Mirações do Celeste

July 27, 2017 | Autor: André Bueno | Categoria: Chinese Studies, Chinese Language and Culture, Chinese history (History)
Share Embed


Descrição do Produto

MIRAÇÕES DO CELESTE ESTUDOS EM HISTÓRIA E CULTURA CHINESA ANDRE 2009 ISBN 978-85-65996-08-2

ÍNDICE Introdução A Terra dos Ancestrais Reter a Centralidade - o sentido de História para os chineses Mirações do Celeste Sobre o Sal e o Ferro O povo amarelo Outro modo de dizer o mundo Entre as Montanhas e os Mares Tudo está para ser desperto O Império do Meio Visões dos Bárbaros Saberes & Ciências

INTRODUÇÃO

Este breve livro é uma apresentação em tópicos da China. Corro dois riscos ao escrever uma obra de divulgação divulgação como essa; primeiro, de ser pretensioso ao tentar condensar em tão poucas páginas a história de uma civilização milenar, para a qual não temos ainda instrumentos adequados de estudo; segundo, de ser lido superficialmente, já que as pessoas preferem, preferem em geral, os calhamaços volumosos com milhares de páginas. Elas não os lêem, mas o efeito estético de sua grossura garante ao seu dono a "aura do saber". Sinceramente, não é o que desejo. Assumo os dois riscos por saber que muito pouco ainda foi escrito sobre a China em nosso país, e não me furto de escrever mais um manual de divulgação. A análise da China, hoje, tem muitos especialistas de última hora, que se formaram nos cursos da moda e que sabem tudo sobre quase nada. O sentido cultural desta civilização civiliza - profundo, denso, quase psicologicamente inconcebível para nós - torna-aa um manancial de surpresas, para a qual o especialista em história, filosofia ou relações internacionais não está preparado. É impressionante, porém, como as pessoas discutem a China Ch sem nada saber sobre ela. Filósofos dizem que lá não há filosofia, sem mesmo ter lido um texto chinês; negociantes ignoram as regras culturais, acham que na China as contrapartes são como eles, e se frustram; intelectuais e humanistas falam da

4

civilização ção mundial e ignoram o modo chinês de compreender o mundo; por fim, estrategistas sempre enxergam os movimentos chineses de forma absolutamente míope. Que pode ser feito, portanto? Estudar a China é um campo especial das ciências humanas, dito sinologia. A palavra não representa uma ciência, mas uma perspectiva, um campo de estudo com necessidades especiais. Quem olha esta civilização e busca compreendê-la la a fundo há de se surpreender, inevitavelmente. Para isso, no entanto, é necessário escapar da mídia que que demoniza o país; da ignorância reticente (e reincidente) que não nos faz ler nada além do básico; e, quando lemos, encontramos tipos diversos de materiais que servem tanto para equilibrar uma mesa quanto para fazer refletir. A concepção deste livro se baseia baseia nisso. Meu intuito é fornecer informações básicas e gerais sobre a estrutura da civilização chinesa, mas sem a pretensão de ser absoluto, acabado ou definitivo. Muito do próprio passado chinês se descobre com o passar dos anos, e muda o que afirmamos hoje. Este, como qualquer trabalho sobre esta civilização, é mutável; por outro lado, é absolutamente consciente de suas imperfeições e objetivos. No mais, o modo como construí o texto parte de duas premissas básicas. Uma, de usar o máximo as referências chinesas, e dar a visão deles sobre seu próprio mundo. Em segundo lugar, usar esta mesma estrutura interpretativa chinesa no seguir da análise. Eis a razão pelo qual o leitor irá encontrar, repetida vezes, a teoria Yin-Yang Yin Yang aplicada na compreensão dos sistemas sist chineses; pois esta é a sua teoria e metodologia de pensar, que vem sido

5

desenvolvida há séculos. Os avanços obtidos por esta ciência, bem como suas limitações, são dificilmente compreendidos se não formos capazes de avaliá-los los criticamente. O que desejo ejo proporcionar é uma aproximação consciente da civilização chinesa. Tal só pode acontecer se, como condição fundamental, o leitor procurar igualmente compreender melhor o que lá se construiu. Depois de anos dando aula sobre a China, já percebi que algumas alguma pessoas simplesmente recusam-se recusam se a ler qualquer coisa que as possam fazer mudar de opinião. Se o leitor chegou até aqui, é porque já deu um passo razoável para escapar dessa armadilha xenofóbica, arrogante e limitada. Não que se obrigue, também, a concordar concordar com as opiniões aqui expostas, longe disso! Mas o texto é um diálogo que abro com o leitor, e que fico feliz em compartilhar. Há anos, eu dizia que a China era "um outro mundo no mesmo planeta"; que a descubramos mais uma vez, e sempre. “Saber o que se sabe e o que não se sabe – isto é conhecimento”. Confúcio

6

A TERRA DOS ANCESTRAIS

A civilização chinesa se desenvolveu num grande espaço de terra, todavia cercado por diversas condições naturais que lha permitiram, durante muito tempo, um certo isolamento. isolamento. As raízes da mesma estão assentadas em sociedades antigas, ditas pré-históricas, pré históricas, que lá tiveram seu berço. O estudo da China envolve, portanto, uma breve apresentação do seu habitat - vasto, diverso e bastante revelador sobre o caráter desta civilização. civiliz Rios As civilizações que compõe a China surgem próximas de rios, como no caso do Egito, Mesopotâmia e Índia. O processo parece ter sido similar; a busca de terras férteis, com inundações periódicas, ajudou no estabelecimento das comunidades e no aproveitamento apro das terras. Três são os rios fundamentais da China: o rio Amarelo, ao norte, o Yang, no centro e o rio do Oeste no sul - cuja embocadura é onde se localizam, atualmente, Macau e Hong Kong. O rio Amarelo tem esse nome devido aos sedimentos que se depositam em seu curso, dando-lhe lhe tal coloração. Na verdade, em grandes extensões de terra ao longo do rio tudo é amarelado, e o nome traz em si uma u razão funcional. O Amarelo têm têm cheias violentas, muitas vezes geradores de calamidades públicas; no entanto, entanto, a terra por ele carregada (conhecida como Loess) é extremamente fértil, e fácil de ser manipulada. Em função disso, os chineses resolveram "harmonizar-se" "harmonizar se" (ou seria desafiar?) com a natureza,

7

aprendendo a lidar com o rio por meio de barragens, canais, diques d e contenções. Tirando proveito disso, adquiriram um grande conhecimento técnico sobre o assunto, conseguindo desde cedo irrigar vastas extensões de terra e estimular uma agricultura rica. O domínio do arroz, cultura que demanda grande quantidade de água, água, é um destes resultados marcantes para a sociedade chinesa. Quanto ao Yang e ao Oeste, em grande parte navegáveis, foram domados aos poucos e utilizados nas mais diversas funções. O Yang é um dos maiores rios do mundo, servindo de via comercial ativa, e seu fluxo de água é pontualmente utilizado em usinas hidrelétricas. Desde cedo, contudo, estes cursos d'água estão ligados a função primordial da agricultura. Não raramente, calamidades épicas são provocadas por suas inundações, afetando uma parte substancial substa do país.

Climas A China tem hoje a 3a maior extensão de terras do mundo, mas desde a época Han ela já conhecia as variações climáticas de seus espaços. O Norte chinês está perto da Sibéria, alcançando temperaturas baixíssimas, e encontra-se se circundado circundado a noroeste pelo deserto de Gobi. O centro da China constitui uma região de clima temperado, amenos, com a mudança bem marcada das estações. Em direção ao sul, penetra-se penetra se num clima equatorial, de chuva intensa e sempre quente, fazendo fronteira com o Vietnã. Vietnã.

8

Tais diferenças ocuparam a mente dos chineses, fazendo-os fazendo os crer que viviam num lugar onde todos os climas do mundo existiam. No entanto, uma tal diversidade garantiu que o comércio inter-regional inter regional se desenvolvesse, e a curiosidade geográfica torna-se torna o estudo dos mapas e rios uma atividade técnica altamente especializada. Os chineses confeccionaram alguns dos primeiros mapas do mundo, construindo um conhecimento detalhado sobre seu país.

Paisagens As paisagens, delimitadas pelos climas, apresentam aos mesmos mesmos chineses um panorama vasto e curioso. O norte, feito de planícies secas, depende da água e das terras férteis do Amarelo. É uma terra de gente dura, de criadores, cujo caráter férreo (dizem) se molda pelo frio. Fato é que as planícies do norte pertencem, cem, muitas vezes, aos nômades e pastores, pastores, "gente inculta" e bárbara. bárbara As grandes invasões que a China sofreu, sofreu, periodicamente, por estes povos, criaram um ditado que diz que "Todo o perigo vem do Norte". Ironicamente, eles continuam a empregar o mesmo ditado ditado com os EUA. Quanto ao centro e ao Sul, há uma variação muito grande. As regiões centrais são cercadas pelos Himalaias, cadeia montanhosa que fechava (junto com os desertos do norte) o acesso por terra à China. No entanto, as regiões que acompanham o Yang, Yang, em direção ao mar, vão suavizando a paisagem, tornando--se se imensas planícies férteis que concentram uma boa parte da produção agrícola. O sul, equatorial, fecha-se fecha se em densas florestas

9

ou regiões plantadoras de arroz, marcados por um calor que não passa, e no entanto, permite colheitas abundantes. Cronistas portugueses diziam que em Macau, as paredes das casas ficavam repletas de limo, tal era a força das temperaturas altas, chuvas e vegetação abundante. Delimitados pelo Pacífico, os chineses empreenderam uma uma rica atividade comercial e pesqueira por via marítima, mas pouco conhecida pelas autoridades imperiais. Juncos chineses operavam em todo o Mar da China, iam até o Japão, Filipinas, Vietnã, Indonésia e Índia. Tal atividade, porém, parece não ter oferecido oferecido contributos significativos para mentalidade chinesa sobre as possibilidades que os mares ofereciam. Confúcio já conhecia "a grande água", e os parcos conhecimentos náuticos da época lhes possibilitaram saber, no entanto, que se encontravam num continente cercado de águas.

O Povo A maioria do povo chinês é formada pela etnia Han, que compõe praticamente 90% da população. Mas existiu miscigenação na antiguidade, e o panorama das trocas culturais foi capaz de evitar uma homogeneização completa da civilização. civilizaçã Veja-se se o caso dos Han, por exemplo, que moram no sul do país e pronunciam o chinês escrito de modo diferente do mandarim.

