“Mineiridades contemporâneas”: entre o poético e o anedótico

June 2, 2017 | Autor: M. Ferreira de Al... | Categoria: Estudios sociales de la comida, la alimentación, la gastronomía.
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"Mineiridades contemporâneas": entre o poético e o anedótico


Maria Cândida Ferreira de Almeida (Cult-UFBA)


O título deste artigo, propondo uma direção inversa, foi retirado do
nome de uma mesa acontecida em um festival de cinema organizada para
discutir a existência de "Estéticas de Minas. Mineiridade contemporânea:
entre o anedotário e o poético"[1]; a sugestão é muito sedutora e já havia
encantado Davi Arrigucci que com o título "Minas, assombros e anedotas"
escreveu sobre Murilo Rubião[2]. Persigo com esta concepção desenvolver a
mesma proposta ao escolher falar de mineiridade oscilando entre um vasto
conjunto de anedotas, clichês e piadas sobre o mineiro, o ser mineiro e a
mineiridade, e, em outro formato, na produção literária, musical e
plástica, que não se furtou ao papel de desenhar sua versão de ser mineiro
e analisar as imagens-metáforas que podem fornecer uma poética da
mineiridade.
Começo por aqui, mapeando as contribuições literárias e musicais mais
retomadas na representação da mineiridade que compõem uma "dor da origem"
para, a partir daí desvelar as tentativas de inserir esta identidade em
pretensos universais e em seguida concluir com a leitura de alguns dos
estereótipos também muito reproduzidos pelo senso comum sobre a
mineiridade.

"Dor da origem"

João Guimarães Rosa argumentando que Minas Gerais é raiz de Brasil
além de espalhar o "sertão das Gerais" mundo afora, com sua obra
paradigmática de uma concepção da "parte valendo mais que o todo", arriscou
uma crônica específica para o tema: "Aí está Minas, a mineiridade",
republicada com o título "Minas Gerais" em Ave Palavra[3] na qual apresenta
a idéia de apresentar este estado como síntese do país: "Saberei que é
muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto.
Sabesse-a mais", contudo, termina por desenvolver Minas como multiplicidade
intensa de si mesma:
Sobre que os que, em seu território, ela ajunta de
tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição,
une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes,
na geografia, lá se dão encontros, concordemente, as
diferentes partes do Brasil. Sua orbe é uma pequena
síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São
pelo menos várias Minas. (ROSA, 1970, p. 270)


Belo Horizonte refaz este projeto lugar-síntese de uma sócio-geografia
maior na toponímia de suas ruas, cruzando, no traçado positivista, os nomes
dos estados brasileiros organizados na mesma ordem topográfica que
apresentam no mapa com os nomes de grupos indígenas no lado norte e com os
nomes dos Inconfidentes no sul:
Ruas da Cidade
(Lô Borges e Marcio Borges)
Guiacurus Caetés Goitacazes
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
Guajajaras Tamoios Tapuias
Todos Timbiras Tupis
Todos no chão
A parede das ruas
Não devolveu
Os abismos que se rolou
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial

Passa bonde passa boiada
Passa trator, avião
Ruas e reis
Guajajaras Tamoios Tapuias
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
A cidade plantou no coração
Tantos nomes de quem morreu
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial


Uma cidade-composição representativa de um Brasil limitado em seu
projeto híbrido, em que os índios-monumentos restam como homenagens de uma
origem mestiça sublimada na negação e no apagamento. O traçado urbano, além
disto, fusiona o projeto ideológico mais atual da entrada do século XX,
colocando a racionalidade a serviço da construção de uma cidade moderna,
mas a voz contemporânea da música mineira denuncia as cinzas sobres as
quais a cidade foi construída e não fala de metrópole, fala em "arraial",
imagem repetida incessantemente pelos novos cosmopolitas, nossos avós recém-
vindos do interior que sempre lembram o bordão: "Belo Horizonte é uma roça
iluminada".
Os nascidos entre os anos 50/60 formaram a primeira geração da cidade
planejada para ser Brasil-síntese e que terminou sendo uma repetição de seu
interior mesmo, de sua mineiridade intestina. Fora dos limites projetados,
ou seja, fora dos limites da Avenida do Contorno que confina a cidade
planejada, as ruas tem nomes das cidades do interior mineiro. A capital foi
tomada justamente por todos migrantes que vieram no movimento dos anos 60,
quando a população urbana começou a igualar-se com a rural para na década
seguinte superá-la. Daquelas cidades que dão nome a ruas que Guimarães Rosa
listou por sua poesia intrínseca em uma crônica homenagem às Minas Gerais
seleciono apenas as que conheço mais que são mesmo as ruas mais famosas:
Dores do Indaiá, Mar de Espanha, Coromandel, Grão Mogol, Passa Tempo,
Formiga, Caracol, Varginha, Pouso Alegre...
A conservação do interior na capital repete a imagem do caminho rumo a
cidade mítica de Itamarandiba encenado na música de Milton Nascimento e
Fernando Brant, lugar onde, ao final, os homens serão felizes, esta
geografia interiorana parte do mapa impreciso da poesia de Carlos Drummond
de Andrade, para alcançar o mapa preciso que contém as cidades do Vale do
Jequitinhonha, uma parte feita de muitas outras partes.
Na música a infância, passado e origem, é que proporciona a
felicidade, o interior retomado pelo centro, dá significado e substância
para este centro, dentro da tradição que diz ser o meio rural a origem e
essência do ser mineiro. A música começa com os versos que tornaram CDA
famoso, versos o próprio poeta deixou como "Legado", ao retomar neste poema
as famosas linhas: "No meio do caminho tinha uma pedra" que virou "uma
pedra que havia em meio do caminho", e na voz do imaginário permanece:
Itamarandiba[4]


No meio do meu caminho
Sempre haverá uma pedra
Plantarei a minha casa
Numa cidade de pedra


Itamarandiba, pedra corrida
Pedra miúda rolando sem vida
Como é miúda e quase sem brilho
A vida do povo que mora no vale


