Miniaturas e modelos de embarcações tradicionais do estuário do Tejo no acervo do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS)

August 30, 2017 | Autor: Adelina Domingues | Categoria: Museologia, Cultura Material, Museus, Documentação em Museus, Coleções E Museus, Patrimonio Marítimo
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Miniaturas e modelos de embarcações tradicionais do estuário do Tejo no acervo do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS)

Adelina Gomes Domingues Ecomuseu Municipal do Seixal 2013 1. Introdução Na presente comunicação procuramos refletir sobre o valor patrimonial das miniaturas de barcos que integram coleções de museus portugueses, analisando em particular a coleção de miniaturas e modelos de embarcações tradicionais do estuário do Tejo do Ecomuseu e o seu papel de recurso de comunicação e interação com os públicos. Após a referência a algumas perspetivas conceptuais, resultantes de diferentes abordagens sobre a miniaturização de embarcações, apresentaremos uma análise retrospetiva sobre o âmbito de produção e de conservação dos modelos de embarcações do EMS. A miniaturização é aqui entendida como forma de representação de embarcações em tamanho reduzido, quer seja feita a gosto por artesãos, quer seja feita seguindo as técnicas do modelismo. Nesta análise, daremos enfoque aos processos de execução e de conservação desta coleção, efetuados com a colaboração e os saberes-fazer de carpinteiros de machado, de pintores de embarcações, de pescadores e de outros marítimos, em articulação com a comunicação junto dos públicos e a utilização destes objetos enquanto acervo museal.

2. Enquadramento das coleções de modelos e miniaturas de barcos nos museus portugueses de temática flúvio-marítima Verificamos que, em Portugal, a maior parte dos museus de temática flúvio-marítima incorpora nos seus acervos miniaturas de barcos, utilizadas enquanto produtos de representação e recursos de ilustração de elementos da cultura e património marítimos. Consultada alguma bibliografia produzida sobre a miniaturização de barcos e sobre algumas coleções desta natureza, encontramos perspetivas conceptuais resultantes de diferentes abordagens que, na sua maioria, analisam estes objetos e enquadram o seu significado segundo o seu âmbito de produção. A miniaturização de barcos é considerada uma arte, uma forma de representação ou ilustração. Os objetos resultantes desse processo constituem fontes materiais, que documentam e exprimem realidades e memórias, assumindo-se como símbolos reveladores de identidades.

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Do ponto de vista da Antropologia, salientamos as perspetivas de João Leal (Leal, 2002:269), que, reportando-se ao trabalho de García Canclini (1998), refere que os “(…) processos de miniaturização permitem que o objeto de arte popular se dê como símbolo de uma totalidade”, ideia também expressa por Vera Alves (Alves, 2007: 77-78) que, aludindo às conceções de Claude Lévi-Strauss (em La Pensée Sauvage, 1962), afirma que o recurso às miniaturas envolve “significados culturais precisos” associados ao prazer estético e à possibilidade dos mesmos “permitirem (ou darem a ilusão de permitir) ter uma perceção imediata do todo”. A identificação da miniatura do barco “ao todo”, que constitui determinada realidade, alicerçase no facto de, como afirma Márcia Carvalho (Carvalho, 2011: 47) “Para a maioria das comunidades marítimas e para muitos estudiosos, uma embarcação exprime, na sua materialidade, tudo o que podemos entender por cultura marítima”.

