do Cisne” para esta gesta modernista, optimista e crente no progresso e na racionalidade – a qual, entre o medo colectivo e a evolução em espiral dos conflitos político­‑sociais na Europa, será de todo abandonada nos tempos tumultuosos da nova catástrofe mundial.

O Brasil e alguns tópicos de comparação: da Casa da Moeda lisboeta ao Ministério da Educação e Saúde Pública carioca, em 1936­‑37 Do mesmo modo que evoluiu o quadro das mudanças políticas e culturais em Portugal ao longo dos anos 1930, como atrás se desenvolveu, também processos relativamente análogos ocorreram no Brasil na mesma época. Processos esses que se desenrolaram de forma algo convergente, simultânea mesmo nalguns casos, à portuguesa – mas no essencial de um modo “desligado”, autónomo, dotado com um carácter específico, atribuído pela distância, pela dimensão, pela dinâmica cultural e civilizacional próprias do Brasil dos anos 1930. De facto, a evolução, os ritmos e os destinos do grande País sul americano estavam / corriam então, desde há um século, separados dos da pequena terra lusitana. Houve, claro, encontros fugazes entre as culturas arquitectónicas brasileira e portuguesa, ao longo de Novecentos – trocas culturais pontuais, embora significativas (ex: Ricardo Severo, nos anos 1900­‑1920, Carlos Ramos e Rebelo de Andrade no Rio da Expo de 1922, Pais da Silva nos anos 1950) – mas as duas “histórias”, no fundamental, correram a par, com pouco entrosamento, e os encontros havidos apenas confirmam, pela sua excepcionalidade, essa via apartada. Com razões e bases muito diversas, mas a lembrar sem dúvida, um pouco, as “costas voltadas” de Portugal para Espanha e vice­‑versa, em grande parte do século XX. Sem querer desenvolver ou aprofundar aqui estes aspectos “brasílicos” da década de 1930 – aspectos que deixo para as análises dos ilustres colegas de São Paulo presentes no nosso colóquio, entre outros – não posso evitar a referência resumida e tópica aos temas que parecem criar analogias e aproximações, entre as situações brasileira e portuguesa: – surgimento (gerando obra edificada e coexistindo com as novas arquitecturas) de um regime político designado “Estado Novo”, em ambos os países: com Oliveira Salazar, em Portugal, a partir de 1928, sendo institucionalizado em 1933,

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e durando longamente; e com Getúlio Vargas, no Brasil, desde a Nova República de 1930 ao Estado Novo, entre 1937 e 1945 – sendo que ambos os Regimes políticos, com ideologias análogas, incentivavam a acção e intervenção autoritárias do Estado na sociedade, e uma correspondente “Política de Obras Públicas”; – uma fase prévia de inovação experimental arquitectónica, em Portugal e no Brasil, expressa em obras de iniciativa privada, de que é exemplo mais forte em Portugal o salão de espectáculos “Capitólio” (edificado em Lisboa em 1925­‑31), e no Brasil a obra de Gregori Warchavchik |1896-1972|, na transição dos anos 1920­ ‑30, autor das primeiras habitações da arquitectura do modernismo internacional no país (casa própria, de 1928, e casa da rua Itápolis, de 1930, ambas em São Paulo; e casa em Copacabana, Rio de Janeiro, de 1931); – um investimento público forte, em ambas as nações, na construção de novas arquitecturas de infra­‑estruturas e de equipamento, servindo uma política de Obras Públicas, de objectivos modernizantes, mas igualmente legitimadora das características autoritárias ou ditatoriais de ambos os regimes políticos. Porém, as fontes de inspiração e os modelos arquitectónicos mais procurados foram, nestes contextos, ou parecem ter sido, de raiz bem distinta ou diversa, nos anos 1930 da arquitectura de Portugal e do Brasil. O que mostra o (relativo) afastamento cultural entre ambos os países, e os universos que as elites cultas e informadas de cada um procuravam e lhes interessavam. Enquanto em Portugal foi então marcante a arquitectura de Centro­‑Europa (a alemã de Walter Gropius |1883-1969|, a francesa de Mallet‑Stevens |1886-1945|, a holandesa de Pieter Oud em Amsterdão e Dudok |1884-1974| em Hilversum) – já no Brasil, embora a intervenção de Warchavchik introduzisse em São Paulo e no Rio também os ensinamentos de Gropius e de Mies Van Der Rohe |1886-1969|, é sobretudo a abertura aos trabalhos de Le Corbusier |1887-1965| que fará a diferença – pois ele era então quase um desconhecido em Portugal (só depois da II Guerra Mundial foi mais conhecido, e a Carta de Atenas traduzida e difundida em Lisboa). A sequente presença pessoal de Le Corbusier na América do Sul (Buenos Aires e Rio de Janeiro, em 1929 e 1936), aonde se desloca, precisamente, queixando­‑se de “não ser ouvido” na Europa, acentuará esta perspectiva de influências diferenciadas Portugal­‑Brasil, quanto a nós – a qual terá finalmente uma tradução real muito clara na expressão arquitectónica do Ministério da Educação e Saúde. Esta preponderância inicial da visão modernista e moderna de Le Corbusier no Brasil poderá ter tido vários motivos, convergentes e simultâneos, dentre os quais podemos destacar: – a ligação cultural e profissional do corbusiano Warchavchik ao Rio, desde cedo, com a sua associação a Lúcio Costa, em escritório conjunto, onde Niemeyer trabalhou, em 1930­‑32, e a sua direcção da Escola Nacional de Belas Artes do

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RJ nesta fase – deste modo disseminando no meio dos arquitectos cariocas os temas moderno­‑corbusianos, e em especial com Lúcio Costa |1902-1998| e Óscar Niemeyer |1907-2012|; – as características mais “meridionais” e “mediterrânicas” dos temas modernos segundo Le Corbusier (a importância dada à geometria euclidiana­‑purista, aos aspectos formais, a dimensão da plasticidade, a luz e modelação dos volumes), se comparadas, por ex., com a visão de Mies ou de Gropius – características que de algum modo estavam mais próximas das possíveis percepções e formação da cultura tropical­‑latina do Brasil, e sobretudo no Rio; – o facto desta nascente “escola modernista­‑moderna carioca” coincidir no espaço, com a capital do país, e no tempo, com o arranque das grande obras públicas que a ditadura de Getúlio Vargas então encetava – o contexto precisamente visitado por Le Corbusier no “tempo certo”. Vejamos agora quão diversos eram os temas e as aproximações dos arquitectos portugueses enquanto viajavam pela Europa e absorviam os novos temas da arquitectura modernista e moderna. Jorge Segurado, o autor do edifício da Casa da Moeda, que em inícios da década de 1930 viajou longamente pelo centro da Europa, referia então que “...o objectivo da minha visita foi justamente ir conhecer o Modernismo Europeu, na Alemanha para ver as coisas do Gropius, na Holanda para ver coisas do Dudok, o estádio dele, e em França ainda vi a Exposição de Arte Colonial em Paris (1931) |...| estive em Colónia também |...| quando eu vim para Portugal trazia a bagagem de tudo quanto tinha visto na arquitectura da habitação na Holanda, as construções modernas de Berlim...”1. Por aqui se constata claramente o predomínio dos temas germânicos e holandeses na difusão da primeira arquitectura modernista e moderna em Portugal. Carlos Ramos foi outro autor que ajudou então a difundir esta temática com acento na visão alemã da Bauhaus. Keil do Amaral, amigo de Jorge Segurado, um pouco mais novo, que viajou em 1936 pelo Centro­‑Europa, escolheu a Holanda, sobretudo com as obras de Hilversum e Dudok, que reportou com manifesto entusiasmo, sublinhando o humanismo e a escala delicada, orgânica e paisagística, das obras de arquitectura e urbanismo, no seu opúsculo A Moderna Arquitectura Holandesa (Cadernos da Seara Nova, Lisboa, 1943): “Faz­‑se na Holanda uma arquitectura racional mas de um racionalismo sem dureza, sem secura, um racionalismo que anda de braço­‑dado com a poesia. Estudam­‑se os projectos de dentro para fora, como deve ser, mas não se considera suficiente uma distribuição correcta dos

in Fernandes, José Manuel, Arquitectos Segurado, JMF e Imprensa Nacional­‑Casa da Moeda, Lisboa, 2011 (citando ��� entrevista de Jorge Segurado a Fátima Ferreira e Pedro Vieira de Almeida, in Jornal dos Arquitectos n.76, Abril de 1989), p. 26 1

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Figura 5 e 5a – Maqueta da Casa da Moeda (INCM), Lisboa (foto Mário Novais, col. JMF arquitecto) – a expres‑ são horizontal. Figura 6 –Ministério da Educação e Saúde Pública (MES), Rio de Janeiro (foto JMF, 1986) – a dimensão vertical.

serviços. A Comodidade e a Beleza fazem­‑se mútuas concessões para maior harmonia dos conjuntos (p. 49). A arquitectura moderna holandesa beneficia desta coisa extraordinária de considerar os relvados, as árvores, as flores e a água, como complementos indispensáveis da construção...” (p. 52). Estas algumas das fontes principais de influência, as quais no singelo Portugal dos anos 1930 se reflectiram sem dúvida na expressão das respectivas obras mais marcantes e inovadoras. Um eixo racionalista centro­‑europeu esteve de facto sempre presente nas obras que influenciaram os modernistas lusos (com a escala contida e equilibrada, ”racional”, e o funcionalismo morigerado imanentes) – enquanto no Rio como que “explodia” o visionarismo opulento e “quase louco” de Corbu, o qual semeara e enraizara a fundo em Costa, em Niemeyer e nos seus colegas, gerando desde logo o “super­‑monolito” do Ministério da Educação e Saúde, primeiro prédio gigante “à escala americana”, primeira e inovadora edificação de escritórios em “parede­‑cortina” no Novo Mundo, que logo coloca o Brasil nas vanguardas modernas internacionais! Como sinais destes contraditórios contrastes / convergências entre Portugal e o Brasil, e das suas arquitecturas modernistas, analisemos “a par” duas obras que se podem considerar marcantes, e com um lugar­‑chave, já firmado historicamente, no quadro das respectivas eclosões da Nova Arquitectura: a Casa da Moeda, por

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Figura 7 – INCM, blocos no quarteirão semi-fechado (foto JMF, anos 1980).

Figura 8 – MES, volumes no quarteirão aberto (foto JMF, 1987).

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Figura 9 – INCM, pátio e composição simétrica (foto Mário Novais?). Figura 10 – MES, composição abstracta (foto JMF, 1986).

Jorge Segurado, em Lisboa, com projecto de 1934, sendo o seu edifício administrativo de escritórios principal concluído em 1937, e os restantes erigidos até 1941­‑48; e o Ministério da Educação e Saúde, de Niemeyer, Costa e sua equipa, iniciado em 1935­‑36, pronto em 1945­‑47, no Rio de Janeiro. Vejamos pois, em contraste comparativo, os dois conjuntos, já que perfeitamente contemporâneos, ambos frutos de políticas centrais de “Obras Públicas” e com programas de algum modo semelhantes (escritórios de instituições dos respectivos Estados, associados a equipamentos de uso público e / ou industrial), e com inserções em conjuntos edificados formando quarteirão, de tipo polifuncional: – escala de conjunto arquitectónico monumentalizada, mas com desenvolvimento “em extensão” no caso da CM, e “em elevação” no caso do MES; – linguagem arquitectónica inovadora, com volumetrias geométricas abstractas e puristas, ainda proto­‑moderna no caso da CM, mas já francamente moderna no MES; – dimensões e altimetria procurando uma expressão “horizontal” no caso da CM (com três a quatro pisos no máximo) versus uma expressão afirmativa e monumental de tipo “vertical” no caso do MES (com torre de muitos pisos);

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– utilização de composições de simetria “estática” na CM (fachada do edifício administrativo, pórtico do volume industrial, bem assentes no pavimento) versus jogo de volumes em clara “assimetria dinâmica” no MES (a torre de vidro “suspensa” sobre pilotis, em contraponto ao corpo do auditório e ao vazio do plano térreo, com arranjo paisagístico); – implantação em super­‑quarteirão, de tipo semi­‑fechado no caso da CM (explorando os pátios internos e as aberturas desniveladas) versus o espaço de tipo totalmente aberto e fragmentado, no caso do MES; – complementaridades das artes plásticas, mais classicizantes no caso da CM (relevos figurativos em pedra no pórtico do edificio industrial), e mais inova‑ dores e contemporâneos no MES (grandes painéis de azulejos abstractos nas superfícies de passagem pública). Pelos sucessivos tópicos abordados, se pode constatar que a mais marcante obra do modernismo português, bebendo muita da sua inspiração no mundo do racionalismo­‑funcionalismo de centro-Europa, se exprimiu ainda de modo muito convencional, (apesar das indiscutíveis inovações patenteadas) dentro de uma contenção relativamente forte de dimensões, formas e espaços – ficando a sua marca e fama dentro das fronteiras do pequeno país do extremo­‑sudoeste europeu; enquanto o “ex­‑libris do arranque moderno” do Brasil soube tirar partido da espectacularidade das suas escalas, dimensões e materiais, assumindo como que um “formalismo monumental e tecnológico” – rompendo assim com o padrão de influências tradicional, e divulgando­‑se além­‑fronterias, até aos Estados Unidos e à Europa, como signo de um novo movimento cultural e construtivo. Um sinal, também, da capacidade e avanço técnico­‑arquitectónico e da grande escala américo­‑brasileira, que então despontava, “caminharia” no pós­‑II Guerra Mundial por Belo Horizonte, e iria coroar­‑se no momento / marco de glória de Brasília, 25 anos depois.

Finalmente, o (des)encontro de Raul Lino com Lúcio Costa, também em 1936­‑37 – um debate cultural de entendimento difícil Quais ”actores” nos bastidores destes eventos, Raul Lino e Lúcio Costa encontraram­‑se, de novo no nosso ano­‑chave de 1936 (de facto em 1935, com relato publicado em 1937), durante um almoço de arquitectos no Rio, estabelecendo

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Figura 11 – Casa do Cipreste, por Raul Lino (in catálogo Raul Lino, 1970) – a tradição. Figura 12 – Fachada do MES com os brise-soleils (foto JMF, 1986) – a nova técnica construtiva.

de forma natural, coloquial, as normas do debate cultural que era então o “possível” entre os mais reflectidos e cultos dos arquitectos de ambas as nações. O encontro, a todos os títulos histórico, ficaria registado na escrita de Lino, a quem terá quiçá impressionado mais do que a Costa... Veja­‑se como a formação, compreensão e visão culturalista de ambos (Costa, de percurso parisiense e francófono; Lino, de caminhos anglo­‑germânicos) não impede Costa de defender o avançar para a reinvenção das formas e espaços arquitectónicos, “modernos embora de inspiração tradicional”– enquanto para Lino essa base pessoal funcionou sempre como uma “prisão”, uma limitação que o impediu de sair conceptualmente dos sistemas de formas regionalistas e viradas para o passado. Observemos, nos testemunhos de Lino (in Auriverde Jornada, 1937), que cita Costa, e ao mesmo tempo defende os seus pontos de vista próprios, – como as visões de ambos são semelhantes aparentemente, mas quase opostas, no seu fundo essencial e pragmático, o que irá ditar os respectivos futuros e obras: “|José Cortez, no “Jockey Club”|... me apresentou dois colegas brasileiros, Ângelo Bruhns e Lúcio Costa. Ambos distintos profissionais com brilhante obra realizada, interessava­‑me particularmente tomar contacto com este último artista cuja personalidade goza do merecido prestígio de um verdadeiro mentor dos jovens arquitectos do Brasil, havendo­‑se distinguido na sua fulgurante carreira principalmente por uma inesperada evolução do eclectismo tradicionalista – exercido com notável talento – para um estrito abstencionismo de feição internacio‑ nal. Estava cheio de curiosidade por conhecer Lúcio Costa, cujo procedimento para alguns era tido por acto de apostasia, para outros como lógica transfiguração dos seus ideais” (p. 90­‑91). Diz­‑lhe Costa: “... apesar do ambiente confuso, o novo ritmo vai, aos poucos, marcando e acentuando a sua cadência, e o velho espírito transfigurado descobre na mesma Natureza e nas verdades de sempre, encanto imprevisto, desconhe-

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cido sabor – resultando de aí formas novas de expressão. Mais um horizonte então surge, claro, na caminhada sem fim” (p. 92). Ao que responde Lino: “Certo – o novo ritmo está achado (...) é o ritmo do desenho das máquinas, de meios de transporte, de instalações sanitárias ou hospitalares. (...) Será isto só o que nos interessa?” (p. 92). Corrige Costa: “A arquitectura (...) leva­‑nos, é verdade, além (...) da simples beleza que resulta de um problema tecnicamente resolvido; esta é porém a base em que tem de se firmar (...) existe, já perfeitamente constituída em seus ele‑ mentos fundamentais, em forma disciplinada, uma completa nova técnica construtiva, paradoxalmente ainda à espera da sociedade à qual, logicamente, deverá pertencer” (p. 93). Mas Lino reage a esta visão assente na ideia de tecnologia e sentido futurista, dizendo­‑lhe (com alguma ironia): “...julgo, como o meu amigo, que a maioria da gente não se apercebeu ainda do enorme benefício que devemos a esta arquitectura desnudada que veio pôr fim ao romantismo serôdio, à complicação de um dessorado arqueologismo. Mas bem: a deusa despiu­‑se; deixemo­‑la espreguiçar à vontade seus membros contrafeitos durante largo período; mas que se vista de novo,– não outra vez com os seus trajes de máscara, mas com vestes que lhe confiram a expressão própria de uma sociedade que não há­‑de ficar eternamente a cuidar só do corpo. (...) não seria utopia nossa esperar e exigir que ela reflectisse também os anseios do espírito (...)” (pp. 94­‑95). Logo Costa se afasta claramente deste olhar, ao que refere Lino: “Lúcio Costa não quer ouvir falar em tradição; isto é – parece querer confundir tradição mor‑ fológica na obra dos arquitectos com tradição espiritual na obra dos homens, e observa que nós os europeus estaríamos fartos de uma herança que nos oprime. A isto tenho de obtemperar que a tradição a mim pessoalmente nada oprime nem aflige. (...) Recebo de braços abertos a nova técnica, todas as novas técnicas, mas quero que elas se subordinem à ideia que nos ilumina quando se trata de exprimir uma tenção – um sentimento (...)” (p. 95). Lino assume a partir deste passo da sua conversa com Costa uma franca oposição ao ponto de vista do arquitecto brasileiro, que designa de “conformista”, da “evolução da técnica construtiva, à sombra da evolução social, ambas condicionadas à máquina” (p. 96). Neste passo da discussão, Costa, significativamente, segundo Lino, “... quer modestamente reforçar o seu ponto de vista com as afirmações de um Le Corbusier. Aventa este que um operário que passa meses, anos, talvez toda a sua vida a fazer sempre a mesma pequena peça para um motor de automóveis há­‑de sentir legítimo orgulho quando souber que a marca para a qual tem estado a trabalhar há tantos anos conseguiu atingir o andamento de 260 quilómetros à hora! Nova mística (...) é o homem prolongamento da máquina” (p. 97).

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Figura 13 – Pavilhão do Brasil para a Exposição do Mundo Português, 1939-40 (in catálogo Raul Lino, 1970) – da tradição espiritual ao sentimento. Figura 14 – Terraço do MES (foto JMF, 1987) – da tradição morfológica ao racionalismo.

É aqui que Lino definitivamente se afasta de Costa: “Lembra­‑se, meu caro colega (...) do Cântico dos Cânticos? ´As tuas coxas quando assim unidas se ajun‑ tam, são como as ametades do firmal precioso que mão de mestre lavrou.´ Há nisto alguma coisa para lá da técnica e que até hoje não deixou de exercer o seu encanto entre os homens” (p. 97). É aqui o fecho inevitável, sem saída, da troca de pontos de vista entre ambos, como Lino comenta: “O meu colega não se convence e manifesta até a certeza de que este encantamento do lavor pessoal há­‑de acabar por desaparecer de todo! – Nesta altura então abriu­‑se uma vala intransponível entre mim e o meu amável interlocutor. Desenhava­‑se agora nitidamente a velha antinomia entre racio‑ nalismo e sentimento, como se a qualidade humana pudesse ser completa sem qualquer destes dois princípios” (p. 98). Repare­‑se que esta fase da obra de Lino em Portugal – os primeiros anos da década de 1930 – é até aquela em que ele mais se aproximou voluntariamente do temas modernistas, inovadores: veja­‑se a fachada da sua Loja das Meias, no Rossio (de 1931). Mesmo assim, a dimensão pesada dos valores tradicionais, estruturantes na sociedade portuguesa, impedem­‑no de aceitar o que Costa claramente podia sentir e pressentir no Brasil em plena erupção sócio­‑económica e cultural: que o advento da tecnologia como base da nova dimensão arquitectónica era um facto, inalienável, sem deixar por isso de se ater a uma base cultural tradicional, – mas reinventando­‑a necessariamente em novos moldes. Eis, exemplificadas pela discussão entre duas figuras-chave, de modo esquemático mas nítido, algumas das coordenadas do debate cultural possível, entre arquitectos e sobre a arquitectura e suas dimensões moderna e tradicional, no Portugal e no Brasil de meados dos anos 1930.