No caminho dessa cidade
Passarás por Turmalina
Sonharás com Pedra Azul
Viverás em Diamantina


No caminho dessa cidade
As mulheres são morenas
Os homens serão felizes
Como se fossem meninos


No entanto, este centro feito de suas partes signos e gentes do
interior encontrando-se na capital e formando novas genealogias, rompendo
com as separações políticas que desuniam as famílias oligárquicas,
desmobilizando os currais políticos, recriando outras relações, terminou
por fazer uma parte maior que o todo – uma parte que não é o todo – pois
repete e distingue. Os severos círculos de poder político e econômico
restringem as classes sócio-raciais impondo-se um encontrar e reencontrar
contínuo dos mesmos, movimentação própria ainda do arraial, mesmo que
possamos sempre ironizar com a frase Sergio Brás: "Não é o mundo que é
pequeno, é a burguesia que é pequena", o clichê de que o "mundo é pequeno"
se repete. A burguesia ampliou-se e passou a cultivar sua mineiridade
absorvendo elementos de todas as partes do estado e homenageando as suas
próprias raízes interioranas e as tradições desmanchadas por outras formas
de relação constituem o fundamento desta nova mineiridade contrastável, por
exemplo, com a "sociologia da Montanha" de Alceu Amoroso Lima[5].
Carlos Drummond de Andrade instalou o projeto de preservação da
tradição incômoda da origem rural e mineira no seio da modernidade. A
produção poética reunida em Boitempo está voltada para uma memória marcada
pela local de origem, principalmente no bloco "Notícias do clã", que
congrega os poemas que tratam do nome familiar, como "Andrade no
dicionário", no qual espalha o patronímico em acidentes geográficos e
"Brasão" – Com tinta de fantasma escreve-se Drummond./É tudo quanto sei de
minha genealogia. –, das posses econômicas perdidas, em "Braúna" e
"Herança", das histórias da linhagem em muitos outros retoma a dor da
origem dispersa nos fragmentos de ser, chegando a um diagrama pleno em
"Confidência do Itabirano"[6]:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

A dor de Itabira, transformada no topos da "dor da origem" reaparece
em outro poema no qual o poeta faz um mapa nacional das favelas, em meio as
dores de descrever os marginalizados urbanos do Brasil, CDA encontra umas
linhas em estilo roseano para sua aflição pessoal da mineiridade: "Belo
Horizonte, dor minha muito particular"[7]. Aqui não mais Itabira, mas a
capital-síntese do estado também dói. Esta Minas muitas, preenchida em
melancolias que doem em graus profundos, o fundamento desta dor é
detalhadamente descrito por Guimarães Rosa:
A que via geral se divulga e mais se refere, é a
Minas antiga, colonial, das comarcas mineradoras, toda na
extensão da chamada Zona Mineralógica, a de montes de
ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a
lama e as pedras de córregos que dão ainda lembrança da
formosa mulher subterrânea que era Mãe do Ouro, deparada
nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à
porta destas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por
entre o trabeculado de morros, sob picos e atalaias, aos
dias longos em nevoeiro e friagem, ao sopro de tramontanas
hostis ou anti a fantasmagoria alva da corrupiana nas faces
de soalheiro ou noruega, no âmbito que bem conclui com o
peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes
sinos, agonias, procissões, oratórios, pelourinhos,
ladeiras, jacarandás, chafarizes realengos, irmandades,
opas, letras e latim, retórica satíricas, musas
entrevistas, estagnadas ausências, músicas de flautas,
poesias do reesvaziado – donde de tudo surde um hábito
irrealidade, hálito do passado, do mais longe, quase um
espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de
conduta, um intimativo, nostalgir-se, a melancolia que
coerce, que vem de níveis profundos. (ROSA, 1970, p. 270)


A dor, mal físico, por vezes acopla o mal moral, ou seja, psíquico,
metafísico ou religioso, todos estes assombros vêm da origem de onde
trazemos nossos juízos de valores, nossa estética, nossa fé. Estas são
forças que retorcem o sujeito; José Murilo Carvalho, desculpando-se por
usar um exemplo pessoal para abordar sua mineiridade:
Faço-o porque parece representar experiência
mais generalizada. Na fazenda Santa cruz, onde nasci,
atolava os pés descalços no barro do curral,
aparentemente isolado do resto do Brasil e do mundo.
Da infância lembro, entre outras coisas, o grande
rigor da família na prática da religião católica, em
descompasso com a tradição brasileira[8].


Carvalho nega as circunstâncias de sua origem – "Pessoalmente, sempre
me incomodou a auto-imagem do mineiro como um ser único, vivida seja como
um narcisismo, seja como culpa" (CARVALHO, 1999, p. 9) – ao mesmo tempo em
que indicia alguns elementos de sua dor, como a religião e o apego ao
primeiro momento telúrico de rigor e liberdade.
O premiado cartunista minério Cau Gomez (Cláudio Antonio Gomez),
também nascido em Belo Horizonte (1972), e que desde os 16 anos publica
charges, cartuns e caricaturas em jornais e revistas de circulação
nacional, como Playboy, os jornais: O Pasquim21, O Estado de São Paulo e
Jornal do Brasil, Hoje em Dia, e o baiano A Tarde, e também entrou no
circuito de publicação internacional, através do Courrier International
(França) registrou a mineiridade na exposição Uma do[z/s]e de humor
mineiro[9], com um olhar de exílio, pois como Drummond, José Murilo de
Carvalho, também não mora em Minas:



