Milícias e Ordenanças no Norte de Portugal durante as primeiras invasões Francesas

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Publicado em 2009 em: O Porto e as Invasões Francesas - I Vol, Porto, CM Porto e Edições Público, pp. 157-192

Milícias e Ordenanças no Norte de Portugal durante as primeiras Invasões Francesas Nuno Lemos Pires As milícias e ordenanças em Portugal são uma história “de sucesso” difícil de comparar com outras estruturas existentes nos restantes países de então. E podemos acrescentar que nessa época, que o seu desempenho tem algo incrível, talvez quase único no Mundo. Por ser difícil de comparar, muitos “historiadores” têm confundido estas unidades. Para uns a confusão levou-os a comparar com os Regimentos de Linha, ou seja, com as melhores unidades do Exército “permanente português” e do Exército aliado anglo-português, enquanto outros, confundiram com as guerrilhas e milícias populares. Porque tivemos de tudo em Portugal durante a Guerra Peninsular, percebese a confusão. De facto, o esforço português durante esta época terrível, mobilizou e envolveu completamente toda a nação, como uma verdadeira nação em armas que teve de mobilizar centenas de milhares de homens, desde as forças projectadas para o ultramar, as forças permanentes em Portugal, as forças que fizeram parte do exército aliado anglo-português, as forças incluídas no Exército de Napoleão, as Milícias e Ordenanças e, ainda, as guerrilhas e as milícias populares. “the crucial part they played - Milícias e Ordenanças - in the all-important draft system was largely ignored, possibly because there was nothing quite like it elsewhere”1. O esforço de mobilização nacional foi imenso durante este período, e embora o País tenha sido praticamente “desfeito” após a primeira invasão francesa, o levantamento das forças armadas foi um feito “espectacular”. Provavelmente 1

CHARTRAND, René e YOUNGHUSBAND, Bill, THE PORTUGUESE ARMY OF THE NAPOLEONIC WARS , Osprey Military, MEN-AT-ARMS, Oxford, Reino Unido, 2000,, Vol 3 pg 8 – Tradução: “O papel crucial que desempenharam – milícias e ordenanças – no desenho geral da campanha foi muito ignorado, provavelmente porque não havia até àquela data nada como estas forças na Europa”

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nenhuma outra nação na Europa o poderia ter feito nessa altura. Portugal soube fazê-lo porque, além de ser uma das mais antigas nações europeias, coesa, unida na língua, nos povos e no soberano, dispunha de uma estrutura de organização de segurança e defesa que praticamente remonta aos anos da sua fundação. Ainda antes do conceito francês de “levée en masse” ter sido anunciado ao mundo no século XVIII, há muitos séculos que Portugal implementara e desenvolvera o seu próprio conceito de Nação em Armas – um só povo, uma língua, um território, um Rei e acima de tudo, apenas um Exército na dependência do seu soberano. E nunca foi o exército dos “militares profissionais”. Sempre foi muito mais do que isso. Foi um exército de uma nação, organizado nacionalmente mas desenvolvido regionalmente. Foram forças, armadas e organizadas nas aldeias, vilas, cidades e distritos do nosso país, com os seus líderes locais, com a sua organização regional mas, e esta é a grande diferença, na dependência de um único comandante nacional: O Rei de Portugal. Claro, tudo isto na forma muito portuguesa de organização, em que tudo faltava, nada estava verdadeiramente pronto em vésperas de grandes conflitos, as formações escasseavam, faltava dinheiro, armas e uniformes... mas, em cima dos acontecimentos, produzia-se o “milagre” nacional e de todos os cantos do território levantava-se uma Nação em Armas. Mesmo que as armas fossem paus e pedras. E foi exactamente isso que ocorreu em 1808, mesmo armados com paus e pedras, com mau enquadramento e deficiente organização, levantaram-se todo o tipo de forças e estas deram uma lição ao mundo que só agora se começa a apreciar2.

DA ORIGEM DAS MILÍCIAS E ORDENANÇAS EM PORTUGAL ATÉ ÀS INVASÕES FRANCESAS:

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Recentes obras publicadas têm trazido uma nova leitura sobre o papel das forças portuguesas não só na defesa de Portugal como, e fundamentalmente, no esforço de libertação de Espanha até 1814. Na bibliografia podem ser encontradas as obras consultadas mas desde já chamamos a atenção aos novos trabalhos de CHARTRAND, René e YOUNGHUSBAND, Bill, THE PORTUGUESE ARMY OF THE NAPOLEONIC WARS (1, 2 e 3); VIMEIRO 1808; BUSSACO 1810; FUENTES DE OÑORO; o excelente trabalho de HENRIQUES, Mendo Castro, SALAMANCA 1812, Companheiros de Honra, o levantamento exaustivo VICENTE, António Pedro, O TEMPO DE NAPOLEÃO EM PORTUGAL – Estudos Históricos, INVASÃO NO NORTE de Portugal do General Carlos Azeredo e o recente livro IR PRÓ MANETA de Vasco Pulido Valente entre ouros referidos na bibliografia

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Como afirmámos na introdução é difícil fazer comparações com outros sistemas de organização militar europeus dada a originalidade do sistema português. Clarifiquemos alguns “equívocos”. As Milícias e Ordenanças não são um sistema de recrutamento, de reservistas ou de guarda nacional, estadual ou mesmo regional. Como veremos ao longo do trabalho, foram uma importantíssima fonte de recrutamento, mas não foi só essa a finalidade para que foram criadas. Por outro lado, as milícias e ordenanças também não cabem na classificação de guerrilhas ou milícias populares, de exércitos privados ou organizações militares independentes e muito menos ainda de estruturas de mercenários. Importa recuar à fundação de Portugal para entender o conceito. No nascimento de Portugal assistimos ao reforçar/continuar da anterior ligação fortíssima entre o Rei e as populações para efeitos de segurança e defesa. Mantivemos a tradição visigótica em que o Rei era simultaneamente o Rei absoluto e o comandante supremo dos exércitos onde se afirmava através de uma filiação das instituições militares à organização social vigente3. Portugal contou sempre, praticamente desde a fundação, com o denominado Exército do Rei. No entanto, a estrutura da também denominada “hoste régia” portuguesa dos finais da Idade Média não deve ser confundida com os conceitos de Exércitos permanentes e profissionais de hoje4. Só na segunda metade do século XV é que despontou esta realidade. A hoste do rei medieval era o resultado da congregação de uma série de parcelas com elevado grau de autonomia5 e era sempre um Exército provisório porque não se podiam afastar as pessoas dos campos e sustentá-las por muitas semanas. Esta estrutura base, com algumas diferenças desde a fundação do Reino no século XII até à segunda metade do século XV 6, criou uma identidade nacional fortemente ligada ao seu exército – o do Rei de Portugal, ao contrário do que 3

“Assim se verifica a filiação das instituições militares, dos primeiros tempos da nossa monarquia, nas instituições visigóticas, donde vieram também o serviço militar obrigatório, o recrutamento regional, e outros princípios de orgânica militar, que a tradição conservou” - Martins, General Ferreira, HISTÓRIA DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, Lisboa, Editorial Inquérito LDA, 1945, pág 32 e 33. “De facto, nos forais que concedeu, D. Sancho impunha aos concelhos a organização das milícias, compreendendo tropas de pé e a cavalo” – idem, pág 60. 4 Fonte: Monteiro, João Gouveia, A GUERRA EM PORTUGAL NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA, Lisboa, Editorial Notícias, 1998 5 A Guarda do Rei, a nobreza, as ordens militares, o recrutamento concelhio (aquantiados e besteiros), mercenários, homiziados, etc. 6 Quando foram criadas as Companhias da “Grande Ordenança” por Carlos VII de França, consideradas a primeira grande experiência europeia a este nível (in MONTEIRO, João Gouveia, ALJUBARROTA – A Batalha Real, Lisboa, Prefácio, BATALHAS DE PORTUGAL, 2002, pg 62)

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se passava na generalidade da Europa com pequenos exércitos privados ao serviço de grandes senhores (tipo feudo-vassálico). Tal estrutura criou formas e meios de mobilização organizados no todo nacional que várias vezes se provou de uma eficácia tremenda na defesa de Portugal. “No Exército medieval português, o serviço militar era, não só um dever (principalmente para os nobres e clero que compensava certos privilégios), mas também um direito a exercer por quem ascendia a um estatuto de liberdade relativamente aos nobres, colocando-se na dependência do Rei (o que significava o seu eventual apoio contra os nobres), como era o caso das tropas dos concelhos. Era um verdadeiro sistema serviço militar obrigatório, sobretudo colectivo”7. Algumas confusões têm sido registadas na interpretação destes passos no desenvolvimento da segurança e defesa em Portugal. Como podemos observar,

tipos

de

milícias

e

ordenanças

sempre

existiram,

mas

fundamentalmente como parcelas ou contribuintes para um todo, o exército nacional, ou do Rei. Podemos por isso afirmar que houve efectivamente um esforço para instituir um tipo de serviço militar obrigatório (SMO) mas também sabemos que este “SMO” nunca existiu como hoje o conhecemos e que, como todos os sistemas “vivos” que se desenvolveram, estes foram sempre “ricos” em falhas e deturpações (injustiças)8. Embora o nosso sistema tenha sido inspirado em outras práticas na Europa não foi uma cópia directa, por exemplo: as nossas ordenanças nada têm em comum com as denominadas companhias de ordenanças criadas por Carlos VII em França em 14459. Por outro lado, os termos ordenanças e milícias já existiam mas também não tinham ainda o significado que lhes veio a ser atribuído após a restauração em 1640. Nesse período, da Restauração, salientamos algumas medidas de D. João IV com importância para a nossa temática: 

Nomeação do governador das armas das províncias (divididas em comarcas), com vista a assegurar o recrutamento, instrução e disciplina das tropas;

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Vieira, Gen Belchior, RECRUTAMENTO E MOBILIZAÇÃO MILITARES (textos de apoio), Lisboa, Universidade Lusíada, 1999, pg TA 2-2 8 “Estas novas medidas, sensatas e profícuas (de D. Fernando), fizeram entrar no serviço militar mesmo a mais inferior das classes populares até então isenta de o prestar, instituindo-se assim o verdadeiro serviço militar obrigatório” - Gen Ferreira Martins, Ob cit, pág 72 - “toda a gente que podia comprar o seu resgate ficou livre. Os pobres, ainda que tivessem mulher e filhos, eram apanhados violentamente” – idem, pág. 126 9 “(…) os soldados (de Carlos VII) foram distribuídos pelas diferentes praças do reino, sob o pretexto de cobrir as fronteiras contra o inimigo, mas no fundo para conter e oprimir os súbditos” Gen F Martins, Ob Cit, pág. 109

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Organização do Exército em três escalões de forças: o Ordenanças – destinadas a guarnecer as praças-fortes, em companhias de 240 homens cada, a servir como tropa irregular nas operações de pequena guerra, local e circunscrita, e a funcionar fundamentalmente como depósito de recrutamento; o Auxiliares ou Milícias – destinadas a acudir às fronteiras em situações de guerra, organizadas em terços com cerca de 600 homens; o Exército de Linha ou Exército Regular – destinado à guerra de manobra, com a Infantaria organizada em terços de 2.000 homens e a cavalaria em companhias de 100 homens num total de 20.000 infantes e 4.000 cavaleiros10.



