Minicurso O Imperialismo segundo David Harvey e Rosa Luxemburgo

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Minicurso O Imperialismo segundo David Harvey e Rosa Luxemburgo1 Thiago Fernandes Franco2

Resumo O objetivo deste texto é analisar a maneira peculiar pela qual David Harvey se apropriou do pensamento de Rosa Luxemburgo em O novo imperialismo. Com a intenção de demarcar as diferenças, procuramos estabelecer em linhas gerais o fundamental das teses de Rosa em A acumulação do Capital para em seguida apresentar uma exposição sistemática do movimento textual do livro de Harvey com destaque para suas variadas influências, tentando explicitar seu ecletismo. Então, procuramos tecer considerações críticas a determinadas posições políticas de Harvey em seu texto e relacioná-las a essas influências teóricas, argumentando que, segundo nossa interpretação, Rosa Luxemburgo não é a principal referência de Harvey e que este autor não compartilha de suas posições políticas centrais. Em seguida, apresentamos nossa crítica à concepção de imperialismo de Harvey.

Palavras-chave: Imperialismo; Rosa Luxemburgo; David Harvey; Marxismo.

Introdução: A herança crítica de Rosa Luxemburgo para a historiografia marxista, em diversas áreas, é incontestável. Entretanto, por motivos que não nos cabe analisar aqui – que passam pelo conteúdo de suas teses, pelo machismo e diversos outros – principalmente após o seu brutal assassinato suas ideias foram atacadas com grande intensidade e por todos os lados – talvez, principalmente, no interior do marxismo. Essa crítica – raramente rigorosa no que toca o diálogo com a sua obra e a demonstração dos argumentos – forjou uma linha hegemônica na historiografia sobre Luxemburgo que até concede a ela certa originalidade e importância, mas não sem sublinhar insistentemente seus “erros”. Na historiografia sobre o imperialismo não foi diferente. E talvez aqui tenha sido ainda mais intenso o ataque. Deixemos registrado que, do nosso ponto de vista, isso se deve à extrema radicalidade de suas ideias, que levam a luta anticapitalista ao paroxismo. Não teremos condição de demonstrar esse ponto aqui a contento. Vimos fazendo isso noutros trabalhos3. Ainda no que toca o imperialismo, esse ataque se dá na afirmação da Este texto foi pensado como base para o minicurso de mesmo nome ministrado na XIV Semana de Relações Internacionais da Unesp, em agosto de 2016. Tem por base excertos de nossa tese de doutorado (FRANCO, 2015). 2 Professor da Universidade Católica de Santos (Unisantos), Pesquisador do LARI-Unisantos e do GENII (Unicamp). Mestre e Doutor em História Econômica (Unicamp). Bacharel em Relações Internacionais (Faculdades de Campinas) e em Ciências Sociais (Unicamp). [email protected] 3 CF: Franco (2011; 2015); Murua e Franco (2016). 1

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incapacidade de Rosa justamente em uma área em que durante toda a sua vida pública foi reconhecidamente magistral: a crítica da Economia Política – não apenas de Marx, mas de toda a História do Pensamento Econômico. Esses ataques contra a concepção de Luxemburgo sobre o imperialismo no interior do marxismo teve por efeito central o destaque praticamente absoluto das teses de Lenin em Imperialismo, etapa superior do capitalismo, com o reconhecimento de duas outras figuras centrais: Hilferding, o predecessor, e Bukharin, o sucessor – e um dos principais combatentes das teses de Rosa. Do nosso ponto de vista, parece bastante sintomático da força das teses “luxemburguistas” que, ainda que seja para contestá-la, na esmagadora maioria dos casos não se consegue traçar qualquer historiografia sobre o Imperialismo de uma perspectiva marxista sem passar por este legado. Mas o que nos interessa reter por enquanto é que, por outro lado, paira sobre as interpretações inspiradas em Rosa um certo tabu e as pessoas que revindicam a potência dessas idéias fatalmente acabam sendo atacadas por muitos lados. Entretanto, a despeito das críticas teóricas dificilmente encaráveis senão a partir de um certo conhecimento formal não de todo simples – novamente demonstrando a força dessas ideias – o legado político de Rosa se faz notar em diversos movimentos sociais de luta anticapitalista. Do ponto de vista historiográfico – que é o núcleo de nosso argumento neste trabalho – nos parece inconstestável que as ideias luxemburguistas ganharam um fôlego novo a partir da publicação de O novo imperialismo, do best seller global David Harvey. Concebido às vésperas da invasão estadunidense em sua Guerra sobre o Iraque – enquanto o autor ainda possuía uma “tênue esperança”de que ela poderia ser evitada (cf: HARVEY, 2004 [2003]) – com o objetivo de “examinar a atual condiç~o do capitalismo global e o papel que um ‘novo’ imperialismo poderia estar desempenhando em seu }mbito” (mesma obra, p. 11) O novo imperialismo é possivelmente – mais de dez anos passados – o mais importante trabalho sobre o imperialismo publicado no século XXI. Por motivos que comentaremos mais à frente, grande parte desse detaque se deve à import}ncia da idéia de “acumulaç~o por espoliaç~o”4, desenvolvida tomando por base uma citação de Rosa. Vejamos, então as semelhanças e diferenças entre os argumentos de cada uma das obras.

O Imperialismo segundo Rosa Luxemburgo Rosa Luxemburgo foi uma das mais destacadas figuras do marxismo no começo do século XX. Suas obras teóricas tiveram grande repercussão. Foi uma das principais No original “accumulation by dispossession”. As traduções variam entre “acumulaç~o por espoliaç~o”, acumulaç~o por despossess~o” e “acumulaç~o por expropriaç~o”. Aqui utilizamos essas variações sem um critério definido.’ 4

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oradoras do partido social-democrata alemão (SPD) e delegada da Internacional Socialista representando o partido social-democrata do Reino da Polônia (SDPR) – mais tarde Social Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL). Além disso, foi professora de Economia Política e História Econômica da escola do SPD em Berlim e escritora e editora de alguns dos mais importantes veículos da imprensa revolucionária em língua alemã. Em cada uma dessas posições, participou ativamente das principais discussões socialistas de seu tempo. Mas que papel tem o debate sobre o imperialismo neste contexto? A compreensão da discussão sobre o imperialismo na obra de Rosa, em nosso juízo, deve partir de três pressupostos. O primeiro deles é que – assim como para todas as outras figuras do socialismo no período – para Rosa Luxemburgo o imperialismo não era de imediato um tema central, mas do contrário, foi-se tornando um tema importante somente com o transcorrer dos anos. O segundo, é que sua produção – novamente, como para todas as outras figuras do socialismo no período – é esparsa. Sendo assim, a compreensão de seu pensamento não pode prescindir da análise cuidadosa de uma extensa produção que ultrapassa em muito as obras canônicas. Suas obras que são hoje – com justos motivos – consideradas as principais, longe de serem obras definitivas, eram encaradas por Rosa como contribuições aos debates em aberto. A acumulação do capital, por exemplo, foi pensada, como expresso no subtítulo, como uma “contribuiç~o ao estudo econômico do imperialismo”. O terceiro pressuposto, igualmente importante, é que Rosa era uma das principais defensoras da idéia de que era uma tarefa teórica fundamental do marxismo demonstrar o necessário vínculo entre as práticas de agressões internacionais dos Estados e as leis fundamentais da acumulação do capital. Este é um dos núcleos centrais de toda a sua produção bibliográfica desde, pelo menos, o artigo Reforma ou Revolução social?, a polêmica contra Bernstein que lhe conferiu grande notoriedade teórica entre as principais figuras do marxismo internacional. Apesar de não encontrarmos na extensa obra luxemburguista uma sistematização das idéias sobre o imperialismo nos moldes do que encontramos na obra máxima de Lenin sobre o tema – que é mais um dos motivos pelos quais Rosa enfrenta ainda hoje resistências teóricas no interior do marxismo – pensamos que suas ideias são de grande valia para nossa própria compreensão do capitalismo. A seguir, exporemos brevemente algumas de suas idéias fundamentais sobre o imperialismo. Não faremos aqui a exposição sistemática deste problema, pois ela exige mais espaço do que temos. Abordamos esse assunto noutros trabalhos5.

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CF: Franco (2011, 2015).

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A reprodução social total Sob nosso juízo, a mais importante da contribuição de Rosa Luxemburgo para os estudos do imperialismo é o destaque dado à reprodução social total – que aparece desde a primeira linha do livro. Motivada pela necessidade de demonstrar a relação entre o militarismo e a reprodução mesma do modo de produção capitalista, é por este que ela inicia sua exposição. Neste momento, trata-se de um problema específico, que retoma idéias caras ao materialismo histórico. Para manter-se enquanto uma coisa razoavelmente coesa, toda sociedade precisa reproduzir determinados padrões sociais que garantam tanto a sua sobrevivência emsentido estrito quanto a sua permanência enquanto uma sociedade – portanto determinadas características “sociais”, “culturais” e “políticas” específicas. Um modo de produção é uma maneira específica de organizar essas formas de vida e, portanto, somente podemos definir como “capitalista” um modo de produç~o distinto dos demais. Mas indicá-lo não basta. Cumpre que se demonstre quais são as especificidades desse modo de produção. E no que consiste a especificidade da forma capitalista de reprodução da sociedade? Em suas palavras, em uma comunidade agrícola básica do tipo comunista, a reprodução bem como o plano econômico geral são determinados pelo conjunto dos que trabalham e por seus órgãos democráticos. A decisão sobre o reinício do trabalho, sua organização, o cuidado com os pré-requisitos necessários, como matérias-primas, ferramentas, mão-de-obra, e, finalmente, a determinação das proporções e da distribuição da reprodução são resultado da ação conjunta planificada de todos os membros pertencentes à comunidade. Em uma economia escravista ou em um feudo, a reprodução é imposta e regulada em todos os detalhes pelas relações pessoais do domínio senhorial. As proporções dessa reprodução têm seus limites traçados pela maior ou menor quantidade de mão-de-obra estranha que se encontra à disposição do centro dominante. [...] nas culturas primitivas, somente circunstâncias exógenas, como uma guerra devastadora ou uma grande peste, ocasionando o extermínio da população e, com isso, uma destruição em massa da mão-de-obra e dos meios de produção estocados, costumam levar a uma interrupção da reprodução, ou da retomada em diminuta proporção, durante períodos mais ou menos longos. (LUXEMBURGO, 1985 [1913], p. 8)

Por outro lado, “na sociedade baseada na produç~o capitalista, a reproduç~o se molda de maneira bem característica como nos mostra a simples observação de certos aspectos mais marcantes”(mesma p|gina). Prossegue: em certos períodos, verificamos que, apesar de não se apresentarem os meios de produção materiais, bem como a mão-de-obra necessária para o início da produção, e, não obstante, existirem exigências sociais insatisfeitas de consumo, mesmo assim parte da reprodução se interrompe totalmente e parte só se efetua de forma atrofiada. Contudo, nenhuma intervenção despótica é responsável, nesse caso, pelas dificuldades do processo de produção. O início da reprodução, nesse

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caso, não depende somente de condições técnicas, nem simplesmente de condições sociais. Depende, sobretudo, do fato de se fabricarem tãosomente produtos cuja perspectiva de realização seja certa, isto é, que possam ser trocados por dinheiro; que não só possam ser realizados, mas que o sejam com lucro de magnitude habitual no país. O lucro como meta e fator determinante, não domina, nesse caso, tão-só e simplesmente a produção simples, mas igualmente a reprodução. Assim, preside não só o método e alvo dos respectivos processos de trabalho (bem como da distribuição referente do produto), como também estabelece a proporção e o sentido que tomará o processo de trabalho quando novamente retomado, após a conclusão de um período de trabalho anterior. (mesma obra, p. 9)

Rosa está neste passo seguindo Marx quando este argumenta que “se a produç~o tiver forma capitalista, a reproduç~o também ter|” (MARX, citado em LUXEMBURG, 1985, p. 9). Ao que aparece novamente a questão de que, diferentemente de sociedades despóticas ou de comunidades pequenas que organizam elas mesmas todas as condições de sobrevivência, em uma sociedade capitalista as decisões de produção se dão por meio de decisões anárquicas. Então, Rosa passa a se perguntar por que mecanismos essa sociedade, a despeito dessa “anarquia”, mantém sua coes~o. É not|vel que a autora descarte, de antemão, a ilus~o liberal sobre a “harmonia de interesses” e, ao mesmo tempo, perceba que esse caos não pode ser senão uma aparência. Com efeito – taí a Etnografia que não nos deixa mentir – não é possível conceber uma sociedade sem normas que a regulem e confiram a ela determinados graus de coesão. Sendo assim, é lógico que se coloque o problema de como essa sociedade capitalista na qual não existe uma regulamentação específica sobre a normatização das condições necessárias à organização da vida pode se perpetuar, uma vez que as decisões necessárias para a reprodução elementar da vida nestas formas sociais não estão voltadas às necessidades humanas, mas estão subordinadas ao lucro. A reprodução, nestes termos, não poderia se dar senão de forma errática, com movimentos de alternância periódica entre expansões e recessões; e por meio de crises. Mas a ciclicidade a a ocorrência de crises, “mesmo constituindo aspectos essenciais da reprodução, não representa[m] o problema real, ou seja, o problema da acumulação capitalista” (mesma obra, p. 10). Isto porque,

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a alternância conjuntural periódica e as crises fazem com que a reprodução capitalista, como regra, oscile em torno do total das necessidades sociais solventes, ora subindo acima dessas necessidades, ora descendo abaixo delas, quase à interrupção total. Entretanto, se considerarmos um período maior de tempo, um ciclo completo com as respectivas alternâncias conjunturais, contrabalançam-se os períodos exponenciais da conjuntura e as crises, ou seja, os momentos de superexpansão da reprodução e os da depressão e interrupção. (mesma página)

Deste modo, “apesar dos altos e baixos conjunturais, apesar das crises, as necessidades sociais são, bem ou mal, satisfeitas; a reprodução segue adiante em sua marcha complicada e as forças de produção se desenvolvem sempre mais” (mesma página). Portanto, o problema da reprodução é o problema de como a sociedade se mantém coesa a despeito de quaisquer ocorrências de ciclos, crises e, por que não?, graves depressões. Como, considerando a anarquia das decisões – e, acrescentaríamos, gigantescos riscos para os capitalistas – se d| “uma produç~o total efetiva” (mesma obra, p. 11), capaz de reproduzir essa sociedade? Faz-se mister não perder de vista que no modo de produção capitalista “os produtores privados não são simplesmente produtores simples de mercadorias, mas produtores capitalistas” e, portanto, “a produç~o total da sociedade n~o é nenhuma produção voltada simplesmente para a satisfação das necessidades de consumo, nem tampouco se trata de simples produção mercantil, mas sim de produção capitalista” (mesma página). Assim,“a mais-valia é a meta final e mola propulsora” (mesma p|gina) e “a fabricaç~o de mercadorias n~o é o objetivo do produtor capitalista; é apenas um meio para a apropriação de mais-valia” (mesma obra, p.12) . Entretanto, do ponto de vista da reprodução da sociedade, é importante frisar que “enquanto se apresentar sob a forma de mercadoria, a mais-valia ser| inútil para o capitalista” porque “depois de produzida, ela precisa ser realizada ou transformada em sua forma pura de valor, ou seja, em dinheiro” (mesma página). Sempre problematizando desse ponto de vista geral, Rosa lembra que essa transformação do capital, partindo da forma original, em meios inanimados e animados de produção (isto é, em matérias-primas, instrumentos e mão-de-obra), transformação que representa o ponto de partida de toda e qualquer produção capitalista; essa conversão dos primeiros em mercadorias por meio de um processo vivo de trabalho e novamente em dinheiro mediante um processo de trocas, precisamente em mais dinheiro do que o existente no início do processo, essa rotação do capital não é necessária apenas para a produção e apropriação da mais-valia. (mesma página)

Isto porque o objetivo e mola propulsora da produção capitalista não é simplesmente a mais-valia, em qualquer quantidade, em uma única apropriação, mas a obtenção ilimitada de mais-valia, em um crescimento incessante, em quantidades sempre maiores. [Segundo a explicaç~o “tradicional”] Isso só pode ser alcançado pelo mesmo recurso mágico: pela produção

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capitalista, isto é, mediante a apropriação de trabalho assalariado nãopago em meio ao processo de fabricação de mercadorias e mediante a realização dessas mercadorias assim produzidas. Com isso, produção sempre reiniciada, a reprodução como fenômeno regular adquire na sociedade capitalista motivação totalmente nova e desconhecida em qualquer outra forma de produção. (mesma página)