A infância é uma das imagens de Cau Gomez para representar a
mineiridade. A criança na árvore que é Minas pode oscilar, mas mantém-se
presa na sua procedência, o coração flechado denuncia a "dor da origem" que
o discreto sorriso desconstrói, equilibrado, irônico, paciente e com a cara
lambida com toda a possibilidade de revelação única do que seja ser
mineiro. A camiseta do time favorito desvenda o pertencer à estirpe dos
atleticanos, torcedor do Clube Atlético Mineiro, cujo hino afirma "galo
forte vingador". A "dor da origem" é uma perplexidade e, é a possibilidade
de ir a diante e recuar ao tronco que nos identifica. O balanço requer que
nos mantenhamos em equilíbrio, a queda pode ser dolorida, ainda, fatal, não
vemos este risco na imobilidade do balanço, parado para uma fotografia
plausível do passado aberto para um movimento ao futuro.
A capacidade de nos recriarmos e de nos transformarmos, e ainda assim
carregar a expectativa de repetição e tradição de nossa raiz, metáfora tão
cara para a tradição posta em arte. Drummond, o poeta se refez funcionário
público, apagando o fazendeiro do destino primeiro e tornou-se homem de
palavras e sua linhagem vinda de seus tetravôs, como lembra no poema
"Raiz", traz "o mesmo/ fero exigente amor" "explodindo em trovão ou
morrendo calado"[10]. Ao local de origem, à genealogia, podemos sobrepor a
relação com a alteridade, este representar-se diante do outro como foco da
dor.
Wittgenstein[11] acrescenta ao problema de conhecimento do outro o do
sentido: o significado que se atribui a cada fato psíquico, e a dor é seu
mais castiço exemplo, pois, o conhecimento do outro depende da experiência
própria e privada de si mesmo, mais ainda no ato de conhecer a dor – se
"dor" é o que eu sinto – que significado pode ter para mim um fato psíquico
qualquer de outro: a dor que o outro sente que, em hipótese, definirá de
forma tão privada como a minha?
Este enfrentamento de conhecer-se e expor-se para conhecer o outro,
feito de dor, e parte da dor de origem, encontramos nos versos de Sandra
Penna, palavras arranjadas e expostas em um passar incessantemente num
cristaleira, compondo a instalação Memória – Para refletir o inatingível
(2001) de Eder Santos. Em meio à exposição Itaú Contemporâneo – Arte no
Brasil 1981-2006[12] montada com obras do acervo do centro cultural, com
curadoria de Teixeira Coelho e de cenografia Bia Lessa, na qual dominam a
produção paulista e concreta, a obra se destaca por apresentar as tópicas
de mineiridade que estamos destrinçando.



Quem entra em minha casa me põe em sofrimento.
Que esforço, corpo e alma em visitação.
Sandra Penna
Os vestígios da casa – cristal, louça, móvel – locus da memória e do
ser, são aqui casulo-de-si e a sua "invasão" da exterioridade provoca dor
da revelação para o outro da nossa própria fragilidade. Esta identidade
guardada, protegida pelo "aconchego do lar", pode, ao ser penetrada,
revelar o espelhamento, ao olhar a cristaleira, forrada e iluminada,
podemos vislumbrar algo de nós mesmos, qualquer um? Não, mais aqueles que
estão presos nessa cristaleira-tradição, poder, patrimônio, dever. O frágil
do cristal é também a arrogância do valor do cristal frente ao vidro
qualquer, estimável, prosaico. O cristal-poder, que dói mostrar, está em um
móvel-vitrine, de constante exibição, também dilema da arte; expor o que
mais incomoda e "quem expõe se expõe". A frágil identidade assombrada pela
exterioridade e dolorida está instalada nas estruturas de poder da qual é
difícil escapar sem produzir destroços.
Eder Santos é premiado artista multimídia mineiro[13] criador da
empresa EmVideo, que atua tanto em produções comerciais quanto artísticas.
Pertencente à geração que começou a trabalhar na década de 80, dentro dela,
Santos logo se destacou como vídeo-artista, experimentando "as imperfeições
e os ruídos do formato vídeo, sistematicamente eliminados no mundo limpo e
bem-acabado da televisão comercial". Trabalhou com temas, como o místico-
religioso, com temas políticos, ao retratar "nossa condição de receptores
colonizados" e as "relações dos homens com as instituições políticas, os
meios de comunicação, a sociedade de consumo, as formas abandonadas de amor
e com a natureza". Mesmo nas produções de cunho político manteve a
"intersecção do misticismo religioso com as manifestações da loucura" como
"pano de fundo".
São suas videoinstalações[14] que nos interessam aqui, pois nelas
podemos detectar presença forte do tema da mineiridade, apesar de não ser
definido assim em seu site. Usando das novas possibilidades tecnológicas,
formas e suportes de projeção que ampliam as possibilidades artísticas,
produz Memória de Ferro, apresentada na Bienal Internacional de Artes de
São Paulo em 1996, cujo ambiente de minério-memória, herança drummondiana
foi sugerido virtualmente. Porém, é no vídeo Mentiras e humilhações, que
trata temas das lembranças e fantasmas do passado retomado em Tumitinhas
(1998), no qual um poema de Carlos Drummond de Andrade em off revela a
referência mais explicitamente.
Outra versão da mineiridade na estética contemporânea pode ser
encontrada na obra de Conceição Evaristo, que por sua vez, não se furta a
registrar minuciosamente a tripla dor da sua origem: de lugar de
nascimento, da discriminação racial, ambas – genus (origem) e natio (raça)
– sobrepondo-se a sempiterna dor de ser mulher. Conceição Evaristo,
assinatura literária de mais uma Maria pois em Minas, "Maria" ou
simplesmente "Mª" é inerente ao nome de mulher por isso não faz falta usar.
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946,
onde viveu em uma favela da zona sul e trabalhou como empregada doméstica,
local e trabalho pejam a discriminação que ela sofreu. Na década de 1970,
segue os caminhos de muitos dos intelectuais mineiros que desde Drummond
até os anos recentes migrou para o Rio de Janeiro; a lista é larga, mas
convém destacar os amigos do "encontro marcado": Paulo Mendes Campos, Helio
Pellegrino, Oto Lara Resende e Fernando Sabino, que ainda impuseram este
percurso como o roteiro mais viável para a consagração intelectual.
No Rio de Janeiro, Conceição Evaristo formou-se em Letras pela UFRJ,
trabalha como professora da rede pública de ensino em Niterói, fez o
mestrado em Literatura Brasileira (PUC/ Rio) e doutorado em literatura
comparada na Universidade Federal Fluminense, o que a distingue, tanto
entre muitos escritores que não buscam esta formação, quanto entre os de
sua cor, por estarem segregados também da educação. Evaristo é escritora de
muitas formas – poética, narrativa e ensaística – e sua obra já corre mundo
e vai aparecendo em publicações na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.
A estréia como escritora de Conceição Evaristo foi somente nos anos 90
e nos Cadernos Negros, publicação que surgiu no ambiente subversivo
propiciado pela criação do MNUCDR (Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação racial), do FECONEZU (Festival Comunitário Negro Zumbi, 1978)
e dos próprios cadernos (1978) e sob a sombra do regime militar dirigidas
por escritores negros hoje consagrados como Cuti, Esmeralda Ribeiro e
Marcio Borges, entre outros.
A dor de ferro de Drummond assombra a poeta em outra forma; na sua
obra, Evaristo a reconfigura em "cimento" da cidade que a recebe diante das
lembranças trazidas das Minas Gerais, mas permanentemente dor; em sua
poética não são os objetos de poder – a religião, cujo índice é São
Benedito e a masculinidade de caçador, da pela de anta – que tanto oprimem
o poeta, nem os cristais de Eder Santos, objetos que denotam fragilidade e
posse; são outros os objetos carregados nos bolsos da escritora negra, ela
carrega o soul food[15] do quiabo de origem africana, incorporado à
mineiridade, e o queijo, ícone dos sabores da gastronomia mineira que tem
se tornado índice de identidade. [16]
Mineiridade
Quando chego de Minas
trago sempre na boca um gosto de terra.
Chego aqui com o coração fechado
um trem esquisito no peito.
Meus olhos chegam divagando saudades,
meus pensamentos cheios de uais
e esta cidade aqui me machuca
me deixa maciça, cimento
e sem jeito.
Chegando de Minas
trago sempre nos bolsos
queijos, quiabos babentos
da calma mineira.
É duro, é triste
ficar aqui com tanta mineiridade no peito[17].