O serviço militar obrigatório abrangia todos os homens válidos entre os 15 aos 60 anos sendo oficiais nomeados pelo Rei para o Exército de linha; e os soldados provinham das listas de ordenanças entre os filhos segundos de todas as classes; os restantes ficavam distribuídos pelas milícias e os de maior idade nas companhias de ordenanças. Daqui nasce uma outra habitual asserção: “As companhias de ordenanças

constituíram, a partir de 1646, exclusivamente depósitos de recrutamento para os dois outros escalões do exército”11. Esta frase é repetida por outros historiadores desta ou outra forma12, no entanto, temos um entendimento diferente13, especialmente no que concerne ao uso das ordenanças durante a Guerra Peninsular. 10

“Um dos maiores exércitos europeus da altura”, in Chartrand, Ob Cit, pg 6; Gen Ferreira Martins, Ob cit, pág 145; “Gostariamos no entanto de fazer uma ressalva: entre o período da Restauração e 1808, as ordenanças não serão aquilo a que muitos designaram da terceira linha do Exército – na verdade não serão mais do que “distritos de recrutamentos” ( Borrego, Nuno Gonçalo P., AS ORDENANÇAS E AS MILÍCIAS EM PORTUGAL, VOL I, Lisboa, Guarda-Mor, 2006, pg 62) que serviam para alimentar o Exército de linha quando necessário – “em 1646, as Ordenanças deixaram de ter qualquer tipo de obrigação militar, quer em tempo de guerra quer em tempo de paz. Passaram a ser listas de homens, sem qualquer privilégio social ou funcional, que podiam ser recrutados para o Exército, por meio de levas” – idem, pág. 61 13 E somos também acompanhados por outros autores, por ex: “as ordenanças, com este ou outro nome(...) tinham uma longa tradição em Portugal (...) no entanto, porque a ameaça durante largos anos não era evidente, as preocupações com a sua eficiência foram reduzidas e estavam muito dependentes da dedicação dos respectivos comandantes e do apoio das autoridades regionais – Barrento, Gen António Q. Martins, A GUERRA FANTÁSTICA, Tribuna, 2005, pág. 46 – As milícias e ordenanças foram usadas em situações tácticas e não exclusivamente como depósitos de recrutamento, tal pode ser observada na guerra da sucessão de Espanha ou na Guerra Fantástica mas a leitura da sua eficácia como corpos militares obriga a uma análise caso a caso e região a região, como assim o será nas invasões francesas - o uso das milícias é reconhecido por muitos “Não me atrevo contudo a aconselhar a sua supressão (milícia) , a menos que lhe pudesse substituir coisa melhor, mas penso que seis ou oito mil homens de uma boa Infantaria, (...) prestaria em tempo de guerra serviço muito mais seguro” Conde de Lippe ao Conde de Oeiras, in Barrento, Ob cit, pág. 46 – e não podemos esquecer também o papel que, pontualmente, executaram algumas das unidades de ordenanças, referidas em tantos casos como de paisanos armados durante as ocorrências da Guerra Fantástica em Trás-os-Montes, Minho e Porto – “em 6 de Junho Carlos II desistiu da ideia de conquistar o Porto (...) 11 12

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Durante o século XVIII o exército português acompanhou a evolução dos restantes exércitos europeus. Na Guerra da Sucessão de Espanha, em 1707, D. João V publicou novas Ordenanças e passaram a existir regimentos no exército de primeira linha, o que não alterou substancialmente o papel das milícias e ordenanças. Continuava a existir uma forte componente regional de preparação e aprontamento: “o exercício militar realizado no Porto em 1757 para comemorar o aniversário do rei. Nele tomaram parte as tropas de guarnição da cidade e outras de várias praças do Norte (...)”.14 Em 1762 foi chamado a Portugal um general muito respeitado, o Conde de Lippe15, a quem foi atribuído o cargo de Marechal-General do Exército Português e que, comandando um Exército Luso-britânico16, teve grande sucesso durante a Guerra dos Sete Anos. Quando deixou Portugal tinha organizado “one of the best armies in Europe”17. A organização dos regimentos tinha sido refinada, modernizaram-se os regulamentos, melhorou-se o sistema de instrução e treino e o armamento evoluiu. O sistema de recrutamento, mais assente num sistema regional, permitiu a existência de 21 regimentos de infantaria, 12 de cavalaria e 4 de artilharia. O alistamento dos oficiais passou a fazer-se através do Real Colégio dos Nobres, perdendo grande parte da arbitrariedade que caracterizava o processo anterior e foi feito o restauro de diversas fortalezas, bem como a construção do forte da Graça em Elvas, completando o sistema defensivo das fronteiras. Embora inicialmente a isso tentado, note-se que não só o conde de Lippe não mudou o sistema de milícias e ordenanças como, admirado pela eficácia do mesmo, o recomendou para ser implementado no seu país 18. Em porque a acção dos paisanos armados foi aumentando, com insistentes ataques às colunas logísticas (...) Barrento, Ob cit, pág 56. 14 Gen F Martins, Ob cit, pág 179 – curioso acrescentar o comentário a este exercício citado na mesma obra do General F Martins: “Singular providência dos grandes oficiais a de ocupar as milícias em exercícios tão úteis como este, para que o trabalho as faça robustas e lhes desterre o ócio com que se fazem viciosas e prejudiciais ao sossego dos paisanos”. 15 A conselho da Grã Bretanha, o Marquês de Pombal recorreu à Prússia, para contratar um general que viesse comandar o Exército Português ; a escolha recaíu no Conde reinante Guilherme de Schaumburg-Lippe, discípulo dilecto de Frederico. “Quando o Conde Lippe chegou, o exército português tinha por marechal de campo um tal marquês de Alvito, que nunca soube dar um tiro de espingarda nem comandar um regimento...” in Marques, Fernando Pereira, Ob. Cit., pg 33 16 O efectivo à sua disposição era bastante heterogéneo: aos cerca de 7.000/8.000 britânicos de Lord Townshend (5 Reg Infantaria, 1 Reg Dragões e 8 Comp Dragões), somavam-se 7.000/ 8.000 portugueses, perfazendo cerca de 15.000 homens para o exército de 1ª linha, a que se somavam cerca de 20.000 homens, milícias e ordenanças que só podiam ser empregues na guarnição das praças. 17 Chartrand, Ob Cit, pg 7 – Tradução: “um dos melhores Exércitos Europeus” 18 Embora, inicialmente a sua reacção tenha sido diferente – “Em geral não é a minha opinião favorável às milícias, porque são anfíbios meio paisanos meio militares, que não prestam bom serviço nas guerras actuais” – observação ao M. De Pombal em 5Set1764, in Marques, Fernando Pereira, Ob Cit, pg. 35 – mas como sabemos, depois de regressado à sua terra natal assistimos: “o facto é que quando o Exército Prussiano foi recriado no ano da Guerra da

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1762 foi permitido aos oficiais de ordenanças passarem a usar uniforme militar e em 1777 foi estendido aos sargentos o mesmo direito19. O sucesso do uso das milícias, especialmente no norte de Portugal durante a Guerra Fantástica levou a que, em 1796, os 43 terços de auxiliares das comarcas existentes passassem a ser denominados regimentos de milícias, com uma organização idêntica aos regimentos de linha, criando assim uma verdadeira 2ª linha efectiva do Exército. A Revolução Francesa apanhou de novo um Exército negligenciado, comandado por um velho general, o duque de Lafões, e um sistema de recrutamento manchado por inúmeras injustiças nas levas de recrutas20. Mas mais uma vez a eficácia do sistema de ordenanças e milícias se provou nos combates durante a Guerra das Laranjas no Norte de Portugal tendo sido fundamentais para os êxitos aí obtidos21. Por alvará de 21 de Outubro de 1807 o Reino ficou dividido em 24 partes, iguais em povoação, que se chamaram brigadas de ordenanças destinadas a fornecer cada uma o recrutamento para um regimento de infantaria de linha e dois regimentos de milícias22. Pelo mesmo alvará ficaram definidos os limites dos sete governos militares, entre eles os do Minho, Trás-os-Montes e do Partido do Porto. Fica também assim definido que as ordenanças se organizavam em tempo de guerra em corpos de voluntários.

