Militares e política: uma discussão de paradigmas

July 23, 2017 | Autor: Renato Lemos | Categoria: Military and Politics, Civil-military relations, Military, Relaciones Cívico Militares
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LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. Militares e política: uma discussão de paradigmas. In: CHAGAS, Fabíola Maria da Silva; LOUREIRO, Marcello José Gomes; PAULA, Luiz Carlos Carneiro de; RESTIER JUNIOR, Renato Jorge Paranhos. A Guerra e a Formação dos Estados Nacionais Contemporâneos. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. p. 222-240. ISBN: 978-85-8273-361-5

Militares e política: uma discussão de paradigmas1

Inicialmente, merece registro o fato de o tema das relações militares-política estar sendo discutindo em um momento histórico em que se opera um importante deslocamento do papel central que as forças armadas cumpriram durante decênios nos regimes políticos vigentes na maioria dos países da América Latina. Assim, pode-se procurar entender as relações militares-política sob reduzida pressão das suas expressões mais espetaculares: a guerra, o golpe de Estado e a ditadura.2 Tais expressões tendem a conduzir à desconsideração do caráter político de outras práticas militares, decorrentes de vinculações históricas – relativas à sua formação − e organizacionais – relativas às suas funções − com o Estado. As forças armadas têm, nos estados modernos, uma presença cuja natureza política não se explicita de imediato. As forças armadas são um elemento de peso na área científica, no orçamento nacional, no desenvolvimento industrial e do mercado de trabalho, no relacionamento com instituições parlamentares em nível técnico − como comissões de segurança nacional, relações exteriores etc. Essa presença, naturalmente, varia conforme a posição 1

Este texto é uma versão modificada da palestra proferida em 17 de novembro de 2012, como fechamento do I Ciclo de Estudos e Pesquisas em História Militar, promovido pelo Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, no Rio de Janeiro. Aqui, são apresentadas reflexões resultantes de aulas nos cursos de graduação e pós-graduação na UFRJ e de discussões que venho realizando no âmbito do Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política (LEMP), por mim coordenado. 2 CUÉLLAR, Oscar. “Notas sobre la participación politica de los militares em América Latina”, Aportes, Santiago de Chile, n. 19, janeiro de 1971: 7-8.

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da sociedade de que se trate no contexto do sistema capitalista mundial, se central ou periférica. A presença geral das forças armadas no ambiente social gerou modelos analíticos cuja longevidade e capacidade de influenciar pesquisas os eleva à condição de verdadeiros paradigmas. Thomas Kuhn, físico e historiador da ciência, definiu o uso do termo “paradigma” para sintetizar a maneira como o campo científico opera: “Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.3 Naturalmente, o termo será usado aqui em uma acepção restrita, quase metafórica, já que os esquemas explicativos das relações militares-política operam em um plano de abstração infinitamente mais limitado do que as mencionadas “realizações científicas”. Mas, estão vinculados a realizações de valor análogo nas ciências que cuidam das relações sociais. Correspondem a visões diferentes, por vezes antagônicas, da organização social. Poderá, então, ser possível falar em paradigmas concorrentes no campo temático militares-política. É preciso observar que os estudos acadêmicos sobre as forças armadas modernas são relativamente recentes. No país onde, certamente, estão mais consolidados – os Estados Unidos da América –, são considerados pioneiros Walter Millis (Arms and men, 1956) e Samuel Huntington (The soldier and the State, 1957), traduzido no Brasil pela Biblioteca do Exército Editora. Adstritos a temáticas e abordagens diretamente conectadas com as sociedades centrais do capitalismo, de sua produção disse, em 1960, Morris Janowitz, que pode ser considerado o terceiro nessa linhagem: “Por estranho que possa parecer, foi a primeira vez, desde Alexis de Tocqueville, que as instituições 3

KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 2ª ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 13.

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militares americanas foram analisadas como um aspecto do processo político americano”.4 O paradigma liberal Samuel Finer − talvez o quarto na linhagem −, escrevendo em 1962 – portanto, pouco depois dos pioneiros –, apresentou resultados de pesquisa que apontaram um elemento mais geral como o principal fator explicativo das relações militares-política: a natureza da sociedade. Aquelas marcadas pela existência de “cultura política” ou “cívica”, em que o consenso sobre os “procedimentos públicos” e o nível de organização da “opinião pública” são elevados, seriam menos propensas à intervenção indébita dos militares. Naquelas onde esses indicadores são fracos, a propensão seria maior.5 A noção de “cultura cívica” é central na conformação desse paradigma analítico das relações militares-política, porque define o universo subjetivo que estabelece e legitima os lugares e papéis dos indivíduos e instituições na sociedade. Haveria sociedades que não conhecem a “cultura cívica”, chamadas por Samuel Huntington, em obra de 1968, de “pretorianas”. Nelas, “(...) as intervenções militares são apenas uma manifestação específica de um fenômeno mais amplo nas sociedades subdesenvolvidas: a politização geral das forças e instituições sociais. Nessas sociedades, a política carece de autonomia, complexidade, coerência e adaptabilidade. Todos os tipos de forças e grupos sociais se empenham diretamente na política geral. Os países que possuem um exército político possuem também um clero político, universidades políticas, burocracias políticas, sindicatos políticos e corporações políticas. A sociedade como um todo está fora de compasso, não apenas as forças militares. Todos esses grupos especializados tendem a se envolver na política lidando com problemas políticos de ordem geral: não apenas assuntos que lhe dizem respeito diretamente, mas também aqueles que afetam a sociedade em geral”. 6