Conceição Evaristo traz o gosto de terra na boca, logo a terra,
metonímia recorrente do local de origem, mas que guardada na boca de uma
poeta provoca o estranhamento da perspectiva do gosto ruim, construído em
linguagem literária fica desconstruído o aprazível maquinal da terra natal
e apresentada a ambigüidade do ser de lá e de ser feliz por ser de lá. Esta
dor estranha vai sendo matizada em angústia oprimindo o peito, em
lembranças expressas pela interjeição característica dos mineiros – uai –,
para no enfrentamento com o ambiente hostil que a recebe ser "cimento e sem
jeito". Sobre toda esta construção estilística se abre o caminho para as
mole-molências dos sabores prazeirosos do ser que culmina em uma chave de
ouro revelando outra vez a dor de origem.
O quiabo, elo de duas identidades – a mineira e a afro-descendente –
é componente importante da comida de tradição religiosa africana, muito
usado nos rituais do candomblé, no culto dos orixás Ibeji e Xangô. Outras
verduras podem substituir o quiabo em pratos do ritual, como a mostarda, a
taioba, a unha-de-gato, ou a bertalha, no entanto, a travessia de um
registro a outro, da cultura afro-brasileira para a cultura mineira, torna
o quiabo insubstituível como elo, pois é o quiabo, entronizado pela cultura
mineira e pelas dificuldades que apresenta a sua degustação um ícone
particular. O "babento" do prato, reforçando no poema apenas a verdura, já
que o queijo não é acompanhado de adjetivos, é marca de aceitação do
quitute e do que ele representa. E não digo "quitute" ao acaso, esta
palavra de origem banto, quer também dizer "carinhos" e "meiguices". A
retomada do quiabo babento é também lembrança de origem, pois certas
comidas só as comem o que aprenderam a fazê-lo na infância e de toda a
saudade que temos destes momentos de aprendizado da vida.
Conceição Evaristo perdeu a sua geografia originária nas narrativas
longas Becos da Memória e Ponciá Vicêncio, nelas a paisagem mineira
desaparece, dando lugar à paisagem interior da mulher negra, mas longe de
ser uma particularidade, esta reflete uma estratégia recorrente na produção
literária mineira.


Sou do mundo/ sou Minas Gerais
Generalizando com falhas, negligências e esquecimentos, afirmo que
muitos dos escritores e letristas mineiros contemporâneos mascararam sua
dor da origem com tentativas de deslindar a alma, neste projeto, do retrato
de Minas Gerais – paisagem e "alma" – não se configuram na superfície da
textualidade. No entanto, não deixaram de produzir uma literatura
proficuamente mineira e com sintomas de mineiridade. Entre estes nomeio
Adélia Prado, Murilo Rubião, Autran Dourado, Lucio Cardoso, mais ainda a
novíssima geração: Marcelo Dolabela, Lúcia Castelo Branco e Ester Maciel,
todos destinando-se "a uma cidade maior", mas "o trem permaneceu
indefinidamente na antepenúltima estação"[18].
Marcelo Dolabela acompanhado de Rubinho Troll enuncia este destino
cosmo no rock sujo e garageiro dos anos 80 uma versão do projeto
"universal" e fora da mineiridade:
Duchamp
te orienta
poesia
o ocidente é que te guia
1986[19]
Outro produto dos anos 80, uma antologia de poetas jovens insistia em
afirmar: "Taquicardias – que reúne 23 autores da poesia jovem de Belo
Horizonte – não quer ser regional, tampouco porta-voz das angústias de quem
vive oprimido pelo cerco da montanha"[20].
O cimento urbano da cidade moderna assombrou os atalhos de ida e vinda
de outra das tantas vozes da mineiridade; O Clube da Esquina, que
atualizou, no uso das linguagens contemporâneas – dança, teatro, cinema,
ópera – cada imagem originária da mineiridade, mesmo que repetindo com a
mesma insistência a tópica "sol, cachoeira e montanha", uma contribuição de
Minas para a MPB, também recusou os limites e afirmou sua mundialidade:
"Sou do ouro/ eu sou vocês/ Sou do mundo/ sou Minas Gerais/ Por que vocês
não sabem do lixo ocidental?"[21]
O dilema "Minas/mundo todo" reconfiguração mineira da oposição clichê
"local/universal" é um recorrente na auto-representação da mineiridade. Ser
parte inclui um espectro mais amplo, ter um lugar de repetição do todo. Não
pertencer ao local, abrir-se para a pretensa universalia significa
favorecer-se em entidades abstratas. O costume de contrapor os assim ditos
universais a particulares, refutando o que nos identificam em favor de uma
abstração ampla no humano termina participando recorrentemente do discurso
sobre a mineiridade, como está bem apresentado por José Murilo de Carvalho,
no texto já citado:
Também não quero diluir a mineiridade em mera
reprodução de culturas externas combinadas ou em
conflito dentro de nossas cabeças. Basta-me vê-la
envolvida num debate que transcenda as porteiras da
fazenda, os limites estaduais, as fronteiras do país.
Basta-me vê-la presa nas malhas de um movimento
universal de idéias e valores, mesmo que com isto
perca nitidez de contornos e se instale em seu
coração a angústia da incerteza. (CARVALHO, 1999, p.
10-11)


