VIII Semana de História Política V Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X PPGH/UERJ, 2013
MINEIROS EM SÃO MATEUS: VIOLÊNCIA EM ELEIÇÕES DO FINAL DO DEZENOVE
Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza216
Resumo: Neste trabalho, o violento cenário eleitoral do norte do Espírito Santo nas últimas décadas do Dezenove é usado como pano de fundo na análise da construção da imagem do mineiro no imaginário dos habitantes daquela região. Conceitualmente, emprega-se a psicanálise na compreensão das aparentes contradições nos discursos de violência, que colocam o mineiro como seu principal agente. Assim, o estudo ultrapassa as relações interpessoais para alcançar o foro íntimo dos denunciantes e entender o motivo de seus ressentimentos. Palavras-chave: violência
eleições
psicanálise
Abstract: The violent electoral scenario in the north of Espírito Santo is used in the analysis of the construction of the image of the "mineiro" by the inhabitants of that region. Psychoanalysis was used to comprehend the apparently contradictions in the speeches of violence, which characterize the "mineiro" as its main agent. Hence, this study surpasses interpersonal relations to reach the intimidate feelings of the ones involved in the conflicts, in order to understand the reasons of their resentments. Keywords: violence
elections
psychoanalysis
Considerações Iniciais O fenômeno eleitoral no Brasil Império é comumente conhecido por sua violência. Diversos publicistas da época relatam tal característica em suas 216
Doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
[email protected]. Endereço: Laboratório de História, Poder e Cotidiano. Campus universitário de Goiabeiras. Av. Fernando Ferrari, 514. Vitória - ES - CEP 29075-910. Telefone/Fax: 27 4009-2494. Orientadora: Adriana Pereira Campos.
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obras, a exemplo de José de Alencar, Francisco Belisário, João Francisco Lisboa e Tavares Bastos. Em seus textos, além das críticas a diversos aspectos das eleições (como a compra e falsificação de votos, a corrupção das autoridades eletivas, o despreparo do votante e a imperfeição da legislação eleitoral), a violência aparece como um dos mais graves problemas de nossos pleitos, chegando a penetrar
na República217.
e a mesmo se intensificar
Em grande medida, os autores dos atos violentos eram agentes do próprio governo. José de Alencar conta que, muitas vezes, a autoridade policial 218
. Tavares Bastos219,
mesa para prestarem um
similarmente, relata a constante intervenção do governo por meio da força policial, que ameaçava, intimidava, espancava e, finalmente, afugentava a oposição. Ao comentar sobre as eleições do Maranhão, João Francisco Lisboa também identifica, em sua província, a presença constante da força policial em épocas eleitorais, além de destacamentos, prisões e processos contra
aferrolhados nos calabouços militares e porões dos navios de guerra, postos 220
.
A violência também era promovia por particulares, principalmente por
cabos de eleição: sustentam suas opiniões, atordoam os adversários, 221
intimidam-
. Prática comum
era quando juntavam-se em um bando de vinte ou trinta para cercar o votante
217
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10º Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p.38-41. 218
ALENCAR, José de. O Sistema Representativo. Brasília: Senado Federal, 1996. p.183.
219
BASTOS, Tavares. Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro. São Paulo: Ed. Nacional, 1976 220
LISBOA, João Francisco; Carvalho, José Murilo de (org.). Jornal de Timon: partidos e eleições no Maranhão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.158-218. 221
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império; com apêndice contendo a legislação eleitoral no período 1821-1889. Brasília: Senado Federal, 1979. p.31.