Não sendo consensual a classificação destes objectos, quanto à sua produção, em termos de metodologias, técnicas de execução, materiais e executantes, apontamos algumas perspetivas sobre a miniaturização, nas vertentes do que é considerado modelismo, arte e artesanato, bem como sobre os correspondentes construtores de miniaturas e modelos de embarcações. Quanto aos executantes, o antropólogo Luís Martins (Martins, 2011:36) distingue três figuras: o modelista, que segue um plano ou desenha-o segundo uma escala, utilizando projetos desenhados por investigadores e tornando-se ele próprio um “(…) especialista de temas históricos e construtivos relacionados com o tipo de embarcações que constrói”; o artista, que miniaturiza os objetos centrando-se nas formas, seguindo uma escala e valorizando os aspetos estéticos associados ao “realismo proporcional das peças”; e o artesão, que segue uma escala, mas faz miniaturas a partir de estudos realizados através de esboços e fotografias, em que o “gosto circunstancial” prevalece sobre a “correspondência externa a um objeto”. Apontando traços comuns às três figuras evocadas, o mesmo autor refere que “Do ponto de vista dos procedimentos criativos as miniaturas possuem evidência estética e são a expressão pessoal de uma vida (…) Modelista, artista e artesão interpretam os artefactos como expressão de uma subjectividade”. (Martins, 2011:44) No catálogo Barcos do Brasil, publicado pelo IPHAN no âmbito da exposição com o mesmo título, é afirmada a distinção clara entre modelismo e artesanato, que traduz a perspetiva de executantes de modelos que se identificam como modelistas e que exercem esta atividade representando embarcações para fins museográficos. Para estes modelistas, “O modelismo distingue-se do artesanato naval pela utilização da escala (…), pela reprodução dos mínimos detalhes da embarcação e, em casos específicos, por estudo prévio de iconografia histórica, documentos antigos, fotografias ou mesmo in loco. Já o artesanato baseia-se mais no conhecimento empírico e afetivo que o artesão possui com o objeto do que na reprodução 2

fidedigna da embarcação. O ofício do modelista naval reúne, em uma única peça, arte, ciência e técnica”. (Barcos do Brasil, IPHAN, 2011:15). Analisando bibliografia da autoria de modelistas sobre esta atividade, constatamos que o modelismo é considerado uma arte que requer, para além de habilidade manual e de tempo, uma verdadeira cultura marítima necessária à compreensão do valor arqueológico e histórico das embarcações representadas. A arte da construção de um modelo é assim aliada à respetiva investigação. Atribuindo ao modelo um papel pedagógico, o modelista deverá ter conhecimentos para o contextualizar, situando-o num contexto real, dando-lhe a verdadeira dimensão, ou seja, deve saber fazê-lo “falar”. O modelo deve evocar com realismo um mundo marítimo desaparecido, deve suscitar emoções, apelar ao sentimento do belo e expressar património artístico e histórico. Constituindo na maior parte dos casos uma atividade de lazer e tempos livres, alguns modelistas dedicam-se ao que consideram ser um “modelismo histórico”, reproduzindo os barcos com reconhecimento histórico até ao ínfimo detalhe, através de um conhecimento profundo que adquirem sobre a embarcação representada. Entre as exigências mais destacadas pelos modelistas na execução de modelos, encontram-se a escolha de materiais e a técnica de execução de todos os elementos que constituem o artefacto, execução essa concentrada no modelista, o que requer amplitude de conhecimentos e polivalência de técnicas, que lhe permitam trabalhar com diferentes materiais e executar uma enorme diversidade de objetos. Na opinião de Carlos Montalvão, modelista com formação em História Marítima, “(….) um modelo deve corresponder a um objecto histórico e aquele que procura aperfeiçoar a habilidade manual encontra, em cada embarcação, a oportunidade para aumentar os seus conhecimentos teóricos e práticos acerca da construção naval e do seu mundo evolvente”. (Montalvão, 2008:24)

Segundo o modo de produção e os executantes, indicamos, como hipótese de análise, duas categorias nas quais se poderão agrupar a maioria das miniaturas e dos modelos de embarcações que integram coleções de museus portugueses. Não detendo por agora dados suficientes que possam validar estas categorias de análise, que aplicámos na análise das coleções de miniaturas e modelos de quatro museus, afigura-se-nos que as mesmas poderão vir a ser confrontadas com outros contributos e estudos que venham a ser realizados sobre coleções desta natureza. Uma primeira categoria é constituída pelas miniaturas e modelos executados por membros das comunidades marítimas ou com ligação profissional associada à navegação ou construção naval, em contexto museológico e fora dele. Entre estes executantes incluem-se atuais e antigos

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pescadores, carpinteiros e calafates navais, pintores de embarcações, marítimos e outros profissionais. Uma segunda categoria é constituída pelas miniaturas e modelos executados por “aficionados” que se identificam, ou são considerados, “artistas” ou “modelistas”, que dedicam os seus tempos livres ao modelismo, documentando-se, para o efeito, sobre tipologias de embarcações, técnicas e materiais de construção de modelos. Nesta categoria, incluem-se também modelos executados por modelistas que se baseiam na investigação histórica, seguindo tipologias e aplicando metodologias com rigor científico.