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Bibliografia Amaral, Keil do, A Moderna Arquitectura Holandesa, Cadernos da Seara Nova, Lisboa, 1943 Arquitectura do Movimento Moderno. Inventário DOCOMOMO Ibérico / Architecture of the Modern Movement. Iberian DOCOMOMO Register / 1925­‑1965, Barcelona, Associação dos Arquitectos Portugueses / Fundação Mies van Der Rohe / DOCOMOMO Ibérico, 1997 Benevolo, Leonardo, Historia de la Arquitectura moderna, Gustavo Gili, Barcelona, 1974 Caldas, João Vieira, “Cinco Entremeios sobre o Ambíguo Modernismo”, Portugal / Frankfurt. Arquitectura do Século XX, Prestel / Deutsches Architektur Museum / Frankfurt Am Main - Portugal-Frankfurt /Lisboa /Centro Cultural de Belém, Lisboa, 1997 Fernandes, José Manuel, Arquitectura Portuguesa. Uma Síntese – Imprensa Nacional­‑Casa da Moeda, Lisboa, 1991 (1a. edição, com Europalia 91); 2000 (2a. edição); 2006 (3a. edição) Fernandes, José Manuel, “Para o Estudo da Arquitectura Modernista em Portugal”, revista Arquitectura ns. 132, 133, 137, 138 (1979­‑1980), Lisboa Fernandes, José Manuel, Arquitectura Modernista em Portugal – 1890­‑1940, Gradiva, Lisboa, 1993, 2005 Fernandes, José Manuel, Arquitectos Segurado, JMF e Imprensa Nacional­‑Casa da Moeda, Lisboa, 2011 França, José-Augusto, Arte em Portugal no Século XX – 1911­‑1961, Livraria Bertand, Lisboa, 1974 IAP XX. Inquérito à Arquitectura do século XX em Portugal. Ordem dos Arquitectos c/ Instituto das Artes e Fundação Mies de Barcelona, Lisboa, 2006 Lino, Raul, Auriverde Jornada. Recordações de uma viagem ao Brasil, Valentim de Carvalho, Lisboa, 1937 Milheiro, Ana Vaz, A Constução do Brasil. Relações com a Cultura Arquitectónica Portuguesa, FAUP Publicações, Porto, 2005 Pedreirinho, José Manuel, Dicionário do Arquitectos..., Afrontamento, Porto, 1994 Portas, Nuno, “Evolução da Arquitectura Moderna em Portugal – Uma Interpretação”, História da Arquitectura Moderna, por Bruno Zevi, Editora Arcádia, Lisboa, 1973 |1976| 100 Fotos / Obras / Anos. Oscar Niemeyer por Leonardo Finotti (catálogo de exposição, coord. Anabela Sousa, João Pinharanda), Fundação EDP, Lisboa, 2008

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132 Hotel de Ouro Preto, Minas Gerais, Oscar Niemeyer, 1940, Brazil Builds..., 1942, p. 134, foto: Kidder Smith.

A TRADIÇÃO EM BRAZIL BUILDS E O INQUÉRITO À ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL1 Ana Vaz Milheiro Professora do ISCTE/IUL

A historiografia portuguesa dedicada à arquitectura produzida em Portugal durante o período moderno, entre 1930 e 19742, tem de forma persistente evocado a presença de uma influência brasileira a partir de 1948, data da organização do primeiro Congresso Nacional de Arquitectura no país3. Sergio Fernandez, José Manuel Fernandes, Pedro Vieira de Almeida, Ana Tostões, João Vieira Caldas ou Jorge Figueira estão entre os autores que fazem esta leitura, apoiados, naturalmente, nas obras realizadas e nos depoimentos dos arquitectos que promoveram esse ciclo de irradiação. Uma série de testemunhos – escritos e materiais – provam que existia uma consciência, ao tempo, da importância da arquitectura do Brasil. Neste panorama, Brazil Builds: Architecture New and Old 1652­‑1942, o catálogo da exposição montada no MoMA, em Nova Iorque, entre 13 de Janeiro e 28 de Fevereiro de 1943, com texto de Philip Goodwin e fotografias de Kidder Smith, é peça fundamental. A sua repercussão internacional, enquanto foco determinante na divulgação da cultura arquitectónica brasileira moderna (Deckker, 2001: 127), é A primeira versão deste texto data de 2006. Uma versão mais recente foi publicada em Milheiro, Ana Vaz, Nos Trópicos, sem Le Corbusier, Lisboa: Relógio d’Água, 2012. 2 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� A cronologia não está completamente fechada. 1925 é a data “convencionada” do pro­jecto do Capitólio Music Hall (Cristino da Silva, Lisboa), considerado o primeiro edifício por­tuguês de ruptura com a configuração beaux­‑arts, cujos desenhos conhecidos são na verdade de 1929. 1974 é a data da Revolução de Abril. A historiadora Ana Tostões sugere o período de 1920 a 1970 (Tostões, 2004: 11­‑12). Prefere­‑se aqui manter o alinhamento anterior segui­do por Sergio Fernandez (Fernandez, 1988). Como panorama de referência, admitem­‑se três ciclos modernos: o primeiro de abertura, com início entre 1925 e 1930; o segundo após 1948 (I Congresso Nacional de Arquitectura); o terceiro que arranca com o Inquérito à Arquitectura Popular, depois de 1955, fixando­‑se definitivamente em 1961. 3 “Um tio meu, que foi governador­‑geral de Moçambique durante a Segunda Guerra Mundial – José Tristão de Bettencourt –, numa das suas viagens à África do Sul, viu o livro numa livraria, comprou­‑o e mandou­‑mo” (Pereira, 10/02/2006). 1

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condição igualmente sentida em Portugal. Surge no círculo profissional, muito provavelmente, através do jovem arquitecto Nuno Teotónio Pereira (n. 1922), que dele tem conhecimento cerca de 19454. Rapidamente adquire notoriedade entre os portugueses. Fernando Távora (1923­‑2005) evoca o seu sentido instrumental ao sugerir que é usado como “cartilha” (Fernandez, 1985: 57). Já Maurício de Vasconcellos (1925­‑1977), o único português com experiência profissional no Brasil, no início da década de 1950, onde estagia com João Vilanova Artigas e com Sérgio Bernardes (Vasconcellos, 1962: 6), evoca­‑o como “o nosso segundo Vignola” (Fernandez, 1985: 57). A circunstância vivida por Vasconcellos é bastante invulgar, já que neste período a maioria dos portugueses não se desloca ao Brasil, como esclarece o testemunho posterior de Nuno Teotónio Pereira. O facto reforça a centralidade de Brazil Builds: “Como as viagens não eram fáceis, era a primeira vez que os arquitectos portugueses tomavam conhecimento do riquíssimo acervo do Brasil colonial e imperial e ao mesmo tempo do surto extraordinário que conhecera o Movimento Moderno neste país” (Pereira, 1996: 303). Quando visita o Brasil em 1980, Teotónio Pereira percorre as “cidades históricas” e privilegia procura das marcas coloniais, em detrimento da arquitectura moderna. Nos seus vários depoimentos sobre Brazil Builds e a influência da moderna produção brasileira, destaca com frequência a paridade com que são tratadas a arquitectura do passado e a arquitectura do seu tempo. Esta particularidade terá surpreendido bastante os portugueses. Normalmente, os livros e revistas que nós recebíamos com arquitectura moderna não ligavam nenhuma às arquitecturas do passado. Eram realidades opostas. Brazil Builds desmente isso: na mesma publicação, na mesma exposição do MoMA, apa‑ recem essas duas realidades. Isso foi de facto uma surpresa e mostrou que o que é importante em arquitectura é a autenticidade, a consonância com o tempo (Pereira, 10/02/2006).

A tradição em Brazil Builds e o Inquérito No contexto da historiografia portuguesa, é igualmente possível apontar o momento em que essa influência decresce e que acerta com o período de construção de Brasília. Corresponde, simultaneamente, à realização do inquérito à arquitectura regional, depois publicado como Arquitectura Popular em Portugal. O projecto Tradução e publicação de “A Humanização da Arquitectura”, texto de Alvar Aalto de 1940, dez anos depois da sua versão original, ou de “O Ovo de Peixe e o Salmão”, que Rogers publicara na italiana Domus [“Arquitectura”, n.º 46, Fevereiro 1953, pp. 15­‑16]. 4

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arranca em 1955. Constituem­‑se seis equipas de três elementos cada, arquitectos e tirocinantes, e dá­‑se início aos trabalhos de campo. O levantamento será circunscrito ao território continental, dividido também em seis regiões, não necessariamente coincidindo com os limites administrativos do país – Minho, Trás­‑os­ ‑Montes, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve –, terminando em 1961 com a publicação dos resultados em livro. Durante este período, a consciência crítica portuguesa migra da adesão ao Movimento Moderno – que resulta das conclusões do Congresso de 1948 – para os discursos “revisionistas”, que buscam “integrar a «tradição» e a «modernidade»” (Figueira, 2006: 180). Os arquitectos portugueses começam a seguir as polémicas internacionais, como as que envolvem Ernesto Nathan Rogers e Reyner Banham (Portas, 1959: 54); traduzem os artigos de Alvar Aalto5 ou do próprio Rogers6; observam a crescente importância da crítica italiana e de Bruno Zevi. E, de modo sintomático, cresce o tom lacónico dos comentários que, na época, se ocupam da arquitectura brasileira, verificando­‑se gradualmente um afastamento dos temas compre­endidos pelo projecto urbano de Lucio Costa. No espaço de uma década, é traçada a proximidade e depois a distân­cia entre os portugueses a nova arquitectura do Brasil. A receptivi­dade lusa segue a evolução da crítica internacional na avaliação que esta faz da arquitectura moderna brasileira. Não depende, portanto, da história comum dos dois países nem, tão­‑pouco, das novas vagas de emigração portuguesa para o Brasil que se intensificam a partir dos anos de 1950. Pelo contrário, esta receptividade exprime o de­sejo de acerto cultural com o panorama europeu, que é o principal motor da modernidade portuguesa, na qual o Brasil é um episódio relevante, todavia, circunscrito. No entanto, o seu peso no imaginá­rio que os portugueses constroem é tão forte que a evocação perma­nece, mesmo quando já não serve o desenho. O sentido ideológico pressentido na arquitectura brasileira resiste à “sobrevida” da lingua­gem moderna e à sua transformação em tendência “organicista”. “Ao longo deste processo, a transposição literal de modelos brasileiros foi­‑se naturalmente atenuando” – esclarece Nuno Teotónio Pereira, em relação à linguagem –, “mas os ensinamentos basilares da sua arquitectura enquanto prática inovadora expressando aspirações de modernidade e fruto de condições sociais e culturais próprias man­tiveram a sua actualidade” (Pereira, 1996: 305). Teotónio fala aqui da envolvente particular com que a arquitectura brasileira trabalha. Para si, e para outros arquitectos portugueses da sua geração, é a condição moderna que o Brasil atravessa que possibilita rever a

Surgem, ��������������������������������������������������������������������������������������������������������������� sem grande desenvolvimento, pelo menos em três comunicações: Simões, João; Rodrigues, Francisco de Castro. “Do Ensino da Profissão”, I Congresso Nacional de Ar­quitectura. Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos, 1948, p. 94; Martins, Luís José Oli­veira. “A Arquitectura de Hoje e as suas relações com o Urbanismo”, Ibidem, p. 170; Simões, João; Rodrigues, Francisco Castro; Lobo, José Huertas. “O Alojamento Colectivo”, Ibidem, p. 241. 6 Nota introdutória que acompanha Levi, Rino. A Arquitectura é uma Arte e uma Ciência. “Arquitectura”, n.º 36, Novembro 1950, p. 2. Informa­‑se ser este artigo parte de uma conferência pronunciada no Museu de Arte de São Paulo. A publicação e a data originais não são indicadas. 5

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im­portância das marcas históricas. E, mais do que as palavras de Philip Goodwin, são as imagens reproduzidas em Brazil Builds que abrem esse caminho. Para lá da arquitectura moderna, a manipulação do presente e do passado em visões panorâmicas – olhar que, como se sabe, Le Cor­busier consolidara desde 1923 com Vers une Architecture – é o que mais impressiona os portugueses (Pereira, 02/11/2003). Pela primei­ra vez, também, enfrentam a sua própria história, deparando­‑se com uma reprodução do escadório do Bom Jesus de Braga, que ilustra as explicações de Goodwin (Goodwin; Smith, 1943: 21). Entre os portugueses, Brazil Builds mantém a sua relevância muito para lá de Brasília. Para identificar a importância de Brazil Builds no quadro de referências monta­do pela cultura arquitectónica portugue­sa do final dos anos de 1940 e início de 1950, é preciso traçar os primeiros pontos de contacto entre as duas culturas. As alusões à moderna arquitectura brasileira surgem num tempo próximo do Congresso de 1948, embora sem grande expres­são durante os trabalhos que o constituem7. A repercussão interna do congresso possibilita que o projecto moder­no migre de algumas consciências individuais para um maior núme­ro de profissionais. Ao emancipar­‑se das experiências singulares, a arquitectura moderna reforça­‑se enquanto imaginário corporativo. Num território onde a cultura oficial promove uma visão regressi­va, cria­‑se a expectativa de que a sua adopção generalizada possa permitir o encontro com uma Europa progressista. Antes de 1948, contudo, existiam já ensaios na arquitectura portuguesa que se aproximavam das experiências internacionais e que seriam coagidos pela insistência oficial numa estética nacional­‑historicista, praticada entre a monumentalidade da grande obra pública e a “domesticidade tradicionalista” dos projectos de pequena escala. Antes da adesão generalizada à moderna cultura brasileira, verifica­‑se um primeiro contacto, mais internacional, nas incursões no universo corbusiano de certos autores que trabalham no Porto, no início dos anos de 1940, caso de Alfredo Viana de Lima (1913­‑1990). No mesmo quadro estilístico insere­‑se a obra de Celestino de Castro (1920­‑2007), cuja importância histórica se fixa com a leitura de Ana Tostões, nos anos de 1990, e que permite hoje alicerçar o contributo do congresso numa visão de continuidade (Tostões, 1997: 53­‑54). São obras assinaláveis pela sua excepção e vontade de apreensão de uma linguagem moderna, sem paralelo no território luso e, contudo, sem “novidade” fora dele. Ao contrário da arquitectura brasileira, este “moderno português”, nomeadamente aquele que seguirá uma filiação internacional, não traz contributos visíveis para lá do próprio ambiente onde é gerado. É no círculo de adesão moderna que a presença do Brasil se começa portanto a instalar. Insinua­‑se – ainda que timidamente – na revista Arquitectura, 7

Niemeyer, Oscar. Bloco de habitações na praia da Gávea – Brasil. “Arquitectura”, n.º 41, Março 1952, pp. 8­‑9.

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Figura 1 – Arquitectura Popular em Portugal, Elvas, Sindicato Nacional dos Arquitectos, Zona 5, Alentejo, 1961, p. 147.

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intensificando­‑se ao longo dos primeiros anos da década de 1950. Esta revista, transitando de um enquadramento mais conservador, abre­‑se à reflexão sobre o moderno a partir de 1947. Associados à preparação dos diversos números surgem os mais activos arquitectos modernos portugueses, sinalizando o arranque dessa segunda vaga no país, onde a arquitectura brasileira é referenciada como progressista e dinâmica, e cuja divulgação internacional é acompanhada. Não deixa de ser muito agradável para nós [...], verificar o notável pro‑ gresso que tem registado a arquitectura brasileira, nos últimos anos. Duas revistas da especialidade – talvez as melhores que hoje se publicam em todo o mundo – Architecture d’Aujourd’hui e Forum, dedicaram, quase em simultâneo, uma na Europa e outra nos E.U., volumosos números às obras dos arquitectos brasileiros, considerados dos melhores do nosso tempo (“A Arquitectura Brasileira”, 1948: 23). Em Janeiro de 1948, fala­‑se, inclusive, das lições que emanam do uso do moderno por parte dos brasileiros, então liderados por Lucio Costa: “Um grupo jovem de arquitectos [...] soube aproveitar determinadas circunstâncias [...] e criar realmente uma arquitectura nova” (“A Arquitectura Brasileira”, 1948: 23). A consciência da importância da produção brasileira arranca, definitivamente, com uma carta de leitor, assinada por Sebastião Formosinho Sanchez (1922­‑2004) e intitulada “A Arquitectura Moderna Brasileira, Arquitectura Moderna Portuguesa.” Escrita a propósito da primeira exposição de arquitectura moderna brasileira montada no país, no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, em 1948/1949, nela se subentende uma posição crítica quanto à produção portuguesa realizada até então. A Arquitectura Moderna Brasileira é uma franca realidade e o estudo criterioso e lógico das condições climatéricas do país da América do Sul deu, como resultado, àquela série de edifícios, dos mais pequenos aos maiores, um ar fresco, lavado, sóbrio e fundamentalmente plástico. Para tanto ajudou­‑os o conhecimento profundo dos materiais disponíveis e uma aplicação directa das matérias­‑primas de cada região. Existe, naquelas obras, principalmente, a noção perfeita da união do princípio estrutural com o equilíbrio estético. Esta é, para mim, a maior lição que nos vieram dar (Sanchez, 1949: 17). Seguindo o percurso da revista Arquitectura, na abertura dos anos de 1950, é com excertos de uma conferência de Rino Levi que se iniciam as publicações de textos brasileiros. O comentário que introduz “A Arquitectura é uma Arte e uma Ciência”, artigo assinado pelo arquitecto paulista de origem e formação italiana, é aproveitado pelos portugueses que preparam a edição – Cândido Palma de Melo e Francisco Conceição Silva (1922­‑1982) – para uma declaração de princípios. Fica claro que a arquitectura brasileira pode servir de modelo no processo de

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modernização português, num quadro mais ambicioso do que a simples renovação linguística. Estamos com todos os que lutam por uma Arquitectura progressiva e racio‑ nal, porque as suas realizações concretas, honestas e coerentes, e agora dura‑ mente conseguidas, irão pouco a pouco contribuindo para a educação estética dos homens, abrindo novos caminhos à sua imaginação, contribuindo para a aproxima­ ‑ção de pontos de vista, um ajustamento… Ajustamento que será maior e mais sólido na medida em que o arquitecto se aproximar das realidades do meio em que vive, der satisfação aos problemas sociais e humanos em que interferir, não abdicando das suas concepções técnicas e estéticas8. Entre os autores mais citados neste período encontram­‑se Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Burle Marx. Aproveitando uma passagem do primeiro pelo país, é publicado na Arquitectura, então sob a direcção de Alberto José Pessoa (1919­‑1985), o artigo “O Arquitecto e a Sociedade Contemporânea”9. Note­‑se que Lucio Costa regressará às páginas de uma revista nacional através da Binário, durante e a propósito da construção de Brasília, quando este periódico é dirigido pelo engenheiro Aníbal Vieira. Um dos primeiros projectos a ser divulgado na revista data de 1952 e é de Niemeyer – o bloco de habitações na praia da Gávea10. Já em 1954, num número organizado por Francisco Castro Rodrigues (n. 1920), um artigo biográfico dedicado ao “Pintor Burle Marx e os seus jardins” preenche duas páginas. “Foi com natural entusiasmo que tivemos en­tre nós variadas reproduções de seus trabalhos, na Grande Exposição Brasileira de Arquitectura ultimamente realizada” (“O Pintor Burle Marx e os seus jardins”, 1954: 22). Fala­‑se da segunda mostra brasileira que se concretiza na Sociedade Nacional de Belas­‑Artes, também em Lisboa, na sequência da realização do III Congresso da União Interna­cional dos Arquitectos (1953), da qual se ocupará o número seguinte da revista. Um extenso artigo de Wladimir Alves de Souza, profes­sor da Faculdade de Arquitectura da Universidade

Nota introdutória que acompanha Levi, Rino. A Arquitectura é uma Arte e uma Ciência. “Arquitectura”, n.º 36, Novembro 1950, p. 2. Informa­‑se ser este artigo parte de uma conferência pronunciada no Museu de Arte de São Paulo. A publicação e a data originais não são indicadas. 9 Costa, Lucio. O Arquitecto e a Sociedade Contemporânea. “Arquitectura”, n.º 47, Junho 1953, pp. 7­‑10/19. [Publicado antes da existência da revista Módulo, onde será editado no n.º 2, Agosto 1955]. Os editores da Arquitectura reconhecem o seu papel pioneiro “como orientador na formação dos jovens arquitectos; como trabalhador criterioso e incansável no esclarecimento das autoridades responsáveis, [e na] preparação do clima que permitiu o desabrochar da arquitectura moderna no Brasil” (nota introdutória, 1953: 7). Nesse texto, preparado para a UNESCO, Lucio Costa esclarece a posição brasileira dentro da família moderna que faz iniciar nos anos de 1950: “Não obstante, porém, a índole universal, já se podem observar manifestações «nativas» de arquitectura moderna, de feição sensivelmente diferenciada embora obedientes aos mesmos princípios básicos e utilizando materiais e técnicas comuns” (Costa, 1953: 19). Propõe­‑se aqui um moderno “localizado”, que os portugueses só manusearão, colectivamente, após o trabalho de inventariação desencadeado pelo inquérito. A recepção efectiva destas palavras em Portugal, em 1953, é hoje difícil de avaliar. 10 Niemeyer, Oscar. Bloco de habitações na praia da Gávea – Brasil. “Arquitectura”, n.º 41, Março 1952, pp. 8­‑9. 8

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do Rio de Janeiro, retirado de uma nova conferência que dá em Lisboa, é amplamente ilustrado, aumentando o leque de projectos conhecidos11. Em 1956 e numa edição dupla dedicada exclusivamente à constru­ção de cidades universitárias, Manuel Tainha (1922­‑2012) comenta projectos brasileiros12. Como ilustração mostram­‑se os planos das ci­dades universitárias do Rio de Janeiro e do Recife, assim como uma maquete da Faculdade de Arquitectura de Jorge Machado Moreira e outra da zona residencial da Universidade de São Paulo, projecto de Rino Levi e Roberto Cerqueira. Tainha será, como outros portugue­ses, uma voz crítica da arquitectura de Oscar Niemeyer. Durante esses anos de 1950, enquanto Brazil Builds circula, é o carác­ter internacional da produção brasileira que interessa aos portugue­ses. Compreende­‑se que o panorama exposto no catálogo correspon­de a uma primeira consolidação moderna no seu próprio território. Paralelamente, a condição “ocidental” da cultura moderna brasilei­ra é consentida pelos seus protagonistas. Wladimir Alves de Souza reafirma em Lisboa: “Reflexo, que somos, da cultura do Ocidente, consideramo­ ‑nos como um novo ramo dessa árvore imensa e venerá­vel” (Souza, 1954: 22). Será talvez o significado de “novo”, que Alves de Souza então evoca e que pretende destacar uma tradição moderna em emancipação de um quadro mais internacional, o que os portu­gueses não decifram completamente. Isto apesar da consciência de Teotónio Pereira de que na produção brasileira está inscrita a ideia fundamental de “consonância da arquitectura com o seu próprio tempo” e de que o momento valoriza as experiências assentes em ideias de “localidade”. No quadro da história internacional da arquitectura moderna, Portugal vive, em 1948, uma condição particular que se comunica a todos os níveis da so­ciedade, também resultado da sua estrutura política. Constituindo, com a Espanha, uma das últimas ditaduras fascistas europeias que resistem ao fim da guerra, mantém intacto o seu império colonial estendido aos continentes africano e asiático. A cultura arquitectó­nica ressente­‑se das estratégias que privilegiam um enfoque “nacio­ nalista” com vista à coesão “imperial”. Perante esta especificidade, um moderno filiado no International Style arranca tarde, já no final da década de 1940, lucrando, por ironia, do desfecho da guerra. O Brasil, que ajuda a desenvolver uma consciência moderna entre os portugueses, permitindo o encontro com a Europa, revelar­ ‑se­‑á progressivamente um meio de evasão. Este aspecto insinua­‑se desde o início das relações entre as duas culturas. Da Igreja de São Francisco de Assis de Niemeyer, no conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, concluída após o lançamento de Brazil Builds, dirá Teotónio Perei­ra: “Fiquei deslumbrado por ver aquela Souza, Wladimir Alves de. Arquitectura Contemporânea no Brasil. “Arquitectura”, n.º 53, Novembro/Dezembro 1954, pp. 18­‑22. 12 Tainha, Manuel. Cidades Universitárias – Realizações e tendências actuais. “Arquitectura”, n.os 55­‑56, Janeiro/Fevereiro 1956, p. 20. 11