Dito de outra forma, o problema que Rosa está tentando circunscrever é que, embora “nem a reproduç~o ampliada nem a reproduç~o simples [sejam] exclusividade das sociedades capitalistas” (mesma obra, p|ginas 14 e 5) em sociedade capitalistas elas adquirem uma importância distinta. Isso porque, nestas sociedades, diferentes das demais, a “realizaç~o efetiva das mercadorias fabricadas no período anterior de produç~o é a condição primeira da reprodução para os produtores capitalistas” (mesma obra, p. 13) e, deste modo, “a reproduç~o ampliada, no sentido capitalista, expressa-se, portanto, especificamente como crescimento do capital por meio da capitalização progressiva da mais-valia, ou, na expressão de Marx, como acumulação de capital.” (mesma obra, p. 15). Mas afinal, qual é o problema, então? De um ponto de vista exclusivamente esquemático, as coisas não são tão difíceis de demonstrar – como se demonstra que dois mais dois são quatro, ou chama-se de “número imaginário” a raiz quadrada de menos um. O problema que chama a atenção de Rosa aqui é que, para além da questão formal, é preciso que se considere que existem “condições concretas necess|rias para a acumulaç~o do capital” (mesma página). Diferentemente do que a linha hegemônica da historiografia aponta, a argumentação de Rosa não pode – conforme– ser reduzida à variável consumo. Quais são as condições da acumulação do capital? Para Rosa, depois de a mais-valia apropriada abandonar finalmente a forma de mercadoria, revestida no mercado, ela se apresenta sob a forma de determinada soma de dinheiro. Dessa maneira, assume a forma absoluta do valor, sob a qual pode iniciar sua carreira como capital. Mas, sob essa forma, ela também se encontra apenas no limiar de sua carreira. Com dinheiro não se consegue criar nenhuma mais-valia. Para que a parte da mais-valia se destine à acumulação e seja realmente capitalizada, é preciso, em primeiro lugar, que assuma a forma concreta que lhe permita viabilizar-se como capital produtivo, isto é, como capital gerador de nova mais-valia. [...] Mas para tal não basta a simples vontade do acumulador capitalista, nem tampouco sua ‘parcimônia’ e ‘abstinência’, destinando a maior parte de sua mais-valia à produção, em vez de desperdiça-la com luxos pessoais. Para que sua mais-valia se capitalize, é necessário que ele encontre no mercado as formas concretas que pretende dar a seu capital acrescido. Primeiro, precisa dos meios materiais de produção – matériasprimas, máquinas etc. – para dar forma produtiva a sua fração de capital constante, recursos que são necessários ao tipo de produção planejado e escolhido por ele. Em segundo lugar, é preciso ainda que a fração de capital destinada a converter-se em capital variável possa empreender também a respectiva transformação. Para tal, antes de tudo, duas coisas são necessárias: que se encontre no mercado de trabalho a mão-de-obra adicional em quantidade suficiente de acordo com as necessidades do novo capital acrescido; além disso, já que os trabalhadores não podem

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viver de dinheiro, que no mercado também se encontrem os meios adicionais de consumo pessoal passíveis de troca pela fração do capital variável que os novos trabalhadores receberão do capitalista. Dadas todas essas pré-condições, pode, então, o capitalista movimentar sua mais-valia capitalizada, deixar que ela, como capital em processo, produza nova mais-valia. Com isso, no entanto, o problema ainda não se encontra resolvido em definitivo. [...] Para que o novo capital preencha sua razão de ser, é necessário que, com a mais-valia produzida, abandone a forma de mercadoria e retorne às mãos do capitalista sob a forma pura de valor, isto é, de dinheiro. Caso isso não ocorra, perdem-se totalmente, ou em parte, o novo capital e a nova mais-valia; a capitalização da maisvalia fracassa e a acumulação não se efetiva. Para que a acumulação se concretize é imprescindível que a massa adicional de mercadorias, produzida pelo novo capital, conquiste para si um lugar no mercado, a fim de poder realizar-se. (mesma obra, p. 15-6, grifos nossos)

Não podemos nos esquecer que a questão para Rosa está colocada não apenas na perspectiva do capitalista individual em busca do lucro, mas da sociedade que procura se perpetuar ao longo das gerações e que, portanto, precisa oferecer, ainda que de modo desigual, comida, vestimentas e demais víveres – para ficarmos apenas na subsistência e deixando pra outra hora questões fundamentais que se referem aos “bens culturais”. O ponto central é que a reprodução total do sociedade capitalista – ou seja, o processo de acumulação do capital, que permite que a sociedade capitalista continue se reproduzindo em condições capitalista – está subordinada aos imperativos do lucro, que nenhuma conta tem que prestar às necessidades das pessoas. Nas palavras de nossa autora, assim, a produção e a reprodução capitalistas se desenrolam continuamente entre o lugar de produção e o mercado de produtos, entre as f|bricas e escritórios privados (onde é ‘estritamente proibida a entrada de estranhos’ e onde a vontade soberana do capitalista individual é a lei máxima) e o mercado, onde ninguém dita as leis e não se fazem valer nem a vontade, nem a razão. Mas são exatamente a arbitrariedade e a anarquia dominantes no mercado que fazem o capitalista individual sentir sua dependência com relação à sociedade, sua dependência com relação ao conjunto dos elementos produtores e consumidores. Para ampliar sua reprodução, ele necessita de meios de produção e mão-de-obra adicionais, além de meios de subsistência destinados à mão-de-obra; porém a existência desses fatores depende de aspectos, de circunstâncias e de processos que se consumam atrás de suas costas, totalmente independentes dele. Para poder realizar sua massa aumentada de produtos, o capitalista necessita de um mercado mais amplo. Mas uma ampliação efetiva da demanda em geral, especialmente de uma que se refira ao gênero de produto que ele fabrica, constitui um problema que ele é totalmente incapaz de resolver. (mesa obra, páginas 16 e 17)

Assim,

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as condições enumeradas, que exprimem todas elas a contradição interna existente entre a produção privada e o consumo, de um lado, e o nexo social de ambos, de outro, não são aspectos novos que apenas surgem no momento da reprodução. São contradições gerais da produção capitalista (mesma página).

Não se trata apenas de considerar o “campo das relações purar do valor”, mas de se ter em conta “os aspectos materiais da quest~o” (mesma obra, p. 41). Ou seja, o que passa a importar agora é a forma de uso do produto social total. O que é para o capitalista individual totalmente indiferente, torna-se uma preocupação séria, para o conjunto deles. Enquanto pouco importa ao capitalista individual se a mercadoria que ele produz é uma máquina, açúcar, adubo artificial ou um jornal da intelectualidade livre-pensadora, desde que seu capital retorne, junto com a mais-valia, por outro lado, para o conjunto dos capitalistas, é extremamente importante que seu produto total tenha uma forma determinadada de uso, de modo que possa encontrar, nesse produto total, três coisas: meios de produção para a renovação do processo de trabalho, meios simples de consumo pessoal para o sustento da classe trabalhadora e meios de consumo de melhor qualidade e o respectivo luxo para a manutenção do universo de capitalistas propriamente ditos. [...] Para a reprodução do capital individual só interessavam as relações de valor, dadas como pressupostas as condições concretas da troca de mercadorias. Na reprodução do capital total reúnem-se relações de valor com aspectos concretos. Aliás, é claro que o capital individual só pode ocupar-se exclusivamente com aspectos puros de valor, sem levar em consideração as condições materiais, na medida em que o capital total, pelo contrário, responda pelos aspectos materiais. (mesma obra, p. 41).

Mas o desafio do entendimento sobre o processo de reprodução total da sociedade capitalista ainda não está completo. Ainda é preciso

demonstrar como a sociedade

encontra condições concretas de reprodução e, portanto, quais são as condições históricas da acumulação capitalista. As condições históricas da acumulação6 Em sua investigação sobre como a sociedade capitalista se reproduz em suas condições concretas, Rosa se depara com o fato de que os esquemas de Marx pressupõem que a sociedade esteja dividida entre capitalistas e proletários. As demais frações de classe (funcionários públicos, médicos, padres, prostitutas etc) não fazem senão uma parcial apropriação da riqueza produzida na relação de exploração do trabalho. Até aí tudo ocorre

Precisamos tecer um breve comentário. Estamos entrando agora já na parte final do livro A acumulação do capital. Isso não significa que concordamos com quem argumenta que esta é a única parte que interessa e que todo o resto do livro (dois terços!) é um conjunto de erros de Rosa. Refutamos essa hipótese noutro lugar (FRANCO, 2015). Esse salto tem por objetivo concentrar, neste trabalho, nossa atenção no que toca os problemas da leitura de Harvey. Assim, não podemos demonstrar aqui as críticas de Rosa aos esquemas da reprodução ampliada de Marx. Para quem quiser se informar sobre nossas posições neste debate, pode encontrar em nossa dissertação de mestrado (FRANCO, 2011). A crítica de Rosa aos esquemas de Marx é um ponto de gigantesca polêmica. Concentremo-nos no fundamental. 6

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de forma precisa. Mas, então, Rosa se pergunta: de onde vem a motivação para a produção? Depois de uma longa exposição que perpassa toda a história da Economia Política, Rosa chega a conclusão de que a suposição de que a sociedade está dividida apenas entre capitalistas e proletários é um equívoco lógico e – principalmente – histórico. De fato, nunca existiu uma sociedade que fosse “puramente capitalista”. O que acontece concretamente é que, nas condições reais de acumulação, o capitalismo constantemente destrói formas tradicionais de vida e incorpora pessoas e riquezas em sua própria estrutura de funcionamento, expandindo o próprio modo de produção capitalista. Noutros termos, a própria história do modo de produção capitalista é a história da apropriação do metabolismo sócio-ambiental de uma parcela a cada dia maior do planeta – e, hoje sabemos, do Espaço, sempre que possível. Enquanto isso se mostra um problema sob a ótica dos esquemas de reprodução, “[...] não há razão alguma que nos obrigue a admitir que todos os meios de produção exigidos e os meios de consumo resultantes devam ser fabricados de modo capitalista” (mesma obra, p. 245). Do contr|rio, o próprio funcionamento “normal” do capitalismo “implica e se vincula, por outro lado, à utilização ilimitada de todas as matérias e condições que a Natureza e a terra põem à sua disposição” e “nesse sentido e em função de sua natureza e de sua forma de existência, o capital não admite nenhuma limitaç~o” (mesma página). A observação concreta do capitalismo leva Rosa a concluir que,

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depois de vários séculos de desenvolvimento, o modo de produção propriamente dito abrange, até o momento, apenas uma fração da produção total da Terra, tendo por sede preferencialmente a pequena Europa, sem ter conseguido apossar-se, até o momento, de amplas áreas desta, como a economia camponesa, o artesanato autônomo e grandes extensões de terra; abrange ainda a América do Norte e algumas faixas territorias do resto do mundo, em outros continentes. Em termos gerais, o modo de produção capitalista limitou-se, até agora, principalmente, às manufaturas dos países das zonas temperdas, enquanto no Oriente e no Sul, por exemplo, só acusou, comparativamente, progressos mínimos. Se ele dependesse, pois, exclusivamente dos elementos de produção disponíveis no âmbito determinado por limites tão estreitos, jamais teria alcançado o nível que chegou e seu desenvolvimento teria sido impossível. No condizente à sua forma de atuar e às leis que a regem, a produção capitalista é considerada, no mundo inteiro e desde o início, o próprio depósito dos tesouros das forças produtivas. Em sua ânsia de apropriação das forças produtivas com vistas à exploração, o capital esquadrinha o mundo inteiro, procura obter meios de produção em qualquer lugar e os tira ou os adquire de todas as culturas dos mais diversos níveis, bem como de qualquer forma social. A questão dos elementos materiais da acumulação do capital está longe de encontrar-se resolvida pela forma material da mais-valia de cunho capitalista; essa questão, pelo contrário, vem-se transformando em outra totalmente diferente. Para o emprego produtivo terrestre todo a fim de ter uma oferta quantitativa e qualitativamente ilimitada no condizente aos respectivos meios de produção. (p.. 245-246)

Ou seja, o capital necessita cada vez mais de “recursos” naturais e “humanos”, porque não aceita limitações de qualquer tipo à sua sede acumulativa. Por onde se espalham as relações capitalistas, o grau de exploração da terra, dos minérios, do solo e de todos os outros “recursos” é elevado { enésima potência. Sendo a parte fundamental de um sistema de concorrência que não admite que ele se comporte de outro modo, o capital necessita de recursos cada vez mais baratos. A concentração, a centralização, a acumulação agigantada em processos de cartéis, trustes e holdings, bem como as megacorporações – muito mais visíveis hoje, mas já percebidas no começo do século XX – são provas irrefutáveis disso. Por fim, mas não menos importante, o capital necessita também do barateamento de um recurso decisivo na produção: gente. Para explorar a taxas altíssimas com salários irrisórios, mas também para impor por meio do desemprego funcional (exército industrial de reserva) a suas próprias classes trabalhadoras um nível de salário que não limite a acumulação – conforme a complexa divisão internacional do trabalho vigente em nossos dias demonstra. Portanto, na interpretação de Rosa Luxemburgo – correta – o capital já nasceu com o germe do imperialismo e jamais poderá se livrar dele. Em todo lugar, o capital destrói as formas de vida das pessoas e as subjuga por meio das relações capitalistas. Os proprietários dos meios de produção são deles destituídos ou levados a se tornarem

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capitalistas e os trabalhadores são transformados em assalariados ou desempregados, as duas faces da mesma moeda: a exploração de classes capitalista7. Assim, o capital, mesmo em sua plena maturidade, não pode prescindir da existência concomitante de camadas e sociedades não-capitalistas. Essa relação não se esgota com a mera questão do mercado existente para o ‘produto excedente’, como a formulavam Sismondi e posteriormente os críticos da acumulação capitalista e os céticos que dela duvidavam. Em função de suas relações de valor e de suas relações de natureza material, o processo de acumulação do capital está vinculado, por meio do capital constante, do capital variável e da mais-valia a formas de produção nãocapitalistas. Essas formas constituem o meio histórico que assiste ao desenrolar desse processo. Verdade é que, por si só, a hipótese do domínio geral e exclusivo do capital não basta para que a acumulação do capital se configure como tal, uma vez que sem o meio não-capitalista ela se torna inconcebível sob todos os pontos de vista. (p.. 250)

O que esperamos tenha restado demonstrado é que a crítica que Rosa Luxemburgo estabelece em A acumulação do capital, com efeito, tem duas frentes. A primeira delas é a constatação histórica e concreta de que o capital tem se expandido “aumentando sua base”, ou seja, destruindo formas de vida pautadas em outros imperativos de duas maneiras (alternativas ou concomitantes): 1) pelos genocídios da população local e pilhagem pura e simples de recursos naturais e da mão-de-obra forçada (escravidão, por exemplo); e 2) pela imposição das relações capitalistas por meio da destruição das bases nas quais aquelas sociedades baseavam sua socialidade autarquicamente. Deste modo, Rosa conclui que histórica e concretamente, independentemente de qualquer elaboração teórica, o capitalismo até o seu tempo somente se expandiu em relação a formas não-capitalistas porque “na realidade, n~o existe, nem existiu jamais, nenhuma sociedade capitalista que estivesse submetida ao domínio exclusivo da produç~o capitalista” (mesma obra, p. 239). Saber se essa é a única forma possível de existência do capital é que são elas. É procurando este sentido que Rosa estabelece a segunda frente de sua crítica. Para procurar resolver essa questão teórica – que tinha implicações práticas na agenda política mais urgente do período [e ainda tem hoje] – Rosa busca auxílio nas teorias que Marx havia formulado em O capital. E é aí que, segundo ela, se deparou com uma O que, por seu turno, implica em um importante problema de periodização do capitalismo, que Rosa não consegue resolver de modo satisfatório. A pergunta central, deste ponto de vista, seria: a partir de quando o capitalismo se transforma em imperialismo? É a pergunta que Lenin se propõe, e responde a contento: na transição do século XIX para o XX, com a elevação do capital financeiro – síntese de todas as formas parciais – como resposta à crise de 1870. Ao que nos parece, Rosa deveria ter dado mais atenção à contribuição de Hilferding do que ela de fato o fez. Contudo, isso não implica que sua contribuição seja menor. Inclusive, se entendermos que a expansão por meio da violência é a condição necessária do modo de produção capitalista desde sempre – conforme ela demonstra – podemos contrapor a uma visão idílica do capitalismo, como se ele pudesse ter alguma face “progressista” na destruiç~o de formas de vida tradicionais. Pretendemos desenvolver esse diálogo entre o legado de Rosa e o legado de Hilferding e seus sucessores noutro texto. A questão de um certo caráter progressista do imperialismo é um ponto que retomaremos quando formos discutir Harvey, que, como veremos, acredita nesse mortífero conto da carochinha. 7

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“dificuldade inesperada” (mesma obra, p. 3). Examinando cuidadosamente a questão, se deu conta de que a forma como Marx lidou com o problema da acumulação do capital e da expansão do capitalismo nos fragmentados cadernos de rascunhos que Engels transformou no livro II de O capital não poderia responder a questões que se faziam, então, fundamentais – e que não necessariamente haviam chamado a atenção de Marx quando ele escreveu (mesma página). Mesmo porque o capitalismo se expandira muito nos anos que separam seus textos e os dela8. Em alguma medida, Rosa encontrou suporte no fato de que o próprio Marx considerava aquele material ainda muito preliminar, que deveria servir de base para o volume II que ele viria a escrever – mas nunca o fez, como sabemos. Em suas próprias palavras, confidenciadas à filha Leonor pouco antes de morrer, Marx dizia que “esse é o material destinado ao Livro Segundo; com esse material eu deveria fazer alguma coisa” (MARX, citado por LUXEMBURGO, 1985, p. 103). Depois de muita ponderação, Rosa se sentiu legitimada para reelaborar o problema, e somente a partir de uma visão completamente cega e canônica dos rascunhos – que o próprio autor não considerava suficientemente bons – se pode atacá-la por essa iniciativa. A crítica àqueles rascunhos não era somente possível quanto, mais ainda, necessárias. Quanto às conclusões tiradas pela autora, evidentemente, há que se analisar o que ela conseguiu explicar, e quais os seus problemas. Quanto à primeira frente da crítica de Rosa (baseada na observação do fato de que historicamente o capitalismo sempre se expandiu sobre formas sociais não-capitalistas), não havia então muito o que se refutar. No princípio do século XX era consensual que ainda existiam muitos lugares no mundo que n~o podiam ser considerados “capitalistas” e a disputa por colônias era uma questão absolutamente central na política internacional. É importante notar que, diferentemente de grande parte da argumentação contemporânea sobre o imperialismo em nossos dias, Rosa não conclui que porque o capitalismo havia mudado, automaticamente as teses de Marx não ofereciam as respostas de que ela precisava. Do contrário, para entender os problemas contempor}neos, ela procurou auxílio nos textos “cl|ssicos” esperando lá encontrar as respostas teóricas. Diante da constatação de que a maneira como aqueles textos foram formulados não daria conta das exigências que ela tinha, se viu na necessidade de reelaborar o problema, o que exigiu uma crítica cuidadosa e um livro inteiro para demonstrar “cientificamente” seu ponto de vista. O contraste com a bibliografia contemporânea sobre o imperialismo é gritante. O procedimento mais comum em nossos tempos é a argumentação de que porque o imperialismo mudou, aquelas teorias já não servem mais; ao que essxs autorxs contemporânexs não se dão ao trabalho de expor a crítica cuidadosamente, se limitando a julgamentos sumários e passando por cima de diversas nuances daquele debate. Assim, não é de se espantar que geralmente apresentem como “novidades” argumentos que, com efeito, j| estavam postos um século atrás. Evidentemente não pode existir qualquer objeção a quem tentar construir um arcabouço argumentativo novo a partir de questões novas. Mas o método para a formulação dessas idéias “novas” n~o pode consistir na crítica aos textos anteriores a n~o ser que seja demonstrado em quê, exatamente, aqueles textos n~o d~o conta dos desafios “novos”. Do mais a “crítica” é pura leviandade. Abordamos isso no texto Sobre o debate acerca do novo imperialismo – comentários sobre duas críticas aos clássicos, também para exposição nesta XIV Semana de Relações Internacionais da Unesp. 8