10

Os chineses se entendem aparentados com etnias próximas, tais como os mongóis e tibetanos, embora neste caso, a diversidade cultural cultural estabeleça barreiras significativas. O inverso ocorreu com coreanos, japoneses e vietnamitas; próximos fisicamente, durante um bom tempo também adotaram a cultura chinesa como um saber de elite. O grande desafio dos chineses hoje é lidar, sem destruir, as minorias étnicas que existem no espaço do país. Os uigures uigur da Ásia central, por exemplo, lo, nada tem a ver com a etnia Han, an, mas estão dentro da China, e sentem-se sentem se estranhos diante de um governo central cujo idioma e cultura são absolutamente diferentes dos seus.

Fauna e Flora A fauna chinesa envolve alguns animais exóticos, como o urso panda, habitante das florestas do sul, mas em sua grande parte é composta por tipos bem conhecidos no resto do mundo - desde o tigre, existente em todo o país, até a simples galinha e o porco. Na antiguidade, existiram também rinocerontes e elefantes a passear pela China, como atestam vasos de bronze do tempo Shang. No entanto, foram exterminados pela caça contínua, e em torno do século - 9 já não se ouviam mais falar deles. Quanto a flora, igualmente bem conhecida por nós, destaca-se destaca se porém a apreciação ímpar de vegetais cujo valor cultural ou material a põe em relevo, tal como a flor-de-lótus lótus (usada com fins religiosos), o ginseng (raiz de uso medicinal), a amoreira, o pessegueiro pesseg (cujos os frutos são nobilíssimos), a lixia l (fruta típica) e o bambu. Este último é o grande artífice desta civilização,

11

sendo empregado na alimentação, na construção, medicina, etc. Sua ampla gama de aplicações e versatilidade, além da praticidade de plantio p e cuidados, tornou-o o um traço marcante desta cultura, a ponto de existir um gênero de pintura dedicado inteiramente à produção de imagens desta planta.

Alimentação O arroz tornou-se se o centro da alimentação chinesa, mas outros grãos painço, cevada,, trigo e sojasoja são plantados de acordo com a região. Desde a antiguidade, eram conhecidos como os ‘Cinco grãos’, a base da alimentação. O sul da China consegue, há muito, obter mais de uma colheita anual de alguns grãos graças ao seu clima quente e abundância abund ncia de água. Os chineses apreciam também uma grande quantidade de vegetais - repolhos, cebolas, rabanetes, couves, entre outros - que se misturaram a sua alimentação básica, composta pelo tradicional bolo de arroz, macarrão (de arroz ou trigo), papas de cereais ereais e legumes e algum tipo de carne. O uso da carne na China é baseado num critério de racionalidade herdado de priscas eras. Primeiramente, rimeiramente, os chineses não têm têm o hábito de comer carne de vaca e usar o leite para beber ou fazer queijo. Além de ser considerado consi um hábito nômade, os chineses entendem que a fase de amamentação deve terminar no seio da mãe - e continuar tomando leite seria uma aberração. O gado bovino também ocupa muito espaço para alimentar-se, alimentar se, e seu consumo não é compensador - assim, o búfalo lo (principal bovino chinês) é criado mais

12

para ajudar no trabalho do campo do que, propriamente, servir se alimento. Raras vezes ele é consumido, em geral em épocas de escassez ou necessidade. As carnes mais consumidas são de porco e galinha - e durante muito uito tempo, de cão. Estes animais, pequenos, podem ser criados em pequenos espaços e se alimentam dos restos de comida humana, tornando-os tornando os inclusive um higienizador natural do lixo orgânico. A criação de peixes e camarões em tanques ou no meio dos arrozais é também uma tradição dição antiga, bastante praticada.. O tamanho da população chinesa fez, contudo, que a necessidade adaptasse o cardápio. Daí a razão pelo qual encontramos também petiscos exóticos tais como cobras, besouros, gafanhotos e escorpiões, servidos fritos em feiras ou em uma casa mais pobre. Uma opinião sobre tais alimentos só pode ser construída por meio de sua apreciação, posto que seus valores nutritivos e gosto já não são mais um problema científico, e sim cultural. No mais, os chineses têm uma longa tradição de bebidas alcoólicas e de Chá. Originalmente, nalmente, os chineses possuíam diversos tipos de aguardentes e vinhos de cereais, principalmente de arroz. O Chá, trazido provavelmente da Índia, mas não se sabe exatamente quando, caiu no gosto chinês, tornando tornando-se uma verdadeira arte. De vários tipos, aprecia-se aprecia se principalmente o verde, que pode ser saboreado eado independente das refeições; o vermelho, muito tradicional; e o de Jasmim, floral, refrescante e digestor. Os chineses desenvolveram o hábito, em conseqüência conseqüência do chá, de sempre consumir água quente, o que diminuiu em muito a ocorrência de doenças provocadas pela sua contaminação. Ainda que não bem compreendida, a

13

esterilização da água tornou-se tornou se uma prática comum desde tempos antigos, e continua difundidaa até hoje. Trouxeram também, por fim, novos hábitos do exterior. Com os portugueses, aprenderam o uso do fumo, plantado no sul e altamente apreciado em todas as camadas da população. Recentemente, conheceram mais profundamente a arte do vinho e da cerveja ocidental, que buscam reproduzir.

Generalizações Mas a presença das estruturas clássicas não torna a história do espaço chinês algo imóvel. Em primeiro lugar, a interferência no ambiente é algo antigo; Mêncio reclamava da devastação das florestas, e depois, depo no séc. -3, 3, o Estado de Qin ligou dois rios, criando um canal e uma área inundada que revolucionou a economia local, aumentando a produção agrícola de um modo impactante na época. Séculos depois, outras dinastias tentaram obras de fôlego, como ligar os rios principais (como o Yang e o Oeste), introduziram novos tipos de sementes (um tipo de arroz, descoberto durante o período ríodo Song, é capaz de dar até três colheitas ao ano), e investigaram todos os meandros do país em busca de recursos minerais e naturais. Hoje, obras megalômanas como a represa das três Gargantas demonstram que a tradição de interferir no espaço de modo grandioso não cessou. Ela é a

14

herdeira provável da grande muralha, cuja magnificência reside em sua extensão e antiguidade, mas que constitui constitui hoje, porem, um monumento de inútil eficácia. O impacto da industrialização também fez soar o alarme ecológico, dado o aumento dos desequilíbrios ambientais no campo e nas cidades - Beijing sofre hoje, por exemplo, com uma poluição capaz de obscurecer o sol durante dias.

15

RETER A CENTRALIDADE: O SENTIDO DE HISTÓRIA PARA OS CHINESES

Quando se analisa o ideograma shi 史- ‘história’ - a interpretação clássica do mesmo nos indica uma mão que segura um pincel, ou estilete; "história", neste sentido, significa então anotar, registrar, escrever o passado. Em sua forma sintética, no entanto, shi parece englobar na parte superior super o ideograma zhong 中-- meio, centralidade. Isso poderia significar que história representa, também, "reter a centralidade"? O que viria a ser isso?

Reter o fio condutor Significaria que, desde o início, quando os chineses começam a fazer história - e isso so teve origem, provavelmente, bem antes de Confúcio - o ato de registrar o passado não significa apenas anotá-lo, anotá lo, mas também, guardar o fio

16

condutor que o permeia, que o estrutura, entre as tensões da permanência e do desaparecimento. A história acontece em ciclos, para os chineses; tratatrata se, então, de perceber em que momento deste ciclo estamos. Estamos numa fase de ascensão (yang) ou dissolução (yin)? Esta estrutura macrocósmica se manifesta na reprodução das épocas dinásticas; o que é a alternância de casas casas imperiais senão o inevitável ciclo de mutação, de concretização ou dissolução? E, no entanto, não é isso justamente a única coisa que permanece - a mudança?

A história é uma literatura A história é um escrito, na China, que se supõe "baseado em fatos reais". Se há uma metodologia em sua constituição, trata-se trata se da busca obsessiva por documentos, fontes, escritos, memoriais, datas e objetos materiais que comprovem uma tese. Desde cedo, os historiadores chineses são arquivistas e bibliotecários especializados. especializados. Confúcio foi o primeiro deles, e Sima Qian (séc. -2 -1) 1) aperfeiçoou estes procedimentos. No entanto, esta mesma literatura se assenta em opiniões. Os autores mais decididos pensavam a história como uma interpretação, uma metáfora da realidade, impossível imposs de ser reconstituída em sua totalidade - e por causa dessas opiniões, como foi o caso de Sima - podiam chegar a ser punidos severamente, quando suas análises iam de encontro ao senso comum ou a um conjunto de interesses escusos.

17

O sentido de verdade Esta sta história é, antes de tudo, um parâmetro atemporal - ela mostra o passado, para que se compreenda o presente e se planeje o futuro. Confúcio disse: "mestre é aquele que, por meio do antigo, revela o novo". Sobre a história, então, recai a importante responsabilidade responsabilidade de construir e fundamentar "verdades" sobre a vida, a política, a virtude e a moral. Eis a razão pela qual, muitas vezes, o compromisso de um historiador com o poder estabelecido degrada a força da própria história, na China. Se ela nasce paraa guardar o fio condutor dos acontecimentos, ela é, ao mesmo tempo, manipulável por ser literatura. Disso decorrem incalculáveis polêmicas, divergências seculares de interpretação, debates incessantes sobre o sentido de uma ou outra informação ou acontecimento. acontecimento. A descoberta de um antigo texto perdido pode significar tanto o abalo de concepções já estabelecidas como também, uma possibilidade criativa de referendar uma postura clássica. Curiosamente, são os autores que constantemente re-interpretam re interpretam a história que se transformam em seus paradigmas (leiam o texto sobre literatura, para compreender melhor estas questões canônicas). Liu Zhiji, Sima Guang, Zhuxi, entre muitos outros, foram estudiosos que criticaram e reescreveram a história que tinham em mãos. O Shitong, Shitong, de Liu Zhiji (período Tang), trata-se se inclusive de um manual sobre como se deve investigar e escrever história,

informando nos informando-nos

sobre

os

18

procedimentos

de

pesquisa,

interpretação, e o fundo moral da mesma. Tratava-se Tratava se de um avançadíssimo instrumento metodológico todológico na época, praticamente sem par. Os avanços e recuos da historiografia chinesa se desenrolaram dentro de sua própria estrutura de pensamento até o advento do comunismo, o grande impacto no "modo chinês" de fazer história. Antes do comunismo, a tentação ntação desta história milenar era tão forte que os europeus que decidiram estudar a China se renderam a ela, utilizando a tradição como fonte.