Huntington explica que, por motivos de concisão, usa a expressão “sociedade pretoriana” para se referir a essa sociedade politizada, mas que ela não remete apenas à participação 4

JANOWITZ, Morris. O soldado profissional - um estudo social e político. Trad. Donald M. Garschagen. Rio de Janeiro: GRD, 1967, p. 13 5 FINER, S. E. The man on horseback. The role of the military in politics. 2a. ed. London: Penguin Books, 1976. 6 HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 206207.

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dos militares na política, adequando-se, também, a outras forças sociais. Esta indistinção torna a proposição um tanto nebulosa, porque desconsidera especificidades estruturais e conjunturais da participação de classes e categorias sociais no conflito político. Outro aspecto que complica esse paradigma de análise das relações militarespolítica é seu objeto ser entendido como relação entre militares (poder militar, militarismo, autoritarismo hierárquico etc.) e civis (poder civil, controle civil, relações de tipo democrático etc.). As relações militares-política se diluem consideravelmente, assumindo a feição de relações militares-civis. Mais do que constituir um preciosismo, a crítica da expressão “relações militares-civis” sugere a necessidade de outro paradigma. Trata-se, antes de tudo, de superar a imprecisão dos seus termos. O passo inicial – e decisivo – é formular perguntas que ensejem respostas de fato possibilitadoras de avanços no conhecimento do objeto. De que se fala? Do relacionamento entre gente fardada e gente paisana? Sim, porque parte dos funcionários da área militar é paisana, exercendo, no entanto, função política comum, enquanto agentes do Estado; outra parte é, digamos assim, híbrida de pessoal com formação superior em áreas não militares e que, por concurso público, ingressa nos quadros militares. De que militares se fala? Da massa de praças? De oficiais intermediários, superiores, generais? De que diferenças entre os universos da caserna e da política − das distinções recíprocas criadas por civis e militares no plano simbólico? Até que ponto elas contribuem para a determinação de atitudes políticas? É imprescindível perguntar também sobre os civis. De quem se fala? De agregados conceituais – classes, categorias, segmentos etc.? De agregados corporativos – empresários, trabalhadores, estudantes, clérigos? De forças institucionalizadas – entidades sindicais e estudantis, partidos políticos, associações cívicas? Das imagens que

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constroem sobre os militares, tanto em seu espaço próprio – a caserna – como no meio paisano? De novo: até que ponto tais imagens contribuem para a determinação de atitudes políticas? À luz das concepções liberais que derivam, em essência, do processo da Revolução Americana refletido na produção dos The federalist papers, as análises integrantes do paradigma hegemônico no campo de estudos militares-política tendem a assumir caráter normativo.7 Em especial aquelas situadas no campo da Ciência Política, uma criação umbilicalmente ligada à sociologia política estadunidense. As relações militares-política, reduzidas ao seu aspecto militares-civis, são tratadas de um ponto de vista subordinado àquilo que deveriam ser segundo o pensamento liberal atualizado, isto é, modeladas pela forma democrática de Estado prevalecente, em linhas gerais, nos países do centro capitalista mundial. Nessa forma de Estado, os militares, por definição, não têm papel político, e não devem tê-lo. O raciocínio tende a ser circular: militares não devem ter papel político porque não o têm. A respeito disso, Oscar Cuéllar observa: “(...) a questão se relaciona com o pressuposto – em muitos casos elevado à categoria de norma constitucional – de que os militares não têm nenhum papel na política, isto é, em termos da imagens e da experiência latino-americana, não devem intervir na condução do Estado. (...) Contudo, esta suposição inicial parece esquecer o fato de que, pela sua própria existência na vida dos Estados modernos, as Forças Armadas têm uma função e um papel essencialmente políticos e sua posição na estrutura – pelo menos formal – de poder constitui uma expressão também formal dessa função. De maneira que essa suposição inicial é, antes de tudo, uma expressão de desejo. Porque, com efeito, o fato de admitir e montar um aparato dedicado ao manejo exclusivo dos instrumentos de coerção dentro da estrutura do Estado constitui um dado básico que permite falar de uma participação política típica dos militares enquanto instituição, na medida, está claro, em que o cumprimento de uma função política possa definir-se como participação política”.8

Portanto, o paradigma analítico hegemônico no campo das relações entre os militares e a política traz subjacente uma concepção ideal de sociedade. Trata-se, basicamente, do paradigma liberal (base do Estado moderno), sobre o qual Cuéllar observa: 7

Uma visão de conjunto das principais concepções liberais e marxistas do Estado pode ser encontrada em CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Trad. Equipe de tradutores do Instituto de Letras PUCCampinas. 2ª ed. Campinas (SP): Papirus, 1988. 8 CUÉLLAR, Oscar. Op. cit., p. 8. Tradução minha.