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Figura 2 – Igreja de Águas, Penamacor, Nuno Teotónio Pereira, 1949-1957 [Arq. NTP]. Figura 3 – Hotel de Ouro Preto, Minas Gerais, Oscar Niemeyer, 1940, Brazil Builds..., 1942, p. 134, foto: Kidder Smith.

arquitectura tão acolhedora, tão manifestamente moderna sem ser agressiva; com aquelas curvas que não faziam parte do vocabulário europeu” (Pereira, 10/02/2006). Reconhece­‑se neste depoimento recente – que confirma o conteúdo de uma carta endereçada a Niemeyer e datada de 1947 – uma sensibi­lidade aberta à exploração do ideário moderno dentro de um espírito “local”. O trabalho de Niemeyer na capital mineira é interpretado pelos portugueses como apostando nessa direcção: “A vossa obra é um estímulo poderoso para a nossa própria luta em prol de uma ar­quitectura nacional digna e genuína” (Pereira, 16/02/1947). Teotónio, então empenhado no projecto da Igreja Paroquial de Águas (Penamacor, 1949­‑1957), na Beira Interior, procura contrariar o figu­rino estilístico oficial através de uma arquitectura “também do tem­po” capaz de conjugar formas modernas e materiais antigos. Trata­‑se de uma pesquisa muito particular no seio da cultura portuguesa do final de 1940, ainda que estrategicamente apontada por outros arqui­tectos: “Fiquei apaixonado por aquelas construções da Beira Baixa de alvenaria com os cunhais de pedra. Queria demonstrar que aquela arquitectura não tinha nada a ver com o «português suave» imposto pelo Estado Novo” (Pereira, 10/02/2006). No centro do debate estão as diversas interpretações do conceito de “tradição” e uma questão determinante: como integrar a tradição numa visão progressista e moderna, superando a conotação regressiva associada à sua utilização pelo Estado Novo? Durante o congresso, o arquitecto Mário Bonito (1921­‑1976), partidário da visão mais inter­nacionalista, sustentara que a “sobrevivência das técnicas e das formas do passado [eram] empecilhos do Progresso e da harmonia” (Bonito in SNA, 1948: 51). Esta leitura, todavia, não serve a via escolhida pelos portugueses a

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partir do momento em que se torna claro que é neces­sário avançar com a revisão do Movimento Moderno. A presença tu­telar de Brazil Builds, que se prolonga pelos anos de 1950, deixa aberta a possibilidade de uma relação estreita entre passado e progresso, que interessa explorar. Segundo indicia Teotónio Pereira, o facto permite perspectivar um “futuro regional” para esse mesmo moderno. Esta circunstância vai ao encontro das interpretações que se fazem do sig­nificado da inclusão de arquitectura antiga na exposição brasileira de Nova Iorque, ainda que o seu propósito inicial fosse menos ambicio­so. Na segunda parte do catálogo, Goodwin chama a atenção para o facto de “more and more Brazilians realize that the so­‑called colonial style now popular [...], makes but a poor shadow of the proud, solid old buildings of the 18th century” (Goodwin; Smith, 1943: 100). Um sobrado setecentista de Ouro Preto e uma casa neocolonial realçam a diferença de qualidade do desenho. Numa leitura moderna, a infe­rioridade da arquitectura do século XIX e dos seus desdobramentos novecentistas – de que é exemplo o movimento neocolonial – é sinal do tempo. Mas há um passado que interessa celebrar, principalmente se se omitirem diferenciações de períodos, estilos ou influências, dei­xando fluir a autenticidade que as imagens parecem conseguir comu­nicar. Em Brazil Builds ainda é rarefeita a distinção entre arquitectura histórica – aquela que carrega um valor patrimonial óbvio – e a popu­lar. Procura­‑se com os casos expostos eleger um valor arquitectónico homogéneo cuja identificação com o moderno seja eficaz. Existem portanto argumentos com os quais os portugueses se sen­tem solidários, pressionados que estão, pelo gosto dominante, a cumprirem programas estéticos historiados em nome da “portuga­lidade” arquitectónica. É o que se depreende de testemunhos como o de Ernâni Nunes Soares, ainda no âmbito do Congresso de 1948: “Em virtude dessa defesa de carácter de uma arquitectura nacional […] reconhecemos o caminho errado para que temos sido atirados, praticamente sem nos defendermos” (Soares in SNA, 1948: 21). Com Brazil Builds a arquitectura moderna é, em parte, legitimada com a presença da antiga, permitindo reconhecer analogias nas diferentes abordagens culturais sem obrigações “figurativas” (Deckker, 2001: 127): “Fortunately there are now many bold enough to enjoy the pleasure of experiment and the contentment of living in houses that fit their own appearances, habits and machines” (Goodwin; Smith, 1943: 100). Esta é a estratégia que abre espaço à arquitectura do passado, sem o risco de uma má interpretação quanto ao seu lugar no presente. No entanto, para a maioria, Brazil Builds não se impõe imediatamente pela sua aproximação à arquitectura histórica, muito menos a popular – caso das diversas sedes de fazendas situadas nos arredores do Rio de Janeiro, dos engenhos pernambucanos ou dos velhos sobrados do Recife e de Olinda –, mas pelos exemplos mo­dernos. Estes são mostrados de maneira uniforme e sem distinções regionais, designadamente sem traçar uma linha entre as produções paulista

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e carioca que, apesar de se autonomizarem mais tarde, co­nhecem já diferentes abordagens conceptuais. É novamente através de Teotónio Pereira que se pode avaliar o do­mínio do moderno na adesão a Brazil Builds: “Edifícios como o do Ministério da Educação e da Associação Brasileira de Imprensa no Rio, do Hotel de Ouro Preto e do complexo da Pampulha em Belo Horizonte produziram enorme sensação” (Pereira, 1996: 303­ ‑304). Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, MMM Roberto, Lucio Costa, Rino Levi, Burle Marx, Henrique Mindlin e o antigo ministro Gus­tavo Capanema são os nomes que os portugueses mencionarão mais. Também o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) que, desde 1937, integra Lucio Costa entre os seus técni­cos, servirá de referência. A instituição será considerada um exem­plo do compromisso do Estado em promover uma cultura moderna. O açoriano João Correia Rebelo (1923­‑2006), formado em Lisboa, elogiará, em artigo incluído no seu manifesto de 1953 intitulado Não!, o trabalho desenvolvido neste organismo oficial. Em análise está a construção do Hotel de Ouro Preto, também de Niemeyer, pro­jectado “tendo em conta as exigências muito particulares do lugar”, sem contudo abdicar dos “princípios básicos que informam a nova arquitectura” (Rebelo, 23/10/1953). O Hotel de Ouro Preto torna­‑se, com o Ministério da Educação e Saúde, uma das obras de Brazil Builds mais difundidas em Portugal. Victor Palla (1922­‑2006) irá reproduzi­‑lo em “Lugar da Tradição”, tex­to panfletário publicado em Janeiro de 1949 na revista Arquitectura13. Resiste no quadro moderno estruturado pelos portugueses “por ser arquitectura contemporânea numa cidade histórica”, evidenciando “ausência completa de mimetismo” (Pereira, 10/02/2006). Em Brazil Builds podia já ler­‑se: “Obvious reasons are the sloping tile roof and the ocasional use of Itacolomi stone. Less obviously, it is the design itself, bold in outline and delicate in detail, which has a sympathetic relationship with the native baroque” (Goodwin; Smith, 1943: 132). Os temas da terceira via – aquela que paradoxalmente afastará em definitivo a arquitectura portuguesa das experiências brasileiras – são aqui antecipados: contextualização paisagística, materiais locais, deferência pela História. Do outro lado da discussão está uma outra realização que, sem nomearem o autor, talvez porque aparece mal referenciado em Brazil Builds, os portugueses também difundem: trata­‑se do Depósito de Água de Olinda, de 1936, obra de Luís Nunes, realizada com o engenheiro ar­quitecto Fernando Saturnino de Brito. No contexto português surge, p. e., a acompanhar um artigo do norte­‑americano Milton Frederick Kirchman, traduzido na Arquitectura em 194814. A imagem é uma re­produção da fotografia de Kidder Smith e é possível que tenha sido es­colhida pelos editores desse número, os arquitectos Joaquim Bento de Almeida (1918­‑1997), Referências às imagens que ilustram “Lugar da Tradição” de Victor Palla. “Arquitectu­ra”, n.º 28, Janeiro 1949, p. 4. Kirchman, Milton Frederick. Lógica ou Estética? [“Progressive Architecture”, Agosto 1947]. “Arquitectura”, n.º 27, Outubro/Dezembro 1948, p. 19. 13 14

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Manuel Barreira e Victor Palla. O depósito de água assume claramente uma configuração moderna, muito embora se inspire em soluções ancestrais na introdução de ventilação cruzada através do uso do cobogó. A sua localização na malha histórica da cidade – devidamente enquadrada pela objectiva de Smith – aumenta ainda mais o efeito de contraste produzido pela sua modernidade. A imagem que dissemina esta obra de Luís Nunes lança assim a questão da convivência entre património histórico e arquitectura moderna, muito menos “fracturante” no lugar do que insinua o re­gisto fotográfico. A contextualização, todavia, se não é um tema que centralize o debate à época em que o depósito é construído, começa gradualmente a sê­‑lo. É certo que perante as circunstâncias culturais e políticas em que os arquitectos portugueses trabalham, estes sen­tem desde cedo necessidade em reagir com uma “atitude moderna” à tradição e à história, o que não significará necessariamente partir de uma política de tábua rasa. Mas se, por um lado, a linha radi­cal reforça que “a arquitectura deve exprimir­‑se numa linguagem internacional”15, como se ouvira no Congresso de 1948, haverá cada vez mais espaço para contornar o formato tradicionalista através da reflexão sobre a continuidade. A “tradição é coisa muito mais séria do que um cartaz de propaganda”, resume Palla, antes de exempli­ficar: “Nossos filhos brasileiros interpretaram melhor a voz desse passado; e o mundo volta­‑se para eles” (Palla, 1949: 5). Numa observação à margem deste mesmo artigo, Palla define melhor a sua posição no debate. Ao comentar a primeira conferência de Wladi­mir Alves de Souza, realizada por ocasião da exposição de 1948/1949, salienta: “Também se encontram argumentos para demonstrar que a tradição não pesa como parece. Mas o aceitá­‑la, e derivar dela uma de­fesa da arquitectura moderna, é combater o adversário no seu campo” (Palla, 1949: 5). Esta última frase é a chave que possibilita compreen­der a estratégia portuguesa perante os obstáculos postos à progressão do moderno. Levantar a arquitectura popular é o passo seguinte e insere­‑se no mesmo programa de “combate”. Francisco Keil do Amaral (1910­‑1975) tinha já proposto procurar “as bases para um regionalismo honesto, vivo e saudável” dois anos antes da publicação do artigo de Palla (Amaral, 1947: 12). Desde cedo, a ideia do inquérito acarreta uma demonstração e o seu objectivo é provar a irreversibilidade do moderno: “Portugal, p. e., carece de unidade em matéria de Arquitec­tura” (Arquitectura Popular em Portugal, 1961: xi), o que significa que é impossível traduzir por meio de elementos figurativos um espírito de tradição nacional. Para os arquitectos que se empenham na sua concretização, a arquitectura popular é um pretexto para inscrever va­lores. Nesse sentido, o motivo é próximo daquele que conduzira, anos antes, à introdução da arquitectura do passado em Brazil Builds.

15

“Esta linguagem será viva, poética, expressiva e variada” (Bonito in SNA, 1948: 47).

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Figura 4 – Alfundão, Elevação de Paredes com taipal, Arquitectura Popular em Portugal, Zona 5, Alentejo, 1961, p. 155 Figura 5 – Museu das Missões, São Miguel, Rio Grande do Sul, Lúcio Costa e outros, 1937, Brazil Builds, p. 42, foto: Kidder Smith

Quando Victor Palla confirma a coincidência temporal dos debates em Portugal e no Brasil, esclarece que a luta pela arquitectura mo­derna admite todas as frentes de combate. Não percebe exactamente que, em 1949, o Brasil transformou já a cultura moderna numa forma enraizada de expressão local, o que será, em última análise, o objec­tivo da cultura portuguesa, principalmente com Fernando Távora. Lucio Costa inicia o processo com o Museu das Missões, construído no estado do Rio Grande do Sul, projecto de 193716. O edifício gera um outro moderno, espiritualmente ligado ao antigo a partir do modo como a lógica elementar e planar moderna se resolve com materiais encontrados naquele lugar. Todavia, entre os portugueses, a arquitec­tura de Lucio Costa permanece oculta sob a presença tutelar das suas palavras. A excepção será, naturalmente, o Plano Piloto de Brasília. Se a relação com Lucio Costa é parte fundamental da ligação entre as duas culturas, a recepção do seu discurso pode ser medida através da forma como os portugueses – designadamente o círculo portuense que cresce em torno de Távora – se referem ao arquitecto carioca. Ál­varo Siza (n. 1933) que, no final dos anos de 1940, ingressa na Escola de Belas­‑Artes do Porto, caracterizará Lucio Costa como represen­tante de “um pensamento muito ligado à continuidade histórica e à arquitectura portuguesa barroca” (Siza, 01/2006). Reconhece ainda que 16

Lúcio Costa, Lucas Mayerhofer, Paulo Thedim Barreto, São Miguel das Missões, 1937 (Wisnik, 2001: 16­‑17/60).

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igual temperamento explica Niemeyer – o que significa identifi­car uma “familiaridade portuguesa” na cultura moderna brasileira. Esta imagem de Lucio Costa sairá fortalecida dos contactos que se estabelecerão a partir da década de 1950, estreitando afectividades pessoais para lá das ligações profissionais. Siza reflecte o entendimento que as gerações – nascidas entre 1920 e 1940 – aprofundarão de Lucio Costa. Ao definir o ambiente da escola, dirá: “A presença do Brasil é muito forte na minha geração. Quando estava a ini­ciar o curso, em 1949/50, apareceu em força a divulgação da arquitectura brasileira” (Siza, 01/2006). Indicará ainda Niemeyer e Reidy como perso­nagens influentes. E mesmo não sendo visível esta influência brasileira no arranque da sua carreira, reconhece ter sido marcado pela sua presença. Oscar Niemeyer [influenciou­‑nos] a um ponto tal que mudá­mos a maneira de desenhar e o estilo de apresentação na Escola de Belas­‑Artes do Porto: os pilares eram pontos nos desenhos da época. Depois aparece o Távora com o Brazil Builds. Por isso fui a Ouro Preto e a Mariana, uma parte do Brasil que não conhecia. E, em Belo Horizonte, vi obras do Niemeyer e eviden­temente a Pampulha (Siza, 01/2006). O mesmo sentimento atravessa outros depoimentos. O arquitecto Formosinho Sanchez, que fora dos primeiros a elogiar o moderno brasileiro e que verá mais tarde uma obra sua premiada na II Bienal de São Paulo de 195317, reconhece igualmente que “a arquitectura brasi­leira teve muita influência na [sua] geração” (Sanchez, 09/2002). Pro­fissionais que transformarão o moderno numa linguagem “corrente”, como Manuel Alzina de Menezes (n. 1920), contribuíram também para consolidar este quadro de afinidades. Ao descrever o ambiente dos anos de 1950, declara: “Falava­‑se da arquitectura brasileira, que era extraordinária. Falava­‑se de Niemeyer, dos irmãos Roberto, de Lucio Costa, que esteve cá e era uma pessoa muito simples. Falava­‑se das grandes estruturas de engenharia” (Menezes, 01/08/2001). Quanto a Távora, discorrendo sobre o seu próprio período de for­mação, dirá em entrevista realizada em 1971: “Surgiu também a arquitectura brasileira, com Lucio Costa, Niemeyer, etc. Apareceu um livro célebre, Brazil Builds, com o que de mais representativo fora feito naquele país por influência de Le Corbusier” (Távora, 1971: 152). Távora toca no ponto nevrálgico das relações Portugal­‑Brasil: é a afini­dade entre a arquitectura brasileira e Le Corbusier que prende a aten­ção portuguesa e na sua origem está – como se prova – Brazil Builds. Teotónio Pereira já escrevera em 1947, dirigindo­‑se a Niemeyer: “A ad­mirável obra de V., como um dos mais frutuosos e Menção honrosa atribuída na II Bienal de São Paulo, 1953, ao projecto do conjunto habitacional Bairro das Estacas de Ruy Jervis d’Athouguia (1917­‑2006) e Formosinho Sanchez, em Lisboa (1948­‑1954). Cf. Gropius, José Luis Sert, Alvar Aalto, Ernesto Nathan Rogers, Oswaldo Bratke, Reidy, Lourival Gomes Machado. Acta do Júri Internacional de Premiação da IIª Exposição da IIª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. “Arquitectura”, n.º 52, Fevereiro/Março 1954, p. 12. 17

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Figura 6 – Conjunto Habitacional da Avenida Infante Santo, Lisboa, Alberto José Pessoa, Hernâni Gandra, João Abel Manta, 1955, foto: João Abel Manta [Arq. JAM].

dignos discípulos de Le Corbusier, nosso Mestre [...], é conhecida e seguida com o maior interesse pela nova geração de arquitectos portugueses, a que pertence o signatário desta carta” (Pereira, 16/02/1947). O próprio Niemeyer, “o mais representativo valor da moderna Arquitectura brasileira” (Pe­reira, 16/02/1947), surge referenciado dentro do universo corbusiano. É portanto através de Le Corbusier que se mantém a ligação ao Brasil. As repercussões do moderno brasileiro em Portugal far­‑se­‑ão sentir também nas realizações arquitectónicas que marcam a década de 1950. Se analisadas as obras indicadas como portadoras desse “sinal brasileiro” que, p. e., Teotónio Pereira aponta em “A influência em Portugal da Arquitectura Moderna Brasileira”, perceber­‑se­‑á que estas decorrem maioritaria­mente de Brazil Builds, onde persiste

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ainda uma filiação internacional. É o caso do conjunto habitacional da Avenida Infante Santo (Lisboa, 1955) de Alberto José Pessoa, Hernâni Gandra (1914­‑1988) e João Abel Manta (n. 1928) (Pereira, 1996: 305). São projectos não comprometidos com a tradição que, no Brasil, a Pampulha de Niemeyer começa a sugerir e que, em Portugal, o inquérito ajudará a padronizar. No ano deste mesmo projecto lisboeta, em 1955, as equipas de levan­tamento do inquérito à arquitectura regional começam a percorrer o país e, apesar das diferenças de metodologia, partilham um só ob­jectivo: “Do estudo da Arquitectura popular portuguesa podem e devem extrair­‑se lições de coerência, de seriedade, de economia, de engenho, de funcionamento, de beleza [...] que em muito podem con­tribuir para a formação dum arquitecto nos nossos dias” (Arquitectura Popular em Portugal, 1961: xiv). Távora, Rui Pimentel (n. 1924) e António Menéres (n. 1930) integram a equipa do Minho; Octávio Filgueiras (1922­‑1996), Arnaldo Araújo (1925­‑1982) e Carlos Carvalho Dias, a de Trás­‑os­‑Montes; Keil do Ama­ral, José Huertas Lobo (1914­‑1987) e João José Malato (1926­‑2003), a das Beiras; Teotónio Pereira, António Pinto de Freitas e Francisco da Silva Dias (n. 1930), a da Estremadura; Frederico George (1915­ ‑1994), António Azevedo Gomes e Alfredo da Mata Antunes, a do Alentejo; e finalmente, Artur Pires Martins, Celestino de Castro e Fernando Tor­res (1922­‑2010), a do Algarve. A questão que colocam à partida é mais retórica do que real: “Não existirá […] qualquer coisa de comum, es­pecìficamente portuguesa?” (Arquitectura Popular em Portugal, 1961: xi). A resposta faz­‑se pela afirmativa: “Cremos que sim [...], qualquer coisa do carácter da nossa gente, revelado nos edifícios que constrói – qual­quer coisa difícil de definir com rigor”, e que não se determina em “feitios” (Arquitectura Popular em Portugal, 1961: xi). Com esta posição, continua a procurar travar­‑se a progressão do discurso nacionalista que impede a evolução natural da cultura arquitectónica no país. Teotónio Pereira testemunha: “Em mim, e nos participantes do in­quérito, teve muita força, essa procura de autenticidade como lição e como argumento para fazer arquitectura contemporânea em Portu­gal” (Pereira, 10/02/2006). Pretende­ ‑se assim proteger o arquitecto moderno das limitações estéticas que exigem um aportuguesamento das formas arquitectónicas. Tem­‑se admitido e proclamado que as construções antigas do nosso país podem e devem servir de inspiração para os arqui­tectos de hoje e que o seu por‑ tuguesismo se revelará tanto mais intenso e louvável quanto mais directamente se inspirarem num certo número de elementos e de aspectos, tidos e havidos por mais portugueses. Ideia simpática, mas ingénua! (Arquitectura Popular em Portugal, 1961: xiv). O inquérito nasce, portanto, de um propósito moralizador, que per­mite emendar o “desvio português” a partir do conhecimento das suas próprias raízes. Abre­‑se