AS MILÍCIAS E ORDENANÇAS NO NORTE DURANTE AS PRIMEIRAS INVASÕES FRANCESAS

Ao longo dos próximos capítulos vamos recorrer a um número considerável de transcrições resultantes duma pesquisa feita no Arquivo Histórico Militar Libertação, em 1813, foi organizado com base numa visão romântica da organização militar portuguesa, em que a Landwehr representava as Milícias e a Landsturm as Ordenanças” in Borrego, Ob Cit, pg 74 19 Borrego, Ob cit, pág 63 20 O General Gomes Freire de Andrade, ilustre militar dessa época, condena o carácter “violento, penoso e odioso, da obrigação militar, que transforma cidadãos livres em escravos” (Ten-General Belchior Vieira, Ob Cit, pg TA 2-13). Este mesmo militar publica em 1806 um notável ensaio que reflete bem as preocupações sociais do autor: Ensaio sobre o método de organizar em Portugal o exército, relativo à população, agricultura e defesa do País” – dois pensamentos dominaram este ensaio no que se refere à organização do exército – obrigar todos ao serviço militar sem prejudicar a agricultura e defender o País sem recorrer ao auxílio de fora – in Gen F. Martins, Ob cit, pág 212. 21 “A campanha no Norte de Portugal, em 1801, tem sido pouco estudada, e a utilização destes Voluntários de Ordenanças também. Mas a sua organização deve ser considerada uma experiência positiva, pois a Comissão da reforma do Exército, criada logo a seguir à guerra em Dezembro de 1801, vai integrar a ideia da criação destes corpos de voluntários na proposta final de reorganização das Ordenanças de 1801, publicada em 1803 como Regulamento Provisional para as Ordenanças do Reino. Borrego, Ob. Cit, pág. 67 - Sobre a Guerra das Laranjas importante ler os livros de António Ventura e Manuel Amaral (ver bibliografia) que detalham bem a utilização destas forças. 22 Gen F. Martins, ob cit, pág 214

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sobre o tema das Milícias e Ordenanças, fundamentalmente no período de 1807 a 1810. Todas as transcrições dos documentos originais encontrados no Arquivo Histórico Militar estão referenciadas em itálico e identificadas no fim de cada extracto, no entanto alertamos que o português foi adaptado para a grafia mais moderna e que só se transcrevem as partes dos textos mais importantes para explanar uma ideia, referindo as omissões através de (…) e quando não foi possível identificar a palavra (pelo português antigo ou devido à legibilidade) identificando com um (?). Para a leitura ser mais fácil, no meio de alguns textos acrescentámos os nossos comentários que se distinguem do mesmo por se encontrarem em texto normal (não em itálico). Este capítulo deve ser lido em conjunto com os restantes desta obra colectiva, que explicam a evolução estratégica, operacional, política e táctica ocorrida no Norte e no Porto durante as invasões Francesas. Sabemos que os restantes autores tratam desse tema e por isso vamos apenas centrarmo-nos na descrição quase exclusiva do uso das ordenanças e milícias.

DA PRIMEIRA INVASÃO FRANCESA

No Norte de Portugal foi mais visível o uso das milícias e ordenanças nas guerras da Sucessão de Espanha, Fantástica e das Laranjas23. Será também no Norte de Portugal que o seu papel será mais relevante na defesa de Portugal durante as invasões francesas24. O levantamento dos futuros exércitos de forças portuguesas começou imediatamente com as primeiras sublevações e em especial no Norte de Portugal. Para entendermos o esforço colectivo de mobilização escolhemos o seguinte exemplo: em Junho de 1808, quando da proclamação da Restauração de Vila Real, o tenente-coronel Francisco Silveira Pinto da Fonseca mandou reorganizar a companhia de caçadores voluntários de Vila Real, dando-lhe o mesmo comandante de 1801 e feita a partir das ordenanças e que mais tarde irá dar origem ao 3º Batalhão de Caçadores. Tal como em Vila Real o mesmo 23

Generalizar é sempre perigoso e por isso deixamos a ressalva de que as Milícias participaram activamente na defesa das fronteiras das Beiras Baixa e Alta, assim como na guarnição da fortaleza de Almeida, não tendo contudo participado em combate; no Algarve, dois dos três regimentos de milícias estiveram presentes na defesa de Vila Real de Santo António aquando da tentativa de travessia do rio Guadiana pelo Exército espanhol da Andaluzia – Borrego, ob. Cit, pág 71. 24 “Assim, no Portugal profundo, particularmente a norte do Mondego, emergia a subversão popular, apoiada na nobreza rural e instigada pelo clero paroquial” in Abílio Lousada, GUERRA IRREGULAR …, pág. 7

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procedimento foi adoptado para todo o país – para vários regimentos e para variados distritos de todo o país foram feitas cartas similares à que de seguida em parte transcrevemos: - (Palácio do Governo em 8 de Dezembro de 1808): “Manda o Príncipe Regente Nosso Senhor a todos os Capitães Mores ou Comandantes de Ordenanças a quem pertencerem os Distritos abaixo declarados, que logo que esta lhes for apresentada pelo Oficial do Batalhão de Caçadores nº1 que vai encarregado do recrutamento para o dito Batalhão, procedam imediatamente a recrutar

todos

os moços

solteiros,

residentes

nos

mesmos

distritos

compreendidos na idade de vinte e um até trinta anos, inclusive, que forem necessários para preencher o sobredito Batalhão na forma do Plano de 14 de Outubro do presente ano. Ordena Sua Alteza Real a todos os Ministros, e oficiais de Justiça, Guerra ou Fazenda, a quem o conhecimento desta possa ou deva pertencer, prestem todo o auxílio e favor que lhes for requerido a bem desta importante diligência. Relação dos distritos que devem fornecer recrutas (...) Sande (...) Magueija, Rezende (...) da cidade e termo de Lamego (...) (Arquivo Histórico Militar DIV-1-14-194-05 ref de 1 a 7). Para podermos determinar o uso que foi feito de algumas das forças escolhemos o exemplo do combate ao General Francês Loison: membros das Ordenanças que foram preparados para combaterem a coluna francesa do General Loison “o maneta” que se dirigia de Almeida para o Porto em Junho de 1808 e que foram de facto derrotados em Mesão Frio25: - Diz Francisco da Veiga Cabral de Barbosa (...) Capitão Mor das Ordenanças desta vila Real (...) sobre quinze de Junho de 1808 (...) e em carta assinado em Vila Real, 7 de Agosto de 1808: o que causa à heróica resolução que todos os habitantes desta vila tomaram no dia dezasseis de Junho de sacudir o jugo Francês e aclamaram solenemente o Príncipe Regente Nosso Senhor na tarde desse dia em um concurso inumerável de pessoas de todos os estados e condições que juntando-se à porta do suplicante com este e com o Tenente Coronel Francisco da Silveira Pinto da Fonseca (...) o suplicante não 25

“Loison que, com 2 600 homens sai de Almeida, a 17 de Junho, e se dirige para o Entre o Douro e Minho, decidido a afogar em sangue a insurreição nortenha. À sua aproximação, as populações avisavam: “Vem aí o Jinot com as guilhotinas”. Mas Loison não foi capaz, sequer, de ultrapassar a Régua, quanto mais de chegar ao Porto, porque foi sistematicamente atacado pelas milícias do general Francisco da Silveira, que o emboscava com a força organizada em Vila Real; enquanto isso, em Bragança o general Manuel Sepúlveda arregimentou 2 000 agricultores e no Porto o general Bernardim Freire de Andrade congregou em torno de si 6 000 homens dispostos a pegar em armas. Destroçado e impotente, Loison retrocedeu para Almeida” Abílio Lousada, Ob Cit, pág 9.

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se contentou com executar no Distrito do seu comando a sobredita ordem das Armas da Província, mas a comunicou também aos seus colegas capitães Mores dos distritos vizinhos animando-os a seguir o seu exemplo

(...) em

chegando a esta vila na tarde do dia vinte e um de Junho a notícia de ter passado o Douro no lugar da Régua uma Divisão francesa comandada pelo General Loison fez logo o suplicante tocar a rebate e aprontar com a maior brevidade as Ordenanças do seu Comando para correrem ao encontro do inimigo, o que fizeram com um valor, e denodadamento(?) inacreditável, pois que marchando sem munições de guerra de que havia a mais falta assim mesmo obrigaram os franceses a tornar a passar o Douro no dia vinte e três de Junho depois de bem (?) com a perda de muitos soldados e oficiais superiores mortos e feridos; e passando as mesmas Ordenanças o Rio lhe foram picando a retaguarda até perto de Castro de Aire por mais de quatro léguas fazendo um estrago horrível na coluna com que os franceses cobriam a sua retirada. (Arquivo Histórico Militar -DIV-1-14-170-22): - “As milícias foram o centro da Sublevação Nacional do Verão de 1808”26 porque praticamente nada mais existia depois da acção de Junot, pois uma das suas tarefas principais foi o desmembrar da força armada em 1807. Nessa data, o Exército foi simplesmente desfeito por uma ordem a 22 de Dezembro “(…) 24 Regimentos formam, no papel, um total de apenas 15.000 soldados e que, provavelmente, não há hoje mais de 12.000 (…) a situação da cavalaria (…) 12 Regimentos que actualmente formam apenas 3000 cavalos em condições de servir (…) se lhes ter tirado 1000 ou 2000 para remontar a minha cavalaria francesa, não ficará nada que seja bom”. 27 e em Janeiro do ano seguinte foi também desfeita a reserva estratégica da nação – as milícias e ordenanças “ao desarmar as milícias, desarmei o País”28. O perigo que estas representavam para os ocupantes, está bem claro em vários dos documentos recolhidos no Arquivo Histórico Militar e que a seguir se referem:

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Borrego, Ob cit, pág. 72 Junot, Jean-Andoche, DIÁRIO DA I INVASÃO FRANCESA, Livros Horizonte, 2007 Lisboa, Carta a Napoleão datada de 6 de Dezembro de 1807, págs 111-113. No entanto é importante notar que a apreciação que Junto Faz destas poucas forças apuradas é positiva: “poderei fornecer-vos 4 belos Regimentos de Infantaria, 2 de Cavalaria e 1 de artilharia, que ao todo poderão perfazer 8000 homens de excelentes tropas (…)” carta de 2 de Dezembro a Napoleão, pág 109; 28 Junot, Jean-Andoche, DIÁRIO DA I INVASÃO FRANCESA, Livros Horizonte, 2007 Lisboa, Carta a Napoleão datada de 14 de Fevereiro de 1808, pág 142 27

