Miguel Rio Branco: tempo do corpo e tempo do autor

July 25, 2017 | Autor: Luísa Brasil | Categoria: Photography Theory
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MIGUEL RIO BRANCO: TEMPO DO CORPO E TEMPO DO AUTOR Luísa Kuhl Brasil1 RESUMO: Os tempos da fotografia podem se mostrar múltiplos. O corpo, quando fotografado, apresenta uma noção de tempo que pode confluir com um segundo tempo. Este outro advém da própria fotografia como materialidade, como instante do fotógrafo-autor. A série fotográfica das prostitutas do Maciel, realizada por Miguel Rio Branco no fim dos anos 1970, é o mote para a discussão dos tempos que uma fotografia pode apresentar. Neste trabalho, leva-se em consideração a noção de corpo como delimitador do tempo e as marcas infligidas pela fotografia como tempo do autor.

“O tempo teria uma pele, um envelope que cerca e separa interior de exterior, invólucro de corpo, região sensível, portadora de mensagens, espelho da alma, primeira fronteira do ser. (...) E cada cicatriz tem um tempo e uma memória guardada na subjetividade dos portadores daqueles corpos e esse tempo é toda a eternidade”.2

O retrato fotográfico não se delimita à representação de fisionomias de modo apenas figurativo. A relação existente entre fotografado e fotógrafo faz emergir um rastro de emoções que exprimem tanto o anseio daquele que posa quanto a expectativa daquele que clica. Segundo Mauricius Farina: Um retrato pode não ser apenas a imagem de um rosto anódino, mas a percepção de uma natureza emocional que se impregna de sentimentos conotados. Apresenta um autor que, em alguns casos, identifica seus retratados como um caçador de si mesmo, numa procura incessante por um conhecimento de si que se reflete no outro (FARINA, 2003, p.1).

Buscando incitar a relação do autor com o fotografado e das possíveis emotividades que surgem no pós-clique - ou seja, quando a fotografia se materializa -, este artigo busca delimitar alguns parâmetros para a compreensão desse processo. Esses parâmetros devem auxiliar a interpretação das imagens a partir de duas variáveis: aquele que posa – por meio das marcas do corpo - e aquele que clica. Miguel Rio Branco é um fotógrafo que tenciona os limites estabelecidos pelos campos da fotografia. Abusando do hibridismo como forma de concretizar seu trabalho, o fotógrafo perambula pelos caminhos da subjetividade tão caros à arte, ao mesmo tempo em que utiliza recursos do documentarismo, aproximando-se de um trabalho etnográfico. As invisibilidades 1

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre. Email: [email protected] DUARTE, Paulo Sergio. “Pele do Tempo”. In: Pele do tempo. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2000. 2

e os tons dramáticos da luminosidade esquiva nas suas fotografias suscitam ora a dor humana real, ora os meandros de um imaginário obscuro da essência humana. Publicadas nos livros Dulce Sudor Amargo3, de 1985, e Nakta4, de 1996, as fotografias foram realizadas na cidade de Salvador, num período de três anos no fim da década de 1970. Algumas das imagens que compõem os livros retratam o local de prostituição do Maciel, no bairro Pelourinho. Um aspecto importante a ser salientado é que as fotografias não foram produzidas enquanto as prostitutas estavam em horário de trabalho, mas sim em seu cotidiano na casa. As fotos foram feitas, em maioria, nos quartos dessas mulheres, e demonstram uma interlocução entre as duas partes, que alimentam a ideia de relacionamento entre o fotógrafo e as fotografadas. Um diálogo constante sobre a ideia de corpo se apresenta nas imagens, figurando, assim, a emoção e o envolvimento do fotógrafo como um autor consciente do ato. Nas imagens, observam-se as cicatrizes nos corpos, as marcas de violência que recordam momentos cruéis. Por meio da representação da dor vivida no passado, o fotógrafo assinala a passagem do tempo e o rastro de dor e sofrimento deixado no imaginário do ser feminino. Os tempos apresentados são múltiplos e acabam se ligando, por meio de um vai-e-vem presentificado na fotografia como material. No mesmo período em que fotografou as prostitutas, Rio Branco produziu em 16mm o filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (1980), ideia que surgiu na própria produção das fotografias. Isso demonstra o hibridismo de processos técnicos e representativos na obra do artista.

1. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos. Nakta, 1996.

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O livro é composto por 80 fotografias coloridas. Dulce Sudor Amargo é uma publicação do Fondo de Cultura Económica do México. O texto final, intitulado “Carta a um amigo de Bahia” é de autoria de Jean-Pierre Nouhaud. 4 Nakta é composto por 45 fotografias coloridas, pelo poema “Noite Fechada” de Louis Calaferte e por um relato do autor sobre a edição. O título do livro significa noite, em sânscrito.

1. Tempo primeiro: o corpo e suas cicatrizes A série das prostitutas do Maciel induz uma relação emocional e corporal entre as fotografadas e Rio Branco. A noção de tempo vivido escancarado nas marcas e cicatrizes dos corpos joga incessantemente com a postura de Rio Branco perante aquelas mulheres. Ao contrário de muitos fotógrafos documentais, Rio Branco se mostra presente no ato fotográfico. Reafirmando assim, sua posição como autor daquelas imagens.

2. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos. Dulce Sudor Amargo, 1985.

3. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos. Dulce Sudor Amargo, 1985.

A pele apresentada nas fotografias induz à noção da passagem do tempo, como uma metáfora não específica somente àquele indivíduo em questão, mas a arquétipos sociais5: La fotografía tiene un doble juego: mostrar y ocultar. El objeto real paradójicamente, al ser capturado por el fotógrafo, deviene metáfora y símbolo. El estupor, el asombro que produce la imagen de un cuerpo encierra una doble significación: por un lado presenta al cuerpo en sí, por el otro nos presenta a su doble convertido en signo (MOLINA, 2004, p. 1).

O corpo retratado por Rio Branco, ao mesmo tempo em que é sagrado (como lugar de exaltação do eu), é um território em ruína. As ruínas são expressas nas poses que deflagram 5

Para aprofundamento dessa questão na prática do retrato ver: FABRIS, Annateresa: Identidades Virtuais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

uma sexualidade levada ao limite. Elas também estão nas cicatrizes geradas pela instabilidade social. O corpo que expele prazer pode ser o mesmo corpo que sofre. Os ícones presentes nas imagens, como fotos de artistas e cantores penduradas nas paredes dos lares das prostitutas, remetem a um corpo ideal. Porém, no bruto cotidiano, o corpo das prostitutas é território de todos - sem dono e à mercê da marginalidade presente no ambiente social. Molina reflete sobre os desdobramentos desses corpos: Decir cuerpo es nombrar algo que permanece oculto. Gracias a la aparición de sus dobles aparece el otro cuerpo, el cuerpo utópico, fantasmal: ese cuerpo soñado, desafiante, saturado de símbolos, sin el cual el cuerpo "real" no podría existir (MOLINA,2004,p.1).

4. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos. Dulce Sudor Amargo, 1985

O corpo nas prostitutas do Maciel não tem pudor. Ele não está ali para velar a condição humana, que, neste caso, exibe-se degradante. O corpo situado no quarto ou na sala remete diretamente à casa: a mulher e suas marcas são mostradas como um território habitado e passível de vida. 2. Tempo segundo: o corpo e o autor Outro tempo é o que se refere ao autor. Imbuído de conhecimento prévio do local em que realizou as imagens, o sentido de inocência não pode ser aplicado a Rio Branco. O autor se coloca nas imagens como o sujeito deflagrador daquela realidade. Ele almeja mostrar, abusar desse corpo, fazendo-o referência a um todo social. Aspectos como o sentido de movimento que as fotografias apresentam demonstram a presença e a relação do fotógrafo com o ambiente em que está inserido.

5. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos. Dulce Sudor Amargo, 1985.