Relativamente aos objetos executados por membros das comunidades marítimas ou com uma ligação profissional associada ao meio marítimo, que situámos na primeira categoria, os executantes podem ser identificados como artesãos, artistas ou modelistas. As miniaturas ou os modelos produzidos seguem ou não um plano e uma escala, recorrendo ou não à investigação e à aplicação de metodologias com rigor científico, mas possuindo em comum memórias e vivências ligadas ao mar, que projetam e materializam nos objetos que produzem. As metodologias, as técnicas de produção e os materiais usados divergem, dependendo das circunstâncias e dos objetivos inerentes à execução das miniaturas. Algumas miniaturas foram executadas por iniciativa de carpinteiros navais ou de pescadores; uns, apenas com base em conhecimentos e memória que detêm sobre as embarcações, que construíram ou utilizaram; e outros recorrendo também a planos e documentação escrita. São vários os museus, nomeadamente os de temática flúvio-marítima, que selecionam este tipo de objectos para incorporação nos seus acervos. Existem ainda miniaturas ou modelos produzidos pelos museus, recorrendo a membros das comunidades marítimas que já se dedicavam a esta atividade, ou a outros executantes formados pelos próprios museus. Na maioria dos casos, estes objetos foram incorporados nos museus no âmbito da constituição de coleções e da criação de unidades museológicas de temática flúvio-marítima. Quanto à produção de miniaturas no âmbito da atividade dos próprios museus, tem a particularidade de quase sempre estar associada a ações de investigação, estudo e documentação sobre tipologias e contextos de utilização das embarcações representadas levadas a cabo por profissionais da instituição. As miniaturas resultantes destes processos de produção materializam aspetos históricos e constituem testemunhos de memórias e de saberes–fazer. Apresentamos, resumidamente, quatro exemplos de coleções de miniaturas resultantes destes processos de produção: as coleções de miniaturas do Museu Municipal de Sesimbra e do Museu

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Dr. Joaquim Manso da Nazaré; a coleção Seixas do Museu de Marinha e a coleção de miniaturas e modelos do Ecomuseu Municipal do Seixal. A análise breve destas coleções foi efetuada com recurso a um leque distinto de fontes. A informação sobre a coleção do Museu Municipal de Sesimbra decorreu do trabalho por nós produzido em 2006. Os dados apresentados sobre o Museu Dr. Joaquim Manso da Nazaré resultou de recente visita e recolha de dados junto da sua equipa técnica, bem como da consulta de catálogos de exposições e de registos de inventário (Matriznet) das miniaturas de embarcações. A consulta da monografia História da Colecção Seixas (1985), do Mestre Luís António Marques, facultou-nos os dados apresentados sobre a referida coleção do Museu de Marinha. A análise da coleção de miniaturas e modelos do Ecomuseu Municipal do Seixal foi efetuada com base na consulta e análise de documentação, alguma publicada, do EMS, da qual destacamos: o texto de Graça Filipe, “Uma coleção de modelos e miniaturas de barcos tradicionais do estuário do Tejo”, publicado no boletim Ecomuseu Informação nº 33 em 2004; o catálogo Barcos, memórias do Tejo, 2005, da autoria de Elisabete Curtinhal e coordenação de Graça Filipe; documentos técnicos produzidos por Graça Filipe, no âmbito da direção do Ecomuseu, dos quais destacamos o “Memorando / Breve balanço sobre o património e a cultura flúvio-marítimos na programação e na actividade do Ecomuseu Municipal do Seixal (…)”, 2007, e “Ponto de situação sobre a programação museológica do Ecomuseu Municipal do Seixal [EMS] – dezembro 2009”; documentos técnicos de 2009, com propostas de reorganização da oficina do Núcleo Naval e programas de cursos de modelismo, da autoria de Carlos Montalvão. Socorremo-nos ainda da análise de registos de inventário da presente coleção. Para a análise da coleção de miniaturas e modelos do Ecomuseu, bem como da elaboração da presente comunicação, contámos ainda com os preciosos contributos que nos foram transmitidos por Graça Filipe.