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na hora de anunciar seu voto perante a mesa eleitoral, já que o sufrágio à época era exercido oralmente. No estudo da violência, as eleições modernas constituem lugar privilegiado. A partir do liberalismo político instaurado
ou inspirado
pelo
movimento iluminista, o voto ganhou sentido bastante peculiar: transformou-se em uma das mais importantes formas de manifestação de poder no mundo contemporâneo. Não foi então à toa que as eleições do Império eram cenário de intensas disputas. Diferente da colônia
quando o voto limitava-se às
câmaras municipais e tinha como eleitorado apenas o restrito grupo dos homens bons222
, no Império as eleições eram fenômeno grandioso, que
contavam com ampla participação popular 223 para escolha de ocupantes de inúmeros cargos, como juízes de paz, vereadores, deputados (provinciais e nacionais) e senadores. Era também no calor das eleições que muito dos sentimentos de seus participantes e telespectadores manifestavam-se. Trabalhos como de Todorov224 apontam para a necessidade da inclusão de fatores subjetivos no estudo sobre a violência, na medida em que ela pode mostrar-se como resposta a sentimento individual, mesmo que socialmente construído. Em seu trabalho, por exemplo, o autor procurou demonstrar que a atual onda de xenofobia na Europa não seria fruto de mero choque de culturas,
222
O termo homens bons é de difícil precisão. Fagner França reconhece tal dificuldade e, ao adotar as ideias de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Victor Nunes Leal, considera-os os donos de terra ou os que já ocupassem cargos públicos. Conferir em FRANÇA, Fagner Torres. "O processo eleitoral no Brasil Colônia (1500-1822)". Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. p.5. Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais (acesso em 12/12). 223
Em minhas pesquisas, encontrei taxa nacional de participação eleitoral de 11,2% para o ano de 1846. No Espírito Santo, esse valor foi de 8,1%. Províncias como Alagoas, Sergipe e Piauí alcançavam cifras superiores a 15%. Conferir em SOUZA, Alexandre de Oliveira Bazilio de. Reformas eleitorais no final do Império: a reinvenção do cidadão brasileiro (1871-1889). In: XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH, julho 2011. São Paulo. Anais. p.9. Disponível em http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312377523_ARQUIVO_AlexandredeOBazil iodeSouza.pdf. Acesso em 09/13. À época, poucos países ostentavam números tão altos. José Murilo Carvalho conta que, entre as grandes nações do período, somente os Estados Unidos tinham participação eleitoral mais alta do que a brasileira, chegando a 18%. Conferir em CARVALHO, José Murilo de. Obra citada. 224
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
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mas do medo que assombra os habitantes do velho continente, revelado no encontro com o diferente. É preciso reconhecer, entretanto, a dificuldade de se lidar com o fenômeno da violência. Ao estudá-la, pesquisadores normalmente despejam na mesma categoria uma série de comportamentos variados, sem preocupar-se com delimitação necessária para a análise acadêmica. Misse 225 reconhece a forma frouxa como o termo violência urbana é muitas vezes empregado, o que acaba por gerar uma pauta de problemas nos trabalhos mais tradicionais da área. O autor aponta falhas que vão desde a análise crítica das fontes até a dificuldade de alguns pesquisadores em perceber a diferença entre o discurso e a realidade; tal confusão acaba por criar a figura chamada pelo autor de fantasma ou espectro. Nesse sentido, seria preciso separar os dados referentes
à
percepção
da
violência
daqueles
referentes
aos
fatos
considerados pelo próprio pesquisador como violentos. De modo a evitar as armadilhas apontadas por Misse, o contorno do presente trabalho deve ser cuidadosamente delimitado. Primeiramente, insta salientar que foi escolhido o plano da percepção de violência, ou seja, sua denúncia. Nesse sentido, não se está em busca de dados seriais, mas qualitativos: a violência aqui funciona apenas como o cenário armado no qual se pode identificar o objeto de afetação dos agentes históricos. Como alhures explicado, a violência presente nas eleições formam um tecido especial, no qual as emoções dos agentes encontram-se afloradas. São nesses momentos acalorados que os sentimentos apresentam-se de forma mais clara, quando a preocupação com a imagem contida cede espaço para o extravasamento. 226 Especificamente, centralizo a análise na figura do agressor: do denunciado como o causador da violência. Realizo o estudo por meio de um episódio 225
MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil Contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 226
Thompson fez trabalho nessa linha, no qual desenvolveu o conceito de normas surdas: regras de conduta tão profundamente arraigadas que somente se revelam em momentos atípicos, quando há quebra de deferência. O autor explica que tais normas podem referir-se tanto a condutas públicas sociais quanto àquelas íntimas e domésticas. Conferir em THOMPSON. E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.