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Mas como hoje a questão se mostra distinta, e há quem diga que a teoria de Rosa sobre o imperialismo não serve mais para analisá-lo porque, para essas pessoas, já vivemos em um mundo inteiramente capitalista, valeria a pena expor o argumento com mais detalhes. Abordaremos essa questão a seguir, quando formos apresentar as idéias de Harvey. Mas antes disso, por conta das infindáveis críticas que não se atêm ao texto, deixemos registrado que, para Rosa, como ela deixa explícito em A acumulação do capital, a questão n~o é de “espaço”. Segundo Rosa, inclusive, é por proceder dessa forma que a Economia Política não conseguiu resolver o problema. Em suas palavras: a solução do problema, em torno do qual gira a controvérsia da Economia Política há mais de um século, encontra-se, portanto, entre dois extremos: entre o ceticismo pequeno-burguês de Sismondi, Von Kirschmann, Vorontsov e Nikolai-on, que definiam a acumulação como algo impossível, e o otimismo rudimentar de Ricardo, Say e TuganBaranovski, para os quais o capital poderia prosperar ilimitadamente – o que significa dizer, como consequência lógica, que o capitalismo é eterno. Segundo a doutrina marxista, a solução encontra-se na contradição dialética do movimento de acumulação capitalista, que exige um meio ambiente de formações sociais não-capitalistas; essa acumulação se faz acompanhar de um intercâmbio material constante com as mesmas e só se processa enquanto dispõe deste meio. A partir daí podem ser revisados os conceitos de mercado interno e externo, que tiveram papel exponencial na polêmica em torno do problema teórico da acumulação. O mercado interno e o mercado externo desempenham, sem dúvida, papel importante e inconfundível na evolução do desenvolvimento capitalista, não como conceitos de Geografia Política, mas como conceitos de Economia Social. Do ponto de vista da produção capitalista o mercado interno é mercado capitalista, uma vez que essa produção é consumidora de seus próprios produtos e fonte geradora de seus próprios elementos de produção. Mercado externo é para o capital o meio social não-capitalista que absorve seus produtos e lhe fornece elementos produtivos e força de trabalho. Do ponto de vista econômico, a Alemanha e a Inglaterra constituem, em sua troca recíproca, uma para a outra, mercados capitalistas internos, enquanto as trocas entre as indústrias alemãs e seus consumidores e produtores camponeses alemães representam, para o capital alemão, relações de mercado externo. [...] No intercâmbio capitalista interno pode-se, no melhor dos casos, realizar apenas partes determinadas do produto social total: o capital constante utilizado, o capital variável e a parte consumida da mais-valia. Em contrapartida, a parte da mais-valia que é destinada à capitalização tem de ser realizada “externamente”. Apesar de a capitalizaç~o da mais-valia ser o objeto específico e a mola propulsora da produção, a renovação dos capitais constante e variável (assim como da parte consumível da mais-valia) constitui, por outro lado, a base ampla e pré-condição da produção. E se com o desenvolvimento internacional do capital a capitalização da maisvalia se torna a cada instante mais urgente e precária, de modo absoluto enquanto massa, bem como em relação à mais-valia, essa base de capital constante e variável, por sua vez, também se torna cada vez maior. Daí o fato contraditório de os antigos países capitalistas representarem, um para o outro, mercados cada vez maiores e imprescindíveis, e se digladiarem ao mesmo tempo mais intempestivamente na qualidade de concorrentes em função de suas relações com os países não-capitalistas – são típicas, nesse sentido, as relações entre Alemanha e Inglaterra. As condições de capitalização da mais-valia e as condições de renovação do

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capital total cada vez mais entram em contradição (mesma obra, páginas 251 e 252).

Do ponto de vista da imensa quantidade de pessoas que ainda n~o foi “integrada ao mercado” é gritante que o capital ainda tem muito campo para o qual ele pode avançar – e isso n~o implica em promessas de melhorias, ou de “desenvolvimento”, mas de cat|strofes e de violências, como nos ensina muito bem a perspectiva resolutamente anticapitalista de Luxemburgo. De nosso lado, cumpre destacar que, além do fato de que capitalismo até então havia se expandido com a incorporaç~o de formas sociais “n~o-capitalistas” – que é uma mera observação histórica objetiva inegável – a crítica aos esquemas, para Rosa, levava à conclusão lógica de que o capitalismo nunca poderá se expandir – ou seja, nunca poderá haver acumulação de capital social total – sem a destruição de novas formas sociais e, portanto, é impossível conceber que o capitalismo possa se desenvolver sem a ocorrência de guerras imperialistas. E como a quest~o n~o era de “Geografia Política”, mas de “Economia Social”, n~o é possível um capitalismo pacífico nem “externa” e nem “internamente”. O militarismo e a acumulação de capital estão profundamente ligados e, portanto, o imperialismo não é apenas uma política do capital, mas também uma totalidade histórica do próprio modo de produção capitalista9. Novamente, assim como no anti-Bernstein, a crítica ao capitalismo implica uma perspectiva intransigentemente radical e revolucionária. Era essa a conclusão que a social-democracia – em desenfreado processo de capitulação reformista – não poderia mais aceitar e é essa o mais importante motivo que explica a violência dos ataques que A acumulação do capital recebeu10.

O (novo ?) Imperialismo segundo David Harvey David Harvey é um geógrafo marxista cuja obra, no que compete á questão urbana (e o direito à cidade) – até onde podemos avaliar na posição de não-especialistas no tema – é bastante robusta, nutrindo a simpatia de pesquisadores importantes da área. Além disso, possui bastante respaldo internacional sobre suas interpretações acerca da obra magna de Marx. Também é recebido com simpatia quando ataca o “neoliberalismo” e procura definir o regime pós-fordista que organizaria o mundo a partir dessa ascensão do neoliberalismo. Aqui nos ocuparemos exclusivamente de seu trabalho sobre O novo imperialismo (HARVEY, 2004 [2003]). Assumidamente, é um livro que se orienta pela perspectiva da “longa duração” (mesma obra, p. 11) e a referência fundamental são as reflexões de Giovanni Arrighi (cf: Ponto de vista que defendemos em Murua e Franco (2016). Sobre a brilhante resposta de Rosa é indispensável a leitura de Anticrítica, que, se tomado em conjunto com A acumulação do capital – conforme a brasileira – figura entre os mais instigantes livros sobre o imperialismo em todos os tempos. 9

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mesma obra, p. 8). É deste autor que Harvey retira o grosso de seu esquema conceitual – as diferença entre a “lógica territorial” e a “lógica capitalista” de poder – e é a partir das relações estabelecidas por Arrighi – inspirado em Braudel – entre a “financeirizaç~o” e os “ciclos de hegemonia” que se situa o central da perspectiva política de Harvey. Gostaríamos de manifestar que foi um eixo central do nosso caminho expositivo a busca pela explicitação de que Arrighi é a referência central de Harvey, em tudo o que isso implica em termos teóricos e políticos. Apesar de um franco ecletismo, Harvey – tomado por marxista e, mais que isso luxemburguista – pensa o “imperialismo” assim como Arrighi, ou seja: a partir de uma visão hobsoniana. Voltaremos a cada um desses pontos a seguir. Por hora, a título de condução da leitura, gostaríamos de enfatizar que, embora referindo-se a um conjunto muito amplo de contempoâneos e sustentado aqui e acolá em Hannah Arendt e Rosa Luxemburgo, O novo imperialismo, seu respaldo teórico e seu orizonte político, não apresenta um esquema conceitual marxista – muito menos inspirado em Rosa. A estrutura argumentativa de O novo imperialismo e as referências teóricas de Harvey Um ponto que gostaríamos de anotar de antemão é que, no ano de 2003, além do livro citado, Harvey publicou um artigo cujo título é O ‘novo’ imperialismo: acumulação por espoliação (HARVEY, 2006 [2003]). Existem indícios de que o artigo foi pensado como material de divulgação do livro11. Mas existem diferenças importantes12. Para o que interessa aqui, chamamos a atenção para este artigo por quatro fatos que ao nosso juízo merecem destaque. Primeiramente, porque quando o livro foi lançado, já havia um certo acúmulo de discussões sobre o artigo, e a ênfase do subtítulo – acumulação por espoliação – chamou atenção para esse aspecto, que se tornou rapidamente o eixo em torno do qual as contribuições de Harvey ao entendimento do problema foram discutidas, dando a entender que fosse o conceito central do argumento dele. Não é. Em segundo lugar, porque ele dava destaque ao caráter predatório da exploraç~o, geralmente identificado como algo n~o exatamente “capitalista”. Isso n~o era exatamente uma novidade teórica, mas ia na contramão de quem defendia que os métodos da “acumulaç~o primitiva” se limitariam { pré-história do capitalismo. Não se limitam. Em terceiro, porque este capítulo é aberto exatamente com uma citação de A acumulação do capital, dando especial ênfase à influência de Rosa nas teses de Harvey levando a crer que ela seja mais importante que outras pessoas na composição das ideias dele. Não é. O quarto ponto que queremos destacar é justamente a sutil diferença entre os título do livro 11 12

(cf: HARVEY, 2006, p. 96). Que discutimos em Franco (2015).

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O novo imperialismo e do referido artigo: as aspas na palavra “novo”. Mais do que uma questão meramente editorial, essa hesitação pode ser entendida como uma dificuldade em definir se há algo de novo neste supostamente novo imperialismo, conforme procuraremos demonstrar mais à frente. O novo imperialismo foi publicado imediatamente após a invasão estadunidense na Guerra sobre o Iraque e concebido, como dissemos na introdução, durante a preparação para essa invasão, quando o autor confessa que ainda nutria uma tênue esperança de que esa fosse evitável. Conforme o autor explica em seu primeiro capítulo, havia um forte movimento conservador que reivindicava que os Estados Unidos assumissem sua posição imperial. Por outro lado, havia já desde algum tempo uma grande resistência internacional contra a postura estadunidense no mundo, em especial entre “movimentos antiglobalização”. Quando da declaração de Guerra Global contra o Terrorismo (2002) e da invasão sobre o Iraque, esses movimentos formaram também a oposição global contra o que se entendia fruto do caráter neoconservador do governo de Bush II, supostamente responsável pela recente retomada da agressividade da política externa dos Estados Unidos. A “coincidência” dos interesses da família Bush e outras figuras de alto escal~o de seu governo com as indústrias petrolíferas – sobretudo o vice-presidente Dick Cheney – tornava evidente que havia interesses pessoais ligados ao Oriente Médio. Mas também havia fortes indícios dos objetivos geopolíticos por trás da escolha um tanto quanto arbitrária do Iraque como alvo da invasão, dada a fragilidade dos argumentos sobre a relação deste país com a Al Qaeda (alvo primeiro da Guerra Global contra o Terrorismo) e a inverossimilhança de que Saddam Hussein de fato representasse uma ameaça à segurança dos Estados Unidos. A pergunta que fundamenta o livro de Harvey é justamente se, durante esse governo de Bush II, poderia uma gangue de petroleiros ultraconservadores ter simplesmente tomado de assalto a maior potência do planeta em atenção à demanda de seus interesses particulares. No primeiro capítulo, Tudo por causa do petróleo, Harvey avalia os interesses geopolíticos de longo prazo por trás desse recurso, identificando uma já longa e suprapartidária tradiç~o de defesa dos “interesses nacionais” estadunidenses com relaç~o ao combustível no Golfo Pérsico – datada pelo menos desde o governos Carter (HARVEY, obra citada, p, 26). Harvey então indaga sobre a centralidade do petróleo. Para ele, “n~o h| dúvida de que o petróleo é crucial. Mas não é tão fácil determinar exatamente como e em que sentido o é” (mesma obra, p. 24). Neste primeiro capítulo, Harvey argumenta que “quem controlar o Oriente Médio controlar| a torneira global do petróleo, e quem

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controlar a torneira global do petróleo poderá controlar a economia global, pelo menos no futuro próximo” (mesma obra, p. 25). Isso porque, apesar de muitos estudos sobre fontes de energia “alternativas”, “s~o poucas as probabilidades de que elas venham a ser adversários de monta (dadas as barreiras levantadas pelas empresas de petróleo e outros interesses escusos) nas próximas décadas” (mesma obra, p. 29), sobretudo porque, “os militares s~o movidos a petróleo” (mesma obra, p. 30), uma vez que n~o adiantaria nada um arsenal imenso carente de combustíveis para a sua utilização. No segundo capítulo, Como o poder norte-americano se expandiu, Harvey apresenta suas primeiras considerações sobre a categoria imperialismo. Inicia inclusive ponderando que esta é “uma palavra que sai facilmente da boca. Mas tem sentidos t~o diferentes que seu uso é difícil sem que se dê dele uma explicação como termo antes analítico que polêmico” (mesma obra, p. 31). Este é um argumento amplamente defendido por Arrighi em um texto – não citado por Harvey – chamado Geometria do Imperialismo (ARRIGHI, 1983[1978]), e resgatado depois quando dO longo século XX, este sim, amplamente citado. A influência de Arrighi na forma como Harvey desenvolve seu argumento pode ser notada em diversos pontos, como a insistência – correta, aliás – de que existem muitas “incongruências teóricas” entre o que cada autor costuma chamar de imperialismo; a crença de que n~o podemos analisar o mundo com as categorias “cl|ssicas” do imperialismo pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial (ARRIGHI, 1983, p. 160); e a predileção pela definição de imperialismo de John A. Hobson à dos autores – e da autora – marxistas, predileção essa declarada por Arrighi e enrustida em Harvey13. Vejamos, por exemplo, quando Harvey enfatiza sua intenção de definir a “variedade especial” do imperialismo, o “imperialismo capitalista”. Em suas palavras, este seria uma fus~o contraditória entre a ‘política do Estado e do império’ (o imperialismo como projeto distintivamente político [grifos nossos] da parte de atores cujo poder se baseia no domínio de um território e numa capacidade de mobilizar os recursos naturais e humanos desse território para fins políticos, econômicos e militares) 14 [...] e ‘os processos moleculares de acumulaç~o do capital no espaço e no tempo’ (o imperialismo como um processo político-econômico difuso no espaço e no

CF: Santos e Franco (2013). Hobson aponta, em 1902, para esse mesmo problema da dificuldade de precisar o termo imperialismo (HOBSON, 1968 [1902], p. 3). 14 “Com [essa] express~o desejo acentuar as estratégias políticas, diplom|ticas e militares invocadas e usadas por um Estado (ou por um conjunto de Estados que funcionam como bloco de poder político) em sua luta para afirmar seus interesses e realizar suas metas no mundo mais amplo” 13

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tempo no qual o domínio e o uso do capital assumem a primazia) (mesma obra, páginas 31-2)

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O enquadramento é claramente hobsoniano, e é fácil perceber porque foi assim reconhecido por Chibber onde ele descreve Harvey como uma espécie de avatar de Hobson (sic), de quem Harvey encarnaria “as duas almas” (sic) uma análise “simultaneamente” “estrutural” (“econômica”) e “conjuntural” (“política”) (sic) (cf: CHIBBER, 2004). Não será aqui que discutiremos profundamente as teses de Hobson, freqüentemente caricaturadas no debate sobre o Imperialismo, que merecem um estudo mais aprofundado e mais tempo para a colocação dos termos em que concebia os problemas de sua época. Mas cumpre-nos anotar aqui que Hobson é citado explicitamente por Harvey apenas duas vezes. Na primeira delas, está posicionado junto com Hilferding, Lenin e Rosa Luxemburgo como um conjunto de “teóricos da virada do século” que Harvey insiste, devem ser superados (mesma obra, p. 16). À frente, aparece como um exemplo de alguém que percebeu o problema de que a conversão a uma forma liberal de imperialismo (forma que agregava a si uma ideologia do progresso e de uma missão civilizatória) não resultou de imperativos econômicos absolutos, mas da resistência política da burguesia à renúncia de quaisquer de seus privilégios e, por conseguinte, da recusa em absorver a sobreacumulação internamente por meio de reformas sociais domésticas, mesmo diante de crescentes clamores dos movimentos da classe trabalhadora. (mesma obra, p. 107)

Assim, nesta passagem, Harvey parece concordar com Hobson – que segundo ele, “empenhou-se numa política socialdemocrata que se contrapusesse a [essa forma liberal de imperialismo”] – na tese segundo a qual, caso essa burguesia aceitasse as reformas sociais que absorvessem o capital excedente “internamente”, o imperialismo seria evitável. É a posição estritamente antagônica às de Lenin, Hilferding, Luxemburgo e Bukharin, por exemplo. Parece-nos, inclusive, digno de nota que, em artigo posterior no qual retoma as teses deste livro, Harvey viria a argumentar que “nós n~o podemos [...] encontrar em Lenin, Luxemburg, Bukharin, Kautsky e assim por diante, uma teoria do imperialismo coerente e apropriada para os nossos tempos” (HARVEY, 2007, p. 58) ao que acrescenta: [...] os teóricos clássicos do imperialismo não completaram o projeto teórico de Marx. Eles estavam – compreensivelmente – desesperadamente ansiosos para construir um aparato conceitual para confrontar a rápida deterioração das condições nacionais e internacionais que eram de importância imediata para eles. O resultado,

“Com esta última express~o, concentro-me nas maneiras pelas quais o fluxo do poder econômico atravessa e percorre um espaço contínuo, na direção de entidades territoriais (tais como Estados ou blocos regionais de poder) ou em afastamento delas mediante as práticas cotidianas da produção, da troca, do comércio, dos fluxos de capitais, das transferências monetárias, da migração do trabalho, da transferência de tecnologia, da especulação com moedas, dos fluxos de informação, dos impulsos culturais e assim por diante.” 15

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foi um corpo teórico (ou, no caso de Lenin, panfletário) profundamente marcado pelas condições daquele próprio tempo. (mesma obra, p. 59)

Contudo, muito além disso, Harvey defende que as teorias que eles produziram não eram adequadas nem mesmo para o tempo deles, e as picuinhas [bickering] entre os participantes (como Lenin, Luxemburg, Bukharin e Kautsky) reflete não apenas as posições políticas fundamentalmente distintas sobre o que poderia ser feito, mas também uma falência teórica em encontrar um meio de lidar com as dinâmicas espaço-temporais que vinham há muito tempo construindo um sistema imperialista global (mesma página).