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“(...) a função atribuída às instituições militares se baseia na premissa de que a sua participação política – isto é, o cumprimento da sua função própria – se faz dentro do marco da legalidade constitucional estatuída, que prevê a subordinação do aparato militar ao pessoal político”.9

Fica configurado, assim, como já suficientemente anotado pela historiografia especializada, o paradoxo liberal: ao mesmo tempo em que é necessária uma força armada para cumprir as funções de manutenção da soberania e da ordem interna, é vital que essa força não seja forte o suficiente para ameaçar a primazia do poder civil e se submeta ao seu controle. Supõe-se que o poder político se identifica com um genérico poder civil. Não se costuma indagar de que se constitui tal poder civil: que setores da sociedade o controlam internamente? Inclui alianças – explícitas ou tácitas – com segmentos militares? Em que medida está aberto a interesses externos? Processos de transição de regimes políticos de que os militares eram um dos pilares para outros em que se tenta atribuir-lhes um papel subordinado ao poder civil – registrados na América Latina, principalmente, mas, em alguma medida, também no Sul da Europa e no Leste europeu –, têm sido analisados majoritariamente, tanto no campo acadêmico quanto no campo político-prático, de maneira que reafirma o paradigma liberal-democrático normativo hegemônico no curso de um processo político, em andamento, que busca a consolidação de novos regimes democráticos. Na América Latina, em particular, a partir da década de 1980, essas análises passaram a destacar a existência do Ministério da Defesa como o caminho institucional privilegiado para estabelecer o controle civil sobre os militares. A estratégia tem sido complementada com a discussão de novos papéis para as forças armadas e a exigência de prestação de contas sobre as suas atividades.

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Idem, p. 8-9. Tradução minha. Grifo do autor.

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O paradigma marxista

As limitações impostas pela associação entre a perspectiva analítica e a vocação normativa são contrastadas pelo paradigma concorrente, baseado em outras maneiras de entender o funcionamento das sociedades capitalistas. No campo marxista, Gramsci observa: “(...) não é certo que o exército, segundo a Constituição, jamais deva fazer política. O exército deve justamente defender a Constituição, isto é, a forma legal do Estado, com suas instituições conexas”.10 Entre nós, Paula Beiguelman, sob o impacto dos primeiros anos do regime ditatorial, advertiu em 1967: não se pode ignorar um dos elementos mais importantes para a para a caracterização política das forças armadas, “(...) qual seja o papel que lhe compete na estrutura político-administrativa. Com efeito, podemos considerar que é principalmente enquanto órgão responsável pela manutenção da ordem institucional que o grupo militar é sensibilizado pela crise política, tornandose seja o principal fautor da transformação revolucionária, seja o agente da consolidação do regime”.11

Daí ser crucial considerar a historicidade das próprias instituições voltadas para a guerra externa e a coerção interna. As forças militares feudais se distinguem, em forma e conteúdo, das que integram os estados modernos, na exata medida das diferenças entre os sistemas políticos que as articulam. O mesmo se conclui se compararmos as forças armadas feudais às da Roma antiga ou da Grécia clássica. A chave para a compreensão da relação militares-política é o Estado, instituição de que as forças armadas são elemento constituinte. Não há consenso entre os mais influentes teóricos marxistas acerca de vários aspectos envolvidos na questão do Estado. Alguns outros, entretanto, podem se apontados como objeto de certa unanimidade. O mais importante deles talvez seja a relação historicamente necessária entre o Estado e as classes sociais: o Estado surgiu da combinação necessidade/possibilidade de estabelecer-se uma relação de exploração de 10

GRAMSCI, Antonio. Notas sobre Maquiavelo, sobre la política y sobre el Estado moderno. Trad. José Aricó. Buenos Aires: Nueva Visión, 1972, p. 64-65. 11 BEIGUELMAN, Paula. Pequenos Estudos de Ciência Política. São Paulo: Editora Centro Universitário, 1967, v. 1, p. 70.