A China como problema Foi esta mesma história chinesa que colocou em xeque o inicio da historiografia moderna ocidental, oc nos séculos 18-19, 19, por meio da famosa "querela" da cronologia. Os europeus que haviam decidido criar métodos para a história entendiam que a análise de documentos era o cerne, o método e a comprovação da mesma. Ora, a China dispunha de tudo isso; e, no entanto, sua cronologia não remetia os primeiros soberanos chineses a uma época anterior a criação do mundo pelo Deus cristão? O incômodo desta situação levava ao inevitável conflito entre religião e ciência: aceitar uma significava, automaticamente, negar a outra. A história, com um método baseado na razão, punha em dúvida a crença no criacionismo divino, e tudo por causa de uma civilização distante que não se preocupara com as origens.

19

O resultado desta polêmica marcou o tom que, doravante, os europeus europ empregariam usualmente com o resto do mundo africano e asiático. Decidiu-se, se, arbitrariamente, que a história chinesa continha muito de mitologia; que muito do que ela afirmava não poderia ser provado justamente por não se pautar nos métodos ocidentais; e por fim, que quase tudo sobre os tempos clássicos era lendário ou obscuro - com o que, a tradução de um ou outro texto de mitologia ou romance referendou esta concepção de modo aliviante para os historiadores europeus da época. Nesta época, portanto, é que um autor como Hegel podia se vangloriar de ter lido "todo o pensamento chinês", tendo acesso à meia dúzia de obras e concluindo, de forma arrogante, que ali só havia superstição e costume.

A modernidade Voltemos à época moderna; o início da arqueologia arqueologia na China, feita por ocidentais, foi complementada de modo natural pelos textos e pelo antiquarismo clássico chinês. A teoria marxista é que dá, de fato, uma virada nas concepções tradicionais. Os comunistas chineses buscaram, de todo modo, transplantar a periodização marxista para sua cronologia histórica há que se perguntar se os mesmos não se sentiam a vontade, simplesmente, trocando os ciclos tradicionais por estes "novos ciclos" importados. Novamente, a tentativa de utilizar uma teoria externa ao pensamento pensamento chinês só funcionou quando ela se adaptou ao mesmo - a força de uma tradição não se quebra tão facilmente, e se ela se modifica, é muito mais em virtude de

20

pressões internas do que por uma imposição dogmática. No entanto, a história da China oferecia oferecia contrapontos interessantes às teorias ocidentais. Um exemplo clássico é a questão do feudalismo na China - se tal sistema existiu na história desta civilização, ao que tudo indica, indica ele ocorreu durante o período Zhou (sécs. -11 -3), pois todas as características erísticas econômicas e sociais da época apontam para isso - ou seja, ele teria acontecido muito antes da Europa. Não é, então, um anacronismo temporal e teórico classificá-lo classificá como tal? Do mesmo modo, a idéia de "Idade Média" não significa nada para os chineses, eses, a não ser que estejamos utilizando-a utilizando a como medida temporal - e neste período, a China Tang era simplesmente a maior civilização do mundo. Atualmente, as propostas comunistas continuam a ser utilizadas na historiografia chinesa, mas estão plena e gentilmente gentilmente contaminadas pela historiografia clássica, provavelmente num desejo consciente dos próprios chineses de revalorizar o seu passado. Os projetos do futuro não envolvem mais, felizmente, a aniquilação da antiguidade, como se pregou no tempo de Maozedong. g. O sentido de história, mais uma vez, é o da continuidade - reter a centralidade, pensar sempre o que permanece e não o que já se foi, pois o antigo é o alicerce do novo. A mudança é inevitável, assim como a existência é extinguível. A história, então, é a preservação de tudo o que pode significar a idéia de ser chinês; e conseqüentemente, os chineses a trazem dentro de si.

21

Os ciclos dinásticos A história tradicional se orienta, como dissemos, por ciclos dinásticos. Os tempos anteriores a eles são de difícil difícil análise, e o que temos de mais recente e preciso sobre isso veio com a arqueologia. A China tem um passado protoproto histórico riquíssimo, tão antigo quanto o africano ou europeu. A cultura de Zhoukoudian indica a existência do paleolítico; depois, as culturas cu de Longshan e Yangshao apresentam as cerâmicas e rudimentos do que seriam as civilizações organizadas posteriores. Sobre isso, pouco fala a história chinesa clássica; eles são sempre chamados de "tempos antigos", quando os seres humanos viviam em grande gr dificuldade para lidar com a natureza. As descrições destas épocas remotas se assemelham muito a do cotidiano das comunidades indígenas brasileiras; é provável que os primeiros historiadores chineses agissem como antropólogos, e ao perambular pelo interior interior do país, encontraram comunidades que preservavam este modo de vida, supondo-o supondo o ser primitivo:

No princípio não havia nem ordem moral ou social. Os homens conheciam apenas suas mães, e não seus pais. Quando famintos, saía, a caça; quando saciados, jogavam jogavam os restos fora. Devoravam os alimentos com pele e pelos, bebiam sangue, cobriam-se cobriam se de couro e de juncos. (Baihutong, de Bangu).

22

Nos tempos primitivos os homens moravam em cavernas, e vivam nas florestas. [...] nos tempos antigos sepultavam os mortos cobrindo obrindo-os os como uma camada de galhos secos, deixando-os os livre sobre a terra, sem túmulo ou jardim. (Dazhuan do Yijing)

Este tempo será iluminado pelos patriarcas fundadores da civilização, Foxi, Nugua e Shen Nong. Os três ensinam aos homens primitivos tudo tud que precisam para viver: cozinhar, caçar, costurar, medir os espaços, utilizar os trigramas (guas), plantar, etc... São ão sábios, antes de tudo, e não seres fantásticos ou divinais. Somente na época Han os daoístas os transformariam em deuses. O mesmo se sucede sucede com 5 soberanos posteriores, dos quais fazem parte Huangdi (o imperador amarelo) - todos são seres humanos, mas suas histórias seriam preenchidas por lendas dos mais diversos tipos. Estas figuras todas se apresentam, para nós, lendárias, e sobre elas não temos nenhuma comprovação ainda. O último dos 5 soberanos teria entronado Yu, o grande, como fundador da dinastia Xia - e aí, as coisas se complicam um pouco. Yu é uma figura singular - ele seria o Noé chinês, tendo salvo o país do dilúvio, mas de modo o absolutamente frustrante para nossas mitologias; sua política de contenção das águas envolveu dez anos de trabalho duro, construindo diques, canais, pontes, etc. Sem arca ou mensagem dos deuses,

23

Yu é uma ponte entre um passado lendário e uma dinastia que parece ter existido de fato. Até algum tempo atrás, a dinastia Xia era pura lenda. Maurizio Scarpari, no ótimo e recente "China Antiga" (2009) nos traz, porém, algumas das evidencias arqueológicas que mudaram o plano da história em relação a este período. O que mais a China nos reservará sobre estes tempos obscuros?

Shang Os Xia foram substituídos pelos Shang, cujas datas oscilam entre -1600 1100. Organizados num sistema de cidades-estado, cidades estado, os Shang constituíam, contudo, alguma espécie de unidade política, política, representado por um sistema monárquico registrado em listas reais, em que se encontram o nome dos reis, linhagens e clãs. O legado desta civilização é inumerável: desde a escrita, que surge em carapaças oraculares, ao domínio inigualável do bronze, passando ndo por avanços inúmeros na agricultura e no domínio dos animais.

Zhou Das dinastias, os Zhou constituem a mais duradoura em termos temporais: 1100 até aproximadamente -256, 256, e aqui a história tradicional chinesa já dispõe de fontes seguras para se construir. constr Os Zhou substituem o sistema administrativo dos Shang por outro, que fundia atribuições governamentais, econômicas e pessoais. Denominado

24

Fengjian, este modo de governar pode ser dito, em nosso conceitual, muito do próximo da idéia de feudalismo, como apontamos anteriormente. A figura do soberano consiste em articular, dirigir e mediar as relações entre vários reinos distintos, ligados a ele por contratos de vassalagem. As comunas agrícolas respondem a estes reis, que muitas vezes guerreiam entre si, e empreendem uma política quase autônoma em seus territórios. A tendência neste caso é a fragmentação do poder, fenômeno que passou a ocorrer em torno do século -8. 8. Estes acontecimentos são denunciados por Confúcio na crônica das Primaveras e Outonos (Chunqiu), (Chunqiu), e dão margem a uma grande especulação ética e política sobre a realidade da época. Surge, pois, o período das "Cem escolas filosóficas", em que mestres debateriam como solucionar os problemas da sociedade. Sobraram-nos Sobraram nos somente os relatos daqueles tidos tidos como mais importantes, ou que alcançaram algum tipo de destaque. Em torno de -481, 481, os reinos maiores haviam consolidado sua posição de preponderância e restaram em número núme de sete,, prontos a entrarem num conflito aberto e declarado ao qual a mediação de Zhou Zhou não surtia mais sentido. É o período dos Estados Combatentes, onde a luta pela supremacia e por uma nova unificação chinesa desenrolou-se desenrolou se sem tréguas durante séculos, vindo a terminar apenas em -221 221 com a vitória total do reino de Qin. O tempo dos Zhou é marcado pela criação da teoria do Mandato Celeste uma investidura da natureza (ou "Céu") para que uma casa real

25

administrasse o país. A perda do mandato significa a perda da virtude por parte dos governantes, e o período de degradação se iniciava. É aqui a que os chineses dão partida a suas interpretações cíclicas da história; cada dinastia tem seu período de ascensão e queda; do mesmo modo, cada período dinástico é comandado por uma visão de mundo introspectiva ou cosmopolita - em todas as escalas, a alternância alternância da mutação se faz presente, tal como principio que determina as mudanças permanece sempre o mesmo.