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específico, para então traçar quadro de maior duração. Na seção que se segue, é descrito evento ocorrido em São Mateus, no norte da província do Espírito Santo em finais do Oitocentos; em seguida, é feita sua análise. Eleições para Deputado Geral em 1876 227: Carnaval em São Mateus O ano de 1876 foi bastante expressivo em termos eleitorais no Brasil, devido à coincidência de eleições para cargos locais e nacionais. De modo a agilizar os trabalhos, o governo central marcou três pleitos para o mesmo dia: 1º de outubro daquele ano, quando seriam realizadas, em todo país, eleições para eleitores, vereadores e juízes de paz. No Espírito Santo, a eleição ocorreu nas 25 paróquias nas quais estava dividida a
província, que, por sua vez,
formavam seis colégios eleitorais, onde ocorreriam as eleições secundárias no dia 31 de outubro, quando os eleitores eleitos votariam para deputado nacional228. A votação, entretanto, não transcorreu tranquilamente em toda província; tanto que, na eleição secundária, apenas 107 dos 202 eleitores previstos para a província tiveram seu voto contabilizado. A câmara dos deputados justificou a invalidade dos outros votos com base na anulação das qualificações das eleições primárias de 13 paróquias. Em cinco delas, a motivação seria a ocorrência de fraudes: São Mateus estava na lista, juntamente com Viana, Nova Almeida, Cachoeiro e Itapemirim. Um dos aspectos mais curiosos sobre as eleições do Império era sua duração. Comumente, podiam durar muitos dias, o que aconteceu nas de São Mateus daquele ano. De fato, nos dois primeiros dias de pleito, tudo parecia correr sem maiores problemas na paróquia; na tarde de 3 de outubro de 1876, entretanto, o cenário mudou. Clarindo Joaquim de Almeida Fundão, 4º juiz de paz, foi uma das testemunhas dos eventos e contou que um grupo de homens 227
A fonte da presente história foram os anais da Câmara dos Deputados. O estudo de todo processo eleitoral na província referente a esse e outros pleitos encontra-se, em maiores detalhes, em minha obra SOUZA, Alexandre de Oliveira Bazilio de. Das urnas para as urnas: juízes de paz e eleições no Espírito Santo (1871-1889). Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2013. 228
Tratava-se, pois, de eleição em dois graus.
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desconhecidos invadiu a igreja matriz, onde ocorriam os trabalhos eleitorais, e atiraram a urna ao chão. Enquanto cédulas eleitorais voavam pela igreja, o grupo aproveitou para introduzir outras na urna. Diante da situação, o presidente da mesa, Andrelino Leite de Barcelos, promotor público, suspendeu os trabalhos. Não satisfeito, um grupo de opositores, formados por alguns soldados e outros cidadãos, resolveram organizar outra mesa eleitoral: fecharam as portas da igreja e proibiram Clarindo de entrar. Em sua edição de 1º de dezembro, o jornal Da Reforma apelidou o episódio de verdadeiro carnaval, já que máscaras armados com revólver, faca e cacete assaltaram a igreja. Em tom semelhante, o Da Opinião Liberal, de 10 de dezembro, publicou representação de 5 mesários, em que reclamaram sobre a ilegalidade da outra mesa e relataram ameaças sofridas de capangas e mineiros armados, pagos pelo major Antônio Rodrigues da Cunha e seu irmão para invadir a igreja. Outros 36 cidadãos do município fizeram abaixo-assinado atestando os fatos e informando que a nova mesa, organizada a mando do juiz de direito Antônio Lopes Ferreira da Silva, fez a eleição sem que todos pudessem assistir aos trabalhos e alegar seus direitos de voto. De modo a juntar