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uma classe sobre outras e, portanto, é um Estado de classe. Nada mais distante da tese liberal conhecida como “contratualista”, que postula ter o Estado surgido – e por isso se manter –, de um acordo ou convenção livremente firmada entre os indivíduos visando controlar o conflito interno ao grupo e defendê-lo dos inimigos externos. De uma perspectiva marxista, o Estado assegura e reproduz a dominação de classe por meio da articulação entre a coação e a integração ideológica, combinando-se os dois elementos de acordo com a correlação de forças entre as classes sociais em luta. Os grupos especializados no emprego da violência  forças militares e policiais  asseguram as bases materiais da desigualdade social. Por isso, a sentença de Engels, segundo a qual o Estado é, essencialmente, “um grupo de homens armados”. Já a integração ideológica, que visa garantir um mínimo de aceitação da ordem desigual por parte dos setores explorados da sociedade, é alcançada pela disseminação de noções sobre direito, família, religião, política, moral etc. Esse conjunto de valores compõe uma ideologia formulada a partir de visões justificadoras da ordem e a classe dominante se esforça para que elas sejam aceitas pelas classes dominadas, valendo-se, para isso, de meios materiais e humanos mobilizáveis pelos recursos que monopoliza. Por isso, Marx advertiu: as ideias dominantes em uma sociedade são sempre as ideias da classe materialmente dominante. Naturalmente, disso não se segue que apenas as ideias da classe dominante existam na sociedade, que registra também formações ideológicas de classes deslocadas em tempos anteriores da posição hegemônica pela burguesia e outras, identificadas tanto com setores eventualmente dissidentes das classes dominantes quanto com posições subalternas na ordem vigente. Quando a classe dominante é a burguesia  entendida aqui como o conjunto que expressa as diversas frações do capital  e ela dá sentido às instituições estatais, pode-se falar de um Estado burguês, que, embora tenha, historicamente, incorporado importantes

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traços das instituições feudal-absolutistas contra as quais a burguesia precisou se opor para tornar-se dominante, apresenta funções que o singularizam diante daquelas. Talvez a mais importante de todas seja a de garantir a reprodução das condições gerais da produção

capitalista,

fundada

na

concorrência

entre

proprietários

privados.

Impossibilitado de representar apenas um capitalista, o Estado deve zelar pelos interesses gerais coletivos da burguesia, alcançando uma posição de relativa autonomia diante dos interesses particulares e, mesmo, fracionais burgueses. Foi nesse sentido que Engels definiu o Estado como o “capitalista coletivo ideal”. Nessa função, o Estado deve assegurar ao conjunto da burguesia condições iguais de atuação no mercado, recorrendo, para isso, ao Direito e, para fazê-lo valer, ao seu aparato de coerção (forças armadas e corpos policiais). Para a reprodução das condições de valorização do capital, deve ser assegurada a existência de um mercado de trabalho homogeneizado pela legislação trabalhista nacional; um sistema de moeda única comandado centralizadamente; um setor de negócios externos parceiro do setor diplomático etc. Elementos que o livre jogo de interesses burgueses concorrentes não pode garantir, cabendo ao Estado fazê-lo.

A expressão dessas matrizes na historiografia brasileira

Vamos nos deter, agora, na forma assumida por essas matrizes no cenário historiográfico brasileiro – que inclui, naturalmente, analistas estrangeiros − dedicado ao tema das relações militares-política. São, essencialmente, duas – a funcionalista e a marxista –, das quais derivam abordagens mais específicas. Sem ignorar – apenas abstraindo, para efeito de simplificação analítica – as variantes da análise funcionalista, identifica-se na historiografia brasileira do campo temático militares-política uma expressiva convergência para o paradigma que consagra

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uma visão da sociedade como um todo composto de partes relacionadas a partir das funções que exercem para mantê-lo em condições de cumprir a sua destinação fundamental: sustentar uma situação de equilíbrio. Algumas das formulações vinculadas a esse paradigma acentuam o caráter sistêmico da sociedade, sem, contudo, descartar o pressuposto da vocação para o equilíbrio. Abaixo, apresento um quadro sinótico dos elementos característicos das principais delas, selecionadas com base no seu papel pioneiro no ambiente historiográfico.

Variantes da perspectiva funcionalista Abordagem

Padrão moderador

Organizacional

Partidos militares

(1971)

(1976)

(1980)

A. Stepan

E. Coelho

A. Rouquié

Autor

Organizacional*/ Interacionista orgânicoevolucionista Relação entre subsistemas Dinâmica interna da Relação entre atores Abordagem corporação militar políticos Organização das Função moderadora Afirmação da idenTipo de intervenção alianças e diferenças tidade corporativa políticas Arbitragem do conflito Progressivo domíFormação de partidos Expressão da nio sobre a sociemilitares intervenção militar político dade Perspectiva

Abrangência

Sistêmica

1945-64

Geral

1945-64

* Outros autores, como José Murilo de Carvalho e Celso Castro, combinam o enfoque organizacional com o institucional e o político.

O “padrão moderador” No âmbito desse paradigma, Alfred Stepan está na posição de primeiro formulador de um modelo explicativo formal das relações militares-política no Brasil.12 Ele chamou esse modelo – uma articulação de algumas variáveis – de “padrão moderador” das relações entre civis e militares. O pressuposto geral do modelo é 12

STEPAN, Alfred. Os militares na política. As mudanças de padrões na vida brasileira. Trad. Ítalo Tronca. Rio de Janeiro: Artenova, 1975 [1971].