Império Qin e Han Que fique claro, a historiografia tradicional chinesa entendeu que os períodos Xia, Shang e Zhou também foram imperiais, e o que houve foi apenas uma mudança nas políticas administrativas do mesmo. Portanto, o advento dos Qin significa uma grande modificação neste panorama, mas não necessariamente a formulação de algo novo. Qinshi Huangdi, o primeiro (e da fato, único) soberano Qin assumiu o poder em -221, 221, e a lista com suas realizações é enorme. Unifica o país, pesos, medidas, leis, centraliza a administração pública (amparado em seus conselheiros legistas), cria uma máquina governamental eficaz; por outro lado, seu mausoléu com milhares milhares de guerreiros de terracota, a construção da grande muralha, as campanhas militares, a repressão intelectual (com direito à queima de livros e intelectuais) e social custam milhares de vidas ao povo. Ao morrer, em -207, 207, uma revolta geral toma conta da da sociedade, que

26

derruba a dinastia numa guerra interna dura, porém rápida. Muito se discute hoje, entre os intelectuais chineses, os aspectos despóticos de Qin; mas quantas vidas a mais custariam para a China o período dos Estados Combatentes? A figura de Qinshi Huangdi, tradicionalmente escalpelada pela historiografia, está sendo recuperada pela nova visão marxista chinesa. Há que se perguntar se, realmente, o que este soberano fez não foi muito diferente dos seus congêneres egípcios, mesopotâmicos, persas persas ou romanos mas na China, os números sempre impressionam por sua magnitude, dando pouco espaço a reflexões proporcionais. No entanto, o sistema legista empregado por ele era deveras totalitário, e se era necessário para o processo de unificação, exasperou exasperou rapidamente as estruturas sociais. Muita força se esgota rápido - o exagero de yang desperta, assim, a força yin, que dissolve e faz fluir. Por conta disso, os Han (-206 ( 206 +220) parecem ter aprendido a lição, tendo sobrevivido bastante e sofrendo apenas um um interregno (os Xin, de +15 +25, considerados usurpadores), que marca sua divisão entre "anteriores" (ou, ocidentais) e "posteriores" (orientais) por conta da mudança de capital. Os Han absorvem a estrutura governamental Qin, mas a suavizam, dando uma liberdade erdade muito maior ao povo. A China da época se expande, e vive uma de suas fases de ouro; abre-se abre a rota da seda, divulga-se se o papel (dito inventado nesta época, mas na verdade bem anterior), expulsam os bárbaros do norte (que viriam a ser os Hunos, invasores invasores da Europa), a economia cresce e expande-se se o número de escolas e letrados. O Confucionismo, Confucionismo

27

adotado como doutrina oficial de governo, favorece um panorama intelectual e científico rico, repleto de criações inovadoras, que vão desde a elaboração de teorias rias cósmicas inovadoras como também, a invenção do aço, do sismógrafo e da bússola. Um sistema vasto e pesado como este exigia uma burocracia eficaz, que os Han conseguiram promover por algum tempo; mas, como manda a história chinesa, uma dinastia não pode pode durar para sempre. Incapaz, pois, de suportar as exigências do seu próprio peso, os Han se desfazem em três reinos (Sanguo), gerando um novo período de caos. Para o historiador, é a repetição do ciclo, inexorável.

Tang e Song Até que, em 618, uma nova casa casa real aproveita a frágil unificação promovida pelos Sui (+581 +618) e retoma a união da China em suas mãos. Estes foram os Tang, responsáveis pela nova fase de sucesso do país. Enquanto o Ocidente se debatia em calamidades e o Islã se expandia, os Tang conseguiram manter a coesão política e a integridade do território chinês, criando a maior nação da época. Reabrem a rota da seda, estimulam um comércio rico, recebem as religiões do oeste complacentemente (é a época em que budismo, islamismo, judaísmo e cristianismo, cristianismo, além das religiões pagãs chegam) e figuram-se figuram se muito mais artistas (sua marca é a

28

cerâmica tricolor, com temas estrangeiros), poetas - numa míríade deles, temos Libai e Dufu - e negociantes do que, propriamente, conquistadores. Mas era difícil suportar as pressões pressões de uma geopolítica tumultuada como a deste período. Novamente, ao dissolver-se, dissolver se, a China cai na anarquia social e no conflito. Tem que esperar até a vinda dos Song (+960 +1279), que juntam os pedaços da civilização e lhe dão um novo caráter. caráter. Introspectivos, dedicam-se se a filosofia - na qual Zhuxi, o grande mentor do neoConfucionismo,, é seu luminar-, luminar , pintura, a porcelana (cuja técnica se espalha nesta época), descobrem a pólvora e constituem uma cultura magnífica, de recursos econômicos vastos, vastos, mas alheia ao estrangeiro. É com dificuldade, pois, que eles percebem a chegada dos mongóis de Gengis Khan - e tendo recursos inúmeros para reagir, ainda assim não oferecem uma resistência sistemática e organizada, desintegrando-se desintegrando se diante do invasor.

Yuan Como tudo que vem pela força, o domínio mongol é efêmero, rápido, mas deu-se se a conhecer pelo seu cosmopolitismo (com exceção da dura repressão aos chineses) que atraiu inúmeros missionários e viajantes ocidentais, dos quais o mais destacado teria sido si Marco Polo - se este, realmente, foi até lá. Sem experiência em governar grandes impérios - mas apenas, em derrubáderrubá los-,, os mongóis foram expulsos em 1368, atravessando a muralha a pé, numa indignidade ímpar.

29

Ming Mas a nova dinastia chinesa, os Ming, incorpora incorpora muito da violência de seus predecessores. Esta dinastia constrói-se constrói se sobre um receio ao estrangeiro e aos movimentos sociais. Tal dilema se reproduz, diretamente, na oposição entre liberdade individual e econômica; se as corporações Ming ing produzem porcelana orcelana que vendem ao resto do mundo, preferem, no entanto, que os mesmos estrangeiros não passem dos portos. A chegada dos missionários ocidentais - e os portugueses têm têm a preeminência neste movimento durante um bom tempo - é recebida com desconfiança. A armada de Zheng He, que décadas antes singrou todo o oceano Índico e parte do Pacífico, apodreceu no cais e as tecnologias navais foram abandonadas. A hermeticidade dos Ming, que com grande dificuldade dialogava com o resto do mundo, tornou-os os míopes a realidade realidade circundante, repetindo o erro dos Song; e em 1644, invasores do norte (os manchus), convocados para debelar uma revolta interna, aproveitam a oportunidade e se lançam a conquista do poder. Se tornariam, assim, a última dinastia imperial da China - os Qing.

Qing Estas repetições guardam, no entanto, algum sentido de evolução. Se os Ming achavam que sua soluça era isolar-se isolar se do mundo, os Qing perceberam que o ideal, talvez, fosse construir um modelo para desenvolver tais relações. Mesmo sendo estrangeiros, estrangeiros, eles buscaram não repetir erros cometidos pelos Yuan, e em poucos anos os chineses foram reincorporados a vida

30

administrativa do país. Os estrangeiros são recebidos nos portos, podem comerciar, mas sofrem severas restrições e são observados - o receio recei convive com a necessidade e a realidade. Este mundo Qing vai indo bem, mas o processo iniciado já na época Ming, aos poucos, se manifesta de modo reincidente; há uma dificuldade tremenda, além de um temor, em se investir em novas tecnologias (elas podem cair nas mãos do povo, afinal), e a insistência dos europeus em conquistar novas posições dentro do mercado irrita os imperadores. Alheios às transformações que o capitalismo impunha ao Ocidente - ainda que os chineses dessem, indiretamente, sua contribuição contribuição econômica para isso - o modelo autocentrado e xenófobo dos Qing fica obsoleto para lidar com as novas circunstancias do tempo. O século 19 traria a surpresa desagradável da modernidade para a China.

O Período Moderno Já em sua primeira metade, os ingleses ingleses trazem a frota real para as Guerras do ópio, numa demonstração inesperada e surpreendente de poder. Os Qing vêem seu mundo ruir aos poucos quando se confirmam, também, seus temores internos com a revolta Taiping, de inspiração religiosa cristã e com os Boxers - debelados à custa de uma intervenção militar estrangeira. Assinando tratados infames, a China vê perder seu espaço, honra e dignidade no mundo. A última imperatriz, Cixi, é um atestado da incapacidade absoluta dos manchus manterem o poder - sua habilidade abilidade em

31

negociar é tão lendária quanto sua cegueira política. Ela conseguiu, deliberadamente, impedir todas as tentativas de reforma do governo chinês só assim ela poderia viver em seu mundo de fantasias na Cidade Proibida, ignorando os acontecimentos aconteciment no resto da China. Em 1911, Sun Yatsen articula o processo político que enterra o império e inaugura a primeira república asiática, de orientação vagamente socialista. Sun também era um político hábil, mas um administrador limitado. Sua morte, em 1927, encerra sua decisiva, mas breve, participação no processo político chinês. Doravante, a sociedade dividir-se-ia entre o governo de Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a proposta revolucionária do Marxismo, liderado por Maozedong. O conflito se arrastaria ao longo longo de décadas, passando pela invasão japonesa de 1936 e a segunda guerra mundial. No final, em 1949, o carisma e a organização dos comunistas expulsariam os restos da república, em frangalhos, para a ilha de Taiwan. A China se dividiria em duas, situação que perdura até agora.

A China comunista Chegamos à etapa final destas unificações e desagregações. O uso de uma ideologia estrangeira para realizar o novo governo da China foi inédito, mas não estranho - tratava-se tratava apenas de sinizá-lo, tal como foi feito no budismo. As experiências péssimas com o capitalismo imperialista também decidiram

32

na escolha deste modelo de modernização. Entre idas e voltas, a China voltou a ser poderosa com Maozedong, empregando um sistema político duro como foi o legista. No entanto, enta foram-se se 50 anos e o país já sente novos ares de liberdade. A economia anda a todo o vapor, e as dissensões sociais e políticas vão caminhando - na China, o tempo se mede em décadas e séculos. Por conta disso, a aparente inimizade de Taiwan e a China continental tendem a diluir-se, diluir dando-se se a aproximação pela via comercial mas, principalmente, cultural.