O Museu Municipal de Sesimbra incorpora uma coleção de miniaturas de embarcações usadas nas artes de pesca de Sesimbra, constituída pelo Museu a partir dos anos de 1980 no âmbito da recolha, produção e incorporação de acervo para criação de uma unidade museológica de temática marítima. Esta coleção foi maioritariamente executada por um antigo pescador, que numa oficina municipal transmitiu o seu saber-fazer na execução de miniaturas a outros artesãos que acabaram por executar modelos também integrados na mesma coleção. Estas miniaturas representam a diversidade de tipologias de embarcações utilizadas ao longo dos tempos nas diversas artes de pesca, exprimem a mudança das técnicas e tecnologias e dos equipamentos aplicados em diferentes momentos, nos diferentes tipos de embarcações, ilustrando ainda os processos técnicos da pesca, da construção naval e da navegação. 5

A maioria das miniaturas constituem representações criadas ao gosto e sobretudo segundo o conhecimento resultante das próprias vivências, experiências e memórias dos seus autores e não de reproduções de embarcações executadas à escala ou tomando por referência planos existentes. Algumas das reproduções são representações de embarcações que existem ou existiram em Sesimbra, efetuadas mediante a observação “in loco” da embarcação “verdadeira” e a subsequente transposição para o papel e, daí, para o artefacto a três dimensões, com base na experiência e vivência do seu executante enquanto pescador. Cada representação reproduz por isso as características da embarcação, incluindo as respectivas cores, os símbolos e os apetrechos de pesca.

O Museu Dr. Joaquim Manso da Nazaré possui uma coleção de miniaturas maioritariamente constituída a partir da década de 1980, no âmbito de recolhas e da produção, por solicitação do Museu, por parte de profissionais da construção naval, marítimos e pescadores que já se dedicavam à miniaturização de barcos. Parte das miniaturas foi produzida com base na recolha e na documentação desenvolvidas pelo Museu sobre tipologias e características das principais embarcações associadas às artes de pesca que efetivamente operaram na Nazaré. As técnicas aplicadas à produção destas miniaturas são diversas, dependendo dos conhecimentos, interesses e experiências dos seus executantes. Integram esta coleção miniaturas produzidas com e sem escala, seguindo ou não um plano, aplicando técnicas da construção naval na execução do casco ou executando-o escavando em bloco um pedaço de madeira. Nesta coleção destacam-se dois tipos de miniaturas de barcos: um, que apresenta apenas o esqueleto da embarcação, representando determinada fase da construção naval em madeira; e outro, que reproduz o barco “finalizado”, representando tipologias e características das embarcações que operaram na Nazaré. No primeiro caso, trata-se de modelos executados por carpinteiros da construção naval que pretendem representar as técnicas e as fases da construção de uma embarcação; no segundo caso, são modelos executados por profissionais da construção naval e pescadores, cujas miniaturas reproduzem as características da embarcação “verdadeira”, incluindo as matrículas, as respectivas cores, símbolos e apetrechos da arte de pesca em que eram utilizadas. Ainda como exemplo de modelos executados por membros das comunidades marítimas ou com ligação profissional associada à navegação ou construção naval, salientamos a Coleção Seixas do Museu de Marinha. Apesar de produzida em época e contextos diferentes dos dois anteriores casos, os modelos desta coleção foram executados por equipas de artífices, na sua maioria do Arsenal da Marinha, mas também com recurso a carpinteiros de machado, mestres de embarcações, marinheiros 6