Explicitada a herança hobsoniana de Harvey, voltemos ao movimento do livro O novo imperialismo. Aquele segundo capítulo é fundamental uma vez que apresenta uma espécie de diapasão teórico do livro. Declaradamente sustentado nas teses de Arrighi em O Longo Século XX (ARRIGHI 1996 [1994]), Harvey procura definir o que entende pelo tipo especificamente capitalista de imperialismo. Para tanto, parte do esquema proposto pelo italiano, erigido por sobre a distinção entre as lógicas “territorial” e “capitalista” de poder (HARVEY, 2004, p. 32 e seguintes), que diferem entre si ao mesmo tempo em que “se entrelaçam de formas complexas e por vezes contraditórias” (mesma obra, p. 33 -4). Em seus termos: a relação entre essas duas lógicas deveria, pois, ser vista como problemática e muitas vezes contraditória (ou seja, dialética) em vez de cooperativa ou unilateral. Essa relação dialética cria o arcabouço para uma análise do imperialismo capitalista em termos da interseção dessas duas lógicas diferentes mas interligadas. A dificuldade que afeta análises concretas de situações reais é manter os dois lados dessa dialética em movimento simultâneo, sem cair no modo de argumentação puramente político ou predominantemente econômico (mesma obra, p. 34).

O central de sua argumentação sobre o (novo?) imperialismo é operar procurando determinar a “import}ncia relativa dessas duas lógicas na geraç~o da mudança social e política” (mesma p|gina). O imperialismo, assim, seria a “propriedade das relações ne dos fluxos de poder entre os Estados no âmbito de um sistema global de acumulação do capital” (mesma obra, p. 36) e “o que distingue o imperialismo capitalista de outras concepções do império é que nele predomina tipicamente a lógica capitalista, embora, como veremos, haja momentos em que a lógica territorial venha para o primeiro plano” (mesma página). Neste momento, para lançar alguma luz sobre o problema da relação entre as duas lógicas (cf: mesma página 36), Harvey introduz uma outra referência que aparece em diversas passagens de seu livro: a filósofa Hannah Arendt, que argumenta que uma acumulação interminável de propriedade [...] tem de basear-se numa acumulação interminável de poder... O processo ilimitado de acumulação do capital requer a estrutura política de um ‘poder ilimitado’, em tal grau que seja capaz de proteger o aumento da

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propriedade pelo aumento constante de seu poder (ARENDT, citada por HARVEY, 2004, p. 37)

Seguindo a trilha de Arrighi – cotejada com Paul Kennedy e fazendo referência a Gramsci (este, apenas de menção, sem qualquer citação16) – Harvey passa então a considerar a quest~o da “hegemonia”, que é importante para ele na forma como procura estabelecer a “dialética” entre o “interno” e o “externo”, entre a “lógica do capital” e a “lógica territorial”. O resultado disso é uma proposta de periodização do imperialismo capitalista em que o autor propõe os seguintes intervalos (mesma obra, p. 43 e seguintes): de 1870-1945 teríamos a “ascensão dos imperialismos burgueses”; entre 1945-1970 , “o histórico de pós-guerra da hegemonia norte-americana”; entre 1970-2000 “a hegemonia neoliberal”; e depois – a investigar – um supostamente novo Imperialismo. Coerentemente com o seu esquema, a questão decisiva seria definir, em cada momento, qual “lógica” predomina: a capitalista ou a territorial? No terceiro capítulo Harvey discorre sobre A opressão via capital. É importante destacarmos sua preocupaç~o com a dimens~o “geogr|fica” ou, melhor dizendo, com o fato de que, para ele, "o capitalismo sobrevive a mediante a produç~o de espaço” (mesma obra, p. 77). Trata-se, com efeito, da maneira como ele dialoga com o geógrafo francês H. Lefevbre, de quem retira a citação. O autor, portanto, mais que noutros lugares, est| “em casa”, e aproveita para apresentar em rodapé diversos trabalhos seus sobre a |rea. Aqui vemos o Estado (“lógica territorial”) – sempre de forma declaradamente “dialética” e “contraditória” – operando com o Capital (“lógica capitalista”) em função de uma “produç~o de uma economia do espaço” por meio dos processos de concentração e centralização do capital e, portanto, dos monopólios (mesma obra, p. 82 e seguintes). Nas palavras de Harvey, o capital busca perpetuamente criar uma paisagem geográfica para facilitar suas atividades num dado ponto do tempo simplesmente para ter de destruí-la e construir uma paisagem totalmente diferente num ponto ulterior do tempo a fim de adaptar sua sede perpétua de acumulação interminável de capital. Esta é a história da destruição criativa inscrita na paisagem da geografia histórica completa da acumulação do capital (mesma obra, p. 88)

Este capítulo é fundamental no que toca o esquema de Harvey, porque é aqui que ele explicitará um ponto absolutamente decisivo em sua argumentação sobre o imperialismo, o problema da sobreacumulação de capital (mesma obra, p. 93 e seguintes). Por meio da dinâmica de fixação do capital e geração de capital excedente, a expansão geográfica do capital acaba sendo explicada a partir dessa sobreacumulação. Sua Aliás, no terceiro capítulo Harvey faz referência a outra categoria gramsciana fundamental, a “revoluç~o passiva”. Novamente nenhuma citaç~o ao autor. No caso do capítulo terceiro, nem ao menos uma menção. 16

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referência aqui é Robert Brenner, extensamente citado, mas devemos notar que este ponto também está presente nas formulações de Hannah Arendt – ainda que num sentido diferente – e é também um aspecto fundamental na maneira como Arrighi explica os “ciclos hegemônicos” por meio da idéia de que a financeirizaç~o precede a decadência da hegemonia (cf: HARVEY, 2004, p. 65). Este é ponto que está em questão aqui, quando Harvey pondera sobre a “hegemonia internacional”, em especial as tentativas de Japão e Alemanha rivalizarem no posto de potência capitalista e – mais importante – as possibilidades de ascensão chinesa (mesma obra, páginas 98 e seguintes). Assim, entra também em questão neste capítulo (mesma obra, páginas 105 e seguintes) as contradições “internas” (sic), que reportam novamente { “dialética da sociedade civil” e a dinâmica das “instituições mediadoras” do Estado, pois este constitui a entidade política, o corpo político, mais capaz de orquestrar arranjos institucionais e manipular as formas moleculares de acumulação do capital para preservar o padrão de assimetrias nas trocas mais vantajoso para os interesses capitalistas dominantes que trabalham neste âmbito. (mesma obra, p. 111)

E isso funciona tanto “internamente” quanto “externamente”, porque, conforme percebido pelos capitalistas/imperialistas de outrora (p. ex., o citado Joseph Chamberlain), para a resoluç~o do “problema de sobreacumulaç~o de capital”, “é politicamente muito mais fácil pilhar e degradar populações distantes (em particular as que são diferentes em termos raciais, étnicos ou culturais)” (mesma obra, p. 113). Somente agora, no quarto capítulo, chegamos ao problema d’ A acumulação via espoliação/expropriação/despossessão [dispossession] que, conforme indicamos na introdução, é a razão essencial da fama e da importância de O novo imperialismo para a historiografia do Imperialismo em nossos dias. E aqui temos o ponto de conexão de nosso artigo, pois é neste momento que Harvey traz à baila as teses de Rosa Luxemburgo, já na abertura do capítulo, quando lembra que Rosa “alega que a acumulação do capital apresenta um duplo aspecto”, e cita: um deles concerne ao mercado de bens e ao lugar em que é produzida a mais-valia – a fábrica, a mina, a propriedade agrícola. Vista desta ótica, a acumulação é um processo econômico puro, tendo como fase mais importante uma transação entre o capitalista e o trabalhador assalariado... Aqui, ao menos formalmente, a paz, a propriedade e a igualdade prevalecem, e foi necessária a aguda dialética da análise científica para revelar que o direito de propriedade se transforma, no curso da acumulação, em apropriação da propriedade alheia, que a troca de mercadorias se torna exploração e a igualdades vem a ser regime de classe. O outro aspecto da acumulação do capital se refere às relações entre o capitalismo e modos de produção não-capitalistas, que começam a surgir no cenário internacional. Seus métodos predominantes são a política colonial, um sistema internacional de empréstimos – uma política de esferas de interesse – e a guerra. Exibem-se abertamente a força, a fraude, a opressão, a pilhagem, sem nenhum esforço para ocultá-

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las, e é preciso esforço para discernir nesse emaranhado de violência política e lutas pelo poder as leis férreas do processo econômico. (LUXEMBURGO, citada por HARVEY, 2004, p. 115)

Na sequência, Harvey opera o procedimento profilático padrão: a monótona crítica ao “subconsumismo”. A quest~o toda aqui, para Harvey – seguindo uma tradição enfaticamente

refutada

por

Rosa

enquanto

reformista

e

pequeno-burguesa,

completamente encaixada com os preceitos da “economia vulgar” – é restabelecer a importância das teorias das crises sob a perspectiva da “sobreacumulaç~o” – em oposição ao suposto “subconsumo”. Harvey se apropria seletivamente de diversos pontos do argumento de Luxemburgo, mas sempre como se eles fossem completamente desconectados do robusto desenvolvimento teórico de A acumulação do capital. Como se o pensamento de Rosa não fosse consistente e coerente – no que faz coro com a maior parte da historiografia sobre o imperialismo – Harvey, depois de classificá-la de “subconsumista” e ratificar que “poucos aceitariam hoje a teoria do subconsumo de Luxemburgo como explicaç~o das crises”, lança um “todavia, h| muita coisa interessante no argumento de Luxemburgo (mesma obra, p. 118)”. Tentando “simplificar” o problema, afirma que “poderíamos dizer que o capitalismo cria, necessariamente e sempre, o seu próprio ‘outro’(mesma obra, p. 118)” e na sequência, se apropriando de modo seletivo e equivocado da noção de Rosa de que o capitalismo não pode se reproduzir senão se expandindo para além de seus limites préestabelecidos, Harvey argumenta que “a idéia de que algum tipo de ‘exterior’ é necess|rio à estabilização do capitalismo tem por conseguinte relev}ncia”. Entretanto, destaca que “o capitalismo pode tanto usar algum exterior preexistente (formações sociais nãocapitalistas ou algum setor do capitalismo [...] que ainda não tenha sido proletarizado) como produzi-lo ativamente” (mesma página). Na sequência, apresenta sua tarefa, qual seja, “examinar de que maneira a ‘relaç~o org}nica’ entre reproduç~o [ampliada]17, de um lado, e os processos muitas vezes violentos de espoliação, do outro, tem moldado a geografia histórica do capitalismo” com o intuito de “melhor entender o que é a forma capitalista de imperialismo” (mesma página). Nesta trilha, constata – examinando seletivamente mais uma vez as teses de Hannah Arendt – que o cen|rio que ela descreve no fim do século XIX “nos parece demasiado familiar, dada a experiência dos anos 1980 e 1990” (mesma obra, p. 119). E assim, Harvey, impressionado (sic) com a “a descriç~o arendtiana da reaç~o burguesa” coloca uma peça fundamental no seu “arcabouço explicativo” – que retorna mais à frente – ao afirmar que A traduç~o citada utiliza o termo “reproduç~o expandida”, mas fiquemos com o termo consagrado pela tradução especializada. 17

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‘os burgueses perceberam’, alega ela, ‘pela primeira vez, que o pecado original do simples roubo, que séculos antes tornara possível a ‘acumulaç~o do capital’ (Marx) e dera início a toda a acumulaç~o ulterior, tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulação não morresse de repente’. (mesma página)

O que Harvey vem fazendo, deixemos claro, é uma apropriaç~o bastante “criativa” das teses de Luxemburgo, elevando ao primeiro plano sempre que possível as teses de Arendt em vez de seguir as pistas de Rosa, que ele descartou. Apesar disso, a partir deste momento, ao que nos parece Harvey oferece uma contribuição relevante para a nossa compreensão do problema do imperialismo capitalista em nossos dias. A maneira como se apercebe do problema é sagaz. Primeiramente, pondera que “os processos que Marx, seguindo Adam Smith, chamou de acumulaç~o ‘primitiva’, ou ‘original’ constituem, ao ver de Arendt, uma importante e contínua força na geografia histórica da acumulação do capital por meio do imperialismo” (mesma p|gina). N~o s~o explicitadas no texto as razões pelas quais Harvey chega a essa conclusão via Arendt, e não via Luxemburgo, mas essa questão é menor. O mais importante é destacarmos que o argumento de Harvey consiste em afirmar que, na construção de Marx n’O Capital, “a acumulaç~o ‘primitiva’ ou ‘original’ j| ocorreu, e seu processo agora tem a forma de reprodução ampliada (embora mediante a exploração do trabalho vivo na produção) em condições de ‘paz, propriedade e igualdade’” (mesma página). Segundo essa leitura de Harvey, “a desvantagem desses pressupostos é que relegam a acumulação baseada na atividade predatória e fraudulenta e na violência a uma ‘etapa original’ tida como n~o mais relevante” (mesma página). E ainda na leitura dele: “ou, como no caso de Luxemburgo, como de alguma forma ‘exterior’ ao capitalismo como sistema fechado” (mesma página). Sob nosso ponto de vista é exatamente o oposto do que Rosa Luxemburg está argumentando. Conforme já argumentamos, quando ela insiste na relação entre as formas capitalistas e as formas não capitalistas de vida, é justamente para atentar para o fato de que, concretamente, o capitalismo existe porque explora a periferia. Mas deixemos Harvey concluir. Para ele, uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas predatórias da acumulaç~o ‘primitiva’ ou ‘original’ no }mbito da longa geografia histórica da acumulação do capital é, por conseguinte, muito necessária, como observaram recentemente vários comentadores. Como parece estranho qualificar de ‘primitivo’ ou ‘original’ um processo em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito de ‘acumulaç~o por espoliaç~o’ (mesma obra, páginas 120-1)

Aqui, em nosso juízo, estamos no ponto mais importante d a contribuição de Harvey: independentemente da solução encontrada por Marx em O Capital, a idéia de que a “acumulaç~o primitiva” é constituinte do capitalismo, e não uma etapa pretérita de sua “pré-história”, implica que é inteligente mudar seu nome para outro mais adequado. O

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argumento de Harvey, que nos parece bem colocado, é que não devemos ser formalistas. Aquilo que Marx descreveu enquanto “acumulaç~o primitiva”, com efeito, consiste numa “ampla gama de processos”, como por exemplo, a privatização da terra e a transformação da mesma em mercadoria; a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns; a transformação da força de trabalho em mercadoria e a supressão de formas alternativas (autóctones) de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos (inclusive recursos naturais); a monetização da troca e a taxação (particularmente da terra); o comércio de escravos; a usura; a dívida nacional; e o sistema de crédito, destacando que “o Estado, com seu monopólio da violência e suas definições de legalidade, tem papel crucial no apoio e na promoção desses processos”(HARVEY, 2004, p. 121) . O pulo do gato, entretanto, consiste em perceber a semelhança dessas práticas com aquelas descritas como “acumulaç~o primitiva”, que lhe s~o an|logas. Com efeito, “todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias” (mesma página). Assim, a expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas últimas décadas; muitos recursos antes partilhados, como a água, têm sido privatizados (com frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista de acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substitui a agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual). (mesma página)