Por fim, o sentido desta introdução histórica... Se breve, esta apresentação da história chinesa referenda, para os próprios, o seu sentido de continuidade. continuidade. Os movimentos se repetem, os ciclos de alternam e a civilização não cessa de evoluir. Uma estrutura que se desagrega é a base da futura sociedade; ainda que ela aguarde a estagnação e a crise, o descompasso entre a realidade e o modo de ver o mundo é sempre superado (mesmo que isso leve séculos). Ao estudar o passado, busca-se busca se reter o fio condutor, a permanência, os elementos da cultura que dão as orientações para a existência e a coesão da sociedade. Esta é a centralidade. Como disse Liu Zhiji, no Shitong: hitong:

O homem vive em sua forma corporal entre o céu e a terra, e sua vida dura tanto como a de uma mosca de verão, ou como o

33

passo de uma égua manca, manca vista por uma ranhura na parede. Assim, durante todos estes anos ele vive penando, pesando que seus méritos éritos não serão reconhecidos e lamenta que, logo apos sua morte, seu nome será esquecido. Por isto, desde os grandes imperadores, ao reis menores e aos mortais mais comuns, desde o cortesão aos ermitãos em suas distantes covas e cabanas todo o mundo, todos, s, de um modo ou de outro, se preocupam com estas questões. E por quê? Porque todos têm seu coração roubado pela ânsia de imortalidade. E o que é, enfim, a imortalidade? Não e mais que ter o próprio nome escrito em um livro. Se o mundo não tivesse livros, se cada época não tivesse seus historiadores, então estes homens sábios como Yao e Shun, Shun, ou os tiranos como Jie e Zhou, uma vez mortos, mortos e perdidas suas formas, antes que a terra de suas tumbas endurecesse, o bem e o mal já haveriam se misturado, se confundindo, confundindo, e ambas, beleza e maldade, se encontrariam perdidas para sempre. Mas, ainda que existe o oficio da historia, ainda que os livros continuem existindo, ainda que os homens morram e entrem na noite e no silencio eterno, seus atos permanecerão, brilharam como estrelas da via Láctea. Assim, quando alguém quiser estudar o passado, passado, a única coisa que deverá fazer é pegar um livro em sua estante e seu espírito entrara em contato com o passado. Não necessitará sair de sua

34

casa e sua vista alcançará mil anos. Verá Verá o que fizeram os bons e quererá imitá--los, los, verá o que fizeram os perversos e seus pensamentos serão introspectivos.

35

MIRAÇÕES DO CELESTE

O que podemos designar como uma "filosofia" chinesa nasceu, de modo bem diferente, do seu congênere grego. Não nos ateremos aqui se tais formas de pensamento nascidas na China podem - ou não - ser denominadas "filosofias"; tal discussão, essencialmente ocidental, xenófoba e solíptica, só faz perder a tradição clássica deste lado do mundo. Com a exceção de Voltaire, Schopenhauer e mesmo Nietzsche, o restante dos autores se perdeu em definições efêmeras sobre o tema, menosprezando de modo arrogante outras formas de pensar alheias alhei à sua genealogia. Disso resulta que uma estrutura de interpretação como a chinesa chinesa se torna incompreensível para nós; milenar, durável, rico, múltiplo e cheio de novidades, o pensar chinês representa um desafio epistemológico, constantemente brecado por estas discussões efêmeras. Posto isso, nos proporemos a analisar a tradição chinesa chinesa por ela mesma, independente das classificações que se lhe queira atribuir. Pela sua própria existência, ela já merece respeito, e constitui o alicerce fundamental desta civilização.

As raízes O nascimento do pensar chinês está ligado a um passado temporalmente temp insondável. Ainda não temos condições de afirmar quando ou como a estrutura da filosofia chinesa começou a se consolidar, pois nossos

36

conhecimentos históricos sobre isso só nos dão indícios. Podemos, no entanto, estimar algumas aproximações, e suas su fases. Em torno do século -12, 12, no início do período Zhou, uma estrutura interpretativa da natureza delineou-se delineou se no Yijing (o Tratado das Mutações), que fazia compreender o funcionamento da natureza por meio de duas coordenadas básicas fundamentais, Yang e Yin. Devemos ter um grande cuidado ao interpretar estas duas noções, pois elas não são classificações orgânicas e absolutas de eventos ou substancias - elas são, como dito, coordenadas para entender o que uma coisa está, em essência, ou em que posição elaa se situa num sistema categórico. Ou seja, uma coisa está em oposição à outra numa determinada situação - e uma só existe porque a outra lhe faz uma oposição complementar, necessária para a manifestação de ambas. Assim, a luz só existe em função da escuridão; escuridão; o macho em função da fêmea, a mesa em função de apoiar papéis, a água em função do fogo, o verão em função do inverno, etc...Mas, cada coordenada Yang traz, em si, a semente de Yin, e vice-versa, versa, como representado no sistema Taiji (o supremo sistema), aqui identificado:

37

No Yijing, estas coordenadas são representadas por linhas, e supunha-se supunha que a identificação de um arranjo ideal de linhas (o hexagrama) podia mostrar tendências da natureza ou das energias, do que resultou o seu caráter oracular extremamente mamente marcante. As seqüências binárias do Yijing foram depois estendidas ao entendimento das estações, da formação do calendário, da constituição de uma numerologia, da determinação dos espaços (visuais, materiais e estéticos, numa junção extensa e complexa), complexa), aos estudos da natureza e da ritualística (um estágio primitivo da sociologia). O conjunto de aplicabilidades do Yijing penetrou profundamente na ciência antiga chinesa. É possível que o texto tenha sido redigido em função de observações práticas da natureza, mas o modo como ele se encontra estruturado manifesta uma interpretação matemática (e de algum modo mítica) extremamente bem articulada e raciocinada, capaz de impressionar vivamente autores modernos como Leibiniz.

A dinâmica 理(Li) princípio - 氣(Qi) energia A antiguidade chinesa conhece, pois, uma forma de dualismo, mas que poderíamos melhor classificar como oposição complementar. Primeiro, porque uma depende da outra para existir, e cada uma das coordenadas em análise depende de outra (e não a exclui). exclui). Segundo, porque como cada uma dessas coordenadas apresenta-se apresenta se em um estágio de "existência" (com duração limitada), um ser ou objeto "está", e não "é".

38

Assim, o pensamento chinês desconhece o problema do "ser" (como verbo ou princípio), e preocupa-se preocupa se no modo como uma coisa se "concretiza" num determinado tipo de realidade apreensível. Esta manifestação se dá a conhecer por uma materialização; o que lhe dá sentido (ou forma, alma, estrutura) chama-se se Li (princípio); sua forma é composta por uma "energia "ener universal", ou vapor, chamado Qi. O conceito de Qi antecipa em séculos a idéia de que a energia se condensa e se transforma em matéria. Como sempre, é necessário que haja oposição para haver existência. Alguns autores procuraram ver neste Li a concepção concepção de alma ou espírito, mas isso não é correto; Li pode "representar' a idéia de alma, se a contrapusermos ao corpo. No entanto, Li pode ser também o oposto do Nada (ou "não está"), se ele representa o motor da existência de algo. Como foi dito, o sistema yin in-yang yang representa, neste caso, uma oposição necessária, mas não absolutamente total das coisas. Logo, este sistema compreende uma complexa rede de categorias que se distribuem, indefinidamente, na natureza. Li, como um principio perene que determina o conjunto conjunto de características de uma categoria se contrapõe, igualmente, a concepção de mutação (Yi), responsável pelo modo como algo se manifesta no real. Ou seja, há um Li que determina que todos os seres humanos nascem com dois braços, pernas, olhos, etc. Se isso é perene e uniforme, então, o que se opõe a isso é a mutação; daí porque as pessoas nascem todas diferentes, e tal regra também não pode mudar. Há sempre quatro estações do ano, mas cada uma é

39

sempre ligeiramente diferente da outra. Esta dinâmica nunca nunca muda, e serve para explicar a multiplicidade das existências.

O surgimento da Ética Em torno do século -6, 6, este sistema não foi mais suficiente para dar conta dos problemas que assolavam a sociedade da época. Fome, guerras, corrupção dos costumes, falência falência das crenças morais, todas estas circunstancias - essencialmente recorrentes na época - chegaram a um tal nível de exacerbação que prenunciavam um cataclisma. Não houve, necessariamente, uma ruptura com o pensamento antigo. Ao contrário; entendia-se, se, em em linhas gerais, que a crise era motivada por uma desconexão do ser humano com este entendimento da natureza. Como inventora de algo que lhe é única e especial - a cultura - a humanidade apegara-se se aos aspectos mutáveis da mesma e esquecera como funcionavam funcionava seus princípios ordenadores, causando uma tremenda perturbação na harmonia entre o ser humano e a natureza (ou, nas palavras chinesas, entre o "Céu e a Terra"). Assim, o pensar chinês não nasce de rompimentos, nem se debate com os problemas míticos; ele planeja uma forma de continuidade, mas que se transponha às necessidades pragmáticas do cotidiano. A preocupação dos autores e doutrinas que surgem nesta época é, pois, encontrar um Dao (via, método), que equacionasse e desse solução a estes problemas. Estas as teorias (e conseqüentes metodologias) abordavam, pelos

40

mais diversos ângulos, a questão do Dao - seu cerne estaria na política, na educação, na lei, no próprio ser humano? As diversas interpretações possíveis originaram um número grande de Jias (escolas), (escolas), dando origem a um período conhecido como das "Cem escolas de pensamento".

Confúcio e a Escola dos Letrados (Rujia) O primeiro dos pensadores a detectar esta crise foi Confúcio, defensor de uma proposta renovadora para a sociedade. Embora defendesse a cultura c antiga e sua continuidade, o mestre entendia que era necessário investigar a razão dos problemas para solucioná-los solucioná - e a reposta encontrada por ele foi a deficiência na estrutura educativa, incapaz de conscientizar os seres humanos sobre o seu papel pape no mundo. Confúcio era, portanto, um árduo defensor da vida em sociedade, da consciência crítica, das artes e da educação. Sua proposta, distante das explicações religiosas e vagamente metafísica (para isso, o Yijing lhe bastava), atinha-se se as necessidades necessidades do povo e da organização governamental. Reformar, estudar e retificar-se retificar se eram as palavras de ordem de uma ética que pregava o respeito mútuo, as obrigações sociais (Li, ou "ritual") e a manutenção da Harmonia. Apesar de seu discurso - ou por causa dele, justamente -,, Confúcio foi odiado por vários políticos da época. Nobres, reis, ministros e funcionários formavam um ativo time de antagonistas do velho professor, tentando

41

inclusive matá-lo lo numa oportunidade. A doutrina do mestre parecia defensora de uma velha ordem, de contornos até mesmos conservadores, mas exigia honestidade, probidade e sabedoria. Isto estava muito longe dos interesses reais das classes dominantes. Como disse Chan Wing-tsit, Wing tsit, em seu breve (porém elucidativo) artigo "História da Filosofiaa Chinesa", de 1939, a trajetória do pensamento chinês se dá como numa longa sinfonia, em que o Confucionismo constitui o fundo estruturante da sociedade chinesa, e que volta de tempos em tempos para o centro das discussões filosóficas, a fim de ser reformulado. reformulado. Esta observação é bastante profunda e pertinente. O pensamento de Confúcio, apesar da oposição inicial dos governantes, foi assimilado pela sociedade, e tornou-se tornou o seu modo de entender-se entender e expressar-se. se. Aquilo que o povo não sabia dizer por si de suas histórias e tradições, o Confucionismo parece explicar. Este sucesso conquistou, gradualmente, todos os níveis da civilização chinesa. Os seguidores de Confúcio formaram um núcleo de estudos denominado Rujia (escola dos letrados), cujo objetivo era aplicar aplicar o pensamento Confucionista na reforma social e, se possível, desenvolve-lo. desenvolve lo. Neste primeiro momento, os seguidores de maior destaque foram Mengzi (Mêncio (Mêncio) e Xunzi. Ambos consolidaram o papel do Confucionismo filosófico, embora tenham criado linhas diferentes diferentes de pensamento. Mengzi acreditava numa bondade inata do ser humano, no papel do povo na administração do governo (o mandato celeste) e na ênfase dos valores morais. Quanto a

42

Xunzi, defendia um pessimismo natural em relação à sociedade e as pessoas, mas acreditava indefectivelmente na questão da educação. O Confucionismo retornaria a voga no período Han (sécs. -33 +3), quando tornaria-se se doutrina oficial da dinastia. Mais adiante, analisaremos este desenvolvimento, entendendo os ciclos pelas quais a doutrina doutrina seria revigorada.