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Figura 7 – Casa de Ofir, Fernando Távora, 1957, foto: Ana Vaz Milheiro, 2006.

a possibilidade de introduzir uma im­pressão de localidade na obra moderna portuguesa que, existindo já latente em alguns trabalhos, ficará sob sufrágio de um conjunto cada vez maior de profissionais. A sua concretização irá mesmo transfor­mar percursos que se tinham consolidado dentro de uma tendência mais internacional. As relações de conteúdo entre a pequena amostragem de reminiscências coloniais que se reúnem em Brazil Builds e a aten­ção às realizações populares do inquéri­to são obviamente distintas. No primeiro, o paralelismo entre a obra nova e a obra do passado funciona como prova que são em essência a mesma coisa, parafraseando Lucio Costa. No último, as realizações populares são o único objecto da análise, colocando­‑se propositada­mente à margem dos casos de “feição erudita ou erudizante” (Arqui­tectura Popular em Portugal, 1961: xv). E se em Brazil Builds não existe propriamente uma estratégia concertada no conjunto referenciado como “antigo”, no inquérito há uma lógica que define o que é sujeito a registo. Abeirando­‑se da raiz visceral do povo português da Metrópole, o in­quérito está próximo do que Joaquim Cardozo propõe em “Arquitetura Popular no Brasil”, artigo publicado em 1956, na revista Módulo. Aqui identifica­‑se a presença e o desenvolvimento de uma cultura paralela, pobre em recursos, todavia criativa: “Como tôdas as artes populares, a arquitetura também é rica de sugestões, de ritmos e de invenções, ofe­recendo características bem nítidas e positivas” (Cardozo, 1956:

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21). Mas, apesar desta consciência, os brasileiros não desenvolverão uma proposta concertada de levantamento das suas fontes populares com a exaustividade que os portugueses cumprem. A extensão territorial do Brasil também não é favorável a um empreendimento similar. Com o inquérito, Portugal coloca­‑se no mesmo patamar de complexi­dade que transforma então as diversas culturas modernas internacio­nais. Que deva parte dessa descoberta ao Brasil, é facto hoje aceite pela historiografia portuguesa. Ainda em 1947, Teotónio Pereira dirigia­‑se nestes termos a Niemeyer: “Contemplamos com orgulho de irmãos a marcha irresistível – e triunfal do vosso movimento renovador, com obras cada vez mais numerosas e perfeitas, criando uma Arquitectura bem autêntica – e por isso mesmo original – ligada ao Povo, enraizada na Terra e compassada à Época” (Pereira, 16/02/1947). Apesar das contradições que a adopção do projecto moderno atravessa nos dois países, tanto Brazil Builds como o inquérito permitirão uma ligação e um conhecimento mais informado da realidade. Ambos se posicionam como testemunhas de uma arquitectura, de um povo, de uma cultura e de um património que, independentemente de ser erudito ou popular, histó­rico ou moderno, tem vindo hoje a desaparecer. Modernidade, História e Tradição entrecruzam­‑se nas suas diferenças e particularidades, impondo­­‑se enquanto valores universais. E ainda que em escalas diferentes, as duas publicações deixaram uma marca indelével na produção arquitectónica do seu tempo, contribuindo, a seu modo, para as posições alcançadas por estas duas culturas arquitectónicas no actual contexto internacional. As afinidades entre a cultura moderna brasileira e Portugal podem ser identificadas através das influ­ências sentidas na produção arquitectónica portu­guesa desenvolvida após a Segunda Guerra Mun­dial. Genericamente, estas relações iniciaram­ ‑se com Brazil Builds – Architecture New and Old 1652­‑1942, que os portugueses conhecem desde meados da década de 1940, pro­gredindo até à inauguração de Brasília que marca o declínio do interesse português na arquitectura do Brasil. As qualidades plásticas da arquitectura brasileira – consequên­cia do uso e exploração das potencialidades do concreto/betão armado – estão presentes em alguns exemplos construídos em Portugal durante os anos de 1950. A influência determinante de Oscar Niemeyer é a mais documentada. Um fenómeno se­melhante estendeu­‑se aos antigos territórios coloniais africanos onde Portugal manteve

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soberania até 1975. Aqui, todavia, o in­teresse na produção brasileira persistiu mais tempo se compara­do com a Metrópole. Tanto em Angola como em Moçambique assistiu­‑se a uma forte actividade construtiva durante as décadas de 1950/1960, prolongando­‑se até ao início dos anos de 1970 quando o recurso ao betão armado se intensificou como prática dominante. Em alguns casos, o seu uso traduziu­‑se em explora­ções plásticas originais. O exercício da arquitectura nos antigos territórios da África portuguesa beneficiava de alguma liberda­de conceptual e, na generalidade, a qualidade do operariado não se diferenciava daquele que trabalhava no Portugal ibérico. São apresentados três casos de arquitectos com obra relevante em Angola e Moçambique, que construíram em betão e, simultane­amente, tiveram ou manifestaram afinidades com a arquitectura brasileira do mesmo período. Em Angola, recorda­‑se o percurso de Francisco Castro Rodrigues, no Lobito entre 1954 e 1987, e de Fernão Lopes Simões de Carvalho, que permaneceu em Luanda de 1959 a 1967. Em Lourenço Marques (actual Maputo), encontra­va­‑se Amâncio d’Alpoim Miranda Guedes, conhecido por Pancho Guedes, que manteve uma actividade profissional entre 1951 e a data da independência da antiga colónia portuguesa, fixando­‑se em seguida na África do Sul. Este artigo foi parcialmente publicado em MILHEIRO, Ana Vaz. Experiências em Concreto Armado na África portu­guesa: Influências do Brasil in “Pós – Revista do Programa de Pós­‑Graduação e Urbanismo da FAUUSP”, n.º25, Junho 2009, pp. 56­‑79. Trata­‑se de um tema em investigação, cuja primeira aproximação foi apresentada no II Seminário Doco­momo Sul Brasil, dedicado ao betão e intitulado “Concreto – Plasticidade e Industrialização na Arquitetura do Cone Sul Americano”, realizado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Ale­gre, entre 25 e 27 de Agosto de 2008. O texto é construído essencialmente a partir dos testemunhos directos dos três arquitectos analisados: Francisco Castro Rodrigues, Pancho Guedes e Fernão Lopes Simões de Carvalho. Optou­‑se por manter no título o termo “concreto” que no Brasil substitui a palavra “betão”.

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154 Mesquita Grande de Porto Novo, no Benim, pormenor. Foto de João Campos.

capítulo 3

BRASIL e ÁFRICA

155

156 Vila de Moçâmedes, gravura de 1865, AHU, foto JMF.

MIGRAÇÕES LUSO­‑BRASILEIRAS PARA A ÁFRICA PORTUGUESA NO SÉCULO XIX E A CRIAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS URBANOS E SOCIAIS EM ANGOLA: ALGARVIOS, MADEIRENSES E BRASILEIROS NO SUL (MOÇÂMEDES, SÁ DA BANDEIRA E CUNENE) Cristina Udelsmann Rodrigues Professora do ISCTE/IUL

Introdução A análise da circulação de pessoas entre Angola e o Brasil é marcada historicamente por importantes momentos e períodos, dos quais se destaca a ida massiva de angolanos – e outros africanos – escravos para o continente sul­‑americano. Das primeiras influências brasileiras propriamente ditas em Angola, ou seja, em sentido reverso, destaca­‑se a chegada de colonos (‘brasileiros’) ao sul no século XIX1. Desde essa altura, muitas outras evoluções se deram relativamente aos contactos, bi­‑direccionais, sendo de referir, no caso da arquitectura, por exemplo, as influências brasileiras levadas para Angola pelo Arquitecto Castro Rodrigues2. “Francisco Castro Rodrigues (n. 1920), às vésperas de embarcar definitivamente para território angolano onde trabalhará até aos anos 80 (…) levará na sua bagagem, muita informação sobre a arquitectura brasileira”. Foi “um dos responsáveis pelo Núcleo de Estudos Angolano­‑Brasileiros” tendo organizado uma “exposição de arquitectura brasileira [Arquitectura Moderna Brasileira] no Lobito somente em 1961 (Ana Vaz Milheiro & Jorge Fernandes Ferreira (s.d.) “A Joyous Architecture: as exposições de arquitectura moderna brasileira em Portugal e a sua influência nos territórios português e africano”, seminário disponível em http://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/018.pdf). 2 Outras referências apontam o ano de chegada 1851 e o contingente de 125 portugueses (Manuel de Mendonça Torres, O Distrito de Moçâmedes nas fases de origem e da primeira organização (1485­‑1859), 1950. 1

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Este artigo foca­‑se no período das primeiras deslocações de populações para o sul de Angola com impactos registados em termos de influência social e cultural, como ponto de partida para a discussão sobre a multiplicidade de influências que resultam dos contactos transatlânticos. O texto concentra­‑se em três pontos: a) na descrição destes movimentos, b) na análise de influências que trouxeram ao nível dos modos de vida, da política ou da cultura em geral, c) numa reflexão tendo em conta o caso específico da cultura Quimbare e da arte funerária. Este último ponto apoia a conclusão de que este aspecto, como muitos outros, embora aparentemente menos significativo que as grandes diásporas africanas para o continente americano, ilustra os intercâmbios vários de que é feita a história e a cultura dos povos, sendo não necessariamente unidireccionais.

Entre Angola e o Brasil: movimentos e contingentes Focando então primeiramente nas idas de “brasileiros” para Angola no século XIX, há a destacar a chegada ao sul de colonos “portugueses” que vieram de Pernambuco em meados desse século. Estes contingentes foram empurrados pela Revolta Praieira, movimento liberal e separatista que, entre outras causas, lutava pelo fim do monopólio dos portugueses do comércio nas cidades. Os primeiros colonos partiram de Pernambuco a 23 de Maio de 1849, na barca “Tentativa Feliz” e no brigue da marinha portuguesa “Douro” com 166 portugueses a bordo, que integravam a colónia agrícola de Pernambuco. Entre eles, Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, que foi o organizador da expedição. Decorridos 73 dias de viagem chegaram a Mossâmedes, passando a ser conhecido o dia 4 de Agosto de 1849 como o dia da Fundação da Cidade. Uma segunda vaga chegou a Mossâmedes a 26 de Novembro de 1850, com 144 colonos3 chefiados por José Joaquim da Costa. Embora não pareçam numericamente relevantes estas três centenas4 de colonos comparativamente àquilo que o Brasil recebeu de África em termos de população ao longo de séculos, há que reflectir nos impactos locais produzidos por estes contingentes, muito particularmente para a fixação de população nas futuras cidades do sul, muito concretamente no Namibe e no Lubango. Em 1856, já existiriam Segundo cópia extraída dos “Annaes do Municipio de Mossamedes” (1856), transcrita nas notas ao prefácio do ensaio “Em Torno de Alguns Túmulos Afro­‑Cristãos” de Gilberto Freyre (1959). 4 Na antiga casa da família Mendonça Torres, actualmente transformada em Museu Etnográfico, encontra­‑se, entre outras curiosidades, uma mesa de jacarandá vinda de Pernambuco com a família Torres. 3

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Figura 1 – Igreja de Moçâmedes, gravura de 1857, AHU, foto JMF.

na vila de Moçâmedes cerca de 36 casas de pedra e oito de adobe, 22 de pau a pique e 1076 cubatas de palha5. O balanço da população nessa altura apontava para a existência de 85 Fogos, sendo a População Livre – 272, a População Escrava – 632, e os Libertos dos Dois Sexos – 54. A intensificação do povoamento, naqueles tempos do nascimento da cidade do Namibe, fez­‑se sobretudo com estes imigrantes originários de Pernambuco (Brasil) mas também com portugueses residentes em Luanda e Benguela, algarvios, madeirenses e degredados, com militares e estrangeiros de diversas proveniências que aqui se fixaram à beira­‑mar. Estes diversos tipos originários de diversas partes e culturas do mundo, que se misturaram – não necessariamente fisicamente – com as populações africanas locais concorreram para a criação de um contexto misto, onde se começaram a fixar aqueles que a si mesmo se intitulavam Quimbares ou Tyimbares, que serão analisados mais de perto adiante.

5

Computados, em 1961, em cerca de cinco mil (p. 9).

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Outras influências no sul de Angola Os algarvios, maioritariamente de Olhão, foram os principais responsáveis pelo crescimento das actividades ligadas à pesca nesta região. A referência ao primeiro algarvio no Namibe é de Fernando Cardoso Guimarães, chegado em 1843. “Primeiro vinham em pequeno número depois a partir de 1960/61 em grupos maiores, famílias inteiras, vindo nalguns casos nos seus próprios caíques” (SOUSA, 2002: 370). “Os colonos algarvios, quase todos naturais de Olhão, criaram apenas aglomerados piscatórios, não se dedicando ao comércio sertanejo nem a indústrias transformadoras a não ser as derivadas da pesca, no Bairro de Pescadores” (idem, p. 371). A Huíla, por outro lado, é tipicamente um caso de colonização por colonos oriundos maioritariamente da Madeira. Em 1884 chegou ao Namibe a primeira colónia de 222 madeirenses que foram directamente para o Lubango; em 1885, o segundo grupo (349 pessoas), em 1888 mais 10 indivíduos, em 1889 outros 288 e, em 1890, mais 416 (Sousa, 2002: 375­‑6). Estes, contudo, tinham uma actividade exclusivamente agrícola. Os chicoronhos são descendentes de colonos madeirenses que se estabeleceram nas Terras Altas da Huíla na década de 1880, tendo sido designados por Henrique Galvão como “a tribo branca da Huíla”. É também referida a permanência, entre 1888 e 1928 de uma pequena minoria boer nas Terras Altas da Huíla (a qual não será tratada aqui em pormenor) (GUERREIRO, 1958). Outra maioria bastante referida era a dos degredados, pessoas de várias origens. Moçâmedes era o segundo lugar com mais degredados a seguir a Luanda, eram 207 em 1864 (DIAS, 1998: 438). Ou seja, a colonização de Angola contou com uma grande diversidade de colonizadores (Neto, 1997: 119­‑20). Nas cidades do sul, particularmente, o povoamento é feito com gentes de outras origens. Em várias referências, as cidades do sul de Angola são “mais brancas”, considerando­‑se mesmo que no Namibe e no Lubango havia uma maioria branca nesta altura. Mas “o desalento levou alguns a partir de Moçâmedes em direcção à Huíla”, em especial os “brasileiros” (SOUSA, 2002: 108). Em 1851, “mais de metade da população luso­‑brasileira chegada nos dois últimos anos já não se encontrava em Moçâmedes” (idem: 112). Nas décadas de 50 e 60 continuam a desembarcar colonos provenientes do Brasil mas que partem para outras localidades (idem: 377) (ver também CANDEIAS DA SILVA, 1973: 129). Posto isto, e perante tal diversidade e fases que caracterizaram a colonização do sul, há que reforçar a ideia que foram várias as transformações e influências que esta diversidade de povos trouxe à região. Entre as principais a destacar refira­‑se a influência ao nível das actividades económicas (na agricultura e no comércio); ao nível da política e administração (de onde saíram a maior parte dos membros

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do Conselho Colonial e da Câmara Municipal); do quotidiano e dos modos de vida (SOUSA, 2002).

Influências ao nível dos modos de vida, da política ou da cultura em geral Os brasileiros pernambucanos chegaram ao Namibe com engenhos, escravos, mobílias6, transportando uma cultura que já era de fusão. Os madeirenses e algarvios, por outro lado, traziam sobretudo competências em termos da sua actividade económica principal, a agricultura e a pesca respectivamente.

“Brasileiros” “A chegada dos colonos brasileiros à pequena povoação do Namibe viria a contribuir para a sua evolução a vários níveis, a começar naturalmente pelo demográfico e social” (SOUSA, 2002: 111). Mas se a intenção inicial era o desenvolvimento agrícola, ao Namibe chegou apenas “uma pequena percentagem de agricultores” (Sousa, 2002: 114). A maior parte dos colonos dedicou­‑se ao comércio, e os restantes (poucos) à agricultura e actividades diversas (SOUSA, 2002). Estes colonos iniciaram a sua actividade agrícola ao longo do Vale do rio Bero e aí instalaram os engenhos de fabrico de aguardente trazidos do Brasil. Os poucos que se revelaram agricultores insistiram, sobretudo, no cultivo da cana­‑de­‑açúcar. A principal ideia que orientava o estímulo da ida de colonos brasileiros para Angola era a de que se recrutassem “somente colonos agricultores” (…) que deviam “ter bons costumes para servirem de base à formação de uma população rural” (CANDEIAS DA SILVA, 1973: 116). No entanto, em 1939 foram para Angola (para Luanda) “colonos com ofícios inúteis à província: caixeiros, guarda­‑livros, amassadores de pão, etc.” (…) “a tudo isto acrescia terem os recém­‑chegados, na maioria, ares de impostores” (idem, p. 116­‑117). “Os colonos portugueses provenientes do Brasil e destinados a Moçâmedes eram na quase totalidade, indivíduos falhados na América, absolutamente impróprios à colonização sul­‑angolana, já que pelos seus dispensáveis ofícios (alguns não passavam de vadios) já por acalentarem a miragem de uma vida fácil em África” (CANDEIAS DA SILVA, 1973: 124). Eram, de

“Com os indígenas que os primeiros colonos trouxeram e com outros que sucessivamente se foram trazendo de pontos distantes, formou­‑se a população de quimbares de Mossâmedes” (Felner 1940:143). 6

MIGRAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS PARA A ÁFRICA PORTUGUESA NO SÉCULO XIX | 161 E A CRIAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS URBANOS E SOCIAIS EM ANGOLA

acordo com os documentos oficiais, “preguiçosos incorrigíveis” ou exerciam “profissões desnecessárias”. Eram “caixeiros e artistas” (idem, p. 127). Daí que, mais do que a sua influência em termos da economia local, se tivessem antes revelado influências, por exemplo, ao nível da política e da cultura

Ideias abolicionistas e independentistas Uma das influências que é aparentemente transportada por estes brasileiros é uma outra perspectiva em relação à condição escrava. Também na sequência da independência do Brasil em 1822, há várias referências à possível influência que esta teve na política em Angola, sendo frequentemente mencionada a revolta de alguns sectores da burguesia de Benguela contra o domínio de Portugal através de campanhas jornalísticas e políticas que ficou conhecida como nativismo (DIAS, 1984). As referências a movimentações autonomistas, com ligações à maçonaria angolana que era especialmente activa em Benguela (mantendo relações com a brasileira), constam por exemplo em Douglas Wheeler (1969) (PIMENTA, 2004). “De várias formas, a história política primitiva da costa angolana foi uma de conflito entre os colonos portugueses e os oficiais enviados por Lisboa”. “Os levantamentos pós 1920 em Angola (…) foram rapidamente complicados pela independência do Brasil em 1822” (WHEELER, 1969: 6). “A intriga e o faccionismo dominavam a quase totalidade dos moçamedenses” (em 1868) (CANDEIAS DA SILVA, 1973: 159).

Culturas de fusão: quimbares Conceição Neto refere especificamente no caso das estreitas relações e das ligações históricas entre Angola e Brasil as afinidades ao nível da “alimentação, do vestuário, das variações fonéticas e sintácticas da língua portuguesa e as modalidades de exploração económica” que eram evidentes sobretudo nas cidades (NETO, 1997: 330). Perante as várias influências que ao longo dos anos se foram amalgamando na região – incluindo brasileiros, portugueses da colónia incluindo madeirenses, algarvios e africanos originários de várias partes de Angola, pode considerar­‑se que o surgimento de uma nova categoria sociocultural – os Quimbares – representa mais do que aquilo que Clarence­‑Smith interpretou como sendo “aqueles [africanos] que vivem com os brancos” (CLARENCE­‑SMITH, 1976:223). Mas são várias as formulações para definir os Quimbares (ou Mbali). Por um lado, na senda do que Clarence­‑Smith já havia indicado, como simplesmente escravos

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Figura 2 – Alfândega de Moçâmedes, gravura de 1865, AHU, foto JMF.

em processo de adopção de costumes ocidentais. Carlos Estermann define­‑os como “negros descendentes dos antigos escravos e trabalhadores das fazendas que assimilaram grande número de elementos culturais dos seus antigos patrões e que pelos conhecimentos adquiridos passaram mais tarde a trabalhadores domésticos ou artífices” (CARDOSO, 1966:13). Estes seriam os Mbalis próprios, havendo ainda os que viraram Mbali (virados), ou seja indivíduos de etnias locais que “por vestirem panos e falarem português a si mesmo se intitularam Mbalis. Havendo assim Cuvales, Cuanhocas, Cuísses, Quilengues­‑humbes, Cuandos, Cuanhamas, Ganguelas e Muílas que haviam virado Mbalis” (CARDOSO, 1966: 13,14). Mas a referência ao termo é ainda mais recuada no tempo, data do século XVII. Para Cardonega, os Quimbares são “gente forra” (CADORNEGA, 1940:122), ou seja, antigos escravos alforriados aquando da abolição da escravatura. Por outro lado, os Quimbares são tidos como algo para além dos povos em processo de adopção de uma cultura ocidental, mais relacionado com maneiras de viver. Carlos Lopes Cardoso (1966:17) definiu­‑os como “um status social e cultural” já que não se pode falar de uma etnia dada a sua origem pluriétnica [materializada em utensílios, modos de vestir, tipo de habitação, danças, nas cerimónias de casamento e funerárias]. Mais tarde (CARDOSO, 1991) definiria os Mbali como “mão­‑de­ ‑obra escrava e depois liberta e livre, de outros pontos de angola (…) desenraizados étnica e geograficamente e por assídua convivência com os brancos, desenvolveram um complexo de comportamentos assaz diferenciados dos das populações locais”7 7

“Objectos em pedra individuais, i.e., monolíticos, nos quais eram efectuadas esculturas em relevo ou textos”.

MIGRAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS PARA A ÁFRICA PORTUGUESA NO SÉCULO XIX | 163 E A CRIAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS URBANOS E SOCIAIS EM ANGOLA

(idem: 9). Ruy Duarte de Carvalho diz tratar­‑se de uma “categoria social”, que se foi aplicando a todos os que adoptavam o modelo ocidental de cultura material, prática económica e social (DUARTE DE CARVALHO, 1999:18); e refere que “sujeitos Kuvale, Twa e Kurocas, por exemplo, que viraram ou estão a virar Kimbares” (2008: 140). Há ainda quem defina os Quimbares como todos os que viviam antigamente nos kimbos (António Tavares, ex­‑vice­‑governador do Namibe, Fevereiro 2009) e daí a etimologia. À utilização antiga do termo, se evidencia cada vez mais uma outra, relativamente recente, que associa crescentemente os Quimbares às elites locais (DUARTE DE CARVALHO, 1999:18) mais do que à apropriação de elementos ocidentais por si só, que são cada vez menos um exclusivo de um grupo específico. Resumindo, trata­‑se ao mesmo tempo de uma categoria suficientemente ampla para abarcar gente de várias origens8, fundindo­‑se numa língua própria (tributária do português, quimbundo, umbundo e outras línguas locais (DUARTE DE CARVALHO, 1999:19). Ruy Duarte de Carvalho (1999: 19) refere­‑se especificamente à componente brasileira dos Quimbares mas esta não é a única.

A influência específica na criação artística e na arte funerária Algumas referências arquitectónicas na cidade do Namibe demonstram, de certa forma, como as várias influências concorreram para estilos também eles de fusão (embora algumas com forte influência portuguesa): a Igreja de Santo Adrião (1856­ ‑7), o edifício da Alfândega (1864­‑5), a casa da Desvia (do médico Lapa e Faro), “habitações de cunho tipicamente algarvio (…) destaca­‑se o palácio do governador, belo edifício de estilo português” (Moreira, 1974:7) ou, por exemplo, lugares como “«As Hortas», casa de campo dos Torres, cenário de festas, piqueniques e burricadas (…) possuía um espaçoso pátio, com ruínas dos coretos, donde partem longas alamedas de palmeiras ou de oliveiras, feitas árvores de decoração. Sobe­ ‑se o degrau da varanda senhorial da mansão de adobe, que servia a vasta sala de jantar, chão de azulejaria «belle époque», tecto de pinho de Portugal em tábuas corridas, paredes bizarramente cobertas de frescos ainda bem visíveis, com cenas campestres insolitamente algo barrocas” (Embaixador em Angola, António Pinto da França em 1985 (2004: 229). Ainda, as referências de Ruy Duarte de Carvalho aos Quimbares indicam que “o tempo e a interacção fizeram com que daí emergisse o grupo dos Tyimbari, com as especificidades de expressão identificáveis, como (…) a sua tão celebrada estatuária tumular, presente em cemitérios espalhados por toda a província”. A arte funerária

“Com os indígenas que os primeiros colonos trouxeram e com outros que sucessivamente se foram trazendo de pontos distantes, formou-se a população de quimbares de Mossâmedes” (Felner 1940:143). 8

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Mbali é também referida por Gilberto Freyre como um caso de cultura afro­‑cristã, influência “brasileira”. De acordo com Redinha (1974: 19­‑21), a Arte Mbali dedicou­ ‑se principalmente a desenvolver uma arte funerária expressa em campas e outro tipo de arte acessória como monumentos fúnebres. Ainda o mesmo autor refere que não obstante este tipo de arte ter tomado uma particular autonomia artística, ela provém de um processo de aculturação (interpenetração de culturas), devido ao facto de esta arte ser de costume e de inspiração Europeia, trazida a Angola por um indivíduo que aprendeu o ofício em Portugal e ao voltar a Angola “bantuizou­‑a”. De acordo com Oliveira (1968: 196) a Arte Mbali surgiu apenas em meados do séc. XIX, tendo sido forjada entre elementos de várias etnias locais e por outras etnias vizinhas da província do Namibe, que assimilaram a cultura dos seus patrões de raça branca e aceitaram viver segundo um padrão moral em que os traços da cultura europeia se misturaram com certo êxito às contribuições da mentalidade dos autóctones. O mesmo autor acrescenta que a arte Mbali é essencialmente funerária representada por estelas9 de pedra, madeira ou cimento, sendo algumas estelas feitas em baixo relevo alusivo à pessoa morta e quase sempre encimadas por uma cruz de nítida inspiração Europeia. A análise dos elementos presentes na descrição da festa da cruzeta ajuda a ilustrar esta cultura de fusão (CARDOSO, 1966:24­‑25): “A cruzeta de madeira ou pedra (muitas vezes uma verdadeira obra de arte) é transportada para casa um ou dois dias antes, à noitinha. Na manhã de sábado, a família que faz a festa põe dois paus nos extremos do telhado da casa, dos quais se penduraram dois panos brancos. Trata-se de um sinal a anunciar a cerimónia. À noite, aparecem os parentes e os amigos e iniciase o batuque, comendo-se e bebendo-se. O ex-recluso fica de vigília à cru‑ zeta acompanhado de alguns familiares. De madrugada, faz-se, dentro de casa, a invocação do espírito do morto para dele se indagar se ficou ou não satisfeito com a festa realizada. Terminada ela, mata-se um ou mais bois, ou cabritos, conforme as posses, retiram-se os paus e os panos que estavam no tecto da casa e, enquanto uns ficam a cozinhar, os outros vão levar a cruzeta ao cemitério. À frente segue o pau com um dos referidos panos brancos. Nesta altura também é dado por terminado o luto. No cemitério põem a cruzeta ornamentada – se é homem, com uma gravata, se é mulher, com missangas ou lenço –, bem assim como os chifres dos animais mortos para a festa, regam a sepultura com vinho ou ombulunga, partem as garrafas ou deixam-nas inteiras e, depois, regressam a casa, onde comem e bebem. De tarde retiram-se os amigos, dando-se por terminada a festa”. 9

“Objectos em pedra individuais, i.e., monolíticos, nos quais eram efectuadas esculturas em relevo ou textos”.

MIGRAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS PARA A ÁFRICA PORTUGUESA NO SÉCULO XIX | 165 E A CRIAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS URBANOS E SOCIAIS EM ANGOLA

Em 1991, Cardoso identificou 84 cemitérios Mbali. Sendo que “à arte funerária dos Mbali não se pode atribuir, em termos absolutos, uma antiguidade superior a 128 anos. Mas muito provavelmente a hoje visível não ultrapassa os 90 anos (p. 10). “Na sua génese, encontra­‑se a imitação dos usos ou, até, a influência dos brancos colonizadores, os quais desde bastante cedo, e à medida que as condições de vida iam melhorando, fizeram executar em pedra mármore, em Lisboa, túmulos de grandiosidade apreciável, que colocavam nas sepulturas dos familiares” (p. 10). Refere Victor Jamba, escravo de João Duarte de Almeida (do Curoca) que se especializou nesta arte e em cujas obras se nota “uma europeização de feições e trajes de que ele nunca se conseguiu libertar (p. 11).

Conclusão: intercâmbios e interinfluências Alguma ideias aqui deixadas podem servir de base para possíveis interpretações da produção social e material no sul de Angola tendo em conta a influência “brasileira”. Nomeadamente, podem servir como ponto de partida para um acompanhamento mais aprofundado no contexto da Angola dos dias de hoje das transformações ocorridas e das novas influências que se entrecruzam a misturam. Será importante, por isso, reafirmar que as influências ao nível da cultura e da produção artística no sul de Angola possuem múltiplas influências. No caso do sul de Angola, há ainda a referir os contributos dos “brasileiros” do século XX, que eram também eles já o produto de diversas influências produzidas do outro lado do Atlântico: “No século XX, tanto Angola como Moçambique eram, por assim dizer, muito mais colónias do Brasil do que de Portugal. Não foi, portanto, por acaso que os sentimentos de «independência» surgidos repetidas vezes naquelas duas colónias africanas fossem no sentido de ficarem ligadas ao Brasil” (TORRES, 1990). “As relações iam muito além do comércio negreiro: pelo menos desde o século XVII, africanos da costa centro­‑ocidental e brasileiros estavam unidos por laços mercantis, familiares e culturais (FERREIRA, 2008: 21). Depois da independência de Angola, tanto no sul como noutras partes do país, continuam a ser visíveis as incorporações e adaptações de novas influências, incluindo brasileiras. A abertura acelerada do país ao exterior, sobretudo após o final da guerra civil em 2002, fez nascer um campo de análise muito relevante para a compreensão das transformações ao nível da sociedade e da cultura, sobretudo nas áreas da produção artística, da arquitectura, da religiosidade e suas manifestações.

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MIGRAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS PARA A ÁFRICA PORTUGUESA NO SÉCULO XIX | 169 E A CRIAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS URBANOS E SOCIAIS EM ANGOLA

170 Mesquita Grande de Porto Novo, no Benim. Foto de João Campos.

TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA­‑VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO­‑BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ João S. de Sousa Campos Arquitecto, Porto

Um exercício magistral de estética entre Brasil e Portugal Quando se publicam as Actas do Colóquio Internacional da Universidade Autónoma de Lisboa sobre “Portugal – Brasil – África / Urbanismo e Arquitectura: do Eclectismo ao Modernismo” estamos no ano do Centenário do Nascimento do Arquitecto Alfredo Evangelista Viana de Lima (13/08/1913 – 27/12/1991). Por isso a minha intervenção começa com uma homenagem, trazendo a debate a relação intrínseca do Brasil na obra do Autor que desejo celebrar. Buscando um seu projecto maior (o do Casino Parque Hotel do Funchal, iniciado em 1966, com obras a partir de 1972 e inaugurado em Outubro de 1976), aproveito para falar da profunda ligação que Viana de Lima manteve sempre com o Brasil, ao caso corporizada no relacionamento com Óscar Niemeyer1. Essa relação tem a ver com

O Arquitecto brasileiro faleceu a 6 de Dezembro de 2012, escassos dias antes de completar 105 anos de idade (15/12/1908 – 06/12/2012). É este, assim, outro motivo de homenagem, aqui singularmente associada àquela que sempre devo a Mestre Viana. 1

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as reciprocidades profissionais2 mantidas por um nome cimeiro da Arquitectura portuguesa do século XX, plasmadas no profundo entendimento do sentido e do futuro da Arquitectura brasileira3, a par do conhecimento que ele possuía do seu passado, e que tão profundamente amava. É muito curioso que tenha sido o relacionamento com o Brasil que nele fez arreigar uma particular motivação pela defesa do património português4, na sequência da sua participação na organização da Exposição de Arquitectura e Arte Portuguesa (400 anos do Rio de Janeiro, 1965), altura a partir da qual passa a desenvolver actividades conjuntamente com os amigos do outro lado do Atlântico5. Viana de Lima transporta para o Sul do equador o entendimento e preservação de raízes culturais e arquitectónicas lusitanas e incorpora, no retorno, uma ressonância tropicalista na sua indefectível coerência como actor do Movimento Moderno Internacional. No que toca à obra erguida na cidade do Funchal, o melhor a fazer, por respeito para com a memória dos dois arquitectos citados, é deixarmos de lado uma muito costumeira auto­‑menorização nacional: não vamos insistir no tema da presumida autoria atribuível a Niemeyer depois de, repetidamente, já depois da morte de Viana de Lima, por escrito e de viva voz circulando na net, o arquitecto brasileiro ter esclarecido que a sua contribuição para o empreendimento fora escassa e muito inicial. Outrossim interessaria reflectir sobre o empenho de um profissional em preservar o essencial de uma ideia esquissada, ainda que livremente a pudesse ter postergado: ao impor a consumação do projecto cujo contrato ele firmara para concretizar aquela arquitectura, Viana fez vingar uma atitude de perseverança e de respeito, numa postura ética irrepreensível que a si se impunha, e que também sabia exigir para consigo. Foi por isso que, no discurso de inauguração do seu trabalho, referiu diversas vezes que o movera a perseguição da ideia anotada pelo seu Amigo Óscar. Claro que nessa postura não existe nenhuma menos­‑valia: ao lado dos valores da Amizade e do Saber Partilhado, ele pôde assim trazer para o Funchal o seu tributo ao Brasil que admirava, deixando na arquitectura que traçou a linha curva que O relacionamento profissional entre Viana de Lima e Óscar Niemeyer começou num muito alargado projecto desenvolvido em parceria no ano de 1966, o qual não chegou a ser viabilizado. Tratava­‑se de um vasto e inovador empreendimento turístico a ser implantado no Algarve (Pena Furada). 3 As personalidades brasileiras que mais proximamente tocaram Viana de Lima, para além de Niemeyer, foram Augusto da Silva Telles, Lúcio Costa e Rodrigo Melo Franco de Andrade. De comum com o arquitecto português, em todos existe uma forte militância pela Arquitectura Moderna. 4 E não deixa, em si mesma, de ser curiosa a interacção global que resultou na criação levada a cabo na cidade do Funchal, compreendendo a decisão de investimento de um empresário natural de Goa e radicado em Moçambique, lembrando­‑se de contactar Niemeyer, em Paris, o qual, por sua vez, vem a delegar a elaboração do projecto a um colega da cidade do Porto, Viana de Lima, que assinará o contrato com o seu cliente. 5 Viana de Lima é designado, como Consultor da UNESCO, para intervir em Ouro Preto (1968) e, posteriormente, em múltiplos estudos sobre centros históricos brasileiros: São Luís e Alcântara, em 1972, no Estado do Maranhão e, em 1977, também sob a chancela da UNESCO, quatro cidades localizadas no Nordeste do Brasil (São Cristóvão e Laranjeiras no Estado de Sergipe e Penedo e Marechal Deodoro no Estado de Alagoas), alargando­‑se finalmente a Olinda e Recife. Essa actividade vai posteriormente ser complementada pela sua participação em projectos da Fundação Calouste Gulbenkian, quer no Brasil (Forte do Príncipe da Beira, 1983), quer noutras paragens de África e da Ásia. 2

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Figura 1 – Corpo do Hotel, com a pala de ligação exterior ao Casino.

marcava a cumplicidade de uma estética apreendida. Essa aquisição funchalense é feita pela mão de Viana de Lima num projecto poderoso, por si só definindo duas épocas de um urbanismo6 que, nos anos 70 do século passado, desse modo se abre ao mais impressivo Modernismo internacionalista, numa escala e com um cunho de impactante novidade. Na verdade, o Hotel­‑Casino da Madeira é o momento em que a obra de Viana de Lima se deixa tocar pelo “Tropicalismo”, espécie de regionalismo subequatorial da Arquitectura Internacional. Nessa obra, mais do que a quase­‑referência à planta centrada e ascensional da catedral de Niemeyer, parece­‑me sobremaneira que a expressão curvilínea remete directamente para o grafismo dos “plan­‑libres” Corbusianos (exercitado por exemplo nos jogos de rampas ou no desenho dos tectos, quer interior, quer exteriormente). Por outro lado, a articulação funcional e a composição da “boîte”, exponenciam uma organicidade construtiva em permanente contraponto com a matriz cartesiana corporizada no volume “regulador” do Centro de Congressos.

José Manuel Fernandes, no ensaio “Da Sé ao Casino” (in Monumentos nº 19, Setembro de 2003, pp. 95­‑99), caracterizou a excelência da leitura urbana alcançada na evolução da cidade do Funchal, sublinhando as consequências resultantes da obra de Viana de Lima.

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TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 173 DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ

O empreendimento é também, no panorama português de há mais de 40 anos, um momento inusitado de exercício de invulgares projectos complementares da construção, no domínio das engenharias, do design e mobiliário e do paisagismo, sabiamente coordenados pela visão de conjunto do arquitecto Viana de Lima. Eis aqui (e ainda tão próximo de tudo e de todos), um caso específico de uma relação frutuosa entre Portugal e o Brasil com uma ilha atlântica de permeio. Tudo isso só possível pela prática assumida de uma interacção que no Outro busca um pouco da sua identidade própria, Viana de Lima deixando contaminar­‑se por uma expressão mais distendida, conquanto solene…

Da escravatura à reconstrução da identidade, adquirindo novas estéticas A busca da identidade, que pode ser o recobro de uma explicação original, encontra na adopção de outras arquitecturas uma carga mais forte de significados socioculturais, quando toda uma marca colonial, cerrada e avassaladora, se vê transmutada em instrumental da afirmação identitária, como “estética de torna­‑viagem”. Esta categoria, pontual e descontraidamente mostrada por Viana de Lima no Funchal em função da erudição e do cosmopolitismo que cultivava, fora já uma constante portuguesa nas arquitecturas dos “brasileiros” de fim do século XIX/princípios do XX, marcando a paisagem como demonstração do sucesso económico e social angariado além­‑Atlântico. O caso que agora trago transporta, igualmente, uma tal expressão como tema recorrente, visto tratar­‑se de realizações afro­‑luso­‑brasileiras no Benim, emanando da constituição de clãs de ex­‑escravos que alcançaram alforria económica e regressaram ao Golfo da Guiné de sua origem, aí construindo os templos da sua fé ancestral, o Islamismo. O modelo arquitectónico que seguiram foi o que dominavam como artífices, implicados na erecção das arquitecturas do sagrado do espaço colonial da América do Sul: aí estão, então, as grandes mesquitas que reproduzem as igrejas católicas coloniais… Em Porto Novo, com a Mesquita Grande – de planta cruciforme e fachada com duas torres sineiras (sem sinos, mas compondo a simetria absoluta do alçado; sem portais, mas com vãos até quase à linha de soleira), – o caso complexifica­‑se pelo cruzamento de influências decorativas que apelam a uma gramática oriental, mais próxima do hinduísmo e do budismo, no barroquismo do preenchimento dos vazios da composição dos paramentos de parede e nos frontões dos alçados.

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Figura 2 – Mesquita Grande de Porto Novo, no Benim. À esq., fachada principal (sem entrada) e à dir. (em baixo) parte central do frontão da fachada posterior, vendo­‑se em cima o jogo das coberturas.

Eles já não querem, já desaprenderam, uma estética original, mesmo quando buscam uma incorporação junto das suas raízes. Bem perto da Grande Mesquita de Porto Novo fica o complexo do Palácio Real (séc. XVIII?), bela e grandiosa construção africana de pau­‑a­‑pique e adobe. Não obstante, um tal modelo não corresponde já à nova situação transportada pelos retornados, o seu saber adquirido é o resultado de um largo processo de aculturação. Trazem igualmente para África o que o Brasil colonial também incorporara, como placa giratória cultural cumprindo um papel de intermediário, justamente por causa das grandes torna­‑viagens que, tocando o Sul da América, aproximavam o Oriente da Europa. Nesse processo terão adquirido uma expressão libertada dos códigos que deixaram de pertencer a expressões culturais de outras civilizações, poderosas e equiparáveis à europeia, e se mesclaram com novos entendimentos implantados no terreno. No uso das suas competências, a apropriação de capacidades de expressão do Outro acontece em planos e endereços insuspeitados, não cuidando de fronteiras geográficas ou sequer metafísicas, como o prova a repetição de planos aprendidos no Brasil e repetidos (com assumida gramática de contaminação oriental) em mesquitas erigidas em pleno Golfo da Guiné, regressando às raízes primordiais, e carreando marcas estéticas, materiais e técnicas que originariamente nada tiveram a ver consigo, mas que agora são suas e constituem o vocabulário disponível para se exprimirem.

TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 175 DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ

Figura 3 – Igreja de S. Paulo de Macau, China e Fortaleza de Anhatomirim.

A semiologia dos casos em análise reforça a importância reservada às arquitecturas partilhadas, misturadas e, por vezes, reutilizadas noutros contextos geoculturais. Ilustrando tais situações veja­‑se, por exemplo, a fachada da igreja jesuíta de São Paulo, em Macau: é uma justaposição de Ocidente e Oriente, verificando­‑se a convivialidade entre gramáticas estilísticas sobre uma base da ordem neoclássica. A complexidade do programa iconográfico de São Paulo (posto em prática por um sector da ortodoxia católica) revela, por si só, a argúcia e, ao mesmo tempo, a profundidade do conhecimento do meio cultural chinês e a vontade de o penetrar. Notemos também as “chinoiseries” que fizeram da América do Sul o seu lugar de aculturação, a meio caminho do regresso à Europa (e igualmente presentes nos Açores). Como na genética, assinalada uma mutação dos novos genes “com vantagem”, descobre­‑se que os patrimónios evoluem, tornando­‑se outras entidades com qualidades autónomas. Como acontece com nós próprios.