provas do ocorrido, o inspetor de quarteirão Fabrício Euterpe Alfavaca enviou à câmara municipal maço de células das que haviam se espalhado pela igreja. O delegado de polícia João Afonso Lopes Santos Biboca, por sua vez, enviou a chave da urna (apanhada pelo soldado Justiniano durante a confusão na igreja) e produziu inquérito policial, em que seis testemunhas relataram os fatos daquele dia. Entre elas, estava José Corrêa Machado Bié, negociante. O depoente contou que, durante o tumulto, sentava em uma cadeira dentro da igreja, quando viu o tenente José Antônio Aguirra, acompanhado de mineiros armados com faca, entrar com um revólver na mão e ir em direção à mesa. Relatou também que os baronistas (os aliados de barão de Timboy229) foram 229
Olindo Gomes dos Santos Paiva o barão de Timboy foi figura de destaque tanto na província quanto em âmbito nacional. Deputado provincial nas legislaturas de 1870-1, 1872-3 e 1874-5, fazendeiro e negociante em São Mateus, firmou contrato com o Governo provincial em 1870 para estabelecimento de navegação no rio São Mateus (a empreitada, entretanto, fracassou e o contrato caducou). Grande parte de suas terras localizava-se em vila da Barra de São Mateus, onde encontrava-se uma de suas mais importantes propriedades: a fazenda Itaúnas. O título de barão foi concedido em decorrência de financiamentos de causas públicas, como a linha telegráfica na região do norte da província e ajuda financeira à Guerra do
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proibidos de entrar na igreja, cujas portas eram protegidas por guardas mineiros conservadores; finalmente, à noite, grupos de mineiros teriam saído
De imediato, os conservadores rebateram acusações; seu candidato à cadeira na câmara, José Fernandes da Costa, explicou que os relatos dos
por conta de algumas nomeações de autoridades policiais, como a do promotor público Andrelino Leite Barcelos. O cenário em São Mateus, segundo relato do fazendeiro Francisco Antonio Motta, seria dominado por dois grupos: um dirigido pelo barão de Timboy e outro pelo Dr. Raulino Francisco de Oliveira, juiz de
direito da
comarca; e todo ardil político da região seria
causado pelo atrito entre os dois rivais. Não por acaso, a versão dos conservadores em muito diferia das publicadas nos jornais liberais. Francisco Motta contou, por exemplo, que, no dia 3 de outubro, por volta de meio-dia, Lino Antônio de Chagas, crioulo, votante da parcialidade do barão, entrou na igreja com uma faca na mão e pulou em cima da urna para roubá-la; e só não teve êxito pois foi contido por alguns cidadãos. Mesmo assim, seu correligionário eleitoral
e membro da mesa
João Pereira dos Santos aproveitou o tumulto e empurrou com a
mão direita a urna, que caiu no chão. Diante da confusão, foi requisitada presença do tenente Pedro José Ribeiro, que colocou a urna intacta no lugar, faltando-lhe somente a chave de uma de suas fechaduras. O tenente ainda acusou o presidente da mesa, o promotor Andrelino (que fugira durante o conflito juntamente com os outros mesários), de furtar a chave. No dia seguinte, Andrelino teria tentado suicídio com um revólver, para o desespero de seus familiares, cujos gritos vinham da casa do promotor. Finalmente, os conservadores afirmaram que as portas da igreja permaneceram sempre abertas, livres para circulação de membros de ambos os partidos.
Paraguai. No alistamento eleitoral de 1881, o barão foi listado no 3º quarteirão de Itaúnas quando contava 45 anos. Nunca se casou. Faleceu em São Mateus em 19 de agosto de 1883. Conferir em SOUZA, Alexandre de Oliveira Bazilio de. Obra citada, p.146.