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- Carta do Ministro de Negócios Estrangeiros e da Guerra, Conde de Sampaio para D. Miguel Pereira Forjaz Coutinho em 3 de Dezembro de 1807: Determino a todos os Coronéis de Milícias do Reino que não permitam (...) ajuntamentos ou movimentos de Milícias (...) e qualquer transgressão a esta ordem (...) deverão proceder com a maior severidade (...) “ – (Arquivo Histórico Militar – DIV -1-14-001-57). - Na correspondência entre o General Manuel Jorge Gomes de Sepulveda para o Conde de Sampaio (1807-1808): O General em Chefe do Exército Espanhol acantonado na Cidade do Porto D. Francisco de Tarranco me escreveu em (...) para que eu faça desarmar as Milícias (...) e as Ordenanças desta Província (...) disse-lhes que cumprisse a ordem do Marquês de Alorna para que os Armamentos das Milícias da Província fossem recolhidos em Chaves (...) e que satisfizesse as mais condições exigidas pelo Sr. Marquês, visto este ter legítima autoridade (...). Ordem emitida aos Coronéis dos Regimentos pelo Marquês de Alorna em 15 de Janeiro de 1808: “Ordenará aos Coronéis ou Chefes dos Regimentos de Milícias dessa Província que façam recolher imediatamente os armamentos que têm em seu poder e que deverão ser enviados ao Depósito de Chaves até ao dia 20 de Fevereiro (de 1808) (...) – (Arquivo Histórico Militar – DIV-1-14-003-47). Os soldados com mais de oito anos de serviço foram mandados para casa deixando as armas com os franceses (embora pudessem manter os uniformes) e as montadas da cavalaria foram para os dragões franceses como remonta. “Portugal só está armado pelas milícias (…) ordenei a 10 de Fevereiro o licenciamento das Milícias no resto do reino e a deposição das armas nos arsenais. O desarmamento foi efectuado e as armas ficaram provisoriamente depositadas em poder dos diversos capitães ou Coronéis de milícia (…)” Carta de Junot a Napoleão Bonaparte datada de 17 de Março de 1808. Dos soldados com menos tempo de serviço foram seleccionados os melhores e as mais bem preparadas forças do Exército Português e, comandados por ilustres militares portugueses (marquês de Alorna, Gomes Freire de Andrade, Pamplona, etc) num total de 9.000 homens, constituiu-se a Legião Portuguesa que foi enviada para França incluindo os poucos cavalos que não tinham sido retirados directamente pelos franceses (organizada em 16 de Janeiro de 1808, constava de 5 regimentos de infantaria, 4 de cavalaria e 1 11

batalhão de infantaria ligeira). Apenas tinha ficado a Guarda Real de Polícia 29 por se encontrar fortemente controlada por um emigrado francês.

Além de Vila Real e Lamego, também foi fundamental o papel das milícias e ordenanças em Trás-os-Montes, no bloqueio de Almeida30, na ocupação da Figueira da Foz, na defesa de Coimbra, na defesa de Évora, no ataque a Abrantes, na libertação do Algarve e do Baixo Alentejo, e ainda numa parte importante do corpo de observação da Beira. A partir de Junho de 1808, oficiais e soldados começaram a apresentar-se nas suas antigas unidades, muitos usando os seus velhos uniformes e trazendo como armas tudo o que podiam encontrar. As forças31, então fraca e pobremente organizadas, não representavam mais do que pequenos grupos mal armados e que não tinham a mínima hipótese de se oporem contra o bem treinado Exército Francês32. Foi a altura de solicitar o velho aliado britânico. Primeiro chegou o dinheiro, armas e abastecimentos e só depois, no Outono, a primeira força de primeira linha apareceu em Portugal, a Leal Legião Lusitana, levantada a partir de emigrados portugueses exilados na GrãBretanha e comandados pelo carismático Sir Robert Wilson33. As forças britânicas, que tinham desembarcado em Portugal em Agosto de 1808 para socorrer Portugal e ajudar a expulsar os Franceses, não seriam só por si suficientes. Mesmo estas precisavam também de algum apoio logístico, “Con excepción de dos escuadrones del Real Cuerpo Irlandés de Tren, que había traído consigo, no contaba con otros medios de transporte a su 29

Criada em 1801, este corpo era constituído por 8 companhias de infantaria, 4 de cavalaria e respectivo estadomaior, totalizando 638 homens. O seu comandante tinha dupla dependência: para os assuntos militares, dependia do general das armas, para execução de ordens e requisições dependia do intendente geral da polícia. O seu primeiro comandante foi um emigrado francês, o Conde de Novion, que entrara para o Exército português por diligência do Marquês de Fronteira. Pelas suas características militares, dependência, recrutamento, organização e enquadramento, a Guarda Real de Polícia pode ser considerada a verdadeira antecessora das Guardas Municipais (Lisboa e Porto) e da Guarda Nacional Republicana, que mais tarde lhe sucederiam. Em 1802 a Guarda Real de Polícia seria vinculada ao Exército, como tropa de linha. 30 “Thiébault, o chefe do estado-maior do exército francês, mandou a Loison vinte e cinco cópias da ordem para regressar a Lisboa, por vinte e cinco portadores diferentes (entre os quais vários portugueses), e só uma lhe chegou às mãos” Vasco Pulido Valente, Ob cit, pág 70 31 3 corpos de tropas sob o comando dos generais Bernardim Freire de Andrade (Estremadura) e Bacelar (Beira e Trás-os-Montes) e o terceiro em reserva na região de COIMBRA. 32 “Como conceber que, uma vez ele destruído e dissolvido o exército, a oposição nascesse das ruínas? E como conceber uma oposição sem o Estado e o exército que não se destinasse a reconstituí-los? Mesmo os rebeldes espanhóis, quando a luta se iniciou no Dos de Mayo, tinham 100 000 homens de forças regulares (…) Bernardim Freire de Andrade, reunidas em Coimbra, 7500 regulares, 10 000 milícias e 15 000 ordenanças” In VALENTE, Vasco Pulido, IR PRÓ MANETA, págs 61 e 76 33 Ver Chartrand & Coelho, A INFANTARIA LIGEIRA NA GUERRA PENINSULAR…, págs 13 e seguintes.

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disposición. El obispo de Oporto le había enviado algunos caballos, con los cuales pudo elevar sus fuerzas montadas de 180 a 240 jinetes, y dotar a su artillería de suficiente ganado de arrastre….”34 Se Portugal tinha de ser defendido e isso era obviamente também do interesse dos britânicos, então seria necessário algo mais do que os exércitos expedicionários britânicos ou as ajudas em dinheiro, armas e equipamentos. O Exército Português tinha de renascer e preparar-se para, uma vez mais, se bater lado a lado com os ingleses em mais uma campanha na Europa. D. Miguel Pereira Forjaz (Ministro da Guerra, Estrangeiros e Marinha), em nome da regência portuguesa35, vai tomar então as medidas necessárias para a defesa de Portugal levando a cabo as reformas do Exército que tardavam em ser aplicadas desde o já falado plano de 1803. Para recompletar as unidades ordenou-se que se reunissem nos seus antigos quartéis todos os oficiais e praças desmobilizados pelos franceses, concedeu-se perdão aos desertores e chamaram-se todos os soldados que tinham tido baixa desde 1801 até 30 de Novembro de 1807. Será essencialmente a partir das estruturas de milícias e ordenanças que se vai levantar não só um novo exército de linha (que se irá integrar quase na sua totalidade no futuro exército anglo-português) mas também as novas forças territoriais e de guarnição36: - Ofícios do General Bernardim Freire de Andrade dirigidos ao Chefe da Brigada de Ordenanças encarregado da defesa dos desfiladeiros em

34

LÓPEZ, Cor Juan Priego, GUERRA DE LA INDEPENDENCIA, volumen 2, Campaña de 1810, MADRID,

Libreria

Editorial San Martin, 1981, pg 342 35

No dia 14 de Março de 2008, durante a conferência proferida pelo Professor Doutor Donald Howard (da Universidade da Florida e um dos mais conceituados autores mundiais sobre as guerras napoleónicas) organizada na Assembleia da Republica em Lisboa este afirmou : “Não entendo como Portugal ainda não levantou uma estátua ao português mais importante das Guerras Peninsulares que foi Miguel Pereira Forjaz! A acção dele foi fundamental e a mais importante durante toda a campanha!” – registei esta afirmação e não podia estar mais de acordo. Forjaz foi um grande militar e um grande político e foi ele fundamentalmente, e não apenas Beresford como muita historiografia parece querer indicar, que reorganizou a defesa armada de Portugal; 36 O esforço de levantamento de forças é visível a partir da 3ª invasão, em 1810. É o próprio inimigo que nos descreve esta extraordinária força armada levantada em tão pouco tempo: “as tropas anglo-hanoverianas elevavam-se a (...) 30.000 em Portugal. Este belo corpo de batalha era triplicado pelo exército regular e pela milícia de Portugal. Com efeito, o primeiro elevava-se a 50.000 homens e a segunda a 25.000. Na sua maioria, os regimentos de linha, de formação recente, continham, é certo, recrutas na proporção de quatro quintos; mas o soldado português, inteligente, sóbrio e infatigável caminheiro, comandado por oficiais ingleses e já afeito à disciplina britânica, podia estar a par com os anglo-hanoverianos e, até, suplantá-los, pois em certas ocasiões é mais dado ao entusiasmo e ao sentimento da honra. Estavam a soldo da Inglaterra 30.000 portugueses, armados, apetrechados, vestidos e alimentados em condições de luxo; sem tão satisfatória instrução e sem tão rigorosa disciplina, os outros 20.000 não estavam, porém, menos capazes de entrar na linha.(...) independentemente destes 100.000 homens disponíveis, lord Wellington podia, enfim, contar com 25.000 a 30.000 ordenanças, ou seja, homens recrutados em massa nas regiões vizinhas (...) a formar na retaguarda do exército francês bandos mais numerosos e ainda mais sedentos de vingança que os guerrilheiros espanhóis. General Koch, MEMÓRIAS DE MASSENA, Campanha de 1810 e 1811 em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 2007, pág. 95.

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Cabeceiras de Basto na entrada de Soult (1808-1809) José Monteiro Guedes Mourão (Quartel General do Porto, 7 de Dezembro de 1808): O General “faz saber que marcha para a Província do Minho por ordens do Bispo do Porto e requer todo o apoio das Milícias e Ordenanças, leva como seu ajudante o Cadete José Joaquim Pinto Leite de Magalhães do Regimento de Cavalaria 8”. Remete as ordens a José Monteiro Guedes para organizar as Ordenanças dos concelhos situados ao longo do Rio Tâmega numa só Brigada debaixo do seu comando.