Um devir que é também um retorno Os portugueses, mais e melhor do que qualquer outra nação envolvida no largo processo de colonização europeia, pretenderam e fomentaram as trocas culturais – o que se revela determinante na complexa interacção presente nos universos formais e simbólicos de toda uma produção artística, desde bordados e tapetes a louças e culinária ou mobiliário e, naturalmente, passando pela arte da construção. No campo da Arquitectura ressaltam sobremaneira as formas tradicionais das artes decorativas, as quais tendem a conservar os modelos e as técnicas ao longo das gerações. A permanência de manifestações culturais que corporizam aspectos

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Figura 4 – Igreja de Panjora, arredores de Dahka, Bangladesh.

tradicionais representa uma forma de resistência a uma concepção perniciosa do sentido de evolução da sociedade7. Quando o Cristianismo chegara ao Oriente, também ele se deixara contaminar, admitindo o excesso festivo que comporta a atitude enaltecedora dos povos locais. E depois, no refluxo triunfante de uma estética de novo tipo, ocorre o tempo de aculturação em terras novas, abertas à novidade e ao espanto da cor e da forma… A prova da transmutação patrimonial, no caso da Expansão Portuguesa, é­‑nos evidenciada pela existência de arquitecturas importadas no regresso, ligando o longínquo Oriente à Europa, mudando o que é necessário para então se expri-

As origens culturais de componentes tradicionais dos grupos sociais são o resultado da valorização de uma competência antropológica baseada na memória (que implica a repetição), numa espécie de relação orgânica com a razão de ser e a evolução da própria sociedade: o ritmo e a lógica conservadora inscrevem os grupos sociais numa percepção cíclica do Tempo. Tal concepção exprime­‑se igualmente no uso do próprio vocabulário: na Índia, à semelhança de outros nomes em diversas culturas de variados continentes, o termo “Kal” serve de igual modo para designar ontem e amanhã. Essa palavra designa sobretudo «o outro dia», o dia que não se vive, o espaço­‑tempo distinto do presente, sendo este a única realidade vivida. 7

TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 177 DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ

Figura 5 – Impérios do Espírito Santo dos Açores.

mir com novo conteúdo, como nos “Impérios” do Espírito Santo dos Açores8. Esta tipologia parece encontrar a sua razão de ser na experiência do reconhecimento do Oriente como suporte de uma nova estética, validada pelas comunidades do arquipélago, albergando características religiosas sincréticas, em resultado de uma cultura insular muito enraizada. Ao deixarmos seduzir­‑nos pela exuberância das formas e das cores da composição das fachadas dos “Impérios” perpassa em pano de fundo o esplendor formal de certas arquitecturas, como no pequeno templo de Panjora. Mas outros exemplos poderiam ser arrolados9, em geral ostentando o estranho barroquismo duma arquitectura que nos oferece uma teoria arquitectónica de grande heterodoxia, não somente pelo seu exotismo, mas sobretudo pelo sentido muito depurado do seu traçado erudito. É o que acontece com a Igreja do Santo Rosário de Dhaka, evoluindo e transmutando­‑se noutras razões e saberes, os quais se identificam como aquisições que fazem parte de percursos partilhados pelos povos envolvidos. O culto do Espírito Santo pratica­‑se em Portugal desde o século XIII, nunca tendo tido no continente europeu nenhum edifício específico para suporte físico. A partir dos séculos XVII / XVIII assiste­‑se ao estabelecimento duma tipologia do sagrado exclusiva das ilhas portuguesas do Norte do Atlântico (com excepções únicas em Santa Catarina / Brasil e, mais recentemente, nos Estados Unidos da América, mas sem respeitar os mesmos fundamentos arquitectónicos). Tratando­ ‑se de uma arquitectura de “torna­‑viagem”, a explicação para os “Impérios” radica mesmo na viagem inaugural de Vasco da Gama à Índia, uma vez que o seu regimento estatuía a regra (mantida pelos séculos seguintes) de reagrupamento obrigatório dos navios na Ilha Terceira para a partida conjunta em direcção a Lisboa. 9 Como aquele em que estivemos pessoalmente envolvidos no processo de reabilitação, concluído em finais de 2000, em Tejgaon, hoje um bairro central da imensa capital que é Dhaka: a igreja agostiniana do Santo Rosário (apesar dos acrescentos feitos pelos ingleses), é um dos testemunhos incontornáveis da presença portuguesa no Bangladesh, podendo datar­‑se o corpo do altar­‑mor dos primeiros tempos da feitoria portuguesa (c.1580). 8

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Esses patrimónios arquitectónicos, dada a sua originalidade e complexa condição, não se resumem a repercussões de um processo espácio­‑temporal da História: eles são o resultado de novas identidades. É por isso que se radica nos Açores, sem nunca se haver expandido no próprio espaço do continente português, um localizado fenómeno arquitectónico10 que é uma espécie de síntese das influências interculturais, corporizada nos típicos “Impérios do Espírito Santo”, especialmente da Ilha Terceira11. Na investigação por fazer estará a necessidade de aprofundar a interacção eminente das ocorrências interculturais promovidas entre o Oriente e a Europa com o Brasil de permeio12. Os Impérios do Espírito Santo são exclusivos dos Açores, apenas por excepção existindo numa localização do Sul do Brasil. De Santa Catarina terão retornado para se vestirem de novas roupagens, apropriando­‑se de carga simbólica e semiótica que afirmam a novidade de um culto livre e não sufragado no Portugal da Europa: os Açores eram terras de um ignoto mundo a que os portugueses chegaram inaugurando a construção de um projecto que, desde então, parece ser um destino espiritual de Portugal – esse Quinto Império dos Poetas a que se liga constantemente a cultura nacional que, desde cedo, a si própria se desejou projectada para fora de si. Concluo assim este périplo por entre homenagens e experiências descobertas, agregando uma surtida a outras paragens, assim deixando que o espaço tricontinental da Europa, América do Sul e África adopte ainda uma influência do Oriente, e acabando como comecei: no meio do Atlântico Norte, falando de uma singularidade portuguesa de genuína universalidade, um projecto de Portugal no anseio metafísico de uma história para o seu futuro.

A matéria foi objecto da dissertação de Mestrado em Relações Interculturais do autor (“Para uma Explicação da Arquitectura dos Impérios do Espírito Santo”, Universidade Aberta, 2002). Os “Impérios” são representativos duma expressão estilística nova, com elementos compositivos sempre originais, transportando um cosmopolitismo orientalista. Trata­‑se de uma arquitectura que nunca existiu no Portugal da velha Europa, se bem que o culto do Espírito Santo já aí estivesse enraizado, bem antes da descoberta das ilhas virgens dos Açores. 11 Mas existe uma excepção nessa exclusividade geográfica dos Impérios: se bem que o culto se tenha expandido antes do descobrimento dos Açores, tendo­‑se passado do território continental português para o meio do Atlântico e, posteriormente, para muitos locais dos diversos continentes onde se geraram comunidades portuguesas, em nenhum outro local se concebeu a construção de “impérios” senão no Brasil, no estado sulista de Santa Catarina, em virtude de uma colonização massiva de açorianos no século XVIII. 12 Vejam­‑se os casos de Sabará e a excepcionalidade da fortaleza de Anhatomirim. Na primeira situação, o interior da pequena igreja de Nossa Senhora do Ó é um diferente e requintado esplendor do barroco mineiro, carregado de referências de representações e de técnicas decorativas importadas da China. No segundo caso, a “chinoiserie” (correntemente dito “chinesices” na historiografia da arte brasileira) do portal de acesso ao interior da Fortaleza de S. José, na pequena ilha da baía de Florianópolis, indica­‑nos a aplicação de uma alteração rara na ortodoxia dos elementos próprios da arquitectura militar, geralmente muito ciosa de uma estabilidade dos referentes da sua representação. 10

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180 Padaria Saipal, em Lourenço Marques - Maputo, por Pancho Guedes, foto JMF.

capítulo 4

ÁFRICA e PORTUGAL

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Edifício tipo e fachada com “cobogós”. Bairro das Estacas, Lisboa, 1949­‑55. Arqs. Formosinho Sanchez 182 e Ruy d’Athoughia. Foto: Joana França, agosto 2012.

ARQUITETURA MODERNA: DO BRASIL A PORTUGAL E ÁFRICA – ALGUMA INVESTIGAÇÃO E LEITURA Daniela Alcântara Arquiteta, Doutoranda da FAUTL

Introdução Para iniciar o percurso, é preciso voltar aos anos 1940 e à exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1942, que origina o livro­‑catálogo “Brazil Builds: Architecture New and Old: 1652­‑1942”. A exposição abre em 1943, e o catálogo com textos de Philip Goodwin e fotos de Kidder­‑Smith vai se tornar o grande veículo de difusão da arquitetura moderna brasileira1 a partir dos anos 1940, também em Portugal. São dois os aspectos que ganham maior evidência no livro­‑catálogo: por um lado, o estabelecimento de um elo entre passado e presente, entre tradição e arquitetura moderna, vinculação que pode ser creditada a Lúcio Costa, que acompanhou a visita ao Brasil do curador americano. Outro aspecto evidente é o uso que os brasileiros fazem do brise­‑soleil e dos pilotis. É possível que tenham sido esses atributos os que mais chamaram a atenção de Goodwin. Este ressalta que as razões da adesão brasileira à linha corbusiana devem­‑se especialmente às condições técnicas e climáticas existentes no país (GOODWIN, 1943). Muito embora a influência corbusiana seja determinante, é preciso considerar, relativizando a sua importância, outros aspectos que contribuíram para a formação

A arquitetura moderna brasileira poderá ser eventualmente referida nesse artigo como “AMB”, e referir­‑se­‑á ao conjunto de obras produzidas por arquitetos brasileiros entre os anos de 1930 até à construção de Brasília. 1

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da consciência moderna na arquitetura brasileira, como a passagem de Frank Lloyd Wright pelo Rio de Janeiro. Wright esteve no Brasil para participar do júri internacional do concurso para o Farol de Colombo, a ser construído em Santo Domingo, República Dominicana. Desembarcou em meio à crise aberta na ENBA 2. Enquanto esteve no Rio, além do apoio aos estudantes e do julgamento do concurso, Wright concedeu uma entrevista e realizou três conferências. Os jornais registram a insistência de Wright na adaptação da arquitetura ao ambiente e ao clima (IRIGOYEN, 2002). Como possível efeito dessa passagem, pode­‑se enumerar a realização, na Associação de Artistas Brasileiros, a mesma onde Wright fez uma conferência, do I Salão de Arquitetura Tropical, em 1933. Wright figurava como presidente de honra do Salão, cujo catálogo abrigava projetos brasileiros mas também textos de Gropius e recomendações dos CIAM, o que revela o caráter exploratório da arquitetura brasileira nesse momento, até à plena adesão a Le Corbusier mais tarde.

Maurício de Vasconcellos Chama a atenção o fato de que uma das obras da moderna arquitetura portuguesa, em que a feição brasileira é reiteradamente apontada, seja de autoria de um arquiteto português que colaborou com um arquiteto brasileiro não aderente de imediato às teses de Le Corbusier e à arquitetura moderna que figurava em Brazil Builds. Estes arquitetos são Maurício de Vasconcellos e Vilanova Artigas, respectivamente, e a obra em questão é a Casa Rangel de Lima, construída em Lisboa no início dos anos 1950. Vasconcellos e Artigas são lembrados antes pela sua identificação com a obra de Wright. Vilanova Artigas, formado em 1937 pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, tornar­‑se­‑á a figura central e inspiradora da Escola Paulista a partir dos anos 50, alternativamente à Escola Carioca. Provavelmente graças à sua abordagem técnica e prática dos anos iniciais de trabalho e a uma moral construtiva que o acompanhará sempre, Artigas interessa­‑se pela arquitetura de Wright. A partir de 1944, Artigas vem a confrontar­‑se com os limites que poderá ter a arquitetura de Wright. Para não incorrer na incoerência entre forma e técnica nas soluções pragmáticas da construção, vai desenvolver os planos de telhados ������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������ Escola Nacional de Belas Artes. Trata­‑se da demissão de Lúcio ��������������������������������������������������������������� Costa em razão da crise que foi gerada entre os professores tradicionalistas e os jovens professores (e estudantes) “futuristas”. Sua demissão e a dos jovens professores provocou a greve dos estudantes. Wright é conduzido para o centro da crise pelos alunos, de quem toma partido, incitando­‑os à defesa das posições modernas. 2

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inclinados, invertidos, com calha central e sem beiral, o que lhe permitirá uma expressão mais abstrata. Se a Casa Errázuriz (Chile, 1930) é um antecedente corbusiano dessa solução, não se pode esquecer, até pelo discurso do arquiteto3, um incontornável antecedente brasileiro: as cobertas do Iate Clube e da Residência JK de Oscar Niemeyer na Pampulha (1943). Esses telhados, ditos “asa de borboleta”, serão adotados por Artigas no projeto de várias residências no fim dos anos 1940 e princípio de 50. É nesse período que Maurício de Vasconcellos (Lisboa, 1925­‑1997) chega ao atelier de Artigas, a meio do curso de arquitetura na EBAL – Escola de Belas Artes de Lisboa. Parte para uma viagem de férias ao Brasil, “e o mês de férias transformou­‑se num ano e meio de trabalho” 4. Vasconcellos afirma a importância da sua experiência brasileira quando declara que: “Sou formado por Lisboa. Mal formado por Lisboa... Realmente a minha formação não foi totalmente feita aqui. (...) mas talvez se deva mais ao tempo que estive a trabalhar no Brasil. (...) Aliás, como exemplo disso, pode­‑se referir o meu primeiro trabalho – uma casa na Avenida do Aeroporto – que denota uma procedência brasileira”5. De volta a Lisboa, em 1951, Vasconcellos colabora com os arquitetos Ruy d’Athoughia e Formosinho Sanchez, no projeto da Célula 8 do bairro de Alvalade, o “Bairro da Estacas”, premiado com “Menção Honrosa” na “II Bienal de São Paulo” em 1953. Vasconcellos teve participação direta no projeto (HELENA, 2009) em que as fachadas dos blocos contam, pela primeira vez em Portugal, com um elemento bastante característico da arquitetura brasileira, o “cobogó”6. Esse elemento começou a ser utilizado ainda nos anos 30 em Pernambuco, na obra do arquiteto Luiz Nunes (1909­‑1937), a Caixa d’Agua de Olinda (1934), que figurava no Brazil Builds. Lúcio Costa, entre tantos arquitetos brasileiros, utilizou­‑os nos edifícios do Parque Guinle (1948­‑1954), do mesmo período que o Bairro das Estacas. Também logo a seguir à sua chegada a Portugal, Vasconcellos faz o projeto da Casa Rangel de Lima. Localizada na Av. Gago Coutinho, ou Av. do Aeroporto, ������������������������������������������������������������������������������������������������������������������ Diz Artigas: “Com as obras da Pampulha, Oscar Niemeyer organiza a síntese necessária ao encaminhamento da arquitetura brasileira na direção segura que a caracteriza.” in Artigas, J. B. (2004). Ob. cit. p. 140. 4 Vasconcellos, M. (1972). Ob. Cit. p. 4. O pai de Vasconcellos era natural de Belém do Pará, Brasil, e a mãe da Madeira. Vasconcellos esteve também no atelier de Sérgio Bernardes. 5 Vasconcellos, M. (1972). Ob. Cit. p. 4. 6 Conforme o Dicionário Aurélio e Bruand (1981), a palavra “cobogó” resulta dos sobrenomes dos primeiros responsáveis pela sua fabricação no Recife, o comerciante alemão Ernest (Bo)eckmann; seu sócio português Amadeu Oliveira (Co)imbra; e o engenheiro brasileiro Antônio de (Gó)is. Os elementos vazados que permitem a passagem de luz e de ar e a visão do interior para o exterior, preservando a intimidade de quem observa, também estão presentes na arquitetura tradicional árabe, ibérica e conseqüentemente também na arquitetura colonial brasileira, embora em tipologias e materiais bastante diferentes dos cobogós brasileiros usados desde dos anos 1930. 3

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essa casa desafia com a sua modernidade “internacionalista” o meio tradicionalista onde se insere. Sua localização tem um papel importante na afirmação da arquitetura moderna portuguesa, e vem daí a “surpresa no aeroporto”7. Implantada perpendicularmente à Av., a casa tem sua maior extensão aberta para um jardim lateral a sul. A razão dessa implantação deve­‑se em parte à melhor orientação solar, mas também a condicionamentos da Câmara de Lisboa. Em ambos os pavimentos, percebe­‑se uma clara divisão funcional: casas de banho e serviços, que se situam­ a norte; e os quartos e a grande área social e de convívio da família, a sul. A ligação com o espaço exterior a norte é limitada a pequenas aberturas; mas a sul ela dá­‑se plenamente desde o grande espaço aberto contínuo, quase completamente envidraçado, da área social da casa, que se abre longitudinalmente para a varanda, e liga­‑se diretamente ao jardim. Vista desde o jardim a sul, a casa apresenta com clareza o seu princípio estático de sustentação e ao mesmo tempo declara sua vinculação à arquitetura moderna. Os pilares afastados dos painéis de vedação em vidro das salas afirmam ao mesmo tempo a sua autonomia funcional, a sua dimensão técnica e a sua qualidade plástica. Vista desde a Avenida, a casa ostensivamente impõe­‑se com o seu volume abstrato; tem o pavimento inferior ligeiramente recuado para acentuar o efeito volumétrico resultante de dois trapézios unidos pela base menor suspendidos por pilares, em uma composição resultante da coberta tipo “asa de borboleta”. A fachada principal da casa define­‑se por um jogo de cheios e vazios, opacidade e transparência, superfície e profundidade. Quando se relaciona essa casa à outra imediatamente anterior de Artigas, a Casa D’Estefani, percebem­‑se algumas semelhanças entre as duas: seja no tratamento compacto e suspenso do volume superior, ou no uso do elemento vazado tipo cobogó, que é incorporado por Vasconcellos na forma de um muro de proteção da intimidade da casa em relação à Avenida. Há entre as duas casas, e também com outras obras de Artigas, uma diferença que é a opção de Vasconcellos pelo caimento central do telhado na direção longitudinal da planta. Essa opção, que se poderia argumentar como formalista, mas que responde também a condicionamentos técnicos, contribui para a dramaticidade desafiadora da “surpresa” no seu ambiente urbano. Vasconcellos concebe a casa Rangel de Lima possivelmente como uma narrativa da sua experiência brasileira recontada em Lisboa. Poder­‑se­‑ia dizer que a lição orgânica da integração interior/exterior da casa e a atenção às questões de orientação e proteção solar são possivelmente assimiladas através de Artigas,

“Surpresa no aeroporto: moradia pelo arquitecto Maurício de Vasconcellos.” é o título do artigo publicado na Revista A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação (nº 3­‑4, Abril 1953), pp. 39­‑59. Curiosamente, essa casa é o único registro de arquitetura moderna desenhado por Lúcio Costa na sua viagem a Portugal em 1953. 7

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Figura 1 e 1a – Edifício tipo e fachada com “cobogós”. Bairro das Estacas, Lisboa, 1949­‑ 55. Arqs. Formosinho Sanchez e Ruy d’Athoughia. Foto: Joana França, agosto 2012.

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Figura 2 – Casa Rangel de Lima – fachada para a Av. do Aeroporto.

mas também o é o desejo de manifestação plástica. Como diz Lúcio Costa8, “Toda arquitetura digna do nome é a um tempo orgânica e racional, acrescente­‑se, no caso brasileiro, certa tendência ao idealismo formal, e uma eventual gratuidade, peculiar ao nosso modo de ser” (IRIGOYEN, 2002, p. 104). Uma “eventual gratuidade”, que resvala num formalismo, poderá ser identificada na forma como características da AMB são apropriadas no projeto desta casa e em várias outras obras em Portugal. Quanto à questão da proteção solar, por exemplo, o arquiteto Nuno Teotónio Pereira afirma em entrevista9, que os cobogós (no Brasil) ou grelhas (em Portugal) seriam mais uma questão formal, uma apropriação imagética da AMB, considerando que os imperativos do clima em Portugal continental não são os mesmos das regiões tropicais. Com o deslocamento dos arquitetos portugueses para África, essa questão ganha outra importância.

Cf. Irigoyen, A. (2002), trata­‑se do Inquérito Nacional de Arquitetura promovido pelo Jornal do Brasil em 1961. A resposta em questão foi dada à pergunta: “Que pensa das correntes organicista e racionalista como tendências de arquitetura contemporânea? Quais suas relações com a realidade brasileira?“. 9 O arquiteto é autor do texto “A influência em Portugal da arquitectura moderna brasileira”, publicado em Pereira, N. T. (1996). A Entrevista gravada foi concedida à autora em 08/10/2012, na residência do arquiteto. 8

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Francisco Castro Rodrigues Francisco Castro Rodrigues10 realizará a maior parte de sua obra em Angola. Sua ida e de outros arquitetos, do que ficará conhecida como “Geração Africana”11, para as colônias será motivada por razões diversas, entre elas maiores oportunidades de exercício profissional, face à necessidade da construção dos mais diversos equipamentos essenciais ao estabelecimento da vida e das atividades coloniais regulares (FERNANDES, 2009). Para Castro Rodrigues, haverá também uma motivação político­‑ideológica devida à sua militância comunista e ao conseqüente confronto das suas posições com a ditadura do Estado Novo português. Outro aspecto importante é a maior liberdade de atuação profissional. A distância das colônias permite experimentar a adoção dos princípios da arquitetura moderna, com base na arquitetura corbusiana principalmente, mas também por via da arquitetura moderna brasileira. Muito poderá ser dito sobre as razões da adesão brasileira à linha corbusiana e sobre o interesse dos arquitetos portugueses por Corbusier no pós­‑guerra. Neste percurso/tempo aqui desenvolvido, interessa referir que a ausência de recursos tecnológicos sofisticados, circunstâncias comuns a Brasil, Portugal continental e principalmente África, ensejavam a adoção de um sistema construtivo como o concreto/betão armado, em que o conhecimento teórico e a artesanalidade apurada da execução possibilitavam a realização de obras inovadoras sem o apoio de um parque industrial. Por um lado o gosto por aprender com o fazer e o interesse na construção; e por outro a sua forte convicção moderna serão características que ajudarão FCR a enfrentar os desafios dos poucos recursos disponíveis em África. Antes disso, em 1948, Castro Rodrigues faz parte do grupo que cria a ICAT – Iniciativas Culturais, Artísticas e Técnicas Lda., cujo principal objetivo é através da revista Arquitectura, “arranjar forma de apresentar os arquitectos novos, modernos.” O período em que a ICAT está à frente da Arquitectura, especialmente entre 1949 e 195412, coincide com o período de maior divulgação da AMB em publicações periódicas portuguesas (RAMOS & MATOS, 2005). É na Arquitectura que FCR publicará, em 1948, a primeira tradução portuguesa da “Carta de Atenas”. FCR será também responsável pelo número 50/51, dedicado a Le Corbusier. Ainda em 1948 acontece o I Congresso Nacional da Arquitectura, do qual FCR participará, juntamente com os sócios João Simões e José Huertas Lobo, com duas

Nascido em Lisboa, 1920. Poderá ser referido eventualmente pelas iniciais FCR. Denominação dada por José Manuel Fernandes, a partir do título do seu livro Geração Africana: Arquitectura e cidades em Angola e Moçambique, 1925­‑1975. Lisboa: Livros Horizonte, 2002. 12 Neste ��������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� intervalo, ��������������������������������������������������������������������������������������������������������������� Castro Rodrigues finaliza o curso e parte para Angola, mas está também diretamente envolvido na produção da revista. Rodrigues, F. C., & Dionísio, E. (2009). Ob. Cit. p. 209. 10 11

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Figura 4 – Mercado Municipal do Lobito, 1958­‑ 64. Figura 5 – Aerogare do Lobito, 1964. Fonte: (Fernandes, 2009).

das poucas comunicações que mencionam a arquitetura brasileira (MILHEIRO, 2005) Mais tarde, em 1953, no Congresso da União Internacional de Arquitectos realizado em Lisboa, FCR será membro da Comissão das Exposições do Congresso. O evento “Arquitectura Contemporânea Brasileira”, realizado no âmbito do Congresso, conta com a conferência do prof. Wladimir Alves de Souza e a exposição Arquitetura Contemporânea Brasileira, mostra sediada na SNBA, à parte das representações de outros países. “Para mim, este congresso foi uma abertura à arquitectura brasileira”, revela FCR, e reconhece “que formalmente os arquitetos modernos portugueses estão mais próximos dos brasileiros que de outras culturas européias”13. A revista Arquitectura14 publicará a apresentação da conferência mas também destacará alguns projetos da exposição. O número anterior da mesma revista, organizado por Castro Rodrigues, traz o artigo “O pintor Burle Marx e os seus jardins”, e os projetos de Burle Marx presentes na exposição. São muitas as atividades, mas FCR enfrenta dificuldades profissionais por razões políticas. Assina então um contrato de arquitecto­‑chefe com a Câmara Municipal do Lobito, e fica à espera de autorização para partir durante 11 meses. Em Junho de 1954 parte para Angola “cheio de Brasil e de Arquitectura”, conforme declara em entrevista (MILHEIRO, 2009). Ao chegar, FCR realizará a revisão do plano de urbanização do Lobito feito pelo GUU15, e desenvolverá projetos dos mais diversos programas e portes.