O autor, aqui, não está na situação de flâneur. Ele olha e observa. No entanto, não se restringe a isso. Ele faz parte do todo fotográfico, se coloca como parte definida dentro do perímetro da fotografia. Rio Branco não enxerga esses corpos femininos como objetos. Em cada ponto da imagem, existe algo que remete à vaidade ou ao desleixo - duas características presentes numa possível estética marginal. O belo não é o impulso do fotógrafo. Mostrar uma realidade objetiva beirando os parâmetros da fotografia documental também não se mostra como algo dado em primeira instância. Rio Branco se apresenta como autor nessas imagens, pois está consciente tanto do processo técnico que engendra a fotografia quanto do aspecto político e social que suas imagens suscitam6. Essa consciência gerada no ato fotográfico e pelo propósito vislumbrado a partir da forma em série fotográfica que compõe a obra demonstram uma cumplicidade do autor em relação ao seu objeto, ao espaço e às vivências daquelas pessoas. No entanto, ao passo em que esses fatores geram cumplicidade, eles despertam um distanciamento. O olhar e a postura exibicionistas que as prostitutas depositam na câmera estabelecem a distância em relação a Rio Branco. Escrevendo sobre a obra de Diane Arbus, Mauricius Farina reflete sobre essa paradoxal proximidade e estranhamento que se geram no ato fotográfico: Nesse processo, há primeiro uma idéia de catarse, de compartilhar com o outro, para sublimar a própria dor, depois uma verificação da distância que separa um de outro (a impossibilidade) e, finalmente, a forma do

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O conceito de autor proposto nesta abordagem parte do texto O autor como produtor de Walter Benjamin. Ver:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense , 1994

estranhamento natural da imagem que transmite para os outros a performance do ato fotográfico (FARINA, 2003, p. 2).

6. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos. Dulce Sudor Amargo, 1985.

Tanto as fotografias das prostitutas do Maciel quanto o filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (que é composto majoritariamente por imagens fotográficas do Pelourinho, quando não apresenta as mesmas fotos da série) buscam na crueza a representação daquelas pessoas que vivem no Pelourinho. Como uma forma de gerar espanto ou incômodo, Miguel Rio Branco abusa de elementos sexuais, como gemidos, o ato sexual em si (no caso do filme), exposição de seios e vaginas e outros aspectos nas fotografias.

7. © Miguel Rio Branco/Magnum Photos Dulce Sudor Amargo, 1985.

Uma forma de compreender a relação do autor com a obra (ou esse conjunto de obras) poderia partir do ponto de vista que Farina expõe em relação à fotógrafa Cindy Sherman. Por se autorretratar, Sherman busca em si mesma a referência maior nas suas imagens. No entanto, esta similaridade é levada ao cabo através de uma simulacro em que a fotógrafa é capaz de se transformar em qualquer personalidade, sendo seu corpo apenas um artifício para chegar ao propósito final. Rio Branco não se autorretrata. No entanto, afirma a todo o instante

sua presença no ambiente em que se encontra. Ele não aparece visualmente na superfície da imagem, mas deixa sua marca por meio da luz, de seu posicionamento e da relação íntima que estabelece com as prostitutas. Rio Branco não realiza autorretratos, mas se representa na imagem por meio da sua postura e da relação envolvente estabelecida com as fotografadas.

Referências Bibliográficas AQUINO, Lívia Afonso de. Imagem-poema: a poética de Miguel Rio Branco. Campinas: 2005. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense , 1994. BRANCO, Miguel Rio. Dulce Sudor Amargo. Mexico: Fondo de Cultura Económico, 1985. BRANCO, Miguel Rio. Nakta, Brasil: Fundação Cultural de Curitiba, 1996. DUARTE, Paulo Sergio. “Pele do Tempo”. In: Pele do tempo. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2000. FARINA, Mauricius. Na altura da carne e depois do espelho. Revista Studium. Campinas: nº13, 2003, pp.1-2. MOLINA, Mauricio. “El cuerpo y sus dobles.” In: Pérez, David (org.). La certeza vulnerable: cuerpo y fotografía em el siglo XXI. Barcelona: Gustavo Gilli, 2004. Sites Disponíveis em: http://www.magnumphotos.com/ http://www.youtube.com/watch?v=UjMwMSGgsIA

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