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inspirado no “paradoxo liberal”. A existência das forças armadas como instrumento do Estado impõe aos dirigentes civis necessidades contraditórias, a saber: manter uma força armada como instrumento da política e da ordem interna e garantir que o poder militar não usurpe o poder político. Para Stepan, o modelo se aplica, de maneira geral, às relações militares-política na América Latina, devido à existência, na região, de uma “cultura política” favorável à sua implantação. Os elementos que a denotariam são: semi-elitismo, semimobilização e semidesenvolvimento; ausência de vontade política para transformar elevadas exigências de desenvolvimento em resultados efetivos; pretorianismo (ausência de cultura cívica); política de cooptação: grupos políticos tendem a tentar cooptar os militares para aumentar sua força política; “difícil coexistência” de pretorianismo com a crença no referencial civilista europeu. O quadro político, em particular, favoreceria a adoção do modelo, pela ineficácia dos processos parlamentares para resolver os conflitos políticos. Este traço se explicaria pela ocorrência dos seguintes tendências: fragmentação partidária; inexistência de instituições que executem com eficácia as tarefas de manutenção da ordem interna, contenção do Executivo e controle da mobilização política de novos grupos; tendência das “elites políticas” a conceder aos militares “um grau limitado de legitimidade para desempenhar estas funções específicas sob certas condições” e “um grau reduzido de legitimidade à ideia de governo controlado pelos próprios militares”; inclinação a chamar os militares a agirem como “moderadores da atividade política” para garantir a manutenção da ordem e não para “dirigir quaisquer mudanças dentro do sistema político”. O modelo do “padrão moderador” parte da premissa de que militares e civis expressam subsistemas do sistema político com características peculiares, a partir das quais estabelecem relações entre si, que Stepan chama de “aspectos civis do padrão moderador”: a instituição militar seria diversificada e aberta; os militares sempre teriam sido altamente politizados e a sua politização refletiria a “ampla flutuação da opinião pública”. Neste sentido, todos os grupos civis teriam tentado cooptar os militares em épocas de conflito político. Basicamente: os governos (o presidente e sua equipe), tentando instrumentalizar os militares como força para dobrar a oposição no Congresso e obter a aprovação do seu programa; os civis anti-regime, tentando cooptar os militares para alterar as regras básicas do sistema político (como teria acontecido na proclamação da república, na ruptura de 1930, na deposição de Getúlio Vargas em 1945 e em 1964);

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os civis pró-regime e antigoverno, flutuantes em relação ao governo, tentando controlar o Executivo, teriam delegado a tarefa aos militares, como expresso nas constituições de 1891, 1934 e 1946, que consideram as forças armadas instituições permanentes e obedientes “dentro dos limites da lei”. Abordagem organizacional A abordagem organizacional adotada por Edmundo Campos Coelho13 é crítica de todas as que a antecederam, elegendo para vítima preferencial o enfoque marxista, em especial aquele defendido por Nelson Werneck Sodré, que será comentado à frente. Trata-se da expressão mais acirrada de uma importante virada historiográfica, que, a partir de fins da década de 1960, valorizou o conhecimento da natureza institucional das forças armadas como elemento explicativo do seu comportamento político. O enfoque organizacional, tal como apresentado por Edmundo Campos Coelho, toma a organização como unidade de análise, mas pretende, também, considerar as relações que ela estabelece com seu “contexto ambiental”, vistas do ponto de vista histórico, isto é, pela “identificação de estados anteriores” vividos, “daquilo que ela foi no passado”, porque cada fase específica da existência de uma organização exige a aplicação de conceitos e categorias específicos. Por isso, a abordagem vale para toda a existência da organização militar brasileira (o Exército). Examinada esta em seu “tempo histórico particular”, o seu comportamento político se explicaria pelos seguintes elementos: “peso crescente dos interesses e necessidades próprias da organização”; “aquisição de graus cada vez mais elevados de autonomia com relação ao sistema societal e com relação a segmentos particulares deste” e progressivo “fechamento” do Exército aos “influxos” da sociedade civil. Perspectiva dos “partidos militares”. No curso de pesquisas sobre a participação dos militares na política na América Latina, Alain Rouquié desenvolveu a metáfora do “partido militar”. De seu trabalho com pesquisadores brasileiros resultou um livro, publicado na França em 1980,14 onde apresenta a adequação da metáfora ao seu objeto: “Esta metáfora não tem outro objetivo, em um primeiro momento, senão o de assinalar firmemente a perspectiva escolhida: as Forças Armadas podem ser forças políticas que 13

COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976. 14 ROUQUIÉ, Alain. (Coord.). Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s. d.