13 14 15

Rodrigues, F. C., & Dionísio, E. (2009). Ob. Cit. p. 226. Revista Arquitectura no. 53, Nov/Dez 1954. “Gabinete de Urbanização do Ultramar”, até 1951 chamado “Gabinete de Urbanização Colonial”.

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Figura 6 – Liceu do Lobito, 1966. Fonte: (Fernandes, 2009).

Desempenhará eventualmente também uma atividade privada. Em algumas obras16 é possível evidenciar aproximações à AMB, em especial a projetos que figuravam na Exposição do Congresso da UIA e foram destacados na publicação posterior da revista Arquitectura. O Bloco Sol (Lobito, 1952­‑55), edifício multifamiliar foi realizado ainda em Lisboa. Possui brises fixos de concreto e notável trabalho de integração da arte à arquitetura, princípio presente na AMB e referido nas intervenções do prof. Wladimir Alves de Souza em Lisboa17. Recebe esse nome pela presença do painel “O Sol é um Touro”, fixado na empena lateral. O edifício ecoa princípios corbusianos, mas também “brasileiros”, possivelmente por via dos MMM Roberto: os brises ABI (1935), ou os requadros do Edifício em Copacabana (1945). Os irmãos Roberto terão depois pelo menos 5 referências na Exposição do Lobito. Em contraste com a efusividade plástica do Bloco Sol, o Mercado Municipal (1958­‑64) e a Aerogare do Lobito (1964) são volumes prismáticos simples, sendo o primeiro elegantemente elevado sobre pilotis, com uma coberta superior destacada que lhe confere leveza pela alternância de cheios e vazios. Ambos utilizam grelhas e brises, em um esforço de adequação climática que favoreça a ventilação cruzada e a proteção solar. Na Aerogare, a escala mais aberta e agigantada da grelha lembra a solução do arquiteto Olavo Redig de Campos para a Casa Moreira Salles (Rio de Janeiro, final dos anos 1940). No Cine Esplanada Flamingo (Lobito, 1963) conjugam­‑se o arrojo estrutural da coberta e a sinuosidade das paredes ondulantes da fachada, em uma impactante

Face à divergência de datas, optou­‑se por utilizar as adotadas no “Esboço de Cronologia” que consta em Rodrigues, F. C., & Dionísio, E. (2009). Ob. Cit. 17 Em relação a este aspecto, Ana Vaz Milheiro aponta o impacto da obra “Café”, de Portinari, vista no Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português de 1940, sobre Castro Rodrigues e outros artistas do neo­‑realismo português. Este impacto foi vivamente recordado por FCR em entrevista concedida à autora em 03/04/2012 (gravada), nas Azenhas do Mar. 16

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estrutura para abrigar 1200 pessoas. O indissociável binômio forma/função, expressivamente obtido através da estrutura em concreto armado, evidencia uma afinidade com a AMB. Outra evidência dessa afinidade é o impulso de integrar organicamente interior e exterior, mencionada pelo arquiteto como uma característica admirada na arquitetura brasileira18. Há alguns serviços que estão abrigados sob a estrutura de forma dinâmica, aberta, numa tentativa de fazer com que o caráter plástico das partes edificadas tenha reflexo no tratamento espacial e paisagístico interno. Na Igreja do Sumbe (1966), além do elemento marcante que é a estrutura da coberta em duas águas, a força plástica da composição decorre também da relação entre os três volumes distintos (a torre, a nave, o batistério) e conectados, e é reforçada pelos elementos vazados empregados, seja no embasamento em tijolo que une os três volumes (grelha pré­‑moldada em concreto), seja na fachada principal (grelha metálica triangular), ou na fachada lateral, na forma de esbeltos lanternins, num esforço de adequação climática. O projeto apela também ao ideal de integração das artes. O Edifício dos Paços do Concelho (Sumbe, 1966) compõe­‑se de dois trapézios unidos, suspensos por pilares, resultantes do telhado em “asa de borboleta”. Mais uma vez, Castro Rodrigues emprega brises fixos de concreto semelhantes aos do Bloco Sol ou do Mercado Municipal. O Edifício da Companhia de Seguros Universal (1967) é uma tentativa de realização tropical dos ideais corbusianos expressos na Unidade de Habitação de Marselha. No entanto, suas grelhas, palas, terraços, galerias e circulações abertas evocam também Pedregulho (Rio de Janeiro, 1946), de Reidy, anterior realização tropical de escala mais extensa e diversificada. O Liceu do Lobito (1966­‑67) evoca igualmente imagens de Pedregulho, cujo edifício da escola também possui uma fachada completa com fechamento em cobogós, e está elevado sobre pilotis, proporcionando, tal como no Lobito, um recreio coberto para os estudantes. Castro Rodrigues também realizará na Associação Comercial do Lobito, em 1961, a exposição “Arquitectura Moderna Brasileira”, promovida pelo Núcleo de Estudos Angolano­‑Brasileiros. FCR monta a exposição utilizando recortes de reproduções de obras retiradas de revistas: “Eu tinha tantos recortes que consegui fazer uma exposição”. Além das obras de arquitetura, há referências a artistas como Portinari, Antônio Bandeira e Bruno Giorgi. A exposição contará com a visita do então embaixador do Brasil em Portugal, Negrão de Lima. FCR fará ainda uma palestra de encerramento intitulada “A Arquitectura Moderna Brasileira”. Exposição e palestra serão apresentadas em

Referida por FCR na entrevista realizada em 03/04/2012, essa qualidade está para ele associada aos jardins de Burle Marx, integrados a boa parte das obras de icónicas da AMB. 18

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Figura 7 – Casa em A­‑Ver­‑ o­‑Mar – corte transversal, 1950(?). Figura 8 – Edifício Oscar Amorim, Recife, 1953. Fontes: Fig. 7 “A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação” no. 3­‑4 (Abril, 1953); Fig. 8: (Oiticica, 1991).

outras cidades angolanas, “no que pode ser encarado como um ‘exercício político’” (MILHEIRO & FERREIRA, 2009). O embaixador fica sensibilizado com a exposição e oferece­‑lhe uma bolsa de estudos no Brasil, mas a PIDE impede Castro Rodrigues de ir.

Delfim Fernandes Amorim Se em 1961 Castro Rodrigues gostaria de ter ido para o Brasil mas não pode, já lá estava desde o final de 1951, e com ele encerra­‑se este percurso, o arquiteto Delfim Fernandes Amorim (Póvoa de Varzim, 1917). Formado pela Escola de Belas Artes do Porto, Amorim fazia parte da ODAM19, e, convencido que estava do papel heróico do arquiteto moderno, punha nas novas possibilidades técnicas, no espírito científico e no enfrentamento dos desafios da construção, um meio para cumpri­‑lo. Embora desde a sua primeira adesão à arquitetura moderna já prestasse atenção às questões técnicas, e aderisse ao ideário corbusiano, em texto publicado na Revista Vértice, extraído de palestra feita no Ateneu do Porto em 1951, diz Amorim: “A importância da técnica na obra de arquitetura manifesta­‑se com tal evidência que nos é possível identificar uma realização arquitetônica pela sua expressão plástica. A descoberta de uma técnica e a sua exploração andam ligadas intimamente à formação de um estilo”20. Organização dos Arquitectos Modernos, organização que, à semelhança da ICAT, reunia o grupo de jovens arquitetos modernos na cidade do Porto. 20 Oiticica, D. (1991). Delfim Amorim arquiteto (2a. ed.). Recife: IAB­‑PE. p. 22. 19

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Essa afirmação aponta para a crença na impossibilidade de dissociação entre técnica e plástica, uma percepção do arquiteto que poderá tê­‑lo levado a compreender, melhor que outros, como essa questão está presente na AMB, sobretudo quando associa isto “à formação de um estilo”. Nos anos iniciais, anda à procura desse “estilo”, e explora possibilidades técnico­‑construtivas que já o aproximam da AMB. Em projeto feito com o sócio Oliveira Martins, fez uso do mesmo telhado “de perfil brasileiro” na pequena casa em A­‑Ver­‑o­‑Mar, na Povoa de Varzim21. Quando chega ao Brasil, continua a perseguir um caminho próprio, através, pode­‑se dizer, de induções da AMB. Projeta o edifício Oscar Amorim (1953), com coberta em abóbadas de concreto e pala curva que abriga a entrada; e fará sua versão do edifício serpenteante em terreno acidentado com fechamento por cobogós, o Seminário para o BNB (1962), não concluído, cuja solução evoca Pedregulho. Por outro lado, Amorim acabará por, imerso na necessidade viva de convivência com o clima quente e úmido do Nordeste do Brasil, contribuir, de forma original, para afirmar outra característica da AMB: o desenvolvimento de soluções plástico­ ‑funcionais para adequação às condições climáticas. Vai fazer uso dos cobogós, como no Edifício Pirapama (1956) ou no edifício Luciano Costa (1959), mas acrescenta soluções originais como os buzinotes ou o peitoril ventilado22 do Edifício Acaiaca (1957), todos no Recife. Vai realizar ainda telhado com perfil borboleta, como na residência Miguel Vita (1958), mas desenvolverá os consagrados telhados com laje de concreto e telha tipo canal em vários projetos residenciais, com paredes laterais que não alcançam a laje e permitem a circulação de ar. Esta solução ficou conhecida como “estilo Amorim”, e foi adotada também por outros arquitetos como Acácio Gil Borsói, com quem Amorim trabalha logo que chega ao Recife, ou Heitor Maia Neto, sócio de Amorim. O uso de azulejos no revestimento das fachadas, indício da ligação a uma tradição luso­‑brasileira, não meramente decorativos, mas para proteger da umidade do Recife, também são uma característica de Amorim, que desenvolvia novos desenhos para cada projeto. Muitos desses princípios, que resultam da colaboração de vários arquitetos, irão compor o “Roteiro para construir no Nordeste” (1976), de Armando de Holanda.

O projeto em questão não tem data definida, mas foi publicado em Portugal em 1953, mesmo ano em que é publicada a Casa Rangel de Lima. Sabe­‑se no entanto que o projeto de Amorim é anterior à sua ida definitiva para o Brasil, onde fixou­‑se em Recife, na véspera do Natal de 1951. 22 Na verdade um esquema inventado pelo estudante de arquitetura Augusto Reinaldo, falecido precocemente. 21

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Considerações Finais Os pontos de contato entre os três personagens desse percurso, e entre os mesmos e a arquitetura moderna brasileira, poderão ser reunidos, e eventualmente analisados, sob dois aspectos principais. Um diz respeito ao repertório moderno brasileiro “formal”: o uso de elementos como os cobogós e grelhas, a adoção do brise­‑soleil, e a solução de coberta do tipo “asa de borboleta” são exemplos disso. Sobre esses elementos, poder­‑se­‑ia dizer que alguns têm origem na obra de Le Corbusier, o brise­‑soleil, como se sabe, foi proposto pela primeira vez por Corbusier no projeto de urbanização de Argel nos anos 30, mas é no Brasil que o seu uso vai ser disseminado e utilizado pelos arquitetos também como argumento estético para possibilitar, em um país tropical, a adoção das premissas higienistas (e universalistas) modernas de exposição plena das fachadas. Caso a cobertura tipo “asa de borboleta”, não se tivesse tornado conhecida através da obra de Niemeyer na Pampulha, teria ficado restrita à obra única e não construída de Corbusier? É incontornável a contribuição brasileira, e o seu conhecimento pelos três personagens desse percurso, para a disseminação de várias soluções técnico­‑formais antes expostas. O legado moderno brasileiro como estratégia projetual é o outro aspecto, muito mais difícil de analisar. É possível avaliar até que ponto a compreensão da AMB terá superado o simples fascínio pelas imagens que chegavam através das publicações, e penetrado nos princípios conceituais geradores da forma na obra de arquitetos como Artigas, Niemeyer, Reidy, ou os irmãos MMM Roberto? A experiência brasileira de liberdade formal e adequação às condições sociais e climáticas poderá ter oferecido um instrumental técnico­‑formal adaptável às condições das latitudes africanas para Castro Rodrigues. Para Vasconcellos talvez a experiência brasileira tenha sido uma espécie de “rito de passagem” e integralização da sua formação, uma vez que Artigas o foi “amparando como professor que era”23. Dos três, talvez só Amorim, ao “tornar­‑se brasileiro”, tenha experimentado o que Gylberto Freyre via como um sinal de vivacidade cultural do Brasil no seu livro “Arte, Ciência e Trópico”, editado em 1962, a integração de valores europeus em ambientes tropicais e a fusão de valores europeus com valores tropicais.

23

Vasconcellos, M. (1972). Ob. Cit. p. 4.

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Figura 8 – Bloco do Sol, Lobito, arquivo Quitos.

197

198 Entrada lateral da Estação Central da Beira, Moçambique (EM, 2009).

NO CAMINHO DE UMA ARQUITETURA RACIONAL: INFRAESTRUTURAS MODERNAS EM MOÇAMBIQUE Elisiário Miranda1 Professor da UM

No seu número de 12 de Dezembro de 1954 o Diário de Moçambique, jornal diário publicado na cidade da Beira, em Moçambique, publicava um artigo com o sugestivo título No caminho de uma arquitetura racional. Nesta coluna defendia­‑se a necessidade de atualizar a arquitetura doméstica produzida ao ambiente e às exigências climáticas do território, num confronto com os modelos extraídos da suposta casa portuguesa ou importados das revistas estrangeiras de decoração. Ilustravam o artigo duas fotografias do exterior de duas vivendas: a primeira, de uma habitação anónima em estilo Português Suave, e a segunda, da inovadora e idiossincrática Casa Leite Martins, também designada Casa Avião, desenhada por Pancho Guedes entre 1951 e 1953. Em 26 de Agosto do ano seguinte o mesmo jornal realiza, na sua rubrica Das Artes e das Letras, um inquérito entre os arquitetos que residem e trabalham na Beira: Barbosa e Silva, Carlos Ivo, João Garizo do Carmo e Paulo de Melo Sampaio – na altura Francisco de Castro encontrava­‑se ausente na Europa. O pretexto para a recolha de opiniões residia na simultânea abertura da Exposição de Arquitetura Religiosa Contemporânea, mostra panfletária de arquitetura moderna organizada pelo Movimento de Renovação da Arte Religiosa que, inaugurada em Lisboa em

Assistente da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, em processo de conclusão de doutoramento com o título Liberdade & Ortodoxia: Infraestruturas de arquitetura moderna em Moçambique, 1951­‑1964, sob a orientação dos Professores Doutores Vincenzo Riso e João Vieira Caldas, e investigador integrado no projeto de I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia com a referência PTDC/AUR­‑AQI/103229/2008 e o título EWV_Visões cruzadas dos mundos: arquitectura moderna na África Lusófona (1943­‑1974) vista através da experiência Brasileira. 1

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Figura 1 – Cine­‑Teatro São Jorge, Beira, Moçambique (EM, 2009). Figura 2 – Traseiras da Padaria Saipal, Maputo, Moçambique (EM, 2009).

1953, tinha depois percorrido diversas cidades do país: Porto, Ponta Delgada, Braga, Coimbra, Funchal, Lourenço Marques – cidade onde foi exposta em Março de 1955 por iniciativa do Núcleo de Arte –, e Luanda, onde só chegará em 1959. Duas das questões levantadas pelo inquérito têm particular relevo para o conhecimento dos principais temas que informavam a arquitetura local, perante a emergência dos novos modelos e princípios arquitetónicos do Movimento Moderno internacional: (…) Moçambique em geral e a Beira em particular aceitam facilmente a Arquitetura Nova? (…) Crê nas possibilidades de uma Arquitetura de feição própria – tropi‑ cal, africana e portuguesa – em Moçambique? A praxis profissional dos arquitetos chegados a Moçambique durante a década de 40 e início de 50, estava informada pelos princípios do Movimento Moderno internacional: utilização de sistemas construtivos industriais, materiais estandardizados, otimização e flexibilização funcional e rigorosa adaptação climática dos edifícios. Característica do Estilo Internacional, a sua produção arquitetónica baseava­ ‑se no pensamento e na prática Corbusianos: dos cinco pontos à pesquisa dos mecanismos, como o brise­‑soleil, para controlo da incidência solar sobre a superfície do pan de verre. A sua linguagem arquitetónica é diretamente influenciada pela moderna arquitetura brasileira: grelhas de ventilação (cobogós), revestimentos cerâmicos, formas escultóricas de exceção a matrizes ortogonais e integração de murais, pinturas ou esculturas nos edifícios, tendendo à criação de obras de arte total. Moçambique tornou­‑se, neste período, terreno fértil para a livre difusão da nova arquitetura e, ao mesmo tempo, para a ortodoxa concretização dos seus axiomas funcionais e construtivos. Estes forneciam às entidades públicas locais como aos

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Figura 3 – Batistério da Igreja do Imaculado Coração de Maria, Beira, Moçambique (EM, 2009). Figura 4 – Apartamentos dos funcionários da delegação do BNU, Chimoio, Moçambique (EM, 2010/EWV).

empreendedores privados, os instrumentos que permitem a construção em larga escala nos tecidos urbanos recentemente projetados ou em processo de expansão e consolidação. Sem a preocupação de precisar relações de causa e efeito iremos, ao longo desta comunicação, observar algumas imagens de edifícios de programa infraestrutural, projetados e construídos em Moçambique durante as décadas de 50 e 60, nos quais são mais notórios os paradigmas da arquitetura de Le Corbusier, do Movimento Moderno e da sua reformulação pelos arquitetos da arquitetura moderna brasileira. O Cine­‑Teatro São Jorge, na cidade da Beira, foi projetado em 1952 por João Garizo do Carmo. A sua construção foi adjudicada em 1953 e foi inaugurado em 17 de Novembro de 1954, com a presença do Governador de Manica e Sofala. A esta primeira abertura ao público seguiram­‑se, durante o ano de 1955, a inauguração do sistema de ar condicionado (22 de Janeiro), a realização da primeira sessão do cinemascópio reservada à imprensa e rádio locais (26 de Fevereiro) e a abertura do salão de chá (4 de Julho). A Padaria Saipal, em Maputo (antiga Lourenço Marques), foi desenhada por Pancho Guedes com a colaboração do engenheiro Vitalle Moffa. A datação do projeto foi estabelecida entre 1952 e 1954, distintas datas que poderão corresponder a diferentes fases de desenvolvimento do estudo. Embora se desconheça ainda a cronologia da construção do edifício sabe­‑se que a sua estrutura estava já erguida em 13 de Dezembro de 1957. No final do mesmo mês iniciou­‑se o processo de instalação e montagem das maquinarias alemãs de fabrico de pão. Em Agosto de 1958 a panificadora estava já em pleno funcionamento. A igreja do Imaculado Coração de Maria, no bairro da Manga da cidade da Beira, foi desenhada por João Garizo do Carmo. Uma gravura sua foi publicada na imprensa local no final de Janeiro de 1955, estando o seu projeto em vias de conclusão em Junho do mesmo ano. O lançamento da primeira pedra da nova igreja

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Figura 5 – Paço Episcopal de Pemba (EM, 2010/EWV). Figura 6 – Prédio e Cinema Montalto, Chimoio, Moçambique (EM, 2010/EWV).

esteve previsto para Julho de 1955. Após alguns contratempos, que atrasaram a execução do edifício, foi benzido em 18 de Agosto de 1957 pelo primeiro Bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende. A cerimónia de inauguração foi integrada nas comemorações do quinquagésimo aniversário da cidade e contou com a presença do encarregado do Governo­‑Geral, Dr. Juvenal de Carvalho. As instalações da delegação do Banco Nacional Ultramarino em Chimoio, antiga Vila Pery, compreendiam a agência bancária, os cinco apartamentos duplex dos funcionários, as duas residências geminadas da administração e gerência, e as seis habitações dos serviçais indígenas. O conjunto foi desenhado por Paulo de Melo Sampaio através de um anteprojeto, realizado em 1955, e um projeto final datado de 1956. A abertura das propostas ao concurso público de construção teve lugar em 31 de Outubro de 1956, tendo a agência entrado em funcionamento em Maio de 1959. O Paço Episcopal de Quelimane, residência dos Bispos da Diocese e Secretaria Episcopal, foi desenhado por João Garizo do Carmo. O projeto do edifício deu entrada na Câmara Municipal de Quelimane em Maio de 1956, tendo as obras sido adjudicadas em meados do mesmo ano. Um novo projeto para a capela, que substituiu integralmente o projeto original, foi desenhado por Garizo do Carmo em 1957. Com base no projeto deste conjunto, adaptando­‑o a uma distinta situação topográfica, foi ainda edificado durante a década de 60 o Paço Episcopal de Pemba, antiga cidade de Porto Amélia. O conjunto Montalto em Chimoio, antiga Vila Pery, foi projetado por Paulo de Melo Sampaio em 1957. Compreende o prédio Montalto, edifício de comércio e

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Figura 7 – Entrada lateral da Estação Central da Beira, Moçambique (EM, 2009). Figura 8 – Entrada lateral do Hospital Central de Maputo, Moçambique (EM, 2010/EWV).

habitação, construído entre 1958 e 1960, e o cinema Montalto. O projeto de 1957 do cinema foi radicalmente alterado por Paulo Sampaio em 1960, tendo­‑se iniciado a construção do edifício no ano seguinte. A tradicional cerimónia da colocação do pau de fileira, sinalizando a conclusão dos toscos do edifício, teve lugar em 9 de Junho de 1962. O cinema foi inaugurado em 1963. O processo de projeto da nova da Estação Central da Beira foi tecnicamente apoiado, a pedido da administração do caminho­‑de­‑ferro, pelos serviços da Câmara Municipal da Beira. Em meados de 1957 foi aberto um concurso público para a definição da expressão exterior do novo edifício, a que concorreu um único arquiteto, Paulo de Melo Sampaio. Para a elaboração de um novo anteprojeto da estação, por iniciativa do arquiteto camarário Bernardino Ramalhete e sob a sua coordenação, foi constituída uma equipa composta por três dos quatro arquitetos residentes na cidade: Francisco José de Castro, Paulo de Melo Sampaio e João Garizo do Carmo. Após assinatura do contrato, em 16 de Fevereiro de 1959, a equipa de arquitetos entrega um anteprojeto com desenhos datados de 18 de Abril do mesmo ano. O projeto para obra, de Abril de 1960, é aprovado pelos serviços do Ministério das Finanças em Junho de 1961. Os cálculos de estabilidade foram realizados pelo engenheiro Moreno Ferreira, enquanto o acompanhamento de toda a obra, foi da responsabilidade de Paulo Sampaio. A abertura das propostas das empresas concorrentes à construção da estação realizou­‑se em Outubro de 1961, tendo em meados de 1962 sido anunciada a adjudicação da empreitada. O contrato de construção foi assinado em Fevereiro de 1963, enquanto decorriam já os trabalhos preparatórios de cravação das fundações do edifício. A edificação da

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Figura 9 – Delegação da Beira do Automóvel & Touring Clube de Moçambique (EM, 2009).

zona do cais ficou concluída em 31 de Dezembro de 1963, no mesmo dia em que entrou em funcionamento o corpo da estação. A inauguração do conjunto completo teve lugar no dia 1 de Outubro de 1966, com a presença do Governador­‑geral da Província. O edifício do Hospital Central de Lourenço Marques, atual Maputo, foi desenhado em 1958 por Francisco Assis e Luís de Vasconcelos para a Comissão de Estudo para o Projeto do Hospital Central de Lourenço Marques. O concurso público para adjudicação da empreitada de construção da primeira fase do conjunto, inscrito na frente Nordeste do quarteirão ocupado pelo antigo Hospital Miguel Bombarda, foi lançado no final de 1958. As obras iniciaram­‑se em 1959, financiadas pelo Plano Hospitalar do segundo Plano de Fomento, tendo o edifício entrado em funcionamento em meados de 1965. Figura 10 – Hospital Central Egas Moniz, Nampula, Moçambique (EM, 2009).