Justifica

esta

nomeação

por

confiar

nos

seus

elevados

conhecimentos na “arte militar” (assinado em 9 de Dezembro de 1808). “Ordena então Sua Alteza Real que se armem as Ordenanças, escolhendo entre elas, os Homens que podem prover-se de espingardas, piques e servirem a cavalo, que se proceda a rigorosas inspecções sobre estes armamentos” – a missão é impedir a passagem junto ao Tâmega, na área sempre da margem direita do Rio Douro, dos Exércitos agrupados em Trás os Montes “impedir o passo” na Ponte de Chaves, ao longo do Tâmega pela Serra do Marão e pelos Padrões da Teixeira. Para tal as Ordenanças agrupadas nesta espécie de Brigada “deverão edificar postos defensivos que entender por bem ordenar”. Nestas instruções fica escrito que separadamente devem ser constituídos pequenos corpos de Ordenanças pela reunião de pequenos concelhos limítrofes ficando “à consideração de Vossa Mercê a nomeação de indivíduos hábeis que possam dirigir as ordenanças assim reunidas” – para tal os chefes dos concelhos referidos “guardarão subordinação” pelo que “no importante objecto da defesa não devem altercar-se jurisdições” nem “suscitaram-se etiquetas qualquer que seja a graduação dos comandantes que V. Mercê nomear, pois que sempre nelas se verificará a proeminência do conhecimento e da capacidade”. Um alerta importante, como alguns destes concelhos estão na Área do Governo de Armas do Minho, tem que ser “prevenido o General daquela para que haja de autorizar a V. Mercê. Não é preciso lembrar a V. Mercê que (…) o primeiro objecto desta comissão é fazer uma revista às Ordenanças, não só para verificar se os Capitães Mores têm executado as ordens relativas ao armamento que lhes foi ordenado mas para conforme elas ter conhecimento das forças de cada distrito diversamente armadas a fim de combinar o melhor serviço, que poderá fazer segundo o local. Além de combinar um sistema de defesa regulado pelas instruções juntas e pelo 14

conhecimento do País, que deve ter antecipadamente, V. Mercê poderá em cada um dos concelhos escolher aqueles homens que pela sua robustez e valor seja capazes de construir um ou mais corpos de reserva que debaixo do seu comando, ou de sujeitos de inteligência conhecida hajam de fazer um esforço maior nos sítios e ocasiões de maior perigo. Do arsenal desta cidade mandarei remeter a V. Mercê a pólvora e cartuchame que me indicar por um orçamento feito em vista dos fusileiros, que houver, cujo número determinará na inspecção a que vai proceder podendo entretanto escolher depósitos mais próximos para a arrecadação destas munições, de modo que fiquem centrais, e ao alcance das Ordenanças segundo os pontos mais conhecidos de defesa”.– (Arquivo Histórico Militar – DIV -1-14-006-14) Por vezes, através da leitura de vários livros de história, somos levados a concluir precipitadamente que foram os ingleses que nos livraram da segunda invasão francesa comandada por Soult. Na realidade, entre a saída dos franceses no final da invasão de Junot até à chegada de Wellington em 22 de Abril de 1809 a defesa, a preparação de defesa e a retomada da ofensiva fezse quase exclusivamente com forças (militares e população em geral) portuguesa. Embora o processo de (re)criação dum exército nacional estivesse ainda no seu início, foi a estrutura de ordenanças e milícias que possibilitou uma primeira “organização” de defesa, embora com todas as faltas em material, estruturas, disciplina, etc. Sobre este assunto citamos alguns exemplos de documentos expedidos pelo General Bernardim Freire de Andrade com instruções para a defesa do Norte de Portugal (Arquivo Histórico Militar – DIV -1-14-006-14): - “Senhor José de Monteiro Guedes, Acabámos de receber notícias que nos põem em mais cuidado sobre os preparos dos Franceses, sendo de recear que poderão penetrar neste Reino ou segundo a direcção de Trás os Montes ou da Beira: neste caso apresso-me em fazer este aviso para o pôr de acordo, e tomar aquelas medidas, que deva esperar dos seus conhecimentos, das suas actividades e da sua honra” (Porto, 6 de Fevereiro de 1809). - “Os progressos do inimigo na direcção de Chaves e Montalegre fazem recear muito que tente brevemente uma entrada nesta Província pelos Desfiladeiros de Ruivães a Salamonde, ou pela que conduz à Ponte de Chaves ou que desça sobre Cabeceiras de Basto ou pelas avenidas que oferece a 15

Serra da Cabreira de Salto para Refoios (...) deve estar prevenido (...) se dirija sobre estes pontos com peças de campanha e atiradores para se continuarem com o Regimento de Basto que faço já marchar para essa fronteira e que V. Mercê distribuirá como entender nas duas últimas paragens de Chaves e Refoios, que mais imediatamente lhe recomendo, regulando-se depois pelos movimentos do inimigo para correr sobre Salomonde, quando tenha notícias, que desce ali de Montalegre ou sobre Amarante, logo que forçando ou rodeando a posição de Vila Pouca de Aguiar, se adiante para Vila Real, e pretenda dirigir-se ao Porto pelos Padrões de Teixeira ou pelo Marão. Eu espero que o Brigadeiro Silveira, que comanda as tropas de Trás os Montes cubra os mencionados desfiladeiros e que em último recurso se retire por alguém deles se unirem às forças dessa Província, mas como se ache combinado com o Marquês de La Romana que tendo feito um movimento para Fezes, (..) não se poderá contar com o seu auxílio nessa Província ou o Brigadeiro (..) não continuar a defesa pelo que

(...)

deverá estar atento

àqueles movimentos pondo-se em comunicação directa com o dito Silveira” (Porto, 28 de Fevereiro de 1809). - “Participando-me o Brigadeiro Silveira que o Marechal Soult havia intimado por um parlamentário o Marquês de La Romana, que se rendeu para poupar a efusão de sangue e havendo sido negativa a resposta, tratam Silveira e o Marquês de La Romana de tomar posições em Monte Reis e em Vilar de Perdizes para atacar os franceses e como é necessário prevenir (...) deverá pôr-se imediatamente em cautelas (...) reunir nas imediações de Chaves algumas Ordenanças escolhidas sem perder de vista a vereda que liga a Refoios no termo de Montalegre, donde há um caminho que conduz a Chaves” (Braga, 5 de Março de 1809). - “Acabo de receber do Brigadeiro Silveira uma carta de seis do corrente na qual me participa que naquele dia às oito horas da manhã, tinham entrado os franceses em Monte Rei sem resistência (...) Romana tinha retirado. (...) Mando em consequência, marchar hoje mesmo duzentos homens das Milícias de Basto para Refoios e serão seguidos pelo resto do regimento para mesmo destino. E ordeno ao Coronel Gandarella que se combine com V. Srª encarregado, como está, da defesa, e de dispor, como entender do Regimento, como do Destacamento de Artilharia que guarnece a ponte de Chaves e das 16

ordenanças do seu comando (...). Mais lhe advirto (...) que devendo as Brigadas de Ordenanças auxiliar-se reciprocamente, é só do Quartel General do Exército que V. Senª recebe ordens e não do Governo de Armas do Porto (...)”. (Braga, 8 de Março de 1809)

Não é nossa intenção descrever as acções no norte de Portugal durante as primeiras invasões francesas, pois como já afirmámos, outros autores o farão neste livro em capítulos dedicados exclusivamente a esse tema. Por isso vamos continuar a centrar o nosso esforço nas acções das milícias e ordenanças e da sua importância para o sucesso final. “O pequeno exército de Junot acabou por não suportar o atrito, e já antes de Wellington pôr o pé em terra a revolta libertara nove décimos do país” Vasco Pulido Valente, Ir Pró Maneta, pág 7.

DA SEGUNDA INVASÃO FRANCESA

Como vimos no capítulo anterior a preparação da defesa do Norte estava a ser feita com forte uso dos dispositivos de ordenanças e milícias. O facto de nos referirmos mais ao dispositivo e ao sistema em vez de descrevermos acções de unidades de ordenanças e milícias tem uma razão fundamental – As ordenanças e as milícias foram a base de recrutamento e o berço de muitas unidades do Exército de Linha, e no caso das ordenanças o foram também para os regimentos de milícias; como tal, o dispositivo e organização das milícias e ordenanças possibilitou não só formar pequenas unidades para combates tipo guerrilha mas, fundamentalmente, permitiu o levantamento (em tempo recorde diríamos nós) de um novo exército de manobra e de unidades territoriais37. O Professor António Pedro Vicente fez um levantamento importantíssimo no Arquivo Histórico Militar – capítulo “A Reacção Popular contra os comandos 37

Em 1810, já existiam mais de 150.000 homens nas Forças Armadas, só contabilizando os do Exército de 1ªlinha e os regimentos de milícia. Efectivos portugueses do Ex 1ª Linha: 1808 – 42619; 1809 – 47958; 1810 – 51841; 1811 – 54558; 1812 – 56808; 1813 - 51431. in HENRIQUES, Ob Cit, pg 21 As forças portuguesas presentes no Exército Anglo-Português durante a 3ª Invasão Francesa eram: a 3.ª Divisão Inglesa anexa à Divisão HAMILTON com os Regimentos de Infantaria. n.º 2, 4, 10 e 14 (2 950 H); Da 4.ª Divisão Inglesa faziam parte os Regimentos de Infantaria. n.º 11 e 23 (2 800 H); da 5ª Divisão Inglesa faziam parte os Regimentos de Infantaria. n.º 3, 8 e 15, milícias de Tomar e 3 batalhões da L. L. L (5 430 H); da Divisão CRAUFURD faziam parte os Batalhões de Caçadores 1 e 2 (2 000 H); 3 Brigadas Independentes de Infantaria com os Batalhões de Caçadores n.º 2, 4, 6, e Regimentos de Infantaria n.º 1 e 16 (8 400 H); Na Divisão de Cavalaria entravam os Regimentos de Infantaria n.º 1, 4, 7 e 10 (1 500 H)