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Mineiro: o estrangeiro O episódio ocorrido em São Mateus não consiste em exceção nas arenas políticas do Império. A partir do Segundo Reinado principalmente, quando os partidos liberal e conservador já tinham sido plenamente estabelecidos, eram muito comuns disputas partidárias que iam desde a cúpula do governo até a boca das urnas de pequenas paróquias espalhadas por todo Brasil. Nesse sentido, os conflitos locais era normalmente originados na própria corte, cuja prolongamento dava-se por conta das associações políticas e da existência de cargos locais nomeados diretamente pelo governo central. Tanto que Francisco Belisário denunciava a participação constante da administração superior nas eleições locais, principalmente por meio de presidentes de província, juízes de direito e detentores de alguma patente de guarda nacional, cujas nomeações davainteiros na câmara da direita para a esquerda, sem que o país possa dar fé 230
das modificações políticas
.
Apesar de evidente importância para a compreensão do fenômeno político do Oitocentos, o enfoque deste trabalho não está nas lutas partidárias. Conforme supramencionado, o conflituoso ambiente eleitoral aparece aqui como pano de fundo, de onde se pode apreender com maior evidência a figura do agressor no imaginário dos personagens envolvidos. Nesse aspecto, há certa característica que parece bastante peculiar na história relatada: a menção aos mineiros. Na citada reportagem do jornal Da Opinião Liberal, mineiros armados são acusados de ameaçar os legítimos membros da mesa eleitoral organizada na igreja matriz. Do mesmo modo, José Bié, testemunha no inquérito realizado, relatou que o tenente José Aguirra invadira o local acompanhado de mineiros armados com faca. De fato, a testemunha usou reiteradamente a expressão, quando falou por exemplo de guardas mineiros
230
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. Obra citada, p.21.
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conservadores e grupos de mineiros que gritavam nas ruas pela morte do barão de Timboy. O uso da expressão mineiro merece análise cuidadosa. Muito mais do que mera menção a possível origem de participantes do conflito, o adjetivo talvez
revele
importantes
informações
sobre
seus
interlocutores:
nomeadamente sobre seus medos. Nesse diapasão, Koltai 231 chama a atenção para o significado psicanalítico do Outro, ou seja, do modo como a discriminação de determinados grupos é construção histórica reveladora da subjetividade dos agentes discriminadores. A autora acredita que fenômenos como o racismo seriam produzidos a partir do encontro com o (aparentemente) diferente, quando o sujeito passa a identificar no Outro aquilo que lhe é interno, mesmo que de forma inconsciente. Nesse cenário, negação e ressentimento da identificação dessa igualdade tornam-se críticos, e a violência transforma-se em válvula de escape.
Crescem respostas de segregação, a exemplo do
holocausto em tempos recentes. Não por acaso, Lacan advertiu que o massacre nazista não foi acidente único na história: nesse sentido, os processos de segregação estariam intensificando-se e não diminuindo232. Fatores como o aumento das taxas de imigração e o convívio próximo com o Outro não são traduzidos como oportunidades para aproximação e tolerância, mas campo para o exercício das contradições do desejo. O ressentimento do sujeito nasceria justamente de sua incapacidade de suportar o gozo do Outro, passando a discriminá-lo. Ressentimentos entre capixabas e mineiros talvez possam ser retraçados à conhecida guerra dos emboabas, no início do Dezoito. É conflito que integra as chamadas revoltas nativistas; ou seja, movimentos coloniais que tinham, em seu epicentro, o sentimento de amor à pátria e de opressão da metrópole, a exemplo da Revolta de Beckman, Insurreição Pernambucana e Guerra dos Mascates. Diferente destes, entretanto, o conflito em torno das minas teve a peculiaridade de despertar, dentro da historiografia sobre o tema, 231
KOLTAI, Caterina. Política e psicanálise: o estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.
232
Ibidem, p.117.