(militares), poleeiros, especialistas em aparelhar embarcações, pintores, maquinistas de vapores, entre muitos outros. De salientar, no entanto, que os modelos desta coleção foram executados à escala, com a preocupação de reproduzir em miniatura o original, constituindo réplicas das embarcações representadas. A produção desta coleção baseou-se na investigação, que o seu mentor, Maufroy de Seixas, realizou, através do levantamento e estudo sobre embarcações e respetivos contextos. Para tal recorreu a diversas fontes, tais como: a recolha e consulta de documentação escrita; o registo fotográfico e o desenho efetuados por vários desenhadores e modeladores, que integraram a equipa orientada pelo próprio Seixas, no âmbito de deslocações efetuadas pela costa marítima e zonas ribeirinhas do país para observar as embarcações, fotografá-las e registar dados sobre as mesmas; conversas com interlocutores privilegiados, nomeadamente pescadores, oficiais da Marinha, mestres de todo o tipo de embarcações. E procedeu ainda à aquisição de miniaturas de embarcações.

3. A coleção de miniaturas e modelos do EMS: contexto de produção e utilização O EMS integra no seu acervo 90 miniaturas de embarcações, na sua maioria representativas de embarcações tradicionais do estuário do Tejo, mas também modelos de barcos de outros contextos do litoral português. Esta coleção é maioritariamente constituída por dois conjuntos: um produzido pelo museu no âmbito das suas atividades formativas, para fins museográficos e de comunicação; e outro executado por um modelista e doado ao Ecomuseu. O primeiro conjunto constitui uma parte significativa da coleção de modelos e miniaturas de embarcações tradicionais do estuário do Tejo. Foi produzido por diversos executantes e está associado ao próprio percurso do Ecomuseu e das atividades que em grande medida conferem a vocação flúvio-marítima deste projeto museal. Os modelos que integram este conjunto foram incorporados no acervo do EMS para fins museográficos, museológicos e de divulgação dos processos de execução junto dos públicos. O conjunto a que nos referimos tem servido de recurso de comunicação e interação com os públicos tanto nos seus processos de execução e conservação, com a colaboração e os saberes de carpinteiros de machado, pintores de embarcações, pescadores e outros marítimos, como noutras utilizações na qualidade de objectos conservados enquanto acervo. O segundo conjunto de modelos foi executado pelo modelista Estêvão Carrasco, doado à Câmara Municipal do Seixal pela sua família em 2011 e incorporado no acervo do Ecomuseu. O modelista desenhou e executou estes modelos à escala, entre 1990 e 1996. Este conjunto abrange um leque diversificado de tipologias representando barcos da costa portuguesa, na sua maioria reportados à primeira metade do século XX, mas com particular destaque para as 7

embarcações tradicionais do estuário do Tejo. Estes modelos refletem também a evolução tecnológica aplicada à navegação através da representação de embarcações com propulsão à vela, a remos e a vapor. Para a execução destes modelos, o modelista, sem anterior ligação a atividades marítimas, inspirou-se e documentou-se em planos de embarcações e outra bibliografia, no contato com modelistas e especialistas e na observação de embarcações tradicionais recuperadas e a navegar, assim como de coleções de entidades como o Ecomuseu Municipal do Seixal e o Museu de Marinha.

Para melhor compreender e contextualizar a produção e valor patrimonial do primeiro conjunto - de modelos construídos no EMS - importa referir os contextos e o âmbito em que foram executados.

Com uma estrutura territorial descentralizada, o Ecomuseu integra um conjunto de sítios correspondentes a cinco núcleos e três extensões museológicas de diversas temáticas ligadas ao território, ao património cultural e à população do Concelho do Seixal e gere três embarcações tradicionais do Tejo, conservadas e reutilizadas em passeios no rio, enquanto património navegante. Na Proposta de criação do Museu Municipal do Seixal de 1982, era contemplada a criação de um Núcleo Naval e “uma oficina de carpinteiro de machado e calafates”. Esse local de trabalho foi instalado, em 1983, provisoriamente, na sala de exposições do Núcleo Sede, onde um mestre carpinteiro de construção naval passou a construir modelos de barcos tradicionais do Tejo, à escala, com base em planos do Museu de Marinha e no seu conhecimento e experiência. Esse mestre, Arnaldo Cunha, foi o executante de boa parte dos modelos produzidos pelo Ecomuseu. O Núcleo Naval de Arrentela foi inaugurado e aberto ao público em 1984, com uma exposição permanente e uma oficina de construção de modelos, num edifício e no sítio de um estaleiro naval de Arrentela, que estivera ativo até final dos anos 1970. No novo espaço da oficina, o mesmo carpinteiro deu continuidade à execução de modelos e, entre 1987 e 1988, foi o formador de um curso profissional sobre construção naval na vertente das miniaturas de embarcações, organizado pela CMS/Ecomuseu e pelo Instituto de emprego e Formação Profissional. No âmbito desta formação foram executados, pelos formandos, diversos modelos que viriam a integrar o mesmo conjunto de modelos e miniaturas de embarcações tradicionais do Tejo.