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desempenham, por outros meios, as mesmas funções elementares que os partidos, e sobretudo que conhecem em seu seio – tanto quanto os partidos, mas segundo outra lógica – processos de deliberação de tomadas de decisão, e até mesmo de união e articulação sociais”.15

A pertinência da perspectiva dos “partidos militares” é proposta para o período da nossa história política balizado pelo fim do Estado Novo (1937-1945) e pelo golpe de 1964. Foi sob o regime democrático da Constituição de 1946 que se expressaram de maneira organizada divergências políticas existentes no interior das Forças Armadas. Embora não adote explicitamente a perspectiva funcionalista, esse modelo analítico opera com o relacionamento entre partes da sociedade que se apresentam na dinâmica política a partir de características institucionais singulares. É a interação entre elas que explica a participação dos militares na política. A interação é entendida de uma perspectiva que se pretende histórica. Ela preside todas as etapas da elaboração de estratégias institucionais, condicionando a forma e “conteúdo real” das relações históricas entre a organização militar e a sociedade. No jogo político, as FFAA teriam capacidade “para produzir mudanças nas estratégias dos grupos aliados ou adversários, independentemente do fato de (...) se encontrarem em situação de competição (1945-1964) ou de hegemonia (depois de 1964)”. Os sistemas de alianças entre “elites militares” e facções das “elites civis” decorreriam de percepções e objetivos análogos quanto ao processo de desenvolvimento global. Convergências e sistemas de alianças militares-civis implicariam autonomia recíproca. Para Rouquié, a interação entre as Forças Armadas e a sociedade se configuraria triangularmente. Os civis (partidos, grupos de pressão etc.) dirigiriam pressões à totalidade das Forças Armadas, mas respeitariam limites por elas impostos. As correntes militares canalizariam, adaptariam e transmitiriam as pressões recebidas dos civis e lhes dirigiriam pressões oriundas do meio militar. As estruturas de comando supremo (escalões superiores da hierarquia militar) filtrariam as pressões canalizadas pelas correntes militares, legitimariam aquelas aceitáveis pelos valores da corporação, interpretariam o papel constitucional das FFAA e elaborariam o output institucional, isto é, a conduta política do aparelho militar.

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Idem, p. 12.

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Variantes da perspectiva marxista

Abordagem

Tipo de intervenção

Classista / relação política com classes sociais

Sentido da intervenção

Instrumentalizada Defesa dos ou interesses Democráticodominantes ou popular da nação Classista/organizacio Identificação nal / origem de Aliança de classes com lutas dos classe / natureza setores corporativa médios Classista / tendência Autonomizada Bonapartismo política estrutural  crise de hegemonia

Abrangência histórica Geral

Autor

Década de 1920

B. Fausto A. Prestes

Geral

J. Q. de Moraes

N. W. Sodré

O Exército na luta de classes Na historiografia brasileira, Nelson Werneck Sodré ocupa o papel de pioneiro na construção de uma abordagem histórica das forças armadas. Embora o título de seu livro História Militar do Brasil 16 sugira o contrário, nele não se tem uma narrativa prioritária das batalhas ou da evolução tecnológica das forças armadas brasileiras, mesmo que informações deste tipo sejam incorporadas ao texto. O que se tem é uma tentativa de inserir a história da organização militar brasileira na dinâmica de uma sociedade movida pelo conflito entre as classes sociais. As intervenções das forças armadas na política são examinadas como capítulos do processo de ascensão da burguesia industrial ao poder político no Brasil, que teria começado em 1850, com a extinção do tráfico internacional de escravos. O seu sentido seria o controle do Estado, mas o foco da análise está sempre destinado a realçar uma motivação classista que explique a intervenção militar na política. O Exército, recrutado nas classes médias, seria, por definição, interessado na democracia. Em face de uma burguesia ascendente como classe, democrática, o Exército se comportaria como vanguarda na luta pela democracia. Estando a burguesia no poder, e sendo, portanto, reacionária, o Exército se destacaria como vanguarda da oposição democrática.

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SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. [1ª ed., 1965]

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Exército, classes e instituição Na virada da historiografia rumo à valorização da natureza institucional dos militares como elemento explicativo do seu comportamento político, Boris Fausto, estudando o fenômeno do “tenentismo”, foi, talvez, o primeiro historiador brasileiro a apontar a relação entre a condição organizacional e a configuração ideológica dos militares: para ele, os “tenentes” se explicam como fenômeno histórico-político porque “são tenentes, isto é, membros do Exército”.17 Dada a sua importância, farei um acompanhamento da evolução do estudo específico sobre o tenentismo que o autor apresentou em alguns textos. Em artigo datado de 1968, cuja primeira versão foi apresentada como conferência em 1966, Fausto não desenvolve a análise institucional da ação política dos tenentes, apenas apresenta a questão ideológica em termos muito gerais: “(...) esta vinculação não é indiferente ao se fazer uma caracterização ideológica. Seu programa liberal dos anos 20 está permeado de valores de salvação nacional, do papel do Exército como guardião das instituições republicanas. Os valores específicos e as possibilidades específicas de ação – o recurso à violência – dão ao tenentismo uma feição peculiar, não redutível a qualquer categoria da sociedade”. 18