Deste modo, para Harvey – com o que também concordamos – “a aceitaç~o crítica, ao longo dos anos, do relato que fez Marx da acumulação primitiva – que de qualquer maneira foi antes um esboço que uma exploração sistemática – sugere ser preciso preencher algumas lacunas” (página 122). Mas como se d| essa “aceitaç~o crítica” e esse “preenchimento de lacunas”? O procedimento de Harvey passa pela consideraç~o de que [...] a acumulação primitiva envolve a apropriação e a cooptação de realizações culturais e sociais preexistentes, bem como o confronto e a supressão. As condições de luta e de formação da classe trabalhadora variam amplamente [...]. O resultado é muitas vezes deixar vestígios de relações sociais pré-capitalistas na formação da classe trabalhadora, assim como criar diferenciações geográficas, históricas e antropológicas no modo de definir a classe trabalhadora. Por mais universal que seja o processo de proletarização, o resultado não é a criação de um proletariado homogêneo. (mesma página)

Nem tampouco era isso o que Marx vinha defendendo. Como já tivemos a ocasião de discutir (cf: FRANCO, 2015), ele afirma categoricamente que sua análise sobre as

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formas concretas (na Inglaterra) deve ser entendida como uma ilustração de um processo geral – o que evidentemente não significa que ele cria um “proletariado homogêneo” no sentido que sugere Harvey, mas que determinadas características gerais submetem a todos – que é o que significa dizer que todos estão progressivamente vivendo subordinados ao capital. Mas a questão principal para Harvey – com o que também concordamos – é que “alguns dos mecanismos de acumulaç~o primitiva que Marx enfatizou foram aprimorados para desempenhar hoje um papel bem mais forte do que no passado” (mesma página). Como por exemplo – novamente demonstrando a força, e não a fraqueza daquelas teses – “o sistema de crédito e o capital financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no começo do século XX, grandes trampolins de predação, fraude e roubo” (mesma página). Inclusive – não há para que discordar do efeito, ainda que discordemos da visão que a sustenta – “a forte onda de financeirizaç~o, domínio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório”(mesma obra, pagina 122). Este período – que ele chama de terceira fase do imperialismo capitalista, novo imperialismo e/ou neoliberalismo – em que a acumulação por espoliação assume protagonismo depois de “relativamente silenciada”, seria marcado por valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada de ativos por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis de encargos de dívida que reduzem populações inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a prisioneiros da dívida, para não dizer nada de fraudes corporativas e do desvio de fundos (a dilapidação de recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente de manipulações do crédito e das ações – tudo isso são características centrais da face do capitalismo contemporâneo.[...] Mas temos de examinar sobretudo os ataques especulativos feitos por fundos derivativos e outras grandes instituições do capital financeiro como a vanguarda da acumulação por espoliação em épocas recentes. (mesma obra, página 123)

É evidente que na descriç~o das “acumulações primitivas” n~o apareciam especificamente essas expropriações. A princípio não vemos motivos para discordar da proposição de Harvey, uma esses processos de enriquecimento não são exatamente o que se pode caracterizar como “coerç~o ‘econômica’” ou “reproduç~o ampliada de capital” em sentido estrito. E concordamos com ele de que a classificação desses mecanismos como “primitivos” ou associados aos primeiros passos do capitalismo é equivocada. Do contrário, temos que nossos tempos se caracterizam também por “mecanismos inteiramente novos de acumulaç~o por espoliaç~o” (mesma página). Por exemplo a ênfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociações da OMC (o chamado Acordo TRIPS) aponta para maneiras pelas quais o patenteamento e licenciamento de material genético, do plasma de

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sementes e de todo tipo de outros produtos podem ser usados agora contra populações inteiras cujas práticas tiveram um papel vital no desenvolvimento desses materiais. A biopirataria campeia e a pilhagem do estoque mundial de recursos genéticos caminha muito bem em benefício de umas poucas grandes companhias farmacêuticas. A escalada da destruição dos recursos ambientais globais (terra, ar, água) e degradações proliferantes de hábitats, que impedem tudo exceto formas capital-intensivas de produção agrícola, também resultaram na mercadificação por atacado da natureza em todas as suas formas. A transformação em mercadoria de formas culturais, históricas e da criatividade intelectual envolve espoliações em larga escala (a indústria da música é notória pela apropriação e exploração da cultura e da criatividade das comunidades). A corporativização e privatização de bens até agora públicos (como as universidades), para não mencionar a onda de privatizações (da água e de utilidades públicas de todo gênero) que tem varrido o mundo, indicam uma nova onda de ‘expropriaç~o de terras comuns’. Tal como no passado, o poder do Estado é com frequência usado para impor esses processes mesmo contrariando a vontade popular. A regressão dos estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente da degradação tem envolvido a perda de direitos. A devolução dos direitos comuns de propriedade obtido graças a anos de dura luta de classes (o direito a uma aposentadoria paga pelo Estado, ao bem-estar social, a um sistema nacional de cuidados médicos) ao domínio privado tem sido uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da ortodoxia neoliberal. (mesma página)

Em suma, o capitalismo internaliza práticas tanto canibais como predatórias e fraudulentas. Mas, como observa certeiramente Luxemburgo, ‘é preciso esforço para discernir nesse emaranhado de violência política e lutas pelo poder as leis férreas do processo econômico’. A acumulaç~o por espoliação pode ocorrer de uma variedade de maneiras, havendo em seu modus operandi muitos aspectos fortuitos e casuais. (mesma obra, página 124)

Indagado sobre a “acumulaç~o por expropriaç~o” num simpósio que teve por objetivo apreciar criticamente O novo imperialismo, Harvey esclareceu da seguinte forma:

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eu penso que é teoricamente razoável referir ao que ocorre nos estágios origin|rios do capitalismo como ‘acumulaç~o primitiva’ (e pode ser perfeitamente razoável utilizar este termo no caso da China contemporânea). Vou argumentar, entretanto, que as vigentes práticas predatórias e canibais que ocorrem mesmo nos países capitalistas avançados sob a capa de privatizações, reformas de mercado, retirada de direitos sociais (welfare withdrawals) e neoliberalização (neoliberalization) s~o melhor descritas por ‘acumulaç~o por espoliaç~o’ (accumulation by dispossession). Elas são qualitativamente diferentes, teoricamente, do que aconteceu nas origens do capitalismo. Eu não estou argumentando que nós devemos jogar fora a teorização marxiana e cafetinar idéias populares (pander to popular understandings), mas quando uma pequena mudança da linguagem pode ser muito mais efetiva em seu uso político, por que não usá-la?” (HARVEY, 2006, p. 158)18

Como já dissemos, nos parece uma saída sagaz, baseada em uma leitura da história pertinente, e – ao nosso juízo – deveria ser adotada pela historiografia contemporânea. A idéia de que aqueles métodos de violência fazem parte somente da pré-história do capitalismo é falsa. E a reprodução dessa idéia é responsável por grande parte da permanência de horizontes políticos idílicos entre quem acredita em algum caráter progressista do capitalismo. Aliás, conforme veremos a seguir, Harvey está em completa sintonia com essas propostas. E apartir daqui temos uma profunda divergência com Harvey. Diante do que foi exposto, pensamos que o veredicto deveria ser peremptório – como era para Luxemburgo: não existe nem nunca existiu concretamente capitalismo algum que pudesse ser entendido somente pelo modelo da reprodução ampliada. Do contrário, toda e qualquer forma social capitalista inevitavelmente depende de níveis de violência “extra-econômica”, “n~ocapitalista” ou como queiram melhor formular. Para Rosa, isso significa que nunca poderá existir capitalismo sem o expediente militarista (cf: LUXEMBURGO, 1985, p. 311 e seguintes). Assim, nestes termos, não nos parece fazer sentido indagar sobre a predominância dos militares ou dos economistas. A maneira como Harvey procede, mais uma vez, nos parece uma redução bastante problemática. O que aparecia com força enquanto uma relação dialética entre a “acumulaç~o primitiva” e a “reproduç~o ampliada” se torna mais uma vez enfraquecido. Isso porque, para ele, a “acumulaç~o por espoliaç~o” existe para “ajudar a resolver o problema da sobreacumulaç~o” (mesma página). Em termos gerais, defende que

Ainda que exista quem discorde de que “dispossession” [no original] seja um nome adequado para o que Harvey quer descrever, do nosso ponto de vista, essa questão menor. Existem diversos modos de equacionar o problema e o debate est| aberto. O decisivo é que esta “coisa” é um elemento constituinte fundamental ao funcionamento do capitalismo e, portanto, é tão capitalista quanto a reprodução ampliada. Em tempo, para além de qualquer método historiográfico, essa percepção surge da observação das relações concretas. 18

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a sobreacumulação, lembremos, é uma condição em que excedentes de capital (por vezes acompanhados de excedentes de trabalho) estão ociosos sem ter em vista escoadouros lucrativos. O termo-chave aqui é, no entanto, excedentes de capital. O que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo. No caso da acumulação primitiva que Marx descreveu, isso significava tomar, digamos, a terra, cercá-la e expulsar a população residente para criar um proletariado sem terra, transferindo então a terra para a corrente principal privatizada da acumulação do capital. A privatização (da habitação social, das telecomunicações, do transporte, da água etc., na Inglaterra, por exemplo) tem aberto em anos recentes amplos campos a ser apropriados pelo capital sobreacumulado. (mesma página)

A questão principal, para ele, portanto – muito diferente do problema de Rosa Luxemburgo –

é um problema de “demanda efetiva” para realizar o capital

sobreacumulado. Insistimos, essa é uma interpretação hobsoniana. Vejamos. Harvey dá destaque a três modos de resolução do problema de “sobreacumulaç~o de capital”. A primeira delas é o “projeto neoliberal de privatizaç~o de tudo” – em curso. Outra, seria “injetar matérias-primas baratas (como o petróleo) no sistema. O custo de insumos seriam reduzidos e os lucros, por esse meio, aumentado” (mesma página). Por fim, destaca que “o mesmo objetivo pode no entanto ser alcançado pela desvalorização dos ativos de capital e da força de trabalho existentes”, uma vez que “esses ativos desvalorizados podem ser vendidos a preço de banana e reciclados com lucro no circuito de circulação do capital pelo capital sobreacumulado” (mesma p|gina). Basta para isso que se “orquestre, administre e controle” crises. Isso pode ser feito “internamente” quanto externamente – no que consiste a especialidade do Fundo Monetário Internacional (FMI). Desta maneira, “o resultado é a criação periódica de um estoque de ativos desvalorizados, e em muitos casos subvalorizados, em alguma parte do mundo, estoque que pode receber um impulso lucrativo da parte de excedentes de capital a que faltam oportunidades em outros lugares” (mesma obra, página 125).Desta maneira, para ele, “surgem crises regionais e desvalorizações baseadas no lugar altamente localizadas como recurso prim|rio de criaç~o perpétua pelo capitalismo de seu próprio ‘outro’ a partir do qual se alimentar” (mesma página). Além disso, “a analogia com a criação de um exército industrial de reserva mediante a expulsão das pessoas de seu emprego é perfeita”. Isso porque, “valiosos ativos são tirados de circulação e desvalorizados. Ficam esvaziados e adormecidos até que o capital excedente faça uso deles a fim de dar nova vida à acumulaç~o do capital” (mesma obra, páginas 125-6). A questão principal se trata de como “orquestrar” a “recuperaç~o” dos ativos “encalhados”.

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E mais uma vez Harvey se encontra com os problemas teóricos de Giovanni Arrighi: o papel das “financeirizações” na transição de hegemonias do Sistema Internacional. Para Harvey, a mistura de coerção e consentimento no âmbito dessas atividades de barganha varia consideravelmente, sendo contudo possível ver agora com mais clareza como a hegemonia é construída por meio de mecanismos financeiros de modo a beneficiar o hegemon e ao mesmo tempo deixar os Estados subalternos na via supostamente régia do desenvolvimento capitalista. (mesma obra, página 126)

A seguir (mesma obra, p. 126 e seguintes), Harvey faz considerações interessantes sobre as relações ambíguas entre legalidade e ilegalidade e sobre a relação entre privatização (“o ‘braço armado’ da acumulaç~o por espoliação”) e a acumulaç~o do capital (mesa obra, páginas 126 e seguintes). Ao nosso juízo, essas observações poderiam sustentar uma definiç~o menos “formalista” de capitalismo, na qual se levasse {s últimas consequências o fato de que, concretamente, não se consegue discernir com clareza dos limites entre o “econômico” e o “n~o-econômico”, entre o “legal” e o “ilegal”, ou seja, entre o que se convenciona chamar de “capitalista” e o que se convenciona chamar de “n~ocapitalista”. N~o é o caminho de Harvey, contudo. Para ele, trata-se de determinar quais as características que “predominam” mais ou menos ao longo do tempo e do espaço19. E, como dissemos, para ele, no imperialismo capitalista deve predominar (sic) a “lógica capitalista de acumulaç~o”. Com efeito, para nós, nada é mais claro da confusão que advém dessa postura do que a impossibilidade de definiç~o do que, afinal, distingue o “novo imperialismo”. Essa dificuldade fica explícita ao final deste quarto capítulo que vimos comentando. Ali, Harvey afirma que as intervenções militares são apenas “a ponta do iceberg imperialista” (mesma obra, p. 147). Com efeito, é por meio dos “arranjos institucionais internacionais” que, “na prática, se extrai um tributo do resto do mundo” (mesma p|gina). Ou seja, para ele, “o livre mercado e os mercado de capitais abertos tornaram-se o meio primário de tirar vantagens para os poderes monopolistas com sede nos países capitalistas avançados” (mesma página). Mas “nada disso teria entretanto assumido a import}ncia que hoje tem caso n~o tivessem surgido problemas crônicos de sobreacumulação de capital por meio da reproduç~o expandida” [perguntamos: seria essa uma possibilidade em sociedade capitalistas?], “a que se associou uma recusa política em tentar uma soluç~o para esse problema por meio da reforma interna” (mesma página).

Comentamos sobre essa questão longamente em nossa tese de doutorado, contrastando as análises de Harvey com as de Ellen Wood (cf: FRANCO, 2015). 19

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Importante que anotemos uma vez mais que a análise de Harvey está em plena conformidade com as propostas de Hobson: seria possível que as potências não se atirassem { “aventura imperialista” caso tivessem a coragem de empreender reformas internas. Não precisamos aqui nos alongar, mas precisamos lembrar que a tradição marxista de estudos sobre o imperialismo se caracteriza justamente por desmentir os equívocos dessa posição e demonstrar que o imperialismo é o funcionamento normal e inevitável do capitalismo desde quando estabelecida a hegemonia do capital financeiro (que não é o capital dos financistas, mas a síntese das formas parciais de capital, portanto também tudo o que se julga capital industrial). O que queremos argumentar é que apesar do destaque dado à “acumulaç~o por espoliaç~o”, Harvey est| preocupado, em conformidade com Hobson, com o poder dos financistas. É por isso, que, para ele, o que “parece ser o cerne da natureza da pr|tica imperialista

contempor}nea”,

simbolizada

“pela

ascensão

de

uma

política

internacionalista de neoliberalismo e privatizaç~o” é o vínculo entre essas práticas e os “surtos periódicos de desvalorização predatória de ativos numa ou noutra parte do mundo” (cf: mesma obra, p. 148). Harvey teve a ocasião de reforçar esse ponto quando interviu no Simpósio que seguiu ao livro Império do Capital, de Ellen Wood (WOOD, 2014 [1003]). Depois de declarar mais uma vez sua sustentação em Arrighi (HARVEY, 2007, p. 61), destacando o “papel central da financeirizaç~o”(mesma página), argumentou que a “absorç~o de mais valia (sobreacumulaç~o), é, ent~o, o problema central” (mesma obra, p. 64). Então, traçou uma “simples regra de ouro” para quem quiser “identificar o que h| de ‘novo’ no novo imperialismo”: “siga o capital excedente (surpluses capital) e procure pelas práticas baseadas na geografia e no território (geographical and territorial-based practices) que se esforçam para absorvê-los ou desvalorizá-los” (mesma obra, p. 70). Esta é, em seus próprios termos, uma espécie de síntese de suas propostas. O que queremos enfatizar, portanto, é que apesar do destaque { “acumulaç~o por espoliaç~o”, para Harvey essa é apenas uma resposta às crises de sobreacumulação – o problema central do imperialismo. Não nos parece nada estranho que a partir daqui o problema retorne a um argumento circular. É o que Harvey demonstra na conclusão do capítulo sobre a “acumulaç~o por espoliaç~o”, ao argumentar que, se for verdade o que havia afirmado acima, “o ‘novo imperialismo’ mostra não passar da revisitação do antigo, se bem que num tempo e num lugar distintos” (HARVEY, 2004, p. 148) para, logo na sequência, afirmar que “resta examinar se esssa é uma conceptualizaç~o adequada das coisas” (mesma p|gina) e concluir o capítulo.