Este pavor pelo local strictu sensu pode ter sua fonte na
representação ridícula que se faz do morador rural como Antonio Candido
descreve bem em "Caipiradas"[22]:
A gente que vive em cidade procura sempre adotar
modos de ser, pensar e agir que lhe pareciam os mais
civilizados, os que permitem ver logo que a pessoa
está acostumada com o que é prescrito de maneira
tirânica pelas modas - moda na roupa, na etiqueta, na
escolha dos objetos, na comida, na dança, nos
espetáculos, na gíria. A moda logo passa; por isso, a
gente da cidade deve e pode mudar, trocar de objetos
e costumes, estar em dia. Como conseqüência, se entra
em contacto com um grupo ou uma pessoa que não
mudaram tanto assim; que usam roupa como a de dez
anos atrás e respondem a um cumprimento com certa
fórmula desusada; que não sabem qual é o cantor da
moda nem o novo jeito de namorar; quando entra em
contato com gente assim, o citadino diz que ela é
caipira, querendo dizer que é atrasada e portanto
meio ridícula.


A citação tem um certo sabor de época, contudo, traz muitos dos
tópicos definidores desta vontade de ser cidadão do mundo inteiro, ou seja,
do cosmopolitismo: ser "urbanóide", isto é, morador de e apaixonado por
grandes centros urbanos; marcar o comportamento por uma pauta coletiva e
fluída; consumir produtos e objetos desenvolvidos pela indústria cultural;
marcar negativamente a alteridade, composta por pessoas que diferem da
escolha cultural, uma vez que as sociedades rurais a muito são consumidores
de bens da indústria cultural, como roupas, música, literatura, televisão,
rádio e cinema.
A herança de marcar o mineiro como um ser imutável vem da sociologia
produzida no Rio de Janeiro e fartamente distribuída ao longo do século XX;
infelizmente mais reproduzida que refutada em obras como a de Alceu Amoroso
Lima citada aqui. Oliveira Viana definiu paulistas, mineiros e fluminenses
como os exemplares do tipo social do matuto, que com o gaúcho e o sertanejo
comporiam o brasileiro; uma obra sobre os últimos dois tipos, ficou só na
promessa. José Murilo Carvalho, na apresentação ao livro publicado dentro
da coleção Intérpretes do Brasil, analisa que a transformação do matuto de
"nobreza rural" do começo do livro em "bandido" ao final permite destacar o
"verdadeiro protagonista de Populações meridionais, o Estado Imperial", mas
o que nos interessa neste livro, são as bases lançadas para a formulação do
estereótipo do mineiro e, por conseguinte, da mineiridade anedótica.
Assim sua obra que terminou sendo lançada sob o título de Populações
meridionais do Brasil apresentou um estudo mais alargado do matuto, nele a
definição do mineiro foi elaborada em contraste com o fluminense e
paulista, classificando este último como dotado de "antigos pundonores
aristocráticos", preocupados com "pureza do seu sangue fidalgo", "de
puritate sanguinis, prontos sempre a subirem, através das longas
genealogias" às matrizes ibéricas. Já os fluminenses, mais chegados ao
paço, que a passos, como diria o Padre Antônio Vieira, são definidos por
sua proximidade com a corte, o que não lhes permitiu independência, sem, no
entanto, serem estritamente conservadores, seus traços seriam "um tanto
fugidios e vagos": "Não se delineiam, não se precisam, não se fixam"[23].
Talvez a proximidade geográfica com o objeto de estudo impedisse o
intelectual de Niterói de formular um estereótipo preciso, mas para com os
mineiros ele não teve problemas:
Em Minas, ao contrário [dos paulistas], a nobreza
local se mostra desprendida desses preconceitos. Os
elementos que formam ali a base histórica da população não
são fidalgos de raça, mas sadios e fortes campônios do
Douro, do Minho e das Beiras, sérios, sóbrios, honrados, de
feitura patriarcal e índole plácida, e tão pobres que, no
dizer de um cronista, "traziam às costas tudo o que
possuíam". Eles é que, caldeando-se com o primitivo
paulista, constituem o cerne étnico do povo mineiro (...) .


Daí o não se radicarem entre esses suaves montanheses
orgulhos de raça, preconceitos de sangue, glórias de
tradições heráldicas: ao contrário, timbram pela
simplicidade das maneiras e atitudes. Pela pureza dos
costumes, pela sua modéstia, pela hospedeira bonomia, pela
sua imaculada honradez, são genuínos patriarcas da nossa
civilização. Gente democrática por temperamento, o que o
Império encontra ali, é um núcleo de ricos proprietários,
modestos, íntegros, lhanos, sem arrogância, mas cheios de
hombridade e independência. Não aspiram nem exercem a
posição de leaders do país: em todos os nossos movimentos
políticos, contentam-se em ser companheiros leais e dignos.
Homens da ordem e de paz, moderados, tímidos, rotineiros,
eles são os nossos mais autênticos matutos e os que, entre
nós, melhor refletem a integridade e a equilibração do
luso.