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militares organizados durante a invasão de Soult” – incluídos numa das suas obras de Referência – “O Tempo de Napoleão em Portugal” – por isso tentámos complementar a informação já disponível com esta que entretanto resolvemos destacar. Da correspondência entre o General Bernardim Freire de Andrade e Miguel Pereira Forjaz seleccionámos os seguintes passos que nos revelam o uso das milícias e ordenanças no aprontamento da defesa e também alguns dos principais problemas para efectivar o planeamento (Arquivo Histórico Militar -DIV-1-14-072-01): - “Demos por tudo graças a Deus meu rico Miguel mas faz hoje um ano estávamos nós ambos na Quinta de Santo António, não estávamos contentes mas

não

estávamos

carregados

com

tão

enormes

trabalhos

e

responsabilidades, confesso que não sei como hei-de dar conta de tanta coisa (...) Também no correio passado pedia o concurso do Sr. Bispo para o Governo, e insisto porque não tenho ciúmes e tenho necessidade de me apoiar com ele, sei que ele está em correspondência com Mr. Canning e, suponho, que com mais algumas personagens em Inglaterra (...) Remeto inclusa uma carta de Sepúlveda, creio que as coisas em Espanha não vão como se podia de desejar pela falta de combinação e harmonia na aplicação dos meios, dizem-me que a junta central anda vagando, e chegam a supor que ela se dissolverá, mas isso não me parece possível, entretanto são os ingleses que o dizem. (...) Se com efeito o Quartel General está em Leão depressa serão os Ingleses atacados, porque tendo se avançado e depois retrocedido, parece que foram convidar os franceses, olha que coisa bem irregular”. (Bernardim Freire de Andrade, Porto, 1 de Janeiro de 1809) - “(...) Não há nestes termos mais remédio do que recorrer ao impulso e força popular para o que é essencialmente preciso o arbítrio que propus de fazer entrar no governo activamente o Exmº Bispo desta cidade” (idem, 3 de Janeiro de 1809) - “(...) Creio que os ingleses desconfiam dos espanhóis , ouço que fizeram vir para Vigo um número de transportes, e desconfio de que o General Baird, teve razão para desconfiar. (...) Bacelar mandou falar em Custódio Gomes, mas este oficial tem grandes conhecimentos da Província do Minho, e deste partido, e eu estou tão só como tu podes imaginar, e ele também me era preciso. Luís Gomes aqui se recolheu hoje da comissão a que o mandei, e 18

talvez tem maior conhecimento de Trás-os-Montes, e eu queria com Custódio Gomes fazer algum reconhecimento, sendo seu o excelente plano de emprego, e distribuição das ordenanças.”. (idem, Porto, 10 de Janeiro de 1809) - “(...) Tendo chegado ao meu conhecimento o Plano de Organização das Ordenanças para a defesa de Lisboa, parece-me tão bem e acertado que julguei dever adaptá-lo com as modificações necessárias para esta cidade, dividindo-a em 12 bairros, além de 8 que formam os subúrbios, constituindo outros tantos Batalhões e cinco Brigadas”. (idem, 12 de Janeiro de 1809) - “(...) no estado que hoje se acha a guarnição desta cidade me parece oportuno lançar mão do resto da Legião Lusitana, que aqui se acha, por não ter podido acompanhar o seu comandante Roberto Wilson38, que passou à Espanha, e que se tem muito aumentado depois para fazer a guarnição e Serviço desta Cidade, requerendo-se que o Major Barão de Eben, oficial de merecimento reconhecido, tome o comando deste corpo, que necessita muito de quem lhe introduza a disciplina conveniente. Consta-me que este corpo chega já a 800, e como é pago pela tesouraria das tropas portuguesas e composto de portugueses, parece-me que não tem inconveniente de ser empregado no serviço deste País enquanto não for chamado a reunir-se com a porção que já tem marchado (...)” (idem, 12 de Janeiro de 1809) - “(...) a fazer a guerra que não é no Porto, mas sim onde estão os Franceses, e nem o nome, o Corpo de Regimento, nem a diferença de farda, é que vos defendem, são sim os homens juntos armados, e disciplinados, quem tem de vos defender(...)” (Proclamação aos portugueses (sem data) - “(...) Participo a V. Exª que finalmente a instância e proximidade do perigo desenvolveu nas províncias o desejo de se defenderem; de toda a parte se pedem munições; a requisição que hoje me faz o General do Minho, junta com a que recebo do General Bacelar, me põem na impossibilidade de os satisfazer com a brevidade que quererão (...) consta que os ingleses se queixam dos espanhóis e que entre estes se tem estabelecido a deserção e o desalento a ponto tal, que tem feito esmorecer os ingleses, os quais se pretende se vão todos reunir na Corunha (...)” (idem, 18 de Janeiro de 1809)

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Ver a acção deste corpo em Chartrand & Coelho, Ob cit, págs 13 e seguintes

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- “(...) chegando um oficial inglês que diz que o povo de Ledesma não está de ânimo de se defender: O Brigadeiro fica hoje aqui e amanhã (..) conta fazer a defesa daquela margem de lá até Cidade Rodrigo onde estão 4 mil paisanos e onde esperam que o dito Brigadeiro comande a defesa no caso do Inimigo se dirigir para estes sítios, o que duvido por ora(...)” (14 de Janeiro de 1809) - (...) “Finalmente, que toda a pessoa que se não armar, recusando concorrer com a Nação em Geral para a defesa da Pátria, seja presa e fique inculpa na pena de morte – citação do decreto da junta” (...) Faltam pois as armas para repelir estas forças; e por consequência fica indefesa a Pátria (...) As armas do paisanismo são incapazes para este efeito; e se V. Exª não socorre, é certa a nossa indefesa. (...) Na crise actual, que morte mais honrosa! Que glória dos inimigos...! Sem chefe; sem gente, sem armas; e sem provimento? Aqui chegaram alguns soldados milicianos, sem armas. (...) Gritam os povos, gemem os desconfortados, Temo Traição. V.A.R. se digne a atender-me e aos povos, oficiais do governo (..) com o auxílio de V.A.R. possamos defender a Religião, o Rei, A Pátria” (Valença, 15 de Janeiro de 1809 – Juiz de fora auditor – João Ferreira de Albuquerque Cavalheiro , ref 124-125) - (...) “O Povo desta cidade, e destas províncias, desde que conheçam as suas forças desenvolvendo-se por ocasião da revolução, ficou em estado de produzi-lo sem regra, e sem medida, todas as vezes que os seus caprichos, e as suas paixões, ou os caprichos e paixões dos que os seduzem, os arrojarem nesse princípio: A santidade e a justiça da causa (...) Daqui vem que todas as medidas, os projectos, do governo, são censuradas sem comedimento, e sem freio (...) falta total de um Exército para a defesa destas províncias e de um General à testa deste Exército (...) julgaria conveniente formar um corpo de Exército juntando os limitados restos dos Regimentos deste Partido, e da Província do Minho, e nem eu me recusaria a esta arriscadíssima comissão com tão poucos, e tão limitados meios, não obstante as considerações a este respeito (...) esta medida teria a duplicada vantagem de animar os povos à resistência, e de podermos manter a ordem interior pela reunião de uma força capaz de conter os malévolos, e de proteger a autoridade de justiça (...). Ao mesmo tempo se ganharia desta cortes a confiança do povo (...) de que Lisboa trata unicamente da sua própria segurança com sacrifício das províncias do 20

norte assim abandonadas. (...) para repelir os franceses não basta boa gente, e muito boa vontade, se não nos derem os meios, tudo o mais sobeja 39. (...)” (Porto, 20 de Janeiro de 1809, ref 144-150) - (...) e tenho também já em marcha para alguns postos de fronteira as Milícias, ainda que a maior parte sem armas. Para as ordenanças de Melgaço já mandei 20 mil cartuchos que o comandante me diz estar distribuindo aos distritos, mas é verdade que aqui pouca pólvora há, além de 50 barris, que a junta do Arsenal do Depósito dessa Cidade me remeteu; querendo V.Exª mandar-me mais, como se precisa, será necessário que venha conduzido por carros, ou bestas desde aí; porque os daqui estão agora sempre ocupados. (...) (Gonçalo Perestrelo ao Gen Bernardim Freire de Andrade, Quartel General em Viana, 18 de Janeiro de 1809, ref 154) - (...) “O General Blake ficou muito surpreendido com a carta do Sr. Bispo que lhe pedia não entrasse nesta cidade, mas ficou muito satisfeito com, uma segunda carta, e em consequência resolveu-se a tomar a direcção de Lamego. Remeto a V. Exª a cópia da carta , que o Marquês de la Romana lhe escreveu, à qual o dgmº Bispo respondeu, negando-lhe a tropa, o que com efeito não podia ter lugar nas nossas circunstâncias porque ninguém pode dar o que não tem (...) verá V. Exª claramente o estado a ficamos reduzidos, e igualmente a ingleses e espanhóis”. (28 de Janeiro de 1809, ref. 220-223)

Do estudo da segunda invasão a Portugal sabemos da dificuldade de coordenação entre os principais e poucos líderes, militares e civis, e entre espanhóis, portugueses e ingleses mas também nos apercebemos como estas forças estavam equipadas, ou seja, como não estavam nem equipadas nem municiadas. Não se podia pedir muito mais a estas populações e estas também sentiam que tinham poucas razões em acreditar que algum verdadeiro apoio lhes iria chegar dos vários responsáveis, a desconfiança infelizmente aumentava40.