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Em 1992 iniciou-se um projeto de remodelação do Núcleo Naval que implicou o encerramento da exposição, para dar lugar a uma nova oficina, num edifício construído de raiz no lugar de um antigo barracão do estaleiro. Em 1993 foi inaugurada a então designada Oficina Artesanal de Modelos de Barcos do Tejo, com condições logísticas e equipamentos adequados à construção de modelos de barcos de madeira, cuja atividade contou com a colaboração do já referido carpinteiro de machado, Arnaldo Cunha, e com uma nova artífice, Luciana Casanova, com funções de artificie. Mais tarde viria juntar-se-lhe outro artífice, Fernando Dâmaso. O novo espaço da oficina, prevendo posterior ligação ao edifício destinado a exposições que se encontrava em obras, proporcionou o desenvolvimento de novos projetos de educação museal, nomeadamente as Oficinas de Iniciação à Construção Naval Artesanal, que seriam consideradas na programação do serviço educativo do museu, constituindo nas palavras da então diretora do Ecomuseu, uma “(…) experiência singular nas actividades realizadas no núcleo naval com a participação de outras entidades locais e regionais” (FILIPE, 2007:8). Neste novo espaço os artesãos passaram a dedicar-se à construção de modelos de barcos do Tejo, no âmbito de um plano de trabalho que visava completar e atualizar a coleção de modelos de barcos do estuário do Tejo e restaurá-la faseadamente, na perspetiva de uma futura exposição. Seguindo este objetivo, de 1993 a 2005 foram construídos novos modelos de embarcações do Tejo e intervencionados modelos executados a partir de 1983, perspetivando a sua utilização para fins museográficos. As atividades da oficina foram desenvolvidas no âmbito da programação do EMS, que a partir de 1991 fomentou a transmissão de técnicas e saberes e, no que se refere à construção de modelos de barcos, a oficina foi dotada de condições para a construção de modelos de barcos e, em simultâneo, para acolher visitantes, prevendo-se a sua inserção no circuito expositivo programado para o Núcleo Naval. Entre os executantes das miniaturas e modelos de barcos do Ecomuseu, encontram-se o carpinteiro de machado, Arnaldo Cunha, os alunos do curso de construção naval (1987/1988) e os artífices que integraram a equipa da Oficina. Na conservação e nos acabamentos de parte da coleção colaboraram ainda, além dos artífices da Oficina, carpinteiros de machado, marítimos e pintores de embarcações e pescadores, no quadro do trabalho do Ecomuseu com as comunidades marítimas. Destacamos o papel do técnico e membro das tripulações das embarcações do EMS, João Martins, coordenador da área de património marítimo e do funcionamento da Oficina, na mediação e articulação do trabalho desenvolvido pelos artífices com elementos provenientes do meio profissional ligado ao rio e aos estaleiros navais, detentores do conhecimento das técnicas de construção naval.

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Destas colaborações salientam-se alguns nomes, cujos saberes-fazer, memórias e técnicas se materializam em alguns modelos da coleção. ◊

António Quintino: antigo pescador, desenvolveu atividade como artesão de miniaturas de barcos e colaborou com o Ecomuseu no âmbito dos modelos de pesca tendo aparelhado um modelo de bote-de-tartaranha;



Henrique Rodrigues: antigo marítimo e mais tarde pintor de embarcações do Tejo, artesão de miniaturas de embarcações, colaborou em diversas atividades do Ecomuseu, entre as quais a participação numa exposição sobre barcos do Tejo e na realização de ateliês de pintura tradicional em Plaisir, França, em 1993. Pintou miniaturas executadas por José Martins que integram a coleção do Ecomuseu;



José Francisco Lopes: mestre construtor naval e pintor, colaborou com o Ecomuseu e prestou serviços na recuperação das embarcações tradicionais, tendo sido autor das suas pinturas decorativas vários anos;



José Martins: marítimo com experiência em estaleiro de construção naval, tornou-se artesão de miniaturas de embarcações e é executante de alguns exemplares do EMS.