Em outro texto, publicado em 1970, mas concluído no ano anterior, abre-se o leque analítico para duas novas problemáticas. A corporativa destaca a especificidade institucional dos “tenentes”, situados numa posição intermediária na hierarquia militar, e o “dado fundamental de que eles são ressocializados pelo Exército”. A posição do Exército na relação Estado-sociedade o apresenta como “instituição que guarda certa autonomia com relação ao conjunto da sociedade”: “Como membros das Forças Armadas, os ‘tenentes’ participam de uma categoria específica – parcela do aparelho do Estado – que não é diretamente determinada pelo critério de classe, dependendo do funcionamento concreto deste aparelho, no conjunto de uma formação e de suas relações com as diversas classes e frações”. 19

Em texto preparado para ser proferido como conferência nos Estados Unidos e publicado em 1972,20 Fausto assume preocupação explícita com o aspecto metodológico da análise do “tenentismo”, que “não pode ser reduzida a explicações unilaterais, reduzindo o grupo funcional a uma classe social (tenentes = classe média) ou atribuindo 17

FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. 9ª ed. São Paulo: DIFEL, 1977, p. 240. Grifo do autor. 18 Idem, p. 240-241. 19 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1970, p. 81. 20 FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da república. São Paulo: CEBRAP, 1972.

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ao grupo total autonomia no conjunto da sociedade”.21 Embora ainda se mantendo em alto grau de generalidade, fecha mais o foco da análise funcional, apontando a diferença básica dos tenentes em relação à geração formada na Escola Militar da Praia Vermelha, que vê marcada pela imagem do “soldado-cidadão”, de inspiração positivista. A Escola Militar de Realengo, onde se formaram os “tenentes” de 1922, “tratou de profissionalizar o Exército, insistindo no ensino técnico e no seu afastamento da política”. Contudo, contrariando teses que vinculam o avanço da profissionalização ao afastamento da política (Samuel Hungtinton), essa orientação “favoreceu a formação de uma certa coesão, de uma consciência militar, em um meio social em que a supremacia das oligarquias civis começava a ser contestada. Contribuiu, também, na linha do argumento de Samuel Finer, para uma crescente identificação das Forças Armadas como servidoras profissionais da comunidade e não de transitórios governos”.22

Observo que é preciso cuidado em face do suposto “apoliticismo” desses oficiais. Tratava-se de negar a participação dos militares na “pequena política”, mas, também, de prepará-los para intervir na política nacional, na definição dos rumos do Estado brasileiro. No entanto, em nenhum momento Fausto descarta a importância da origem social como um dos fatores explicativos da ação política dos tenentes. No texto de 1968, lê-se: “(...) o programa que o movimento adota no período anterior à Revolução de 30 (voto secreto, reforma administrativa, independência do Judiciário, reforma do ensino) pode ser identificado com as aspirações concretas das classes médias urbanas, muito embora o tenentismo não tenha sido um movimento que se propusesse organizá-las”.23

No texto de 1970, afirma-se que a “extração social dos tenentes não é homogênea; há muitos de origem pequeno-burguesa, mas outros chegaram ao Exército exatamente como alternativa à dificuldade material para estudar e obter profissão: “As origens sociais são uma variável importante para se explicar o fenômeno tenentista”.24 No mais recente trabalho em que aborda a questão, publicado em 1994, Fausto trabalha com dois elementos explicativos do tenentismo: corporativo e social. Quanto ao primeiro, aponta as mudanças decorrentes da fundação da Escola Militar do 21

Idem, p. 30-31. Idem, ibidem. 23 FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”. Op. cit., p. 240-241. 24 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. Op. cit., p. 81. 22

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Realengo no sentido da prioridade à profissionalização dos oficiais. Entretanto, havia problemas na organização militar: “Uma das principais razões de queixa dos quadros intermediários do Exército residia na estrutura da carreira, que dificultava a ascensão aos postos mais altos”.

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Quanto ao quadro social, destaca o fenômeno do

“salvacionismo” durante o governo do presidente Hermes da Fonseca (1910-1914), indicativo de que, embora formados sob a égide da profissionalização, “os oficiais do Exército não poderiam deixar de ter uma concepção sobre a sociedade e sobre o sistema de poder existente”.26 O “salvacionismo” seria uma pretensão a salvar as instituições republicanas do poder das oligarquias. O tenentismo se explicaria pelo cruzamento dos dois elementos: “Os ‘tenentes’ podem ser vistos como herdeiros dos ‘salvacionistas’, em um contexto de agravamento de problemas no interior do Exército e fora dele”. 27 Na década de 1920, já não havendo um presidente militar, “mas civis encarados com muitas restrições”, os tenentes “tinham desprezo por personagens da cúpula militar que haviam se associado aos figurões da República”.28 Em outras palavras: “os ‘tenentes’ não queriam apenas purificar a sociedade, mas também a instituição de onde provinham”. Sobre a tese do tenentismo como movimento de representação da classe média urbana, Fausto entende que essa visão constitui uma “simplificação” de sua natureza. Reafirma que os “tenentes” eram originários, em sua maioria, de famílias de militares ou de famílias empobrecidas do Nordeste e só uns poucos vinham da população urbana do eixo Rio-São Paulo. E dá maior importância à vinculação institucional com o Exército, onde os oficiais eram objeto de um processo de socialização em que formavam sua visão de mundo.29 Disso se deduz que as queixas, tanto contra a sociedade quanto contra o Exército, eram específicas dos jovens oficiais.30 A abordagem construída por Boris Fausto repercute no estudo de Anita Prestes sobre o fenômeno do tenentismo, publicado em 1990. A autora defende uma “uma visão que, para compreender os fenômenos sociais, se baseie na existência de classes e da luta de classes”. Assim o tenentismo é considerado “tanto os seus condicionantes sociais quanto militares”: 25

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997, p. 314. 26 Idem, p. 313. 27 Idem, p. 314. 28 Idem, ibidem. 29 Idem, p. 315. 30 Idem, ibidem.