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“ desde a sua instalação que o esforço essencial das juntas consistiu em recompor as forças armadas portuguesas (de linha, milícias ou pequenos grupos de irregulares). Vasco Pulido Valente, Ir Pró Maneta, pág. 40 40 (...) quanto ao Marquês de la Romana, que eu desconfio há muito tempo, devo dizer a V. Exª que eu me conformo com os sentimentos dos Povos por quais eu considero prodigiosamente ilustrados. Eles desconfiam que esta entrada dos espanhóis (do Gen Blake) seja alguma traição combinada com os franceses, e os meus sentimentos são iguais. Porque os Generais Blake, Valadares e Romana não reúnem as suas forças? Porque se não fortificam em Tuy? Porque não espoem as suas vidas na defesa da pátria, esses homens são uns traidores, que depois de atraiçoarem o

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Quando a invasão se torna iminente a acção é mais difícil, os apelos constantes e as populações naturalmente começavam a desesperar. Deixemos mais um excerto de documentos “falar por si” na continuação da correspondência entre Bernardim Freire de Andrade e Miguel Pereira Forjaz (Arquivo Histórico Militar -DIV-1-14-072-02): - (...) “Pelo que acabo de referir conhecerá V. Exª que os Franceses têm o passo livre na Galiza, e que é muito crítica a situação em que me acho quando ainda não estão reunidas as poucas e mal armadas forças com que devo defender esta província, contudo os povos anunciam o mais decisivo entusiasmo, e eu não cesso de promover tudo quanto possa contribuir para a sua obstinada resistência, ainda que o rigor da estação e os maus caminhos dificultam o trânsito das munições que de toda a parte se pedem, e em chegando os Batalhões que V.Exª mandou retirar da Província da Beira, bem como de um Batalhão de Infantaria composto de soldados escolhidos dos Regimentos nº 6 e 18 e outro de Milícias que mandei vir do Porto com a segunda divisão da Legião Lusitana, tomarei posições na linha desta cidade de Valença com que possa socorrer os pontos já estabelecidos nos desfiladeiros da raia seca ou acudir às margens do Minho; para dar mais continuidade à linha de defesa escrevi ao Marechal Botelho que fizesse destacar um Batalhão de Infantaria e outro de Milícias para Montalegre a fim de assegurar as comunicações entre nós”. (Bernardim para Forjaz, Braga, 3 de Fevereiro de 1809, ref 7 a 9) - (...) “também devo lembrar a V. Exª que o Bispo de Tuy fugiu no dia 25 para Portugal, e sei se acha em Viana, este Bispo, tão bem está conhecido por traidor, V. Exª se lembre de acautelar um traidor por estes povos pode fazer de prejuízo” (carta de José Pereira para Bernardim, Caminha, 31 de Janeiro de 1809, ref 21) - (...) “Em toda a parte mais interessante desta Província, aqui mesmo em Viana, estão ainda por organizar as ordenanças não se tendo procedido ao provimento dos postos vagos (...) subdividindo as brigadas de Ordenanças do modo mais conveniente assim à defesa, como a dirigir e a guiar os povos. De toda a parte se queixam da falta de munições e de meios de defesa mas é seu reino querem atraiçoar o nosso (...) (do Bispo do Porto para Bernardim Freire de Andrade (sem data, Arquivo Histórico Militar -DIV-1-14-072-01ref 231-232)

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impossível aceder a estas súplicas não os podendo achar nem o tempo necessário para preparar as praças que se tinham condenado quando se não contava com esta espécie de guerra; entretanto o que dá muitas esperanças é o muito que os povos parecem animados a defender a nossa causa (...) Da carta do Brigadeiro Silveira verá V. Exª quanto ele se promete no caso que fiquem à sua disposição as tropas daquela Província, mas eu não posso dispensar-me de exigir algum reforço, porque mais de metade das tropas que tenho à minha disposição ou não estão ou estão mal armadas, não podendo dizer a V. Exª o seu número porque ainda não pude obter os mapas que tenho pedido” (Viana, 9 de Fevereiro de 1809, ref 48-51) - “Vou continuando o giro da borda-Minho , para reconhecer o País, animar os povos, e dar as providências que o momento exige: a cada passo me lastimo do estado em que se acha a Tropa, armada pela maior parte com chuços, e espingardas sem baionetas, e as ordenanças, ainda que animadas da melhor vontade, sem oficiais capazes de as comandar41, não se tendo procedido em muitos distritos às eleições que determina o decreto de 11 de Dezembro. (...) A boa organização do território para a guerra defensiva, e a boa vontade dos povos com que por ora parece poder contar-se, não é quanto basta para poder esperar bons sucessos quando não há um Exército tal ou qual (...) me vejo obrigado a guarnecer uma linha tão extensa com as Milícias da província quase desarmadas, e com dois batalhões de Infantaria, pois de que o do n.º 9 que se recolhia de Coimbra, está detido no Porto por motivo de inquietações do povo, e pela mesma razão, não marchou ainda a Legião Lusitana: também não chegaram ainda os Batalhões da Beira e nem tenho notícias deles; e o encarregado do governo das armas de Trás-os-Montes insiste que não tire tropa daquela Província”. (Vila nova de Cerveira, 13 de Fevereiro de 1809, ref 58-60) - (...) “finalmente a patente que ache agora neste Exército me é imediata, é o mais antigo Coronel de Milícias. Em uma palavra, não acho que quem 41

sem oficiais capazes de as comandar - este é um dos grandes argumentos para a pouca eficácia atribuída ás acções de unidades de milícia. De facto não havia comandantes capazes, mas também quase não existiam nas Milícias e eram muito poucos os do Exército de linha – a esmagadora maioria dos oficias portugueses capazes tinham ido combater com Napoleão ou estavam no Brasil o que justifica a grande necessidade de Oficiais ingleses para enquadrar parte das tropas portuguesas – no entanto, o problema de líderes capazes é um problema que aflige gravemente portugueses, espanhóis e também franceses: “ o desacordo dos generais, a rapacidade de alguns deles e a negligência da maioria eram as verdadeiras origens do mal-estar universal (pág 33) (...) O Marechal exprimia nessa carta fortes apreensões o futuro do norte de Espanha logo que o exército de lá partisse. Suplicava-lhe que abrisse os olhos para o comportamento desses governadores, pois eles causavam – dizia – mais males que o Marquesito ou qualquer outro chefe de bando. Gen Koch, Ob cit, pág 100.

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empregue em mil assuntos, que se oferecem a cada momento, sendo o de mais consequência a má escolha de alguns dos Inspectores das Divisões de Ordenanças, o que tem graves consequências. Espero que com a chegada do Marechal de Campo José António Botelho parte destes embaraços se modifiquem; mas necessito do apoio de V. Exª para conseguir as medidas que careço (...)” (QG em Ganfei, 21 de Fevereiro de 1809, ref 136-139) - (...) “Anima muito, observar a boa vontade que o povo em geral mostra de se defender, e que resiste a todas as privações, incómodos (...) aos galegos ordeno se forneçam todas as munições que pedirem (...) A segunda divisão da Legião chegou ontem a Braga e hoje lhe expedi ordem para marchar a Barca.” (QG da Amioza, 24 de Fevereiro de 1809)

É difícil quantificar ao certo o número de homens armados e mesmo as unidades prontas para a defesa na segunda invasão. Sabemos pelas transcrições anteriores a situação “caótica” em que se encontravam muitas unidades das milícias e ordenanças. No entanto é de notar um esforço para tentar regularizar a situação (Arquivo Histórico Militar - DIV-1-14-077-13 ref 1920): (...) mandará vossa senhoria fornecer igualmente de etapa a todas as praças de Milicianos, ou de Ordenanças, que guarnecerem ou fizerem serviço de campanha nesta cidade: bem entendido que tudo será na conformidade das ordens de Sua Alteza Real a este respeito, começando este fornecimento a abonar-se desde o dia vinte e cinco do corrente e por diante (Caetano José Vaz Parreira – Brigadeiro Comandante interino das Armas, QG no Porto, 24 de Fevereiro de 1809).

Durante a marcha francesa de Soult em direcção ao Porto, as milícias e ordenanças vão estar em todos os momentos, como também vão estar as tropas de linha e os populares, cada um armado como podia e com o enquadramento possível das chefias possíveis. Houve indisciplina, caos e desorganização em alguns momentos da defesa, e que levou inclusivamente à chacina do chefe militar português, Bernardim Freire de Andrade. Mas houve também forte resistência, combates de grande importância e, embora Soult tenha atingido o seu objectivo imediato, o Porto, as forças portuguesas nunca lhe deram descanso. Enquanto Soult tomava o Porto, Silveira retomava 24

Chaves, portugueses e espanhóis tomaram Vigo e cercaram Tuy – a guerra continuava e a ocupação estava longe de estar controlada. O resto do País estava controlado e grandes áreas do território nacional eram exclusivamente controladas pelas milícias e pelas ordenanças. O retomar da ofensiva pelas forças portuguesas e depois com o auxílio do Exército luso-britânico só foi possível devido ao enorme desgaste sofrido pelas tropas francesas na conquista do Norte e na contínua ofensiva na retaguarda das suas forças.

PREPARANDO A TERCEIRA INVASÃO

Desde o desmembrar da força armada portuguesa no início de 1808 até à retirada de Soult em meados de 1809 tinha passado apenas 1 ano e meio. Neste curtíssimo espaço de tempo, foi possível levantar vários corpos de forças armadas e, com o exército de linha praticamente desfeito, foi nas milícias e ordenanças que se foram recrutar forças, organizações e chefes. Muitas unidades de milícias e ordenanças transformaram-se em corpos de voluntários, em batalhões de milícias ou em batalhões de infantaria, caçadores, etc e, simultaneamente, continuou-se a aperfeiçoar o sistema territorial. Vejamos alguns exemplos (AHM-DIV-1-14-063-09): - Correspondência entre D. Miguel Pereira Forjaz e Carr Beresford: “(...) que a província do Minho continua a estar na mesma insubordinação em que se achava, e que qualquer leve ordem que se mande aquela freguesia onde chega (...) oficiais de Justiça e Ordenanças (...) e não há maneira de os conter: Manda o mesmo senhor comunicar (...) as providências necessárias para que naquela Província se estabeleça a força armada precisa para fazer respeitar a autoridade, pois que existindo somente em Braga o Regimento 16, este não basta para conter os povos em insubordinação. (Palácio do Governo, 18 de Julho de 1809) - (...) O Coronel que foi do Regimento de Milícias de Arouca Alexandre de Alberto de Serpa para capitão do Regimento de Infantaria nº 23 (...) O Alferes do Regimento de Voluntários Reais de Milícias a pé de Lisboa Oriental, Lourenço Justiniano Francisco de Lima, para Alferes do Regimento de Infantaria nº 13 (...) Capitão mor das Ordenanças de Lamego Jozé Leite 25