A sedimentação do estereótipo se estende por todo o livro, sempre
comparando este três tipos de nobres rurais formadores dos brasileiros.
Opondo-se à versão tão restrita, aos estereótipos, Guimarães Rosa os
listou, literalmente em ordem alfabética, em uma enumeração antitética e
exagerada, visceralmente neobarroca, os adjetivos que repercutem o mineiro,
mas que ele ao final nega como valor identitário afirmando que "compareço,
ante quase tudo, como espécime negativo":
Se são tantas Minas, porém, e contudo uma, será o
que a determina, então, apenas uma atmosfera, sendo o
mineiro o homem em estado minasgerais? Nós, os
indígenas, nem sempre o percebemos. Acostumaram-nos,
entretanto, a um vivo rol de atributos, de qualidades
mais ou menos específicas, sejam as de: acanhado,
afável, amante da liberdade, idem da ordem, anti-
romântico, benevolente, bondoso, comedido, canhestro,
cumpridor, cordato, desconfiado, disciplinado,
discreto, escrupuloso, econômico, engraçado,
equilibrado, fiel, fleumático, grato, hospitaleiro,
harmonioso, honrado, inteligente, irônico, justo,
leal, lento, morigerado, meditativo, modesto, moroso,
obstinado, oportunidade (dotado do senso da), otário,
prudente, paciente, plástico, pachorrento, probo,
precavido, pão-duro, perseverante, perspicaz, quieto,
recatado, respeitador, rotineiro, roceiro, secretivo,
simplório, sisudo, sensato, sem nenhuma pressa,
sagaz, sonso, sóbrio, trabalhador, taciturno, tímido,
utilitário, virtuoso. (GUIMARÃES ROSA, 1970, p. 272,
grifo do autor).


Estas imagens constituem o lastro das anedotas sobre a mineiridade em
todas as suas vertentes: nos casos, também chamados "causos", repletos de
fatos burlescos ou curiosos, mas que resvalam no lirismo; nos relatos sobre
as figuras históricas ou lendárias, cujas particularidades são realçadas
pelo humor; e por fim, nas piadas de mineiro, que é um gênero dos mais
ricos de nosso anedotário. É possível colecionar uma anedota para cada um
destes adjetivos, mas fiquemos com apenas alguns exemplos, mas não seremos
parcos deles.



Casos e causos
O diário de Helena Morley, Minha vida de menina (1948)[24] texto
autobiográfico elaborado sobre os escritos juvenis, que foi publicado aos
62 anos da autora, é, em primeiro lugar, um exemplo de Minas como imagem
âmago de Brasil, na visão de Roberto Schwarz[25]:
Não sabemos quem eram os entusiastas[26] nem quais
eram os argumentos, mas é fácil imaginar que
combinassem a petulância de inspiração modernista – a
garota genial, superior aos "mestres do passado" – e
o tradicionalismo familista em vertente cosmopolita,
instalado na capital da República – para o qual o
país verdadeiro e amável estaria nucleado ali, na
vida e na prosa de Diamantina, universalmente
interessantes, por oposição às descaracterizações
ulteriores ou da própria época. (SCHWARZ, 1997, p.
108)