O Daoísmo Um grupo de pensadores dessa mesma época denominou-se denominou se "seguidores da via (dao)", defendendo que a solução para a crise da sociedade envolvia um abandono dos vícios humanos e o desapego a materialidade. Eremitas, misteriosos, sos, distantes, os daoístas afirmavam que "A Via" era uma, a própria natureza. As instituições políticas deviam ser abandonadas, um certo hedonismo e a liberdade eram a verdadeira lei humana. Laozi, Zhuangzi e Liezi foram seus principais representantes, embora embora pouco possa se afirmar sobre sua existência. Se Laozi foi um autor hermético, Zhuang era um vulgarizador da doutrina, embora seus pensamentos sejam amplamente apreciados nos dias de hoje. Bem cedo, o daoísmo aproximouaproximou se da religião popular e fundiu-se fundiu e a ela, perdendo muito do seu lado filosófico. Por outro lado, ele se transformou no opositor complementar do Confucionismo,, elaborando e estruturando o pensamento religioso dessa civilização.

43

Outras Escolas Confucionista e daoístas, outras escolas tiveram seu tempo e Para além de Confucionistas participação no período das "Cem escolas". Coube aos seguidores de Mozi, autor quase contemporâneo de Confúcio, elaborarem um crítica pesada contra o pensamento dos letrados. Baseados numa moral popularista e comunitária, os moístas moístas abominavam a nobreza, a cultura antiga e as diferenças sociais. Pensavam poder mudar o mundo por meio de um socialismo primitivo, cujos propósitos eram claros, porém radicais demais. Se angariaram simpatia do povo por um tempo, logo caíram no esquecimento ento em função de sua intransigência intelectual e por sua crítica perseguidora aos Confucionistas. Confucionista O mesmo se deu em relação a escola Fajia (escola das leis). Surgida entre pensadores decepcionados com o andamento da estrutura política tradicional, os defensores ensores da teoria das leis propunham um rompimento com o passado, a criação de um Estado forte, calcado em um direito duro e exigente, e um sistema administrativo rígido e controlador, capaz de inibir a corrupção e o desregramento. Shang Yang e Hanfeizi foram foram pensadores bem sucedidos na aplicação de suas idéias - embora tenham tido um fim trágico. Hanfei, inclusive, foi um dos principais auxiliares de Qinshi Huangdi na unificação do império Qin, e o resultado foi o que se viu: a radicalização serviu algum tempo empo para estabilizar, mas nunca conduzir. No fim, repetiu-se repetiu o ciclo yin-yang; yang; quando um movimento chega ao extremo, leva ao seu próprio declínio.

44

Por fim, os nominalistas (Mingjia), representados por Gong Sunlong e Huishi, se transformaram nos representantes representantes de um "sofismo" chinês. Sem uma proposta definida, sua preocupação era o exercício da linguagem como modo de compreensão filosófica. Para eles, as causas sociais seriam sempre uma disputa de interesses, cuja competência do ganhador definia seu sucesso.

A Escola Wuxing Dentre essas escolas, uma delas conquistou um espaço específico dentro do pensamento chinês, a escola dos cinco estados - wuxing (ou ainda, agentes ou elementos). Esta escola inovava o pensamento científico antigo da teoria yin-yang, complementando plementando-o o através da formulação de uma teoria sobre os estados da matéria (qi). Segundo eles, Qi se concretizava em cinco estados físicos diferentes: fogo, água, madeira, metal e terra. Estes estados se engendravam em um ciclo de criação e destruição, dando dinâmica ao processo de transformação da realidade. Por esta teoria, as criaturas e coisas têm, portanto, uma certa quantidade de Qi materializado num certo estado; do mesmo modo, a regra da mutação determina que cada exemplar de uma mesma categoria tenha suas especificidades (tamanho, intensidade, adição de outras formas de qi, etc.) que lhe garantem sua singularidade. A teoria Wuxing não só organizou as categorias classificatórias da ciência chinesa como também, deu uma base

45

para o surgimento e a consolidação consolidação da medicina. Esta junção manter-se-ia manter até os dias atuais na estrutura do pensamento tradicional.

O Período das grandes sínteses A época Han enseja a formação das grandes sínteses, realizadas por autores que se colocavam acima das discordâncias escolares. Em linhas gerais, porém, entendeu-se se a coexistência do Confucionismo (no espaço político, educativo e social) com o daoísmo (no espaço religioso e mitológico). Empreendeu-se, se,

inclusive,

uma

dedicada

recuperação

das

obras

Confucionistas, s, perseguidas persegui durante o período Qin. Os grandes pensadores deste momento foram Lujia, autor de um tratado político que defendia um modo de governar liberal, embasado num Confucionismo de matizes daoístas; Dong Zhongshu, organizador de uma teoria política que conciliava concili o mesmo Confucionismo com a teoria wuxing, justificando a autocracia imperial e comprovando a individualidade humana; Liuan, autor daoísta preocupado com questões de estratégia e administração pública; e por fim Wang Chong, um cético Confucionista cujass observações científicas instigaram o espírito crítico dos pensadores chineses. Além destes, a ciência chinesa encontrou avanços notáveis com Zhang Heng, eminente matemático, geólogo e astrônomo. Tais conquistas não

46

mantiveram a eternidade do império, mas transformaram-se se em condições definitivas para o avanço da filosofia chinesa.

Momentos de transformação Durante o período de desunião decorrente do fim da Dinastia Han, a chegada do Budismo foi a grande novidade para o pensamento chinês. A vinda de pregadores dores budistas, provenientes da Índia, foi resultado das características proselitistas desta doutrina, que acreditava numa pregação universalista. Inicialmente, os budistas foram associados a um mito daoísta, e acreditava-se se que eles se constituíam numa forma forma estrangeira dessa escola. Em breve, porém, constatou-se constatou se que estes missionários defendiam uma disciplina original, capaz de apresentar desafios razoáveis as correntes tradicionais do daoísmo e Confucionismo. A proposta budista trazia inovações para a sociedade sociedade chinesa. Esta escola propunha que a libertação individual se encontrava num esforço meritório, fosse por meio da meditação ou da beneficência. Para as parcelas menos favorecidas da sociedade, este discurso era extremamente atraente - ainda mais quando ndo alguns dos pregadores prometiam o paraíso celeste para aqueles que praticassem boas ações. Embora os daoístas possuíssem formas de meditação semelhantes as budistas, uma concorrência estabeleceu-se estabeleceu se entre eles. Até então, os mestres do Dao não se preocupavam preocupavam em criar escolas ou templos, buscando muitas

47

vezes a reclusão no meio das florestas. Os budistas, porém, ofereciam indiscriminadamente seus ensinamentos, e como não receavam afirmar ter poderes mágicos - atributo, até então, do daoísmo religioso - logo arrebanharam um grande número de adeptos, e forçaram os daoístas a rever sua misantropia recalcitrante. Quanto aos Confucionistas, Confucionistas, pouco afeitos às questões ditas "religiosas", sua preocupação com o budismo surgiu quando este pareceu afetar a ordem social. al. A doutrina estrangeira, defensora de uma concepção de reencarnação, propunha que a crença em ancestrais não era válida; que as relações espirituais se sobrepunham as familiares e sociais; que atingir a plenitude da alma, por meio da meditação, envolvia muitas vezes o abandono do trabalho mundano; por fim, que estas teorias deviam estar à frente dos problemas "materiais". Além disso, o discurso budista parecia individualista em excesso; os Confucionistass acreditavam na reforma íntima, mas de modo que ela servisse também a comunidade. Grande parte destas críticas foram elaboradas por Hanyu, o único grande Confucionista do período Tang. No mais, a escola dos letrados encontravaencontrava se acomodada, preocupada mais com os sistemas de exames imperiais do que propriamente mente com problemas filosóficos. O Confucionismo teria que esperar a época Song para revigorar-se. revigorar Quanto aos daoístas, sua resposta foi pautada basicamente na obra de Ge Hong, autor que catalogou e organizou as práticas do daoísmo religioso e da alquimia. Ge propiciou o surgimento daquilo que, na China, sistematiza a

48

diferença entre o que é uma discussão filosófica (Jia, escola) e aquilo que poderíamos dizer "religioso" (Jiao, ensinamento). Assim, quando os daoístas se referiam aos ensinamentos clássicos, classificavam-no no como "daojia"; suas práticas, crenças e liturgias eram afirmadas, porém, como "daojiao". A terminologia encontrou ressonância na intelectualidade, e no final da época Song, os escritos já utilizavam "sanjiao" (três ensinamentos) para designar desig a coexistência entre Confucionismo, Confucionismo daoísmo e budismo. A linha que determina estas separações é tênue, mas interessante; os Confucionistass nunca construíram um corpo de crenças que classificassem como "jiao", no sentido religioso, exceto aquelas já presentes presentes no Liji; quanto aos budistas, sempre foram "jiao", talvez por seu discurso ser, essencialmente, metafísico. A questão é que o budismo, para estabelecer-se estabelecer se na China, precisou também sinizar-se. se. Frente aos desafios impostos por uma cultura milenarmente milenarment organizada, os budistas buscaram adaptar seu vocabulário e conceitual a língua chinesa. Trouxeram uma nova iconografia, inspirada na Rota da Seda, e traduziram textos do sânscrito e do páli que hoje só se encontram no budismo chinês. As grutas de Dunhuang, Dunhuang, patrimônio mundial localizado no norte do país, constituíram uma vasta biblioteca de textos originais chineses e indianos que foi redescoberta, somente, no período do final do séc. 19. Note-se se que o budismo, curiosamente, não promoveu grandes autores filosóficos losóficos (não incluímos aqui os patriarcas, claro), e nem desenvolveu grandes aprofundamentos teóricos; a grande novidade dos chineses foi a

49

elaboração do método Chan (no japonês, Zen), que deu um novo caráter as formas de busca iluminativas para o budismo. budismo. O centro do Chan é o sistema de meditação, considerado "rígido e duro" para os antigos padrões budistas no entanto, o mesmo se mostrava capaz de promover avanços físicos e espirituais rápidos e destacados, promovendo assim mudanças nos aspectos disciplinares linares do budismo.