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O ponto de partida do capítulo 5, A coerção consentida, é o resgate de seu esquema conceitual. Da forma como escreveu ali, o imperialismo de tipo capitalista surge de uma relação dialética entre as lógicas territorial e capitalista do poder. Essas duas lógicas se distinguem por inteiro, não podendo de modo algum reduzir-se uma à outra, mas se acham estreitamente entrelaçadas. Podem ser concebidas como relações internas uma da outra. Mas os resultados podem variar substancialmente no espaço e no tempo. Cada lógica faz surgir contradições que têm de ser contidas pela outra. (mesma obra, p. 149)

Nos parece evidente que não seria possível sair desse imbróglio auto-imposto senão escapando do problema. É o que Harvey faz, clamando para que “lutemos com a teoria do Estado capitalista em toda a sua diversidade”, porque “Estados diferentes produzem imperialismos diferentes” (mesma p|gina). E como seria isso? Bom, primeiramente, como “n~o poderia ser de outra forma”, existe o contingencial e o acidental (mesma página). Mas, além disso, Harvey argumenta que acredita que “podemos avançar muito no estabelecimento de um sólido arcabouço interpretativo das formas distintamente capitalistas de imperialismo recorrendo a uma dupla dialética” (mesma obra, página 150). E qual seria essa “dupla dialética” (sic)? “Primeiro, a das lógicas territorial e capitalista de poder e, em segundo lugar, a das relações interiores e exteriors do Estado capitalista” (mesma p|gina). A que leva isso? À periodização já mencionada, com algumas novas ênfases, como a “recente forma de mudança de forma do imperialismo nos Estados Unidos, da modalidade neoliberal para a modalidade neoconservadora” (mesma página) como resposta {s “inseguranças crônicas no plano doméstico” que o próprio “imperialismo neoliberal no exterior [sic] tendeu a produzir” (mesma obra, opágina 152). Portanto, o que Harvey est| tentando analisar seria a busca do “projeto imperial neoconservador” (mesma obra, p. 159) “empenhados, ao que parece, em nada mais que um plano de total domínio do globo” (mesma obra, p. 161). Mas vejamos as implicações desta proposta.

Crítica à definição de imperialismo de Harvey Até aqui, nos ocupamos com a exposição dos argumentos de Harvey, com o objetivo primeiro de traçar sua definição de imperialismo. Além disso, procuramos explicitar alguns argumentos que vão no sentido de afastar a maneira como Harvey desenvolve essas concepções de uma muitas vezes levantada “herança luxemburguista”. Isso porque, ao nosso juizo, apesar de Harvey trazer os argumentos de Rosa para o ponto nevrálgico de seu argumento – a noção de acumulação por despossessão – existe uma diferença essencial entre as interpretações de Harvey e Rosa. Enquanto Rosa está preocupada com a demonstração de que todo o capitalismo é imperialista e que não existe

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qualquer possibilidade de reprodução dessa sociedade senão por meio da violenta dialética entre a reprodução ampliada e a acumulação primitiva; Harvey – por sua herança hobsoniana transmitida por Arrighi – está mais ocupado com a fase financeirizada do capitalismo e na distinç~o do que “predomina”, a “lógica capitalista” ou a “lógica territorial”. O que procuraremos nessa seç~o é demonstrar no que isso implica, sob dois pontos de vista absolutamente interligados: a definição de o que há de novo no novo imperialismo e as propostas políticas que decorrem desta análise. Um dos passos mais importantes dado por Harvey na procurada diferenciação do novo para o não-novo imperialismos passa pela contraposiç~o entre o “imperialismo neoliberal” e o “imperialismo neoconservador”. Mas em que consiste a diferença entre os “neoliberais” e os “neoconservadores”? Seriam os neoconservadores anti-neoliberais? Não. Na verdade, “o neoconservador se sobrepõe ao neoliberalismo na crença de que os livres mercados de mercadorias e de capitais contêm tudo o que é preciso para proporcionar a todos liberdade, bem-estar, sombra e |gua freca” (mesma obra, p. 162). Com efeito, em seus próprios termos, o neoconservadorismo vai dar prosseguimento a uma economia política fundada na acumulaç~o por espoliaç~o (…) e n~o far| absolutamente nada para conter a espiral de desigualdades que vem sendo produzida pelas formas contemporâneas de capitalismo. Na verdade, a julgar por suas políticas fiscais, os neoconservadores tudo farão para acentuar essas desigualdades, presumivelmente com a justificativa de que, a longo prazo, recompensar dessa maneira a iniciativa e o talento vai melhorar a vida de todos. (mesma página)

Exatamente como os neoliberais, diga-se de passagem. No fundo, para Harvey, os neoconservadores seriam neoliberais mais agressivos e belicosos, de modo que tudo o que fizeram foi, com efeito, “transformar a guerra limitada travada sob o neoliberalismo em todo o globo num dramático confronto que supostamente há de resolver os problemas de uma vez por todas” (mesma p|gina). Sua visão se baseia em uma falsa dicotomia segundo a qual haveria uma face mais branda e outra mais dura do imperialismo estadunidense – por mais que Harvey procure conscientemente fugir dessa formulação [às vezes parece que

ele

quer,

noutras

não].

Segundo

essa

fábula,

a

face

neoliberal

seria

predominantemente regida pela “lógica do capital” e a face neoconservadora seria mais belicista. Assim, o que quer que diga Harvey, o que seu raciocínio implica é que Clinton seria preferível a Bush II e, portanto, naquele momento, tratava-se de eleger um governo menos belicoso.20

Deixemos claro aqui que essa fábula já foi desmentida incontáveis vezes. A título de um exemplo de que Bill Clinton não foi um presidente brando no campo da política externa, sugerimos a leitura de As guerras secretas de Clinton – a evolução de um comandante-em-chefe, de Richard Sale (2010 [2009]). Como o subtítulo sugere, inclusive, Sale é simpatico a Bill. Seu livro pretende “honrar o 20

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Para demonstrá-lo, vejamos como Harvey reconstitui a suposta mudança do Estado que teria marcado a passagem de Clinton para Bush II. O fundamental, de acordo com essa reconstituição – que faz coro com incontáveis interpretações das mais variáveis estirpes à esquerda e à direita – é que vinha ocorrendo – já contando com algumas décadas – um tipo específico de “financeirizaç~o”21, com o aumento do poder do “complexo Wall StreetTesouro-FMI” e a conformaç~o de uma “classe transnacional” que “envolveu muitos custos internos como a desindustrialização, as fases de rápida inflação seguida pelo esmagamento do crédito e o desemprego estrutural crônico” (mesma obra, p. 150). Dando voz a uma sorte de interpretação nacionalista, Harvey argumenta que esse momento foi caracterizado por “uma classe capitalista crescentemente transnacional de financistas, chefes-executivos e rentistas” que recorria “ao hegemon territorial para proteger seus interesses e para construir o tipo de arquitetura institucional no âmbito da qual pudessem reunir a riqueza do mundo em suas mãos”. O problema é que “essa classe pouco ligava para as lealdades ou tradições nacionais ou vinculadas ao lugar; podia ser multirracial, multiétnica, multicultural e cosmopolita” e “se as exigências financeiras e a busca de lucros requeria que se fechassem fábricas e se reduzisse a capacidade manufatureira no próprio quintal dessa classe, que assim se agisse” (mesma obra, p. 152). 22

Para Harvey, “o imperialismo neoliberal no exterior tendeu a produzir inseguranças crônicas no plano doméstico”, de modo que, contra o “cosmopolitismo” das elites neoliberais, “muitos elementos das classes médias puseram-se a defender o território, a nação e a tradição como forma de armar-se contra um capitalismo neoliberal predatório. Buscaram mobilizar a lógica territorial do poder para se proteger dos efeitos do capital predatório”, fazendo (re) florescer inclusive o racismo e o nacionalismo (mesma obra, páginas 152-3). Deste modo, teria sido o “neoliberalismo” [sempre ele!] – ao proporcionar as bases para a “traiç~o das elites” – que teria criado o clima propício ao “populismo”, em que as pessoas n~o acreditavam no Estado, “t~o claramente do lado dos financistas, e de qualquer maneira agindo como principal agente da política de acumulaç~o por espoliaç~o”. A presidente, seus conselheiros, homens e mulheres no campo de litígio ou em postos no exterior” (SALE, 2010, Prefácio, p. xv) 21A traduç~o da ediç~o brasileira traduziu “financialization” por “financializaç~o” [p|gina 185 no original; 150 na traduç~o], e n~o por “financeirizaç~o”, como de costume. Preferimos seguir a historiografia especializada. 22 Conforme analisamos em nossa tese (FRANCO, 2015), discordamos tanto que existiu um dia uma classe capitalista que “ligava para as lealdades ou tradições nacionais ou vinculadas ao lugar” quanto que essa classe foi substituída por outra, “traidora”. Para nós, esse é mais um fetiche dos “Anos Dourados”, dos quais Harvey usa e abusa. Mas por hora avancemos em seu argumento, para vermos como ele lida com a necessidade de explicar as diferenças entre o imperialismo supostamente neoliberal e o imperialismo supostamente neoconservador.

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questão é que, para Harvey, o neoliberalismo é o responsável por ter começado a ebulição social e a propensão às revoltas – que iria desembocar na “ascens~o neoconservadora”23. Então a eleição fortuita [!] de George W. Bush, um cristão reconverso, para a presidência dos Estados Unidos deixou um grupo neoconservador de pensadores próximos do poder. Os neoconservadores, bem financiados e organizados em inúmeros think-tanks como os liberais antes deles, havia muito tentavam impor seu programa político ao governo. E esse programa diferia do neoliberal, tendo por objetivo primordial o estabelecimento da ordem e o respeito a ela, tanto internamente como no cenário mundial. Isso implica uma liderança forte no topo e uma lealdade inabalável na base, associadas à construção de uma hierarquia de poder tanto segura quanto clara. Para o movimento neoconservador, a adesão a princípios morais também é vital. Nesse aspecto, sua sustentação e base eleitoral são os cristãos fundamentalistas que acalentam crenças de um tipo muito especial. (mesma obra, p. 154)

Assim,

para

o

autor,

com

a

transição

democrata(neoliberal)-

republicana(neoconservadora), teria sido empreendida uma mudança fundamental na conduta política estadunidense, manifesta no fato de que “enquanto as posições-chave do governo Clinton estavam no Tesouro”, “o novo governo Bush recorre a seus especialistas em defesa [...] para moldar a política internacional” e “um cristão conservador [...] como secretário de Justiça para fazer viger a ordem em casa”, fazendo a ligaç~o “entre a ordem interna e a externa” assentada na concepç~o arendtiana de que “o império no exterior implica a tirania no plano doméstico” (mesma obra, p. 156)24. Agora, a partir da confusão entre neoliberalismo e neoconservadorismo, vejamos como o autor amarra os elos do raciocínio que ele havia enunciado. Para ele, com a ascensão neoconservadora, “houve a apropriação de um momento de solidariedade social e de patriotismo para construir um nacionalismo norte-americano capaz de oferecer a base para uma forma diferente de empreendimento imperialista e de controle interno” (mesma obra, p. 157) e houve um certo consenso entre neoliberais e neoconservadores em torno da idéia da guerra ao terror e a importância de se sacrificar liberdades civis em nome da segurança nacional (mesma obra). Mas, enfim, qual é a relaç~o entre “neoliberalismo” e “neoconservadorismo” para Harvey? Difícil de mapearmos, pois essa relação varia ao longo do texto, hora se complementando, hora substituindo. Sob nosso ponto de vista, quando analisamos esse mesmo período, temos que os grandes capitalistas – como sempre, desde que capitalismo seja capitalista – foram

Ao que é fácil inferir que o autor irá caminhar para a proposta de conciliação da sua agenda política com as agendas em torno de um Estado forte o suficiente para “domesticar” o capital de “suas” elites. Mas n~o nos adiantemos tanto. 24 Essa “concepç~o arendtiana” – de fato muito instigante – é citada algumas vezes por Harvey. 23

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beneficiados às custas dos pobres, independentemente da orientação neoliberal ou neoconservadora do condottiere. No fundo, pelo menos desde o ponto de vista internacional – que é o que estamos analisando prioritariamente aqui – neoliberais e neoconservadores não são tão diferentes assim e executam o mesmo projeto, embora com alguns toques pessoais25. O que nos chama a atenção é que mesmo que Harvey tenha sustentado sua argumentação em torno das mudanças ocorridas durante os anos 1990 polarizadas em torno dos neoliberais e dos neoconservadores, não há como negar que as semelhanças são enormes. Sob nosso ponto de vista, este não parece ser um problema da maneira como o autor delineia a lógica do seu argumento, mas em sua visão de mundo que nem sempre se faz aparecer. Deste modo, no mesmo p}ntano em que atolam tantos “marxistas” e “anticapitalistas” quando analisando o século XX em retrospectiva, também David Harvey afunda, confundindo a “disputa” entre ideologia neoliberal e a ideologia neoconservadora – superficialmente distintas, essencialmente iguais – com “mudanças nas políticas do Estado em favor do Capital”. Não é por fetiche das idéias que os governantes adotam tais políticas. Diferentemente do que julgam os teóricos, os homens de Estado, tão logo estejam no Estado, de bom grado abrem mão do que defendiam na Academia em nome da Política de Poder. 26

Não é à toa que no que toca as Teorias das Relações Internacionais a contenda tenha sido resolvida com o “consenso neo-neo”. 26 Harvey n~o é o único a encontrar dificuldades em distinguir “neoliberalismo” e “neoconservadorismo”. O exercício do poder n~o é apenas um exercício de vontade e/ou inspiraç~o ideológica, mas um exercício que precisa considerar uma série de “fatores exógenos” como a burocracia e a distribuição do poder – cinicamente aplaudida ou vaiada como “governabilidade”. Essa dificuldade se faz nítida quando apreciamos o debate da Ciência Econômica. Para os “especialistas”, nada mais diferente de um economista de orientação liberal que um economista de orientaç~o “heterodoxa”. As rixas s~o enormes e parecem se basear em divergências filosóficas e teóricas muito importantes. Em tese, um grupo político heterodoxo, quando no governo, implementaria políticas “intervencionistas”, de inspiraç~o “keynesiana” ou – como se diz aqui na periferia – “(_________) desenvolvimentista”. E o que faria um grupo “ortodoxo”? Confiaria no fato de que o Mercado seria o “ente” principal da mediaç~o social e, portanto, aplicaria medidas “liberalizantes” – tanto às questões monetárias quanto fiscais, trabalhistas etc. E o que acontece na realidade? Todo e qualquer grupo no poder precisa lidar com problemas concretos que contrariam – pelos mais variados fatores – essa orientação teórica, gerando um sem-fim de debates sobre como classificar as políticas adotadas daquele ponto de vista teórico apriorístico. Para além da tipologia, qual a validade dessa contenda? Qual é o rigor que a fundamenta? Alguma; dependendo de por que ângulo se analisa. Mas para o desespero dos teóricos mais ingênuos – e para o deleite dos oportunistas – a realidade n~o é t~o “preto no branco”. Acreditar que as gentes de Estado s~o fanáticas pelas idéias da Academia é somente mais uma das ilusões desta em sua sempre renovada capacidade de voltar-se exclusivamente para os próprios umbigos. No máximo, as orientações apriorísticas dos grupos no poder servem como um frágil suporte para o seu raio de ação, que quando contrastado com a realidade do exercício do poder. Qualquer semelhança com a realidade brasileira atual não é mera coincidência. Enquanto os partidos hegemônicos se digladiam numa luta fratricida para decidir qual é a diferença entre o charm e o funk o fantasma do controle social e do autoritarismo crescem incessantemente. O controle e a opressão sobre a população aumentam, o grau de mercantilização da vida explode e as condições de vida (pra ficarmos num exemplo apenas: 25

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O que fica clara na periodização de Harvey é que sua visão de mundo se sustenta numa narrativa que professa que, depois de um momento de vigor (por conta do 'New Deal' “keynesiano", a sociedade estadunidense (por conta do neoliberalismo), encontravase profundamente instável e a democracia ruía. Em seus termos, a própria “sociedade civil estava longe de civil. A sociedade como um todo parecia estar fragmentando e perdendo a coes~o com alarmante rapidez”(mesma obra, p. 23). Para ele, neste contexto, os neoconservadores e o seu discurso moralizante teriam encontrado terreno fértil, ao que puderam promover medidas tirânicas/draconianas sem romper com as medidas neoliberais que favoreciam a especulação financeira e a fuga das empresas para a China. E assim, embora geralmente essa seja colocada na conta dos “neoliberais”, os “neoconservadores” n~o deram nem ao menos um passo para reverter a tal “globalizaç~o”. Dito de outra forma, o argumento de Harvey – muito claro em uma série de questões difíceis – se turva no momento em que precisa colocar em perspectiva a “ascens~o conservadora” em contraposição ao neoliberalismo. Nossa hipótese é que – pelos argumentos que o próprio Harvey apresentou – essa dificuldade reside no fato de que os neoconservadores são neoliberais. Que se faça notar, que para nós – seguindo as interpretações marxistas sobre o imperialismo – os imperativos capitalistas seriam levada a cabo independentemente da orientação ideológica de seus gerentes momentâneos. O debate ideológico não explica a história. O imperialismo é imperialista por conta dos constrangimentos concorrenciais que fazem do capitalismo capitalista – ou seja, um sistema de exploração de classes que corresponde a um modo de produção da vida pautado pela acumulação incessante de riqueza em forma abstrata – e não do neoliberalismo ou do neoconservadorismo. Se isso se deve a constrangimentos “econômicos” [concorrência empresarial] ou “políticos” [geopolítica do poder; luta de classes] é questão a ser debatida com muito cuidado. Insistimos: o erro que não podemos incorrer é colocar na conta do neoliberalismo [uma ideologia de gestão do capital] o que deve ser colocado na conta do capitalismo [um sistema de exploração/modo de produção]. Do contrário, corremos o risco de cair nas armadilhas da crítica não-radical e de propostas do tipo “defender um novo 'New Deal' esperando que se crie condições para que as forças progressistas um dia cresçam” ou, muito pior, “esperar e torcer para que a luta dos Estados Unidos penda para o nosso lado”. Que essas sejam as “soluções” defendidas por David Harvey em O Novo Imperialismo só ilustra que mesmo um autor consciente da necessidade da crítica ao modo de produção capitalista – e que nos ajuda a avançar a compreensão das relações sociais ambiental) pioram a olhos vistos. Independentemente neoconservadora de nossos (?) dirigentes.

da

orientação

neoliberal

ou

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contemporâneas em muitas questões importantes – não consegue superar o horizonte dos “Anos Dourados”. Do nosso lado, acreditamos que a conclusão que podemos tomar seguindo suas próprias pistas, nos leva a necessariamente apostar naquelas “soluções bem mais radicais que espreitam nos cantos”(mesma obra, p. 168), e não, como faz Harvey, clamar pelo estabelecimento de um “novo ‘New Deal’ liderado pelos Estados Unidos e pela Europa, tanto doméstica como internacionalmente” (mesma página). Somos radicalmente contra essa proposta. Analisado historicamente sem as idílicas lentes das quais Harvey parece não conseguir se libertar, o 'New Deal' foi o arranjo que mais aprofundou as raízes do capital na vida cotidiana das pessoas e, portanto, sua capacidade de oprimi-las. Tendo isso em vista, acreditamos o tipo de argumento que defende o “menos pior” – como Harvey –

é um gigantesco desserviço às lutas

anticapitalistas. Para ele, “diante das magníficas forças de classe e interesses especiais alinhadas contra ela”, esta é, uma meta suficientemente ampla pela qual lutar na atual conjuntura. E a idéia de que isso poderia, mediante a busca adequada de alguma ordenação [fix] espaço-temporal de longo prazo, mitigar de fato os problemas de sobreacumulação ao menos pelos próximos anos e reduzir a necessidade de acumular por despossessão pode estimular forças progressistas e humanas a alinhar-se em seu apoio e transformá-lo em alguma espécie de realidade prática. Isso de fato parece propor uma trajetória imperial bem menos violenta e bem mais benevolente do que o imperialismo militarista grosseiro hoje oferecido pelo movimento neoconservador nos Estados Unidos. (mesma obra, p. 169).