O texto de uma jovem que descobre o mundo e o descreve com um
"frescor" próprio da ingenuidade juvenil suas construções sociais e as
atuações da menina funcionam como experimentos que têm o intuito de
perceber os limites das relações humanas dentro das sociedades patriarcais
e hierarquizadas do interior mineiro do final do século XIX. Adaptada por
Helena Solberg ao cinema em 2004, esta narrativa, como fulcro da
mineiridade contemporânea, retorna. A "vontade de verdade" que pautou
alguns momentos da recepção crítica do texto reaparece aguçada pelas
narrativas em primeira pessoa, própria do livro, que no filme vem como um
narrador em off. A versão cinematográfica do livro foi intitulada Vida de
Menina, mesmo sob este formato das novas mídias a linguagem escrita
controla a linguagem visual, submetendo-a ao regime da voz autorizada que
diz a "verdade". Em Vida de Menina as palavras textuais do livro se
sobrepõem à imagem, e o encadeamento de casos foi a estratégia da diretora
para filtrar o livro no filme.
O vocábulo "causos", tido mais como uma corruptela de "casos", uma
narrativa de um acontecimento talvez tenha sua origem no "causerie"[27],
termo francês que significa "conversa em tom familiar" ou "palestra".
Enfim, sem aprofundar no debate etimológico, o livro e o filme acompanham
esta formatação de um conjunto de casos anedóticos ou dramáticos que narram
a vida em torno de uma família, no interior mineiro. Roberto Schwarz louva
esta estrutura do livro: "As anedotas, os ditos, as breves reflexões a
respeito repercutem entre si multiplicam as perspectivas, compondo um
conjunto em que tudo se relativiza e ironiza segundo a própria compleição."
(SCHWARZ, 1997, p. 108) Temos então no filme uma estrutura narrativa
"típica" da mineiridade instituída em casos, especialmente os da infância
ligada ao interior, à terra e às fazendas, que, como dissemos antes,
aparecem na base do imaginário da mineiridade. No filme, as fazendas são
substituídas pelas lavras vazias de diamantes e a terra sem o brilho dos
sonhos dão lugar aos casos cotidianos com ênfase maior nas relações
assimétricas que permeiam o trato entre ricos e pobres: as pequenas
humilhações, as dívidas financeiras e as afetivas contraídas e impossíveis
de pagar, os personagens sonhadores versus os pragmáticos sempre em
confronto dominam as cenas.
A leitura que Roberto Schwarz apresenta em Duas Meninas: Outra Capitu
é a mesma do filme de Solberg, ambos preocupados com a herança de
desigualdade econômica e racial que este modelo social nos legou. Solberg
utiliza como abertura do filme uma das passagens do livro nos quais os
personagens demonstram o horror à possibilidade de os brancos realizarem
trabalhos mecânicos, e o desenrolar dos casos escolhidos vão ilustrando uma
sociedade erguida sob máscaras de segredos e dívidas com as quais os mais
poderosos submetem os menos favorecidos, e os inconformados com o lugar de
subalternos apelam para estratagemas de subversão através de pequenas
vinganças ou pequenos golpes.
Corroborando com estas relações hipócritas e opressoras, está o
catolicismo, esteio das relações assimétricas, e vencedor permanente como
lugar íntegro. Muitos dos adjetivos arrolados por Guimarães Rosa, como
bondoso, hospitaleiro, paciente, através da ironia, tornam-se "espécime
negativo", sendo os atributos negativos, realçados, vejamos alguns
exemplos: "otária": Luisa, a irmãzinha de Helena que concorda em dar suas
economias para que a mais velha faça uma festa de aniversário, em troca da
divisão dos presentes, depois do sucesso do evento, Helena revela sua falta
de escrúpulos, recusando-se a dividir os presentes com a irmão doadora;
"pão-duro": aparece em diversas cenas, o mais atacado entre eles, Geraldo,
o tio rico de Helena, aparece impedindo a mãe de ajudar a irmã, lamentando
a situação, a matriarca da família chega a afirmar que precisará morrer
para ajudar a filha; "secretivo": o pai de Helena, que sonhando com lavras
secas, dissipa o minúsculo patrimônio da família vendendo em segredo o
diamante de um broche, uma das únicas jóias de sua mulher, exemplo que a
própria Helena segue, vendendo o que sobrou da peça para comprar um
uniforme novo e se exibir diante das colegas provocando a inveja.
Se na narrativa de Helena Morley e no filme de Helena Solberg estas
hipocrisias são constantemente desmascaradas, Adélia Prado escolhe marcar
sua mineiridade descrevendo-a, mas preservando o lugar de reverência da
religião católica. Também é sobre uma estória de dívida que Adélia Prado
escreve, narrativa presente em Filandras, livro, no qual, do mesmo modo que
Morley e Solberg, opta pelos casos enfileirados e não resiste à tentação de
reencenar a piada do carioca, o esperto golpista contra o mineiro, o
roceiro sagaz.
Em uma narrativa com o sugestivo nome "Queijos" relato o caso de um
carioca que apelando sempre a Santíssima Trindade, convence o incauto
mineiro de que sua mãe está retida no hospital, já curada, mas mal parada e
retida lá, por causa da dívida com a instituição. O mineiro, em sua
"imaculada honradez" doa uma quantidade razoável de dinheiro ao outro que
desaparece sem deixar rastro, não voltando nem para agradecer, até que se
reencontram em uma feira onde o Carioca esperto vende queijos das melhores
procedências: "do Serro, canastra, palmira, da roça, até importado, daquele
bem amarelo, pintado com tinta púrpura, defumado, uma barraca bem rica, de
comerciante em ascensão prestes a uma camionete de muitas cilindradas."[28]
Teodoro, o mineiro, não se abalou, fez uma compra maior do que a esmola
solidária, agora transformada em dívida amargada e apresenta-se ao Carioca:
"pois é, seo... como é mesmo sua graça? Como vai passando vossa mãe?" E o
outro recordando de "seo Teodoro" afirma que ia naquele dia mesmo saldar a
dívida e que então estava resolvido com a compra do queijo, que somando
tudo ultrapassava o valor inicial. Teodoro, o mineiro honrado, então, paga
a diferença não aceitando a mercadoria como agradecimento e sim como
pagamento. A narrativa uma pequena moral enviesada como chave de ouro:
"Depois disso o carioca quebrou e se refez um monte de vezes. Nos
cumprimenta com cerimônia. Está de novo na feira. Quanto a Teodoro e eu,
comemos menos queijo que antes. Soa Santíssima Trindade não sofreu
mudança."
O tom de anedota moral também aparece torta em Adélia Prado e o
recurso do uso do tipo, do estereótipo do fluminense frente ao mineiro é
convertido numa crônica cotidiana, na qual a fragilidade dos humanos não
abala a do divino. A fé cristã atravessa o ser mineiro, como a própria
Adélia Prado afirmou: "A fé cristã me constitui, como a mineiridade, e
demais registros biográficos"[29].


Piadas de Mineiro e Piadas de políticos
As piadas com mineiro é um gênero fortíssimo, talvez sejam os
brasileiros com maior presença no nosso anedotário. Podemos dividir as
piadas em vários subgêneros, mas as mais recorrentes são as da visita do
mineiro à cidade grande e a visita dos "moços da cidade" à roça. Em cada
uma destas situações a vantagem é do habitante local, na cidade o matuto
está em desvantagem e é tomado por vários assombros diante dos aparatos
urbanos; na roça, seu ambiente, o moço está em desvantagem e é sua vez de
ser ridículo.
Os políticos em geral também são vítimas de piadas, mas os mineiros em
particular tem seu nome e sua performance incluída no humor nacional e
local. Os exemplos mais tradicionais são Tancredo Neves que em sua longa
agonia foi acompanhado pelo humor nacional. Talvez mantendo uma das
tradições de mineiras descrita por Helena Morley: "Uma doença demorada, em
Diamantina, vira mais uma festa do que outra coisa." (MORLEY, 2000, p.
267). Hélio Garcia era conhecido como "Dodjão", uma referência ao carro
Dodge Dart que "bebia muito e ocupava duas vagas", pois enquanto foi
governador, manteve também o cargo de prefeito de Belo Horizonte no final
da ditadura militar. Mas as piadas de políticos mais tradicionais são
aquelas que reforçam a imagem de ignorantes, como as que Benedito Valadares
continuou vítima, mesmo depois de morto.
Importante homem público, Valadares governou Minas Gerais de 1933 a
1945, sua imagem pôde ser resgata pela mini-série em homenagem a Jucelino
Kubstchek, mas as gerações mais novos o conheciam por um discurso, que
segundo uma piada muito corrente, ele teria proferido em Manhuaçu, cidade
do interior mineiro. Vendo que o comício estava muito desanimado, o
político resolver empolgar o público com a seguinte frase: "Manhuaçuínos,
animais como eu". Apesar de Itamar Franco ter dado mais motivos para
provocar o humor, é Newton Cardoso a vítima preferencial deste tipo de
discurso, com o qual velhas piadas, ganham roupagem nova ao serem
congregadas às novas personagens políticas:
Newton Cardoso se queixava a um assessor da
injustiça de os paulistas ganharem mais na Loteria
Esportiva do que os mineiros.
– É a lei das probabilidades, explicou o
assessor, tentou explicar o assessor.
– Pois então providencie uma emenda à
Constituição do estado derrubando essa lei,
prejudicial aos mineiros, ordenou Newtão, como é
chamado informalmente o ex-governador.