Momentos de Introspecção Durante a época Song, um novo movimento começa dentro do mundo do pensamento chinês. O Confucionismo,, estagnado pela assimilação ao sistema político imperial e incapaz, até então, de responder aos desafios metafísicos físicos budistas, encontrava-se encontrava se num momento de introspecção e renovação. O grande nome desta profunda reforma no Confucionismo foi Zhuxi (1130 - 1200). Zhuxi não foi, obviamente, o único autor de seu período; precedido por pensadores como os irmãos Zheng, que já vinham apontando a necessidade de uma avaliação dos conceitos Confucionistass calcada num sistema racionalista, Zhuxi faz, porém, uma modificação completa na estrutura da Rujia. Ele praticamente desmontou o sistema Confucionista, Confucionista analisou suas partes e apresentou-o, apresentou o, novamente, por meio de uma estrutura que revelava o seu funcionamento. Fez mais, ainda; buscou na cosmologia a raiz e os fundamentos pelos quais o mundo se estrutura, dando uma resposta que poderíamos classificar como "científica" à metafísica metafísica budista.

50

Zhuxi defendeu a perenidade do universo; a matéria (Qi) sempre esteve, está e estará em mutação, não tendo origem nem fim. Este é o princípio (Li) que rege o cosmos. A questão da origem, bem como do sentido da vida, pregada pelos budistas, é uma perda de tempo, um objeto inalcançável criado pela imaginação; "estamos", simplesmente. O problema da vida comum foi resolvido pela ética, já analisada por Confúcio e seus seguidores - devemos buscar um meio de conviver baseado num pragmatismo atual, interessado i em nossa máxima preservação. Por fim, tal conhecimento só se atingiria gradualmente, pelo estudo - a propensão dos seres é uma potência, mas que apenas se realiza pelo esforço e desenvolvimento individual. Visto assim, Zhuxi reafirmou muitos dos conceitos defendidos por Confúcio, mas o fez dentro de uma nova roupagem. Seu brilhantismo estava em cumprir, justamente, um desígnio do velho mestre: "sábio é aquele que, por meio do antigo, encontra o novo". Zhuxi é considerado, ainda hoje, um dos grandes grand nomes do Confucionismo Confucionism após Mêncio.. Seus comentários aos clássicos e sua volumosa obra foram incluídos no cânone dos letrados. Seu trabalho nos fornece muito sobre o sentido interpretativo que temos do Confucionismo atualmente.

51

Desdobramentos Modernos Modernos Mas o pensamento chinês não parou de evoluir. Numa apresentação sucinta como esta, é bastante difícil abranger a extensão de autores e de propostas filosóficas. Devemos nos ater, pois, as linhas principais. No período Ming, uma nova linha teórica desdobrar-se-ia desdob ia no panorama filosófico, a escola da Mente (xinxue ou xinjia). Seu questionamento é moderníssimo, e antecipa em séculos a construção dos problemas principais da Filosofia da Mente no Ocidente. Os pensadores desta linha renovadora buscavam entender o que era, e como funcionava, aquilo que podia ser classificado como Mente (xin). Tal consideração existia em função das conquistas empreendidas por Zhuxi no campo do Confucionismo; Confucionismo 1o, não aceitar, deliberadamente, o argumento da "alma" como sede da razão razã e do raciocínio; 2o, se tal existe, então ela deve ser investigada como um fenômeno físico, único sobre o qual se pode estipular algo; 3o, a sede da razão é, então, aquilo que podemos investigar de forma consciente, que é nossa própria Mente. Já no período do Song um autor, chamado Lu Xiangshang, havia atentado para este problema; no entanto, foi Wang Yangming, da época Ming, quem decidiu aprofundar a investigação do problema. Para ele, razão e mente eram o mesmo, e se processavam como um fenômeno físico. Porr causa disso, o conhecimento sobre as coisas podia ser "desperto", imediato, se a razão compreendesse ou percebesse, de átimo, como algo se processa. A investigação do mundo externo poderia ser, pois,

52

uma investigação do interno - e consequentemente, todo o universo está contido no ser, tal como ser está contido no universo. Tais assertivas nos levam a perceber, de modo inequívoco, uma influencia budista no discurso de Wang, mesmo que este disesse ser um letrado. No entanto, já percebemos que a estrutura do do pensar chinês tende a síntese, e não à exclusão. Wang, pois, foi o contraponto de Zhuxi. As implicações cientificas e éticas da obra de Wang são interessantes; pode realmente uma pessoa conceber, por exemplo, um outro planeta sem ter estado lá? Segundo Wang, Wang, isso é tão possível quanto imaginarmos uma experiência cientifica que, no final, acaba dando certo. Ao concebermos algo, apenas o fazemos por que tal já está em nós.

O surgimento do pensar contemporâneo A última fase da China imperial, durante a época época Qing, constitui um momento de perda de iniciativa intelectual entre os chineses. Embora alguns autores gostem de afirmar as grandes realizações do período, como a constituição do Siku Quanshu (a grande biblioteca de livros, ver o ensaio sobre Literatura deste volume), no geral o período Qing - exceto no final - é pobre de autores interessantes. Isto se deve, em muito, ao fato desta ser uma dinastia estrangeira, preocupada mais em reprimir vozes nativas do que estimulá-las. estimulá Algo semelhante havia ocorrido na na época da dominação mongol - naquele

53

momento, o único grande pensador foi Yelujucai, que convenceu os dominadores a não transformarem o país numa grande estepe, conseguindo preservar a cultura chinesa e a estrutura administrativa imperial. Os Qing se estabeleceram, beleceram, pois, como reacionários e conservadores. Não incentivaram o novo, senão num sentido estreito. A chegada dos europeus foi ainda mais impactante; os chineses, com uma tradição de pesquisa e conhecimento científico, viram-se viram se cada vez mais superados pelos estrangeiros, ao ponto de praticamente limitar suas visões filosóficas ao campo moral, numa vã esperança de que isso salvaguardasse sua cultura. Caquético, o pensamento chinês desta época sofria de superficialidade e de dinamismo; recusava os desafios desafios intelectuais, ao invés de encará-los encará e assimilá-los. los. O ressurgimento de um ímpeto intelectual só viria, novamente, com a crise. Foi o que ocorreu, finalmente, no ocaso dos Qing. Os nomes mais importantes desta época - Kang Youwei, Liang Qichao, Zhang Binglin nglin e Liu Shipei - partem sempre de um conjunto de premissas básicas consagradas no pensamento Confucionista,, mas endogenamente ligadas ao raciocício clássico chinês; 1o, trazer o campo de discussões para o âmbito pragmático, para que se pudesse capturar o princípio dos problemas; 2o, que contribuições os desafios propostos pelas formas de pensar ocidentais poderiam proporcionar ao pensamento chines?; e, 3o, qual o método mais eficaz para solucionar estes problemas? As múltiplas propostas existentes envolviam, envolviam, no geral, uma reformulação dos procedimentos éticos e educacionais da sociedade. O ânimo e a

54

esperança, concomitantes a necessidade e ao desespero de reformar a China permitiram que, com a ascensão da república (uma concepção política ocidental), Sun Yatsen empreendesse um novo impulso na intelectualidade e para a filosofia chinesa, incorporando muito do trabalho realizado por estes autores. No entanto, os problemas econômicos e políticos do país exigiam mais, e a resposta para isso só viria com o comunismo com maoísta.

O Comunismo de Maozedong Não devemos ser ingênuos com o comunismo chinês, uma criação derivada da teoria marxista com uma brilhante inserção de valores antigos. Mao era um bom conhecedor do marxismo, mas era melhor ainda da realidade de suaa sociedade. Adaptando o expediente revolucionário para uma nação agrícola, Mao defendeu ainda um resgate de antigas filosofias, tais como o Legismo e o Moísmo. Mao tinha um interesse em particular pelo regime de Qin, que teria unificado a China a custa de grandes realizações. Para ele, o legismo trazia uma série de considerações sobre a economia chinesa que encontravam eco, desde a antiguidade, até as épocas recentes. A objetividade das políticas legistas também lhe pareceram eficazes, e muito das acusações acusaçõe que pesam sobre a lei e o sistema político chinês de hoje devem-se devem a esse "revival" totalitário. No curto período chamado das "Cem flores", na década de 50, Mao conclamou os pensadores a criticar e avaliar o regime político chinês. Em breve, as discordâncias discordâncias e críticas culminaram numa perseguição aos pensadores ditos "revisionistas", e na afirmação de uma visão dogmática.

55

Tempos depois, um dos assessores de Mao, Lin Biao, conspirou contra o governo, foi expurgado e morto em circunstâncias estranhas, e realizou-se rea uma grande campanha na China chamada (e publicada) de "Crítica a Lin Biao e Confúcio"! Tais ecos mostram que, nem de longe, a teoria socialista fez desaparecer a cultura antiga. Ainda é cedo, contudo, para analisar por completo o caráter da influência influê marxista na China. Sinizado, o marxismo hoje em dia é empregado em outros sentidos bastante diferentes da teoria original. Como afirmou Denis Blodswoord em seu "Imagens da China", talvez Mao seja esquecido, como pode também tornar--se "Maozi" - tudo dependerá penderá de como sua herança será interpretada.