Pereira de Azevedo e Cunha, para Coronel agregado do Regimento de Milícias de Lamego, por se haver distinguido na acção do dia dez de Maio do corrente ano, no sítio de Moledo na Margem do Douro (...) – aprovada a proposta de Carr Beresford de 27 de Julho de 1809 em 9 de Agosto de 1809, com 4 rubricas dos Senhores Governadores do Reino. O esforço para reorganizar a força armada teve de contar com a colaboração de toda a população como podemos ler de outra caixa do Arquivo Histórico Militar - DIV-1-14-072-09: - Tenho a honra de remeter incluso (...) um mapa dos Regimentos de Milícias que se ajuntaram em Braga, não compreendendo a cidade do Porto e a do Partido da parte meridional do Douro. Notará V. Exª que de 6400 homens que formam o total, só 1953 se acham armadas – determinam que os desarmados voltem para suas casa a ocuparem-se da lavoura, entendo de pensar em os chamar ao primeiro sinal. Dos que ficaram formei um Batalhão para guarnecer Braga, parte de 1400 homens – e 350 ou 400 deverão ficar guarnecendo a cidade do Porto, em qualidade de Batalhão de Instrução. Os dois ulteriores corpos de que fiz menção serão revezados todos os 15 dias, pelas milícias que se vão agora formando. (Carta de Nicolau Trant para Miguel P Frojaz, QG no Porto, 25 de Junho de 1809, ref 19) - (...) Achando-se os diferentes corpos, que compõem a guarnição desta cidade, falhos de vestuário, e de outros objectos essenciais, peço a V. Exª me queira fazer saber, se posso ou não aproveitar a disposição em que se acham os respeitáveis habitantes desta cidade, e as suas vizinhanças, de fazer uma subscrição voluntária com o fim de prover os soldados daqueles objectos de que tanto carecem e pelos quais não podem esperar (idem, ref 26) - Em resposta a carta de V. Exª de 17 do corrente, permita-me em primeiro lugar, que tome sobre a minha própria responsabilidade todas as medidas que se tem praticado nesta cidade, seja para a prisão daqueles criminosos que com justiça têm sido acusados de adesão aos interesses franceses, ou para alguma indulgência concedida a tais indivíduos que, tendo sido presos somente por minha ordem, foram depois postos em liberdade debaixo da mesma condição, ou mesmo soltos debaixo de fiança até se justificarem, quando se houverem de fazer as averiguações necessárias. (...) Porem, V. Exª, como estou convencido, precisa atender que, no período da Revolução, Traição é palavra de salvo 26

conduto, e muitas vezes para satisfação de ressentimentos particulares (...) E tive 150 presos de uma vez na cadeia pública, e não havendo salário algum do governo estabelecido para a sua subsistência, sinto vivos desejos de restituir alguns destes miseráveis à sua liberdade debaixo de qualquer ordem, que possa autorizar-me. (idem, 26 de Junho, ref 33-35). - Rodrigo Freire de Andrade Pinto de Sousa, Escrivão do Senado da Camera desta cidade do Porto por Sua Alteza Real o Príncipe Regente (...) a transacção que a cidade fez com o camareiro mor (...) teor seguinte: 2º Artigo – Tem, quanto à segunda dúvida sobre o ter das chaves da cidade, e suas portas no tempo da Guerra, e mal de peste, dividir os cidadãos para governar as ditas portas nas ocasiões que se oferecerem, e sobre os cidadãos terem Companhia separada das da Ordenança: assentarão que a cidade tivesse aceite a companhia separada das da Ordenança, de que fosse Capitão. O Vereador mais velho na forma antiga, e costumada, o qual comanda a companhia, estava à ordem do Capitão Mor com as mais companhias. Tem, que em Camera assim no tempo da guerra como da Paz se nomeassem nelas pessoas principais para assistirem as Portas das cidade, e que no tempo da guerra estivessem às ordens do Capitão mor, e no tempo da peste às ordens dos vereadores por lhes pertencer a guarda da saúde. (...) nomeasse para as portas no tempo do mal, e no tempo da guerra estaria na mão do Governador das Armas , ou Capitão Mor, o qual nomeará um oficial de milícia para mandar fechar, e abrir as portas da cidade (...) ( D. Rodrigo de Menezes, Porto, 22 de Julho de 1809, ref 101-106) - “Carta Régia: Juiz Vereadores, e Procurador da Câmara(?) do Porto Eu El Rey vos envio muito saudar: Havendo entendido que na comarca dessa cidade há muitos capitães eleitos nas Companhias das Ordenanças. Oficiais de tendas e lavradores, que actualmente se ocupam de seus ofícios, e lavouras, contra o regimento da milícia, e o bom exercício dela, que nesta ocasião presente convém se administre, (...) Mando ao Conde de Penaguião que logo que chegar a essa cidade trate em Camera da formação dos Capitães, em que estes efeitos, e se elejam outros (...) (Escrita em Lisboa em 1641) (...) e enquanto isto se não acaba de resolver entrem e sirvam todos nas Companhias da Ordenança como está ordenado (...)” – citação de cartas Régias do tempo da Restauração para lembrar a execução da legislação em 27

vigor – Rodrigo Freire de Andrade de Pinto Sousa, Porto, 23 de Fevereiro de 1809, ref 109-112) - Em resposta ao Ofício que V.Srª me dirigiu em carta de 30 de Julho antecedente, cumpre-me dizer a V. Srª que deve apresentar ao Sr. General as Armas do partido do Porto as dificuldades que encontra no recrutamento e organização do seu Regimento que é quem compete dar as providências necessárias para que se não retarde uma diligência de absoluta importância (...) Entretanto estou persuadido que os oficiais inferiores de ordenança não devem(?) estar isentos do recrutamento para as milícias , nem tão pouco os caçadores, (Carta de João António Coutinho – sub-procurador geral das milícias - para Francisco Joaquim Soares e Silva, 9 de Agosto de 1809, ref 132) - (...) não só desobedeciam às ordens, que competentemente fazia expedir em nome se S.A.R. mas daqui mesmo tomavam pretexto para se conspirarem contra mim, fazendo esperas, e protestos de me matarem, e arrasarem as casa da minha aposentadoria sendo-me preciso usar de toda a cautela para salvar a vida. Esta inobediência assaz escandalosa, tem sido apoiada por alguns Capitães de Ordenança parciais dos mesmos povos, pois que apesar das maiores instâncias deprecantes, que lhe tenho feito para comparecerem, não é possível; antes consta que os desviam e aconselham para desobediência, de que se queixam os capitães do meu Regimento e que por esse motivo não podem satisfazer as ordens. Vejo por outra parte quase frustada uma diligência, porque sendo parte dos moradores do Distrito uma pobreza suma, até não terem como que segurar o importe do armamento ainda assim alguns que podem servir vão a recrutar-se no Regimento de Milícias da cidade do Porto, por isso que são chamados à presença do Coronel dele D. António Amorim, o qual duvida remeter para o meu regimento os soldados domiciliados no Distrito dele pela razão, que mostra a carta de Ofício, (...) sendo certo, que mutilado assim o meu Distrito se faz preciso dar-me outra igual freguesia ou providenciar como parecer justa a V. Exª (...) Não menos faz demora, e torna inútil a minha diligência a cautela, que tomam os capitães de Ordenança nomeando para oficiais inferiores e cabos de esquadra alguns daquelas pessoas que podiam bem servir de soldados milicianos, fazendo-lhes passar nombreamento com antedata, os vão confirmar pela Junta Real do Infantado 28

(...) Finalmente lembro que muitas pessoas encarregadas na Brigada das Ordenanças, eram as mais capazes, e de melhor abono para milicianos, porem com aquele pretexto se escusam e duvido também obriga-lhes ao recrutamento sem ordem de V. Exª cuja determinação me servirá de governo para obrar com o acerto, que desejo. (Quartel em Vila da feira, 18 de Agosto de 1809, Capitão Francisco Joaquim Soares e (?) , ref 133-136)

EM JEITO DE CONCLUSÃO Lembrámos a importância das milícias e ordenanças. Deixámos a história “falar por si” e mostrámos que, embora único e fundamental, o seu uso esteve cheio de problemas e dificuldades. Milícias e ordenanças foram decisivas nas “cinco” invasões francesas42 em Portugal e deram um carácter único ao espírito de defesa português. No Norte de Portugal foram um elemento decisivo para o êxito na Guerra das Laranjas em 1801, para o levantar de armas após a invasão de Junot em 1807/08, no retardar, desgastar e expulsar Soult em 1809 e, com todas as outras forças do resto do país, tornaram impossíveis as linhas de comunicação dos franceses nas últimas invasões a Portugal em 1810 e 1812. Foram as milícias e ordenanças que possibilitaram o envio de mais de 30.000 homens a combater no exército aliado luso-britânico para libertar Espanha e derrotar a França de 1811 a 1814. Enquanto este exército de 1ª Linha combatia, trazendo honra e lustre às cores portuguesas, foram as milícias e ordenanças que se tornaram no exército territorial português e mantiveram intactas as fronteiras portuguesas até 1815, contribuíram para a segurança

interna

e

“alimentaram”

os

recompletamentos

da

força

expedicionária que, como sabemos, somou cerca de 20.000 baixas durante a Guerra Peninsular (só contabilizamos as baixas entre as forças de primeira linha! - os números totais de baixas é quase impossível de calcular, mas a grande maioria dos autores refere a cifra de 200.000 portugueses mortos, militares e civis). Fomos, mais uma vez, um povo, uma nação, uma língua, uma pátria ao serviço do Rei. De hábito ou batina, à civil ou de uniforme, nas ruas ou nos

42

Guerra das Laranjas 1801, Junot 1807, Soult 1809, Massena 1810, Marmont 1812

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quartéis, na 1ª linha ou nas milícias ou nas ordenanças, fomos mais uma vez um Portugal que lutou pelos seus honrando o sangue dos seus antepassados.

Nuno Correia Barrento de Lemos Pires

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