Ainda decorrente do trabalho e dos contactos realizados pelo Ecomuseu junto das comunidades marítimas, destaca-se a conservação, realizada na Oficina, de uma miniatura de muleta em depósito na instituição, e a sua utilização em celebrações religiosas na paróquia do Seixal durante a década de 1990. A cedência temporária da miniatura correspondeu à vontade da comunidade local em manter um dos aspetos da vida social e religiosa associada aos pescadores, a festa de S. Pedro, seu padroeiro, celebrada no dia 29 de Junho, atualmente feriado municipal. Enquanto a pesca manteve um papel importante na economia local, a festa era organizada e custeada pelos pescadores, que transportavam em procissão a imagem de S. Pedro numa miniatura de muleta, elemento que constituiria um símbolo identitário da comunidade de pescadores. Trata-se de uma miniatura executada por um mestre carpinteiro de machado do Seixal, José Silva, que foi utilizada na procissão até ser executada, também na Oficina do EMS, uma nova miniatura de muleta, que o Ecomuseu ofereceu à Paróquia. Durante o período entre 1993 e 2005, as atividades da Oficina foram desenvolvidas em articulação com o acolhimento de visitantes, que podiam observar a construção de modelos de embarcações tradicionais do Tejo, no âmbito da qual tinha lugar a transmissão do património gestual, através do saber fazer e das técnicas de construção naval em madeira, proporcionando o contacto e o conhecimento com as diversas tipologias e funções de barcos tradicionais. Em articulação com a construção de barcos, desenvolveram-se diversas atividades de divulgação naquele espaço, que passou a estar enquadrado na programação de exposições e atividades

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temporárias realizadas com os públicos do Ecomuseu incidindo sobre temáticas flúviomarítimas.

Resultante de uma reformulação arquitetónica e museográfica, mantendo, ainda nas palavras de Graça Filipe “(…) por objetivo a aplicação e a comunicação das técnicas artesanais de construção de modelos de barcos, para a valorização do património náutico do estuário do Tejo” (FILIPE, 2007:11), em 2005 foi instalada e inaugurada a exposição de longa duração Barcos, memórias do Tejo, na qual foram integradas as miniaturas até então produzidas, mantendo-se a oficina como espaço contíguo e integrante do percurso expositivo. Esta exposição procura transmitir a memória do antigo estaleiro e dá a conhecer o património cultural do estuário do Tejo através dos modelos de embarcações do Tejo produzidos para o efeito, ilustrativos das principais tipologias de embarcações tradicionais, de tráfego local e de pesca, as técnicas de construção associadas e o trabalho dos marítimos. Integrando o percurso expositivo do Núcleo Naval, entre 2005 e 2009, a atividade da Oficina decorreu em coexistência com pequenas exposições temporárias realizadas neste espaço, no qual se realizaram actividades diversas, incluindo as educativas associadas à temática marítima.