Enfim, o riso parte antagônica e complementar da dor, colabora para
produzir os paradoxos da mineiridade, como tratamos aqui dor/riso,
local/universal, religioso/crítico. Dada a impossibilidade de reduzir a
mineiridade a uma síntese qualquer, prefiro concluir dando lugar a um
cartum e uma piada muito recorrente e que concentra este paradoxo, faz rir,
mas lembra a melancolia drummondiana e a dificuldade de ser mineiro e de
deixar de ser:

Afogando as máguas

O compadre encosta o amigo na parede:
- Cumpadi Tonhão, prá mode que ocê bebe tanto, hômi?
- Ah, cumpadi... é pra afogá as mágoas. Ic!
- E ocê consegue afogá elas?
- Nada, cumpadi... as marditas... sabe nadar!



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[1] Seminários Cineop 2007: Do edifício ao seu eco concreto. In:
http://www.revistacinetica.com.br/index.html.
[2] ARRIGUCCI, Davi, "Minas, assombro e anedotas (os contos fantásticos de
Murilo Rubião)" In: Seminário de Ficção Mineira 2, Belo Horizonte, Conselho
Estadual de Cultura, 1983.
[3] GUIMARÃES ROSA. Aí está Minas, a mineiridade. Manchete. Rio de Janeiro,
24.08.1957. p. 26-31 e Ave Palavra. RONAI, Paulo (org.) Rio de Janeiro:
Nova Fonteira, 1970. (Publicação póstuma)
[4] In: Sentinela. Rio de Janeiro: Ariola, 1980.
[5] AMOROSO LIMA, Alceu. Voz de Minas. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1945.
[6] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, (1940) 1992, p. 19.
[7] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Corpo: novos poemas. Rio de Janeiro:
Record, 1984.
[8] CARVALHO, José Murilo. Sou do mundo/ Sou Minas Gerais. Pontos e
Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p. 9-
11.
[9] Catálogo da Exposição. Caratinga: 2005.
[10] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Boitempo I. Rio de Janeiro: Record,
(1968) 1987, 108.
[11] Verbete "Problemas de las otras mentes". In. MORATÓ, Jordi Cortés e
RIU, Antoni Martínez. Diccionario de filosofía en CD-ROM Barcelona: Herder:
S/D.
[12] COELHO, Teixeira. Itaú Contemporâneo - Arte no Brasil 1981-2006. São
Paulo: Itaú Cultural, 2007.
[13] http://www2.uol.com.br/edersantos/ (imagens e citações retiradas do
site oficial do artista)
[14] As videoinstalações combinam as diferentes linguagens em "Performances
intermídia" colocadas à serviço de temas poéticos. A combinação de texto,
som e imagem está presente em Poscatidevenum (Brasil, 1994/1995) e Passagem
de Mariana (Brasil, 1996/1997), nas quais criam o que foi chamado de
"conjunto de espetáculos" feitos em parceria com o músico Paulo Santos, os
poetas Marcus Nascimento e Sandra Duarte Penna e o fotógrafo Evandro
Rogers.

[15] A transposição do conceito de soul food é possível, pois ele contém os
ingredientes aqui destacados, a conexão do "soul", estilo musical com a
africanidade expressa em comida. Na cultura estadunidense, dentre os
principais alimentos que compõem o imaginário "afro" está o quiabo, ao lado
do melão e do gergelim. No Brasil encontramos especialmente o dendê, este é
ausente na comida mineira, restando apenas ao quiabo este papel de resíduo
identitário.
[16] Maria Stella Libânio Christo em Forno e Fogão é referência da retomada
da culianária mineira associada à tradição cultural, tema que foi
detalhadamente estudado por Mônica Abdala ABDALA, M. C. Receita de
mineiridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro. Uberlândia:
Edufu, 1997.
[17] EVARISTO, Conceição. Cadernos Negros: Os melhores poemas. São Paulo:
Quilombhoje, 1998,
[18] RUBIÃO, Murilo. "A Cidade". Contos Reunidos. São Paulo: Ática, 1998.
[19] Divergência Socialista. 1982-1988. (letras do grupo de rock
Divergência Socialista) Belo Horizonte: Marcelo Dolabela, 1989.
[20] Texto da contra-capa. CARVALHO, Roberto Barros de. (seleção e edição
dos textos) Belo Horizonte: edições Dubolso, 1985. E de fato o único poema
a traçar a geografia da cidade foi o do fluminense César Perillo, fazendo
referências aos dois de seus extremos:
Bh- 7

O luxo
Mangabeiras

O bucho
venda nova
[21] "Para Lennon e McCartney". Lô Borges, Fernando Brant e Márcio Borges.
NASCIMENTO, Milton. Milton. Rio de Janeiro: Odeon, 1970.

[22] CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993,
248.
[23] OLIVEIRA VIANA, F. Populações meridionais do Brasil. In: SANTIAGO,
Silviano. Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Aguilar, 2000, p.962-964.

[24] MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
[25] SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 199.
[26] Os entusiastas seriam pessoas que indicaram o texto a poeta Elizabeth
Bishop, tradutora do livro para o inglês.
[27] CEIA, Carlos.E-Dicionário de Termos Literários.
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm
[28] PRADO, Adélia. Filandras. Rio de Janeiro: Record, 2001, 81-83.
[29] Entrevista concedida à "Agência Estado - mineira e modernamente - pela
net. E enviou com as respostas um comovente poema inédito sobre sua cidade
natal, Divinópolis, reproduzido nesta página"
http://www.lustosa.net/noticias/23379.php
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