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“Em outras palavras, ainda que o ‘tenentes’ devam ser analisados enquanto militares, é preciso investigar os problemas e conflitos presentes nas Forças Armadas daquele período não de maneira isolada, mas em ligação com a sociedade brasileira da época, inseridos no contexto geral da crise que o país atravessava. Os ‘tenentes’ eram parte de uma corporação militar com interesses próprios, mas essa instituição não estava afastada da sociedade e dos seus problemas por uma muralha chinesa; ao contrário, os militares não só provinham, em sua maioria, dos setores médios dessa sociedade, como mantinham estreito contato com as populações civis, com a vida nacional. É nesse complexo emaranhado de relações sociais que devem ser compreendidas as suas posições e atitudes, o seu comportamento político”.31

A hipótese do bonapartismo Por uma via que permite escapar ao dilema procustiano classe-instituição, João Quartim de Moraes32 analisa a intervenção militar na política preocupado exclusivamente com as suas investidas sobre o poder. Trabalha com formas históricas de autonomização do Estado: “cesarismo” (Gramsci) e “bonapartismo” (Marx). Para ele, autonomia “significa que todos os assuntos a) internos à instituição; b) relativos à articulação da instituição com as instâncias constitucionalmente investidas da responsabilidade de controlá-la e c) relativos a atos praticados por membros da instituição e/ou eventos provocados por ela ou por seus membros fora de seu âmbito, são resolvidos segundo critérios e procedimentos próprios à instituição, que trata qualquer ‘ingerência’ exterior, mesmo se apoiada na lei, como ameaça às suas prerrogativas”.33

Deste ângulo, entende que a questão da forma como os militares se relacionam com a política extrapola o Brasil, ocorrendo no âmbito da América Latina. Na região, as Forças Armadas teriam sido “pretorianas”, mas em um sentido diferente daquele cunhado por Samuel Huntington. Entende o “pretorianismo” como um fenômeno ligado à autonomização das Forças Armadas em face do Estado.34 Esse processo seria precedido pelo de autonomização do Estado no interior da sociedade, isto é, a fuga ao controle social, sendo expressão de um fenômeno mais essencial: a perda de controle social sobre o poder político: “A autonomização do Estado precede e condiciona a autonomização de sua força armada”.35

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PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 73. Grifos da Autora. 32 MORAES, João Quartim de. “O argumento da força”. In: OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. et alii. As Forças Armadas no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1987, p. 11-56. 33 Idem, p. 12. Grifos do autor. 34 Idem, p. 13. 35 Idem, ibidem.

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Considerações finais Há uma operação crítica das abordagens que não é possível fazer aqui, ficando, portanto, para outra oportunidade. Entretanto, com base nelas, pode-se apontar uma direção de pesquisa das relações militares-política. As suas premissas são: 1. A relação dos militares com a política deriva da condição de aparato estatal ostentada pelas forças armadas, inerente – por definição – à constituição política das sociedades modernas; 2. As forças armadas atuam politicamente em defesa da ordem capitalista, cronicamente em crise nos países de capitalismo hipertardio, onde a burguesia tem dificuldade de exercer o poder de forma hegemônica; 3. Na condição de esteio do Estado capitalista, as forças armadas atuam, fundamentalmente, no sentido da contrarrevolução – preventiva ou reativa; 4. Como qualquer outra categoria social36 ligada ao Estado, os militares são atravessados pelas lutas político-ideológicas travadas na sociedade de classes; 5. Os militares não se apresentam como uma força homogênea quando partem para a política direta e formam “partidos militares” em torno das questões centrais do processo político nacional e internacional, e não de sua origem social; 6. Como “força de reserva” das classes dominantes, os militares podem tomar a iniciativa, responder a demandas de setores civis ou elaborar com estes linhas de atuação nas conjunturas de crise da ordem.

Em suma: os militares se relacionam com a política de acordo com suas condições institucionais. A instituição a que pertencem – as Forças Armadas –, contudo, é integrante do Estado, que, nas sociedades capitalistas, constitui o esteio da ordem consagradora da diferenciação classista. Esta determinação estrutural condiciona a atuação política dos militares, definindo o seu horizonte de alternativas nas conjunturas históricas.

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Cf. FERNANDES, Heloísa Rodrigues. Os militares como categoria social. São Paulo: Global, 1979.

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