Atendendo à progressiva dissolução do meio técnico da construção e reparação navais, com o inerente desaparecimento de executantes de representações de embarcações, e num contexto em que o modelismo naval mobiliza cada vez mais interessados, entre 2008 e 2009 foi programada a reformulação da Oficina do Núcleo Naval. Procedeu-se à conversão da Oficina Artesanal de Modelos de Barcos para Oficina de Modelismo Naval recorrendo para o efeito à colaboração de um modelista com formação em História Marítima, especializado em história da construção naval, que procura aliar a execução de modelos de embarcações ao conhecimento científico. Em 2009 a Oficina do Núcleo Naval foi reformulada e equipada como oficina de modelismo naval, com ferramentas manuais e mecânicas e máquinas de precisão adequadas à prática do modelismo profissional, dando-se início a um programa de formação e de actividades destinadas aos públicos fidelizados do Ecomuseu e com o intuito de interessar novos públicos. Nas palavras da responsável pelo Ecomuseu e sua programação, Graça Filipe, “Esta nova direção de trabalho visava articular-se com a programação de uma nova exposição de longa duração em intenção sobre a construção naval, as técnicas tradicionais de construção em madeira, continuando a produzir modelos de embarcações enquanto recursos museográficos, e os processos de transmissão de saber e de formação na área da construção naval” (FILIPE, 2009:8). Entre 2009 e 2012 realizaram-se quatro cursos de Iniciação e Desenvolvimento em Modelismo Naval. Durante o decorrer dos cursos, o espaço da oficina manteve-se integrado no percurso expositivo e aberto à visita, permitindo aos visitantes a observação das atividades de modelismo 11

naval e a interação destes com o formador e formandos. Através da visita facultou-se ao público interessado o acompanhamento da evolução e processos de construção de determinado modelo, trabalho que também foi possível seguir através da web, onde foi disponibilizada informação escrita e fotográfica. O contato com a atividade da oficina acabaria por despertar em alguns visitantes o interesse pelo modelismo e, desse modo, angariar novos formandos. Concluindo, este conjunto de modelos de barcos tradicionais do Tejo foi produzido e constituído no âmbito das actividades do Ecomuseu para ilustrar a diversidade de tipologias de embarcações, adaptadas à navegação flúvio-marítima do estuário do Tejo e às funções em que as comunidades ribeirinhas as utilizaram, quer no transporte de pessoas e bens quer na pesca. Esta coleção foi produzida com fins museológicos e museográficos por diferentes executantes e com aplicação de tipologias e técnicas diversificadas nos processos de representação, detendo valor patrimonial na medida em que representa e testemunha memórias, vivências, saberes-fazer e técnicas artesanais, ligados à construção naval artesanal em madeira e à navegação tradicional do estuário do Tejo. Sem a preocupação de representar determinadas embarcações que efetivamente existiram e navegaram no Estuário do Tejo, os modelos do Ecomuseu foram executados à escala, artesanalmente, tomando por referência planos do Museu de Marinha e outros. A produção destes modelos baseou-se na informação oral recolhida junto de intervenientes, com experiência e conhecimentos relacionados com actividades marítimas no estuário do Tejo, e na colaboração e os saberes de carpinteiros de machado, pintores de embarcações, pescadores e marítimos. Integram também a coleção, miniaturas criadas ao gosto e segundo as memórias dos seus executantes. Este conjunto de modelos foi maioritariamente produzido na Oficina do Núcleo Naval, aberta ao público a partir de 1984, onde artesãos produziram modelos de barcos do Tejo com o objetivo e completar e atualizar a coleção de modelos de barcos do estuário do Tejo e restaurá-la faseadamente, na perspetiva de uma exposição aberta ao público desde 2005 – Barcos, memórias do Tejo. No âmbito deste objetivo, de 1993 a 2005 foram construídos novos modelos de embarcações do Tejo e intervencionados os modelos executados desde 1983. Seguindo a política do Ecomuseu que fomentava a transmissão de técnicas e saberes, entre 1993 e 2005, a construção artesanal de modelos de embarcações foi desenvolvida em articulação com o acolhimento de visitantes na Oficina. No âmbito desta atividade tinha lugar a transmissão do património gestual e das técnicas de construção naval em madeira, proporcionando aos visitantes o contacto e o conhecimento sobre as diversas tipologias e funções de barcos tradicionais.

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Decorrente da conversão de Oficina Artesanal de Modelos de Barcos para Oficina de Modelismo Naval, entre 2009 e 2012, a construção de modelos, agora integrada na formação em modelismo, realizou-se no espaço da oficina, que se manteve integrado no percurso expositivo Barcos, memórias do Tejo, permitindo aos visitantes a observação das atividades de modelismo naval e a interação destes com o formador e formandos. Através da visita facultou-se ao público interessado, o acompanhamento da evolução e processos de construção de modelos.

Referências bibliográficas

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