Temos em relação àquele texto [publicado em 2004] uma vantagem enorme: não precisamos mais especular. A coalizão neoconservadora que sustentava George Bush II foi substituída. No eterno dueto estadunidense, foi a vez dos democratas assumirem a presidência, chegando mesmo a anunciar certas intervenções que a ala mais delirante da sociedade local taxou de “socialistas”. Assim, n~o se pode claramente chamar os governos Obama, hoje em seus últimos dias, de neoliberal (como Clinton), nem de neoconservadora (como Bush II). E o que de fato há de novo do ponto de vista do Imperialismo? Provavelmente a “novidade” é que, a despeito da dicotomia partid|ria, as políticas de Estado permanecem inabaladas. Como apreciar então a visão de Harvey, que conclui sua extensa e muitas vezes instrutiva argumentação de O Novo Imperialismo com uma patética aclamação do tipo: “Trabalhadores de todo o mundo, torcei!”: os Estados Unidos são naturalmente o real campo onde travar essa batalha. Quanto a isso, há alguma base para a tênue esperança, visto que as graves restrições às liberdades civis e o reconhecimento já duradouro de que o imperialismo no exterior será comprado ao preço da tirania no plano doméstico oferecem uma firme base para a resistência política, ao

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menos da parte daqueles que de fato acreditam na Carta de Direitos, e cuja visão da constitucionalidade difere da que tem a maioria neoconservadora que hoje domina a Suprema Corte. (…) H| um movimento antiguerra e antiimperialismo que labuta para exprimir-se, mas o clima de nacionalismo e patriotismo, e a supressão da dissensão em todos os níveis, particularmente no âmbito dos meios de comunicação, mostram que há uma dantesca batalha a ser travada internamente contra a versão neoconservadora de imperialismo, bem como contra a continuidade do neoliberalismo no nível econômico. O poder de classe alinhado em apoio ao neoliberalismo, por exemplo, é formidável, porém, quanto mais problemática se mostra a forma neoconservadora de governo, tanto interna como internacionalmente, tanto mais provável serão a divisão e a dissensão mesmo nas classes de elite com respeito à direção que deve tomar a lógica territorial de poder. As atuais dificuldades por que passa o modelo neoliberal e a ameaça que ele hoje representa para os próprios Estados Unidos podem chegar ao ponto de provocar clamores em favor da construção de uma lógica territorial alternativa do poder. A ocorrência ou não disso depende de modo vital do equilíbrio de forças políticas no interior dos Estados Unidos. Ainda que possa não ser determinante, terá um imenso papel em nosso futuro individual e coletivo. Quanto a isso, o resto do mundo só pode observar, esperar e alimentar esperanças (grifos nossos). (mesma obra, página 169-170)

Como disse, em contexto an|logo, o “embaixador das favelas” Bezerra da Silva, muito mais sensível {s causas das gentes exploradas: “Acho-te uma graça!”. E é exatamente neste ponto que a análise de Harvey apresenta mais um aspecto que precisa ser criticado. Um aspecto estritamente colado à maneira específica como se apropria das teses de Marx e que ao mesmo tempo demonstra uma posição discursiva que deve ser refutada – e aqui mais uma vez temos uma diferença gritante com relação à Rosa Luxemburgo. Porque se no primeiro momento a questão decisiva para Harvey é demarcar a perenidade de formas análogas à acumulação primitiva – considerando tanto as permanências e aprofundamentos de algumas formas assim classificadas por Marx; quanto a criação de mecanismo inteiramente novos – num segundo momento as diferenciações são decisivas. A partir desse postulado, Harvey passa a explorar as relações entre cada uma das formas de resistência contra a acumulação capitalista e a tal “esquerda tradicional” e “socialista”. Seu ponto de partida é a lembrança de que, para Marx, existe um lado “progressista” embora o surgimento do capital tenha sido caracterizado pela violência e sua história tenha sido cravada “em letras de sangue e de fogo”. Ao que Harvey complementa que não é possível fazer omeletes sem quebrar ovos, diz o velho ditado, e o nascimento do capitalismo implicou episódios ferozes, e com frequência violentos, de destruição criativa. Embora a violência de classe tenha sido tenebrosa, o lado positivo foi a abolição das relações feudais, a liberação de energias criadoras, a abertura da sociedade a fortes correntes de mudança tecnológica e organizacional e a superação de um mundo

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fundado na superstição e na ignorância, substituído por um mundo de ilustração científica potencialmente capaz de libertar as pessoas dos anseios e necessidades materiais. É possível afirmar, desse ponto de vista, que a acumulação primitiva foi uma etapa necessária, ainda que tenebrosa, pela qual teve de passar a ordem social para chegar a uma condição na qual se tornassem possíveis tanto o capitalismo como algum socialismo alternativo (mesma obra, p. 134).

Aqui, é mais importante permanecer no campo de Harvey do que debater o controverso tema do progressismo na visão de Marx. O etnocentrismo dessa posição é cristalino; e a defesa de argumentos bastante controvertidos, como a oposiç~o entre “um mundo fundado na superstiç~o na ignor}ncia” e “um mundo de ilustraç~o científica potencialmente capaz de libertar as pessoas dos anseios e necessidades materiais” é patética – sendo condescendentes. O mínimo que Harvey deveria fazer seria ponderar se e em quais circunstâncias esse mundo supostamente fundado na ilustração efetivamente realizou esse potencial. A destruição de modos de vida muitas vezes milenares – frequentemente por meio do genocídio e do etnocídio – com a justificação de que isso libertaria um “potencial” e que se tratava de uma “etapa necess|ria” é de um cinismo que completamente inaceitável; em quaisquer termos27. Comparar a destruição de civilizações com “quebrar uns ovos”?? O argumento de Harvey é que em alguns casos (sic) a acumulação via espoliação é mais nociva do que a reprodução ampliada que a precedeu. O argumento está colocado nos seguintes termos: embora os níveis de exploração da força de trabalho em países em desenvolvimento sejam sem dúvida altos, podendo-se identificar abundantes casos de práticas abusivas, os relatos etnográficos das transformações sociais promovidas pelos investimentos externos diretos, pelo desenvolvimento industrial e pelos sistemas de produção ‘exportados’ em muitas partes do mundo formam um enredo bem mais complexo. Em alguns casos, a posição das mulheres, que proporcionam a maior parcela da força de trabalho, tem tido ponderáveis modificações, ou mesmo tem sido aprimoradas. Diante da opção entre a mão-de-obra industrial e a volta ao empobrecimento rural, muitas pessoas no âmbito do novo proletariado parecem exprimir forte preferência por aquela. Noutros casos, obteve-se um poder de classe suficiente para obter ganhos reais em termos de padrão de vida bem superior às circunstâncias degradadas de uma existência rural precedente. (mesma obra, p. 135)

Novamente é importante saber quais foram as situações concretas em que a promessa se justificou, para muito além do falacioso dilema de “o que as pessoas escolheriam” – a rigor, uma forma liberal [e, insistimos: falaciosa] de equacionar o problema. Vejamos um exemplo concreto de que Harvey se vale para explicitar o “enredo complexo”. Na sequência da citaç~o acima, afirma que

27

Cf.: Clastres: “Do Etnocídio”, em Arqueologia da Violência.

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é portanto difícil dizer se o problema da Indonésia, por exemplo, foi o impacto da rápida industrialização capitalista sobre as oportunidades de vida durante as décadas de 1980 e 1990 ou a desvalorização e a desindustrialização provocadas pelas crises financeiras de 1997-1998, que fizeram ruir boa parte das realizações da industrialização. Qual foi, à luz disso, a maior dificuldade: a importação e a inserção da acumulação do capital por meio da reprodução ampliada na economia indonésia ou a total demolição dessa atividade por meio da acumulação por espoliação? Embora seja óbvio que esta última foi um corolário lógico daquelas, e que a verdadeira tragédia se traduz em atrair com grande rapidez (por vezes à força) populações para o proletariado e logo depois as descartar como mão-de-obra redundante, julgo igualmente plausível que o segundo movimento prejudicou bem mais as esperanças, aspirações e possibilidades de longo prazo das massas empobrecidas do que o primeiro. (mesma página)

O próprio autor oferece todas as ferramentas para invalidar esse falacioso dilema: a acumulação por espoliação é concomitante à reprodução ampliada e questionar qual das duas “prejudicou” mais ou menos do que a outra chega a ser imoral. Mais ainda quando o critério estabelecido é julgar com base nas “esperanças, aspirações e possibilidades de longo prazo das massas empobrecidas”, esperanças, aspirações e possibilidades essas que nunca existiram senão no engodo “desenvolvimentista”, que ressoa o tempo todo na forma como Harvey formula seus enunciados dos quais conclui que “a acumulaç~o primitiva que abre caminho à reprodução ampliada é bem diferente da acumulação por espoliação, que faz ruir e destrói um caminho j| aberto” (mesma página). Nenhuma objeção, obviamente, pode ser levantada contra a diferenciação em si mesma. Mas, como sempre, é preciso dizer em quê elas se diferenciam e tirar daí as consequências. Para Harvey, a questão principal reside na admissão – que ele diz tomar de Marx – de que “a acumulaç~o primitiva pode ser um precursor necess|rio de mudanças mais positivas”, o que “levanta toda a quest~o da política de expropriaç~o sob o socialismo” (mesma obra, páginas 135-6). O problema que Harvey coloca é pertinente: julgou-se com frequência necessário, na tradição revolucionária marxista/comunista, organizar o sucedâneo da acumulação primitiva a fim de implementar programas de modernização de países que não houvessem passado pela iniciação do desenvolvimento capitalista. (mesma obra, página 136)

Desta forma, sempre nos termos dele, “níveis de tenebrosa violência semelhantes aos da acumulaç~o primitiva” marcaram, sob o auspício dos “socialistas” a “modernizaç~o” (sic) de governos socialistas ao longo do século XX como por exemplo na União Soviética, na China e em países do “leste europeu”. Ainda de acordo com Harvey, “dificilmente se pode considerar essas políticas grandes histórias de sucesso, tendo elas desencadeado uma resistência política em alguns casos impiedosamente esmagados” e “em todos os lugares em que foi implantada essa abordagem criou problemas peculiares” (mesma página). E, o que não é menos importante para o nosso problema, é que muitas vezes os

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socialistas não combateram o imperialismo capitalista em nome da tradição, mas em nome da modernidade alternativa (mesma página). O que acaba por acarretar que “movimentos insurgentes contra a acumulação por espoliação não têm particular predileção por ser cooptados pelo desenvolvimentismo socialista [...] e têm seguido em geral outro caminho, em alguns casos deveras hostil { política socialista” (mesma página), com o objetivo de afastar “o terreno da organizaç~o política da organizaç~o partid|ria e oper|ria tradicional” (mesma obra, p. 138). Harvey tem uma posição ambivalente com relação a essa postura, e acaba por concluir que “o que o movimento perdeu em foco ganhou em termos de relev}ncia e de inserç~o na política da vida cotidiana” (mesma página). A identificaç~o do problema da relaç~o entre o “socialismo” tradicional e os movimentos contra a acumulação por espoliação – que muitas vezes se situam nas periferias e são muitas vezes herdeiros de tradições antiimperialistas e anticolonialistas – é precisa. Mas como se posicionar frente a ele? Para Harvey, “o perigo é [...] ver todas essas lutas contra a espoliaç~o como ‘progressistas’ por definiç~o”. Ainda em seus termos, creio ser esse o ponto em que reside a real dificuldade política. Porque, caso Marx esteja ao menos parcialmente certo ao afirmar que em certas circunstâncias pode haver algo progressista na acumulação primitiva, e que é preciso quebrar alguns ovos para fazer a omelete, temos de enfrentar frontalmente difíceis escolhas. (mesma obra, p. 139)

Se assumirmos que há algo de progressista e que é preciso quebrar alguns ovos para fazer as omeletes, precisamos enfrentar o problema que Harvey coloca. Mas coloquemos em outros termos, mais próximos da nossa realidade. Quem serão os ovos que serão escolhidos para serem quebrados, e quem é que vai comer essa omelete? Podemos, por exemplo, quebrar os “ovos” (?) das tribos Guarani-Kaiowás que precisam se “removidas” (sic) para a expansão do sistema elétrico brasileiro que garante essa “acumulaç~o primitiva” e junto deles todas as populações ribeirinhas e quilombolas que também precisam ser “removidas” para dar lugar {s represas. Mas ser| que esses “ovos” serão suficientes? Dado o caráter necessariamente expansivo do capital, é lógico supor que não. E depois? Quem serão os próximos “ovos”? Por exemplo, comunidades de pesca tradicional que precisam ser “removidas” para a construç~o de portos? Mas e depois, quem ser~o os “ovos” que ser~o quebrados para que o “motor da acumulaç~o” n~o cesse de funcionar? Mas em que circunstâncias, e a partir de quais mecanismos mentais é possível tratar pessoas como “ovos”? E por que ser| que Harvey n~o problematiza quem é que vai comer essa “omelete”? E por que é mesmo que a acumulação primitiva é necessária? Sob nosso ponto de vista, a partir de uma ideologia imperialista que se faz marcar, mesmo travestida, inclusive entre aquelxs que se opõe ao imperialismo. Como já dissemos

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lá na tese (FRANCO, 2015), essa hierarquização social que estabelece que determinados grupos são legitimamente passíveis de sofrerem a violência [que virarão a omelete dos outros] é um elemento constitutivo imprescindível para a conformação da ideologia imperialista – o que inclusive é um passo absolutamente central para o argumento arendtiano, mas que de forma nada espantosa é solenemente ignorado por Harvey. Mas ainda precisamos descrever o argumento de Harvey sobre o “mundo” que j| passou pela “acumulaç~o primitiva” original. Neste caso, como fica a situaç~o? E o que o encadeamento argumentativo de Harvey implica e que visão de mundo a sustenta? Iremos por partes, acompanhando a maneira como desdobra a an|lise de que “a concepção clássica da esquerda marxista/socialista era a de que o proletariado, definido como o conjunto de trabalhadores assalariados privados do acesso aos meios de produção ou de sua propriedade, era o agente privilegiado da mudança histórica” e “a contradiç~o central separava capital e trabalho no e em torno do eixo da produç~o” (mesma obra, p. 139). Assim, os instrumentos primordiais da organização da classe trabalhadora eram os sindicatos operários e os partidos políticos cujo fim era buscar a conquista do poder do Estado a fim de regular ou suplantar o domínio de classe capitalista. O foco eram, por conseguinte, as relações de classe e as lutas de classes no campo da acumulação do capital, entendida como reprodução ampliada. Consideravam-se subsidiárias, secundárias ou mesmo inúteis, por periféricas ou irrelevantes, todas as outras formas de luta. Havia naturalmente inúmeras nuanças e variações desse tema, mas no cerne de tudo prevalecia a idéia do proletariado como o agente privilegiado da transformação histórica. (mesma página)

Diante deste diagnóstico, que nos parece correto, poderíamos encaminhar a prosa, por exemplo, para a consideração dos limites de qualquer sociedade nos termos capitalista, seu caráter opressivo, sua necessária hierarquização imperialista, ou sobre os equívocos de se tornar invisíveis determinados tipos de luta contra formas de violência outras que não o trabalho. Mas pra onde segue o argumento de Harvey? Para ele,

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as lutas travadas nos termos dessa prescrição geraram notáveis frutos durante boa parcela do século XX, particularmente nos países capitalistas avançados. Apesar de não ter havido transformações revolucionárias, o crescente poder das organizações e dos partidos políticos da classe trabalhadora obtiveram ponderáveis melhorias dos padrões materiais de vida associados com a institucionalização de uma ampla gama de proteções sociais. Os Estados democráticos do bem-estar social que surgiram, principalmente na Europa Ocidental e na Escandinávia, puderam ser considerados, apesar de seus problemas e dificuldades inerentes, modelos de desenvolvimento progressista. E eles não teriam vindo a existir sem a organização proletária razoavelmente restrita no âmbito da reprodução ampliada tal como vivida no Estadonação. Julgo importante reconhecer a relevância dessa conquista. (mesma obra, p. 140)