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Figura 11 – Corpo intermédio do Palácio das Repartições, Lichinga, Moçambique (EM, 2009). Figura 12 – Pavilhão de salas de aula da Escola Industrial e Comercial D. Francisco Barreto, Quelimane, Moçambique (EM, 2009).

A delegação da Beira do Automóvel & Touring Clube de Moçambique foi projetada em 1958 por Paulo de Melo Sampaio. Foi inicialmente concebida para sede do Clube da Beira, uma histórica associação de natureza social. Um mural em mosaico de vidro de desenho geométrico, provavelmente da autoria de Jorge Garizo do Carmo, recobre as quatro faces da parede da sua escadaria exterior de representação. O Hospital Central Egas Moniz, em Nampula, foi construído no âmbito do Quadro Complementar das Construções Hospitalares segundo um projeto da 1ª Repartição da Direção do Serviço de Obras Públicas e Transportes, desenhado por Francisco Assis possivelmente em coautoria com Luís Vasconcelos. O projeto do edifício, provavelmente iniciado em Outubro de 1958, estava em fase de conclusão em Abril de 1960. A adjudicação da empreitada e o início das obras tiveram lugar no final de 1961 ou início de 1962. Entrou em funcionamento em Abril de 1967 tendo sido oficialmente inaugurado em 10 de Dezembro de 1968. O edifício do Palácio das Repartições de Lichinga, antiga Vila Cabral, foi realizado no exterior dos Serviços de Obras Públicas por João José Tinoco e Maria Carlota Quintanilha. O projeto do complexo, que compreendia a sede do governo distrital e os serviços das diversas repartições públicas, estava em execução em meados de 1959. A construção do edifício decorria em Setembro de 1961 tendo a sua inauguração tido lugar cerca de 1962. A Escola Técnica Elementar Governador Joaquim de Araújo, em Lourenço Marques, uma das duas escolas técnicas elementares criadas em 1958 pelo

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Figura 13 – Igreja de Nossa Senhora do Livramento com Hotel Chuabo à esquerda e dependência do BNU à direita, Quelimane, Moçambique (EM, 2009). Figura 14 – Instituto de Anatomia e Histologia Veterinárias, Maputo, Moçambique (EM, 2012/EWV) Moçambique (EM, 2009).

governo central na antiga província de Moçambique, foi instituída com este nome por um diploma legislativo do governo provincial de 28 de Agosto de 1961. A sua construção foi financiada por verbas inscritas no capítulo Instrução e Saúde do II Plano de Fomento. O edifício foi projetado nos Serviços de Obras Públicas de Lourenço Marques por Fernando Mesquita, na continuidade tipológica dos anteriores projetos por ele desenhados para as escolas técnicas elementares de Nampula, Quelimane e Inhambane. O primeiro desenho que dela conhecemos está datado de 30 de Janeiro de 1960, embora a maioria dos elementos do seu processo tenham sido desenhados entre Fevereiro e Abril do ano seguinte. A construção da escola iniciou­‑se em 1962 tendo o edifício sido inaugurado em 7 de Fevereiro de 1963, numa cerimónia presidida pelo contra­‑almirante Sarmento Rodrigues, governador­ ‑geral da antiga província. O programa desta escola técnica elementar de frequência mista, grau de ensino correspondente ao antigo ciclo preparatório, era o de maior dimensão e complexidade de todos os programas de escolas técnicas construídas no período em estudo: foi dimensionado para uma população escolar de 1000 alunos, lotação que seria rapidamente ultrapassada nos anos seguintes à sua abertura. O edifício da antiga dependência do Banco Nacional Ultramarino em Quelimane foi projetado por Francisco de Castro. O primeiro esboceto foi realizado em 1960, novos esbocetos e um anteprojeto em 1962, projeto em 1964 e mais elementos de pormenorização construtiva ao longo de 1970.

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Figura 15 – Escola de Medicina Humana, Maputo, Moçambique (EM, 2010/EWV). Figura 16 – Palácio das Repartições, Pemba, Moçambique (EM, 2010/EWV).

O projeto de estabilidade foi calculado pelo engenheiro João Caiado Cabral e a assistência técnica à obra ficou a cargo do arquiteto Mário Couto Jorge e do engenheiro José Cadaval Fragoso de Sousa. A colocação da primeira pedra do novo edifício foi efetuada pelo governador do Banco Nacional Ultramarino, Francisco Vieira Machado, em 11 de Agosto de 1964, tendo a empreitada geral da obra sido adjudicada em Julho de 1966. O edifício foi inaugurado em 18 de Dezembro de 1972. O Instituto de Anatomia e Histologia Veterinárias dos Estudos Gerais Universitários de Lourenço Marques, integrado no conjunto do Laboratório de Patologia Veterinária, foi projetado por Luís Vasconcelos em 1963. Foi inaugurado em Agosto de 1964 pelo presidente da República, almirante Américo Tomás, aquando da sua visita à antiga província ultramarina. A Escola de Medicina Humana, atual Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane, foi projetada em 1963 no Serviço de Obras Públicas de Lourenço Marques. As assinaturas apostas nos desenhos revelam a participação de Fernando Mesquita, Francisco Assis e Luís de Vasconcelos no seu desenho. O edifício foi inaugurado em 19 de Novembro de 1965 pelo ministro do Ultramar, Prof. Silva Cunha e pelo ministro da Educação Nacional, Prof. Galvão Teles. O edifício do Palácio das Repartições de Porto Amélia, atual Pemba, foi desenhado por Carlota Quintanilha e João José Tinoco no exterior dos Serviços de Obras Públicas da antiga província. O seu projeto deverá datar de cerca de 1963, de acordo com a relação dos arquivos do Ministério das Obras Públicas e Habitação

NO CAMINHO DE UMA ARQUITETURA RACIONAL: INFRAESTRUTURAS MODERNAS EM MOÇAMBIQUE | 207

de Moçambique. Em Setembro de 1959 foi noticiado o início da construção de um Palácio do Governo do Distrito de Cabo Delgado, que julgamos não se referir ao mesmo edifício. Em Novembro de 1966 o edifício estava construído e a aguardar inauguração, procedendo­‑se apenas à limpeza dos terrenos envolventes. Os exemplos que observámos respondem às duas perguntas colocadas pelo inquérito do Diário de Moçambique: constituem elementos de referência nos tecidos urbanos das cidades moçambicanas: são símbolos de duração e modernidade, do desejo utópico de permanência da sociedade colonial que os edificou.

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Periódicos (diversos números dos seguintes títulos) A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação. Lisboa. 4.ª série. Arquitectura: Revista de Arte e Construção. Lisboa. 2.ª e 3.ª séries. Binário: Arquitectura. Construção. Equipamento. Lisboa. Boletim do Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Lisboa. Boletim dos Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique. Lourenço Marques. Boletim Geral das Colónias e Boletim Geral do Ultramar. Lisboa. Diário de Lourenço Marques Guardian. Lourenço Marques. Diário de Moçambique. Beira. Gazeta dos Caminhos de Ferro: Revista Mensal de Transportes, Divulgação e Turismo. Lisboa. Notícias: Diário da manhã fundado em 1926. Lourenço Marques [etc.]. RA: Revista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Porto.

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Edifício do Leão Que Ri, em Lourenço Marques-Maputo, foto JMF.

211

212 Sucessão de "neos". Rua 15 de Novembro, São Paulo.

capítulo 5

Conferência de encerramento

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214 Tommaso Bezzi. Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

UNIDADE E DIVERSIDADE NAS MANIFESTAÇÕES NO UNIVERSO LUSO­‑BRASILEIRO: ECLETISMO NO FIM DO SÉCULO EM SÃO PAULO Benedito Lima de Toledo Professor da USP

Os mestres de obra italianos e portugueses desempenharam papel relevante no período do ecletismo em São Paulo. Com o surgimento de bairros novos, a cidade conheceu, igualmente, novas formas de arquitetura. Para os palacetes e casarões exigidos pelos comerciantes enriquecidos e por fazendeiros que resolveram usufruir a vida na cidade, novas manifestações de arquitetura foram surgindo, por vezes, com repertório tomado de eras anteriores. Ocorreu, nesse momento, uma sucessão de “neos”: neocolonial, neoclassicismo, neogótico (nas manifestações religiosas). Nada com muita fidelidade ou rigor formal. A elevação principal de uma residência poderia receber uma profusão de ornatos muito elaborados. Para sua execução eram convocados os “capomastri” italianos ou os mestres portugueses, os “portugas”, como os chamou Lúcio Costa. Traziam o conhecimento em suas mãos calosas, fruto da rotina da tarefa. Seus instrumentos de trabalho, igualmente, eram elaborados, por vezes, em função das exigências do projeto, como moldes para obras em massa ou perfis para acabamento. Muitos se destacavam. Eram conhecidos como “frentistas”, responsáveis pelo remate da elevação principal das residências. Esses mestres em alguns momentos assumiam a construção de casas de menor vulto, dispensando a presença de profissionais diplomados, notadamente em bairros populares. Sua extensa contribuição no período do ecletismo está a merecer melhor estudo.

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Figura 1 – Sucessão de "neos". Rua 15 de Novembro, São Paulo.

Figura 2 – Carlos Ekman. Escola de Comércio Álvares Penteado e Vila Penteado.

Arquitetos e construtores de diferentes nacionalidades vieram integrar o quadro de profissionais trazendo grande experiência em sua bagagem. Foi o caso, entre tantos outros citados adiante, do sueco Carlos Ekman, autor do projeto para residência da família Álvares Penteado, a Vila Penteado no bairro de Higienópolis, em São Paulo, belíssimo exemplar da “Secession” austríaca. Este requintado edifício acolheu a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo à época de sua fundação. Seu elaborado interior constituiu sempre uma verdadeira aula para os futuros profissionais. Tommaso Gaudenzio Bezzi, nascido em Turim, formou­‑se engenheiro­‑arquiteto na universidade local, mas abandonou a profissão para se dedicar a uma longa carreira militar. Em 1875 transferiu­‑se ao Brasil, fixando­‑se no Rio de Janeiro onde se tornou amigo pessoal do Imperador D. Pedro II. Nessa cidade passou a exercer

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Figura 3 – Tommaso Bezzi. Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

Figura 4 – Luigi Pucci. Chácara de Carvalho, SP. Ricardo Severo. Res. Numa de Oliveira, São Paulo.

intensa atividade como construtor, a qual desempenhava com muito rigor. Em 1882 foi encarregado da realização do projeto para o Monumento da Independência do Brasil, às margens do riacho Ipiranga. Os trabalhos foram iniciados em 1885 e concluídos em 1889. Nessa obra pode ser observada uma rigorosa manifestação do neoclassicismo em todos seus pormenores. O projeto foi executado por Luigi Pucci, o qual revelou surpreendente eficiência e espírito de iniciativa nessa tarefa. Segundo A. Salmoni e E. Debenedetti, em Arquitetura Italiana em São Paulo, Pucci chegou a instalar “uma máquina a vapor para a tração dos vagões que transportavam o material, diretamente, da estação ferroviária ‘Inglesa’ para o canteiro da obra”. (“Inglesa” refere­‑se à forma como era popularmente conhecida a São Paulo Railway Company).

UNIDADE E DIVERSIDADE NAS MANIFESTAÇÕES NO UNIVERSO LUSO-BRASILEIRO: | 217 ECLETISMO NO FIM DO SÉCULO EM SÃO PAULO

Projetou residências suntuosas para a sociedade paulistana, entre elas adquiriu notoriedade a chácara do Carvalho, residência do Conselheiro Antônio Prado. Ricardo Severo, de nacionalidade portuguesa, foi outro profissional que se destacou por essa época. Em Portugal participara de um movimento revolucionário no Porto destinado a derrubar a monarquia. Fracassado o movimento, resolveu exilar­‑se no Brasil. Homem de grande erudição advogava o “retorno” às origens das manifestações arquitetônicas, movimento que passou à história como o “neocolonial”, cujos princípios podem ser entendidos em uma de suas declarações: “Com efeito, para criar uma arte que seja nossa e do nosso tempo, cumprirá qualquer que seja a orientação, que não se pesquisem motivos, origens, fontes de inspiração, para muito longe de nós próprios, do meio em que decorrem o nosso passado e no qual terá de prosseguir o nosso futuro”. Nascia assim a campanha em prol do “estilo colonial brasileiro”. Belas residências foram construídas sob essa premissa, entre elas podemos citar a residência Numa de Oliveira na Avenida Paulista onde nos alpendrados foram utilizados painéis historiados de azulejos realizados e queimados no Porto por Jorge Colaço, artista português. Ricardo Severo patrocinava viagem de estudo a artistas para que documentassem a arte e, em particular, a arquitetura do período colonial. Alguns artistas se destacaram, como J. Wasth Rodrigues a quem devemos desenhos e aquarelas de excelente qualidade documental. Por volta de 1886, transfere­‑se para São Paulo, vindo de Campinas onde adquirira notoriedade em virtude de obras bem sucedidas, o arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, formado em Gand, na Bélgica. Metódico e operoso reorganizou a antiga “Sociedade Propagadora da Instrução Popular” transformando­‑a no Liceu de Artes e Ofícios, instituição modelar, orgulho dos paulistas. Em 1894, Ramos de Azevedo foi encarregado de organizar curso de engenheiros­‑arquitetos na Escola Politécnica de São Paulo, tarefa que atuou com muito rigor. O neoclássico constituía referência básica, tanto no ensino como em sua atividade profissional. Seu escritório, altamente conceituado, transformou­‑se em referência básica em São Paulo. Ramos de Azevedo conseguiu mobilizar apreciável número de colaboradores, entre arquitetos, construtores, desenhistas, aquarelistas, todos profissionais de reconhecida competência como Domiziano Rossi, coautor do projeto do Teatro Municipal em São Paulo. Todos os trabalhos eram apresentados como obra do Escritório Ramos de Azevedo. O nome dos colaboradores nunca comparecia nos créditos. Um arquiteto que iniciou sua atividade em São Paulo no escritório de Ramos de Azevedo foi Victor Dubugras. Convidado a dar aulas de Desenho Arquitetônico na Escola Politécnica, por seu diretor, sua atuação contribuiu decisivamente para a formação dos futuros profissionais.

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Figura 5 – Ramos de Azevedo – Domiziano Rossi. Teatro Municipal, São Paulo.

Em seu escritório, e estimulado por Washington Luís, Presidente do Estado, desenvolveu a chamada “arquitetura tradicional brasileira” da qual nos deixou exemplares em obras públicas, conhecidas por sua organicidade, como os Pousos do Caminho do Mar, ou o Largo da Memória, na capital. O Caminho do Mar ligando São Paulo ao litoral foi aberto no século XVIII para substituir os antigos caminhos que não permitiam a ascensão de veículos. Posteriormente, com o advento da ferrovia, conheceu relativo abandono. Em abril de 1909, uns pioneiros empreenderam pela primeira vez uma viagem São Paulo­ ‑Santos de automóvel, um Motobloc francês. Dada a má conservação da via, foram obrigados a pernoitar no caminho. O governo do Estado considerando a potencialidade da via resolveu melhorar suas condições introduzindo uma inovação como registra uma placa afixada num pontilhão na raiz da Serra: “1926. Primeira estrada de rodagem brasileira revestida de concreto”. O antigo traçado contava com dezenas de curvas em meio à luxuriante mata atlântica. Para propiciar o desfrute desses recursos naturais, Washington Luís, Presidente do Estado, encomendou a Victor Dubugras “pousos” a serem implantados em pontos favorecidos na paisagem. Construções de granito com seus longos beirais, painéis de azulejo, constituem, sem dúvida, por sua linguagem e organicidade, a melhor interpretação d “arquitetura tradicional brasileira”.

UNIDADE E DIVERSIDADE NAS MANIFESTAÇÕES NO UNIVERSO LUSO-BRASILEIRO: | 219 ECLETISMO NO FIM DO SÉCULO EM SÃO PAULO

Figura 6 – V ictor Dubugras. Pouso no Caminho do Mar e Largo da Memória, São Paulo.

Figura 7 – V ictor Dubugras. Residências art­‑nouveau. Vila Uchôa e Res. Horácio Sabino, São Paulo.

O mesmo arquiteto Victor Dubugras, a par do programa de obras oficiais, onde praticava as formas arquitetônicas “tradicionais”, tem a seu crédito a introdução da arquitetura “art nouveau” em São Paulo. Nesse movimento, em que foi insuperável, a ele devemos as melhores expressões na cidade. Sua produção, além do projeto arquitetônico incluía a pintura decorativa, o mobiliário e complementos, de que resultava grande unidade e coerência formal. Há que registrar, ainda, a organicidade e a implantação na paisagem urbana. Foi um autêntico precursor do movimento moderno. A par das manifestações arquitetônicas eruditas, profissionais não diplomados deixaram sua marca em obras onde revelaram imaginação e senso de implantação. Foi o caso do mestre de obras português Francisco de Castro que adquiriu um terreno no barranco à beira de um córrego, o Itororó, sobre o qual um dia viria

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Figura 8 – Vila Itororó (Casa Surrealista), São Paulo.

a ser aberta uma movimentada avenida, a Avenida 23 de Maio. No local havia uma nascente de água tida como de boa qualidade. Castro foi adquirindo aos poucos material em demolições para erigir seu palacete. A essa época, estava em demolição no centro da cidade o Teatro São José, tornado obsoleto face à inauguração do monumental Teatro Municipal. Monumentais colunas, cariátides, atlantes, esculturas em bronze e mais componentes encontráveis em uma casa de espetáculo foram resgatados e paulatinamente compondo a nova obra. Valendo­‑se da nascente de água, Castro construiu uma piscina. Foi a primeira da cidade em residência particular e alimentada por água corrente! O conjunto ficou conhecido como “Casa Surrealista”, e contava com vários níveis valendo­‑se do desnível do terreno. Aos poucos o imaginativo proprietário foi erigindo pequenas casas à volta de seu palácio dispondo­‑as organicamente no terreno sem geometrismos. Havia até uma “piazzeta”, onde se reunia a comunidade local, constituída por famílias cujos chefes trabalhavam na região central da cidade. Predominavam os de origem italiana, os “oriundi”, capazes de promover animadas reuniões em feriados religiosos. Como a “Casa Surrealista” ou “Vila Itotoró”, como é conhecida, outras unidades populares foram surgindo na cidade e constituindo exemplares da “architettura senza architetto”, devida a mestres de obras dotados de imaginação.

UNIDADE E DIVERSIDADE NAS MANIFESTAÇÕES NO UNIVERSO LUSO-BRASILEIRO: | 221 ECLETISMO NO FIM DO SÉCULO EM SÃO PAULO

Bibliografia COSTA, Lúcio. Documentação necessária. Rev. do PHAN, Rio de Janeiro, n.1, 1937. DEBENEDETTI, Emma & SALMONI, Anita. Architettura italiana a San Paolo. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo­‑Brasileiro, 1953. OLIVEIRA, João Gualberto de. Suecos no Brasil. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1952. RODRIGUES, José Wasth. Documentário arquitetônico relativo à antiga construção civil no Brasil. 4.ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1979. SEVERO, Ricardo. A arte tradicional no Brasil. In: Sociedade de Cultura Artística. Conferências 1914­‑1915. São Paulo: Typ. Levi, 1916. TOLEDO, Benedito Lima de. Álbum iconográfico da Avenida Paulista. São Paulo: Ed. Ex­‑Libris/João Fortes Engenharia, 1987. —. São Paulo: três cidades em um século. 4.ed. São Paulo: CosacNaify/ Duas Cidades, 2007. —. Victor Dubugras e as atitudes de inovação em seu tempo. São Paulo: FAUUSP, 1985. (Tese de Livre­‑docência) VILA Penteado. São Paulo: FAUUSP, 1976.

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Alunas do Liceu do Lobito, Angola, anos 1960. Foto Quicos, colecção JMF.

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