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inúmeros posicionamento ideológicos, principalmente em torno da definição do grupo que deveria genuinamente ser considerado o defensor da causa nacional: emboabas ou paulistas. É certo que tais posicionamentos estão ligados muito mais com a própria crença política do historiador, associação que fica clara desde os primeiros trabalhos sobre o tema, datados ainda do século 18, a exemplo de Rocha Pita, Manuel da Fonseca, Pedro Taques Paes Leme e Cláudio Manuel da Costa233. Como consequência direta, o conflito fez surgir a capitania de Minas Gerais e delineou a política portuguesa em relação a exploração aurífera. A proibição de ligação entre as larvas e o Espírito Santo talvez tenha a sido seu aspecto mais marcante para a capitania litorânea, que viu então a perda de terras então nela compreendidas 234. Desse modo, é somente a partir do Setecentos, com a descobertas das lavras, que a figura do mineiro surge na história, embora, desde logo, já passasse a figurar no imaginário receoso de seus vizinhos. A região de São Mateus viria a tornar-se elemento central da cisão, uma vez que fora incorporada por Minas Gerais em 1800, por ocasião do acordo de fronteiras entre as capitanias, que tomou como limite o rio Doce. A nova configuração entretanto não durou muito tempo, tendo São Mateus retornado ao território capixaba em 1823235. Foi também nas primeiras décadas do Dezenove que a comunicação entre as capitanias começou a ser estabelecida, fosse por meio do Rio Doce ou da então criada estrada nova do Rubim, que ligava Vitória a Vila Rica. Já no Império, as condições da estrada despertavam inúmeras preocupações, tendo sido contratada por isso sua reforma na década de 1830. Nos anos que se seguiram, novas vias de comunicação foram criadas e, até meados da segunda metade do dezenove, foram estabelecidas diversas rotas terrestres e fluviais, 233
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração de minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: editora UFMG, 2008. p.114-5. 234
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Arquivo público do Estado do Espírito Santo: Secretaria de estado da cultura, 2008. p.187. 235
CÔGO, Ana Lúcia. História agrária do Espírito Santo no século XIX: a região de São Mateus. Tese (Doutorado em História Econômica) Programa de Pós-Graduação em História Econômica, USP, São Paulo, 2007. p.22.
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partindo de norte ao sul da província capixaba em direção a Minas Gerais236. A comunicação pelo norte, a partir de São Mateus, recebeu destaque entre as propostas, sob o argumento inclusive de que, mesmo antes da criação de vila, já havia ligação das regiões237. Com o estabelecimento das novas vias, a queda da produção aurífera e o surto agrícola a partir do Segundo Reinado, o fluxo de mineiros que imigraram para o Espírito Santo, nomeadamente para a região norte, cresceu vertiginosamente, impulsionado em grande medida por favores do governo imperial. A política tinha como objetivo povoar os grandes sertões espíritosantenses, principalmente em torno do rio Doce 238. O cenário para o choque estava armado. O episódio de 1876 teve lugar justamente no período em que o fluxo imigratório disparava. O fator eleitoral certamente contribuiu para o afloramento dos sentimentos ressentidos, formador de possível círculo vicioso: nesse sentido, a disputa política seria não só causa, mas também válvula de escape, como explica Koltai. O estrangeiro violento e fraudador das eleições seria também os próprios conterrâneos e tal constatação um fardo que não se queria carregar. Tanto que, em suas versões, cada facção indicava estar no Outro o ilícito eleitoral. Meio de garantir que sua duplicata239 seria a aceita? Em parte, definitivamente. Mas não apenas de ardil político viviam aqueles homens no norte da província, então de frente a mineiros que os relembravam de sua própria história de rejeição e isolamento. Assim, em parte também era preciso extravasar os rancores... e que melhor lugar para fazê-lo do que em meio a carnaval mateense...!
236
OLIVEIRA, José Teixeira de. Obra citada, p.274-5; p.340; p.385.
237
CÔGO, Ana Lúcia . Obra citada, p.105.
238
OLIVEIRA, José Teixeira de. Obra citada, p.373.
239
Duplicata era o termo usado pelos contemporâneos para se referir à ata eleitoral, usado principalmente quando mais de uma mesa eleitoral fosse organizada, como ocorrido em São Mateus na história relatada.
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