Ninguém precisa deixar de reconhecer a relevância dessa conquista para perceber que esses “problemas e dificuldades inerentes” s~o nada fortuitos. Essas conquistas, como uma resposta, ou como uma resistência, a um processo de aprofundamento do capitalismo devem mesmo ser reconhecidas, mas considerar essas sociedades “modelos de desenvolvimento progressistas” n~o decorre logicamente do reconhecimento das conquistas, mas de uma visão de mundo por meio da qual se justifica os ovos quebrados em nome da omelete. Inclusive, Harvey delimita precisamente quem é que comeu essa omelete: “países capitalistas avançados”; “os Estados democr|ticos de bem-estar social que surgiram, principalmente, na Europa Ocidental e na Escandin|via”. Pois bem, como pode perceber qualquer pessoa que se ligue minimamente no que está acontecendo no mundo em nossos dias, a omelete [que foi servida na Europa Ocidental e na Escandinávia] acabou, e a briga agora é pra saber quem serão os próximos ovos a serem quebrados. Há uma vaga promessa de que eles serão mais bem repartidos, mas torna-se a cada dia mais óbvio que acreditar nisso é uma completa ingenuidade. Uma das mais perigosas trincheiras do imperialismo – invisível somente pra quem nunca foi “ovo” – é justamente a ideologia que hierarquiza quem são os ovos e quem come as omeletes. Não se pode dizer que Harvey desconheça o problema. Na sequência mesma do argumento, critica a “esquerda tradicional” por “numerosas exclusões”, ao que cita o “feminismo” e o “ambientalismo”. É aqui também que Harvey discorre sobre um problema importante: a relação entre os privilégios domésticos e o imperialismo que, em suas próprias palavras, “levou grande parte do movimento oper|rio nos países capitalistas avançados a cair na armadilha de agir como a aristocracia do trabalho para preservar seus próprios privilégios, se necess|rio mediante o imperialismo” (mesma página). Aqui Harvey teria mais uma ocasião para denunciar o cinismo do discurso das omeletes e dos ovos e posicionar o problema na crítica radical de toda e qualquer forma de sociedade capitalista. Ele identifica que existe um problema em considerar que as “lutas contra a

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acumulação por espoliação eram consideradas irrelevantes”. Mas qual seria esse problema? Em suas palavras, essa concentração obstinada de boa parcela da esquerda de inspiração marxista e comunista nas lutas proletárias, com a exclusão de tudo o mais, provou ser um erro fatal. Porque, se as duas formas de luta se acham organicamente ligadas no âmbito da geografia histórica do capitalismo, a esquerda não apenas se privava de poder como também prejudicava suas capacidades analíticas e programáticas ao ignorar por completo um dos lados dessa dualidade. (mesma página)

A posição do discurso de Harvey é muito clara, a despeito de suas intenções, que não temos nenhum motivo para questionar: com o processo de ignorar e silenciar as lutas de pessoas oprimidas, quem perdeu foi “a esquerda”. Não nos parece difícil de imaginar que qualquer pessoa que fosse “ovo” consideraria esse problema extremamente grave e a conclusão lógica seria equacionada teoricamente de modo simples: não posso lutar por um sistema que, mesmo em suas melhores condições concretas, é opressor, e vai acabar sobrando pra mim e para os meus. O problema de Harvey é que a não-percepção da importância da luta não-especificamente oper|ria “privava a esquerda de poder” e “prejudicava suas capacidades analíticas e program|ticas”. Esse erro foi fatal; para “a esquerda de inspiração marxista e comunista”. É mesmo estranho que os movimentos contra a espoliação, conforme ele vinha comentando anteriormente, procurem a todo custo se afastar da “organizaç~o partid|ria” e da “esquerda tradicional”? N~o nos parece. Neste momento, nos parece adequado fazer uma ponderação que julgamos importante. Conforme dissemos há pouco, não temos nenhum tipo de razão para desconfiar das boas intenções de David Harvey. Aliás, muito pelo contrário. Seu posicionamento na luta contra o capitalismo e sua orientação acadêmica nos parecem sinceros. Com efeito, nada nos interessa o julgamento das intenções de Harvey. O único motivo pelo qual nos interessa sublinhar essa questão é que existem mecanismos da “vis~o de mundo” que penetram forçosamente por brechas que nem imaginamos. Na verdade, a questão toda depende provavelmente de estruturas que nos são imperceptíveis e que têm que ver com os valores pelos quais apreendemos a realidade. David Harvey, como todos os demais seres humanos, é uma figura complexa. O que nos interessa é apenas anotar seu argumento que vimos analisando, sobre O novo Imperialismo. E em particular nos interessa destacar que sua visão de mundo e seu projeto político refletem um horizonte muito específico, conforme fica evidente nas passagens que seguem imediatamente aquelas que vínhamos comentando, sobre as acumulações por espoliação. Conforme já dissemos, ao nosso juízo, a importante constatação de que não existe capitalismo sem acumulação espoliativa, além de desmentir postulados sobre as possibilidades de desenvolvimento capitalista que não a própria barbárie – em síntese:

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capitalismo é barbárie – exige, do ponto de vista dos historiadores, ou qualquer um que se ocupe da narrativa do século XX, um exame sobre a principal miragem que inebriou os coevos: o suposto capitalismo dourado que supostamente degenerou por conta de decisões da ideologia “neoliberal”. Voltando ao ponto específico em que est|vamos, o “erro fatal” da esquerda, para Harvey, consiste em n~o ter compreendido as peculiaridades da “din}mica da luta de classes depois da crise de 1973” (mesma obra, p. 120). Mas o que isso significa? Para Harvey, a ascensão do capital financeiro, do comércio mais livre e do disciplinamento do Estado por fluxos suprafronteiras em mercados de capital liberalizados tornaram as formas tradicionais de organização do trabalho menos apropriadas e, em consequência, menos bem-sucedidas. Movimentos revolucionários e mesmo reformistas (como no Chile de Allende) foram violentamente reprimidos pelo poder militar. (mesma obra, p. 141)

Em síntese, seu argumento amplamente conhecido de que o “pacto fordista”, naquele momento, teria sido rompido em favor de uma ordem (neo) liberal menos regulamentada e mais “financeirizada”. Em O novo Imperialismo, a ênfase é no fato de que, as respostas a essa crise levaram os defensores do capitalismo ao entendimento de que “a intensa dificuldade de manter a reprodução ampliada também gerava uma ênfase muito maior numa política de acumulaç~o por espoliaç~o” (mesma página). Por outro lado, “as formas de organização desenvolvidas para combater a reprodução ampliada não se transpuseram bem quando se tratava de combater a acumulaç~o por espoliaç~o” (mesma página). Numa “generalizaç~o esquem|tica” (sic) que nos parece extremamente ilustrativa da crítica que vimos encadeando, as formas de organização política esquerdista instauradas no período 1945-1973, quando a reprodução ampliada estava na ascendente, eram impróprias ao mundo pós-1973, quando a acumulação por espoliação passou a ocupar o primeiro plano como a contradição primária no âmbito da organização imperialista da acumulação do capital. (mesma página)

Para ele, diferentemente do que parece sugerir no primeiro momento, quando definia tanto as formas “tradicionais” quanto as formas mais atuais de exploração capitalista sob a rubrica de “acumulaç~o por espoliaç~o”, é crucial a distinç~o entre dois momentos distintos da periodização do imperialismo: para ele, houve um momento em que a reprodução ampliada predominou, e que nada coincidentemente, foi o momento em que se conseguiram aquelas “conquistas” e aqueles “Estados democr|ticos e de bem-estar social”, “modelos de desenvolvimento progressista”. Este momento – infelizmente? – foi sucedido por outro momento em que, porque havia uma “intensa dificuldade de manter a reproduç~o ampliada”, a acumulaç~o por espoliaç~o “passou a ocupar o primeiro plano”. Logicamente, para ele – conforme já adiantamos – o horizonte de lutas deve ser a

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recuperaç~o dos marcos de “desenvolvimento progressista” e o restabelecimento de um novo (em que termos?) New Deal. O problema é que Harvey não dá qualquer importância à opressão que ocorreu neste período (para qualquer um que não tivesse a nacionalidade, a cor, o gênero e a religi~o “certos” – para dizermos pouco); seu necessário vínculo com o imperialismo (o capitalismo não existe senão destruindo o mundo), nem quaisquer determinantes capitalistas do imperialismo. E faz parecer que se os povos oprimidos fossem todos “progressistas” (mesma obra, páginas 144 e seguintes) e percebessem que a libertação popular deve vir junto com a modernização (cf: mesma obra, página 142); e se a esquerda entendesse que neste momento precisa dar importância para as pautas de gentes que antes eram completamente silenciadas – uma vez que hoje “todo o campo da luta anticapitalista, anti-imperialista e antiglobalização foi reconfigurado, tendo-se acionado uma dinâmica política totalmente diferente” (mesma página); aí sim seria possível combater o capitalismo e integrar uma pauta de lutas mais coesa. Aí sim o mundo seria melhor – ainda que Harvey continue não problematizando para quem. Que a última parte de seu livro seja dedicada, conforme já dissemos, ao argumento de que a única luta relevante contra o imperialismo deve ser travada no interior da sociedade civil estadunidense, nos parece um excelente sintoma de até onde esse discurso pode nos levar. E isso mesmo que Harvey saiba desses riscos. A questão é que saber não é o suficiente. A luta pela conformação de novas visões de mundo é constante. Acompanhemos, a título de ênfase em nosso argumento, a conclusão do capítulo sobre a Acumulação via espoliação. Ali, Harvey destaca que, no plano analítico, “a formulaç~o de Luxemburgo tem extrema atualidade”. Isso porque, a acumulação do capital tem de fato caráter dual. Mas os dois aspectos, o da reprodução ampliada e o da acumulação por espoliação, se acham organicamente ligados, entrelaçados dialeticamente. Segue-se pois que as lutas no plano da reprodução ampliada (que recebeu tanta ênfase da esquerda tradicional) têm de ser vistas em relação dialética com os combates à acumulação por espoliação, que constitui o foco primordial dos movimentos sociais que se abrigam no âmbito dos movimentos antiglobalização e pela globalização alternativa. Se o atual período tem visto a mudança de ênfase passar da acumulação mediante a reprodução ampliada para a acumulação por espoliação, e se esta última está no cerne das práticas imperialistas, conclui-se que o balanço de interesses no interior do movimento anti-globalização e pró-globalização alternativa tem de reconhecer na acumulação por espoliação a contradição primária a ser enfrentada. Não deve ele porém jamais fazê-lo ignorando a relação dialética com as lutas no plano da reprodução ampliada. (mesma obra, p. 144) [...] minha concepção pessoal, valha o que valer, é que os movimentos políticos, para ter algum impacto macro e de longo prazo, têm de sair da nostalgia com relação ao que se perdeu e, do mesmo modo, preparar-se para reconhecer os ganhos positivos a ser obtidos da transferência de

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ativos que se pode conseguir por meio de formas limitadas de expropriação (como, por exemplo, a reforma agrária ou a implantação de novas estruturas decisórias como a administração conjunta de florestas). Outra tarefa desses movimentos é a busca da discriminação entre os aspectos progressistas e regressivos da acumulação por espoliação, empenhando-se em dirigir os primeiros rumo a uma meta política mais generalizada dotada de maior valência universal do que os muitos movimentos locais, que o mais das vezes se recusam a abandonar sua própria particularidade. Para tal, tem-se no entanto de encontrar maneiras de reconhecer a relevância das múltiplas identificações (baseadas na classe, no gênero, no local, na cultura etc.) existentes no seio das populações, os vestígios da história e da tradição que advêm das formas pelas quais essas identificações se constituíram em resposta a incursões capitalistas na medida em que as pessoas se vêem como seres sociais dotados de qualidades e aspirações distintivas e muitas vezes contraditórias. Se isso não acontecer, corre-se o risco de recriar as lacunas do relato que Marx fez da acumulação primitiva e deixar de perceber o potencial criativo que reside naquilo que alguns consideram desdenhosamente relações sociais e sistemas de produç~o ‘tradicionais’ e não-capitalistas. Tem-se de encontrar uma maneira, tanto teórica quanto politicamente, de ir além do amorfo conceito de ‘multid~o’ sem cair na armadilha do ‘minha comunidade, meu local, ou meu grupo social acima de tudo’. Tem-se principalmente de cultivar assiduamente a conectividade entre lutas no interior da acumulação ampliada e contra a acumulação por espoliação. Felizmente, no tocante a isso, o cordão umbilical entre as duas formas de luta que está nos arranjos institucionais e financeiros apoiados pelos poderes do Estado (intrinsecamente integrados no FMI e na OMC e por eles simbolizados) tem sido reconhecido com clareza. Esses arranjos se tornaram muito acertadamente o principal foco dos movimentos de protesto. Estando o núcleo do problema político reconhecido com tanta nitidez, deve ser possível iniciar um movimento centrífugo quanto às particularidades e centrípeto rumo a uma política mais ampla de destruição criativa mobilizada contra o regime dominante de imperialismo neoliberal imposto ao mundo pelas potências capitalistas hegemônicas. (mesma obra, páginas 145-6)

Não nos parece necessário enfatizar os diversos pontos em que Harvey acerta a mão – sempre sob nosso ponto de vista – mas destaquemos essa nova possibilidade – que ele mais uma vez não aproveita – de, a partir do reconhecimento do “car|ter dual” e da “ligaç~o org}nica entre reproduç~o ampliada e acumulaç~o por espoliaç~o” refutar as duas e repensar tanto as lutas anticapitalistas como o capitalismo em geral em outros termos, mais condizentes com a história e as relações concretas. Ao contr|rio, a partir de uma perspectiva etnocêntrica que, vista “da periferia”, é rigorosamente inverossímil, Harvey equaciona suas percepções periodizando o capitalismo a partir do ponto de suposta ruptura de um padrão civilizacional “progressista” que supostamente valeu de 1945 até 1973 [ou seja, menos de trinta anos, na perspectiva mais otimista; muito menos do que a “vida útil” de um trabalhador]. Diante disso, define que a espoliação está no cerne das práticas imperialistas, o que coloca um problema fundamental: o imperialismo no qual a acumulação por espoliação estava “silenciada” é um imperialismo “silencioso”? É menos imperialista? É menos violento?

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Para quem? Para os “ovos”? Ou para quem conquistou seus privilégios no topo de uma pirâmide imperialista? Além disso, quando insiste nos aspectos progressistas da acumulação por espoliação, não faz mais do que (re) afirmar abstratamente quais – ou quem – seriam os “ovos” que precisariam ser quebrados. Além disso, mesmo descrevendo que muitas comunidades “tradicionais” lutam ferozmente contra a modernizaç~o, ele parece n~o perceber que isso não parte de uma "recusa em abandonar a particularidade", ou da "armadilha da minha comunidade, meu local, meu grupo social acima de tudo". É uma questão de sobrevivência. “Ainda que em alguns grupos possam acontecer determinadas melhorias” – como a relação de gênero, que ele cita – não nos parece um argumento melhor do que a evidência concreta de que diversos grupos tem a mais perfeita consciência de que a “modernizaç~o”, se não é boa nem mesmo para os que já foram integrados, para quem são os ovos a serem quebrados n~o é uma “escolha”. Se a “destruiç~o criativa” para Harvey é uma meta, ela não pode ser uma meta para quem vai ser destruído nesta criação. Por fim, o que podemos concluir por hora é que a crítica erigida por Harvey contra o “imperialismo neoliberal” n~o é uma crítica contra o “imperialismo capitalista” todo ele, mas contra suas formas “mais espoliativas” e “mais neoliberais”. O cinismo desse tipo de discurso, segundo o qual os povos “tradicionais” devem abandonar a nostalgia do que se perdeu é que esse mesmo discurso não o percebe próprio tom nostálgico. Com duas diferenças: 1) o discurso da “nostalgia sobre a tradiç~o” tem por objeto modos de vida milenares, enquanto o discurso sobre o “desenvolvimento progressista” tem por objeto algo que não durou nem três décadas; 2) enquanto um discurso procura evitar o genocídio, outro procura defender o bem-estar social que nunca foi senão restritivo e uma sociedade liberal de consumo de massas. Como já dissemos, ninguém precisa nem deve ser contra os direitos conquistados como resposta à barbárie que chamam de desenvolvimento – mas não nos parece adequado que se formulem discursos contra as formas de vida não-capitalistas como se essas se “recusassem” a aceitar melhorias “progressistas”. Nem tampouco propagandear como discurso anti-capitalista um discurso que com efeito reflete tão-somente a nostalgia de um arranjo "menos acumulação por espoliação" e "mais reprodução ampliada", mais "desenvolvimentista" e menos "neoliberal", e, nesta formulaç~o, menos “imperialista”.

Considerações finais Procuramos ao longo deste trabalho apresentar de forma pormenorizada as razões pelas quais acreditamos que a apropriação que David Harvey faz de Rosa Luxemburgo é

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arbitrária e as razões pelas quais acreditamos que a sua forma de definir o imperialismo – hobsoniana – limita a constituição de qualquer potencial revolucionário que se baseie nessa definição. Além disso, nos parece fundamental argumentar que Harvey ainda incorre em outros problemas extremamente graves por conta de seu etnocentrismo que o faz, dentre outras coisas,valorizar o período dos tais Anos Dourados do capitalismo e aceitar o massacre de civilizações “tradicionais” em nome de um progressismo vil. Para nós, a leitura dos textos de Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo e as leituras de Arendt sobre as Origens do Totalitarismo – textos que fundamentam de modo arbitrário o argumento de Harvey – expressam que essas duas autoras concebem seus problemas no sentido oposto ao de Harvey.

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