O Futuro A redescoberta do pensamento chinês vem se processando em frentes diferentes. Desde a década de 30, tanto na China como em outros países onde residem pensadores chineses, o resgate do pensamento tradicional tradicional vem sendo feito num sentido que poderíamos novamente entender como opositor e complementar. Por um lado, temos pensadores como Hu Shih, Chan Wing-tsit tsit ou Feng Youlan que se detiveram, fundamentalmente, no resgate da tradição chinesa e sua divulgação divulgação no Ocidente; por outro, temos uma grande leva de autores cujas análises misturam, de modo original, as contribuições ocidentais com uma ou outra escola tradicional chinesa (um excelente estudo sobre esta situação atual é o de Chung-Ying Chung Ying Cheng e

56

Nicholas Bunnin, "Contemporary Chinese Philosophy"). P O Confucionismo, Confucionismo em si, está sendo reavaliado tanto em Taiwan como na China continental, nas suas formas filosóficas e sociológicas. Os desafios, pois, são outros. Para os chineses, será o de continuar a entender as operações entre princípio e energia, perene e mutável, que se desdobram sobre sua forma de pensar; para os ocidentais, porém, deverá ser o de penetrar neste mundo, que lhe parece ainda tão inacessível ainda que convivam no mesmo planeta...ambos são os opostos complementares, numa dimensão universal do problema; e todas as vias são mirações do celeste.

57

SOBRE O SAL E O FERRO

Durante a dinastia Han (sécs -33 +3), uma série de debates ocorridos na corte sobre questões econômicas fomentou a redação redação de um texto, intitulado Yantienlun – “Debates sobre o sal e o ferro” que se constitui, talvez, na primeira peça histórica estatal em que o foco central da discussão é a intervenção (ou não) do Estado na economia. As preocupações dos especialistas envolvidos dos neste processo abarcavam uma série de temas polêmicos, tais como o suborno dos “bárbaros” da fronteira, a regulação de preços, de impostos e, principalmente, o monopólio estatal do governo sobre certas áreas – neste caso, especificamente, a produção e comercialização do sal e do ferro. A questão era saber se o Estado, como provedor ideal de seu povo, deveria regular estes dois campos fundamentais da economia – de modo que isso beneficiasse a sociedade como um todo – ou, se a cobiça dos funcionários e nobres nobres da corte não levaria a malversação dos lucros obtidos com os mesmos. Aliás, ao manter um monopólio, o Estado estaria concorrendo com comerciantes e manufatureiros?

“Entendemos que o modo de governar se baseia na prevenção da frivolidade ao mesmo tempo tempo em que promove a moralidade, em terminar com a busca do beneficio egoísta e desejar o caminho da benevolência e do trabalho. Quando se enfatiza o beneficio,

58

uma civilização floresce e melhoram os costumes dos homens. Recentemente, o monopólio do sal e do ferro, o imposto sobre licores e o tabelamento de preços foi estabelecido em todo o país. Isto implica uma relação financeira com o povo que mina sua natural honestidade e corrompe seu espírito solidário. Como resultado, uns poucos continuaram a exercer o fundamental (o cultivo da terra) e a maioria fará o secundário (comercio e indústria). Quando o artificial prospera a simplicidade declina. Quando o que e secundário floresce, o básico decai. A ênfase no secundário faz o povo decadente, a ênfase no básico mantém as gentes sem sofisticações. Quando as pessoas não são sofisticadas, a riqueza abunda; quando são extravagantes, tudo falta, e o frio e a fome tem lugar. Nós propomos que os monopólios do sal, do ferro e do licor, assim como o tabelamento, sejam abolidos. abolidos. Deste modo se revitalizara o básico e o povo deixara de praticar o secundário. Assim, a agricultura voltará a prosperar. Isto é o apropriado”. (Yantienlun – Debates sobre o Sal e o Ferro).

As questões consideradas no tratado mostram, na história da da China, uma mudança de perspectiva em relação ao modo antigo de encarar o sistema econômico. Ainda que o forte da produção estivesse fundamentalmente ligado ao campo – e assim o será até o tempo da revolução comunista – a economia, como um todo, envolvia uma estrutura muito mais complexa,

59

como constataram os debatedores; e a solução dada – a imposição do monopólio de sal e ferro pelo Estado – implicou uma investigação profunda sobre como operava a sociedade chinesa, e de que maneira se davam estas atividades es econômicas.

Antes de Han Nas dinastias anteriores (Xia, Shang, Zhou e Qin), a legislação econômica sempre incidiu, diretamente, sobre a produção agrícola. As taxações, inclusive, estavam ligadas a terra e as colheitas. No Shijing, o antigo “Tratado dos Poemas”, uma canção fala da avareza dos ministros, preocupados em financiar guerras que arrasavam as colheitas, aumentavam impostos e destruíam a vida das famílias pobres:

Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos deixem pedir Que não roam nosso milho. Mas os ratos tos grandes a que nos referimos são vocês, Com quem tratamos durante três anos, E todo esse tempo nunca conhecemos Um olhar de bondade para conosco. Despedimo-nos nos de Wei e de vocês; Há muito ansiamos por uma terra mais feliz.

60

Ali, em ambiente mais adequado, adequado, tranqüilos nos sentiremos. Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos deixem pedir Que não devorem nossas colheitas de trigo. Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês Com quem há três anos vimos convivendo; E durante todo esse tempo vocês nunca fizeram Um só ato bondoso que alegrasse nosso destino. A vocês e a Wei damos adeus, Em breve iremos para aquele Estado mais feliz. Ó feliz Estado! Ó feliz Estado! Lá aprenderemos a bendizer nossa vida. Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos deixem pedir Que não comam os o rebentos de nossos cereais. Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês, Com quem convivemos durante três anos. De vocês não nos veio, nesse tempo todo, Uma só palavra de conforto no meio de nossas tristezas. Despedimo-nos nos de vocês e de Wei; E vamos os voando para outras paragens mais felizes.

61

Ó paragens felizes, dirigimos os passos para lá! Lá nossos gemidos e nossos pesares terminarão.

O sistema feudalizado da dinastia Zhou (o Fengjian) arrecadava diretamente sobre as comunas, e estes tributos ficavam ficavam nas mãos dos nobres e reis – uma parte simbólica, somente, era destinada ao imperador Zhou como tributo de vassalidade. As preocupações constantes com a produção agrícola disfarçam, contudo, a importância de outras atividades econômicas. Na época Shang, Shan por exemplo, a manufatura de bronzes atinge uma quantidade (e qualidade) que supera em muito o fabrico artesanal, caracterizando, no mínimo, a formação de corporações organizadas de trabalhadores. Foi um autor legista, Shang Yang (séc. -4), que primeiro atentou para a correlação entre produção econômica, sociedade e a manutenção do Estado. Shang acreditava ser necessária uma intervenção nas atividades produtivas, de modo a gerar riquezas que pudessem ser arrecadadas pelo governo para financiar suas operações militares e um corpo burocrático especializado, capaz de administrar o país sem a participação de elites locais. Esta idéia de centralização não pressupunha, ainda, estatizações, mas um controle rígido sobre o comércio e a terra;

No domínio dos assuntos assuntos internos relacionados com as pessoas, não há nada mais difícil do que a agricultura. Dai que uma fácil

62

administração não os consiga induzir à mesma. O que se chama de uma fácil administração? Quando os agricultores são pobres e os comerciantes são ricos, ricos, quando as pessoas sagazes obtêm lucros e os que buscam cargos itinerantes são numerosos. Pelo que, os agricultores, apesar do seu trabalho extremamente árduo, obtêm pouco lucro e, perante a carência deste, encontram-se se numa situação mais grave do que os comerciantes e lojistas e toda a espécie de pessoas sagazes. Ao lograr-se lograr restringir o número deste último tipo, então, mesmo que fosse esse o desejo, não se poderia evitar que um estado se tornasse rico. Dai dizer-se: se: “Caso se pretenda enriquecer o país através da agricultura, então, no limite das fronteiras, os cereais devem ser prezados, os impostos para aqueles que não são agricultores devem ser consideráveis e os direitos sobre o lucro obtido nos mercados devem ser pesados, com o resultado de que as pessoas pessoas são forçadas a possuir terra. Uma vez que aqueles que não possuem terras são obrigados a comprar cereais, estes serão prezados e aqueles que possuem terras tirarão, assim, proveito. Quando aqueles que possuem terras obtêm lucro, existirão muitos que se dedicarão [à agricultura]. Quando os cereais são prezados e o respectivo negócio não é lucrativo, enquanto se impõem, além disso, pesados impostos, as pessoas não falharão em suprimir os comerciantes e lojistas e toda a espécie de gente sagaz nem em dedicar-se de se a exploração do solo. Pelo que a força

63

do povo será completamente exercida na exploração do solo. Daí que aquele que organiza um estado deveria permitir que os soldados detivessem a totalidade dos lucros nas fronteiras e que os agricultores detivessem detivessem a totalidade dos lucros do mercado. Se a primeira situação ocorrer, o estado será forte e se a segunda ocorrer, será rico. Por conseguinte, aquele que, no estrangeiro, é forte em tempo de guerra e, na pátria, é rico em tempo de paz, alcançará a supremacia. supremacia. Uma vez que, se os cereais são baratos, o valor do dinheiro é elevado, e os cereais baratos representam agricultores pobres, e valores elevados de dinheiro representam comerciantes ricos; e se as ocupações secundárias não são proibidas, então (...). (Shang Yang).

Na contramão disso, Mêncio, Confucionista,, defendia um ponto de vista liberal da economia – quanto mais as pessoas produzissem para si próprias, maior seria a fartura e a riqueza -,, dispensando, assim, um controle do governo. O campo deveria ser livre para produzir seu necessário, e o excedente viria naturalmente:

Se o tempo indicado para lavrar a terra não é perturbado, haverá mais cereal do que se pode consumir. Se não permite introduzir redes nos remansos e lagoas, haverá mais peixes e tartarugas tartarugas do que se pode consumir. Se se utilizam os machados nas colinas e

64

nos bosques unicamente no tempo apropriado, haverá mais madeira do que se pode utilizar. Quando o cereal e os peixes e as tartarugas são mais do que se pode comer, habilita-se habilita se o povo pov a alimentar sua vida e chorar seus mortos, sem nenhum ressentimento contra ninguém. Essa situação na qual o povo alimenta sua vida e enterra seus mortos sem nenhum ressentimento contra ninguém é o primeiro passo do governo real. Plantai amoreiras em torno torno das casas com seus cinco mou e as pessoas de cinqüenta anos poderão vestir-se vestir se de seda. Se tiverdes aves domésticas, porcos e cães, não descuideis das épocas de cria e as pessoas de setenta anos poderão comer carne. Não deixeis passar o tempo adequado ao cultivo da granja com seus cem mou e a família de várias bocas que dela se alimenta não sofrerá fome. Atentai bem na educação das escolas, especialmente inculcando nelas os deveres filiais e fraternos e os homens de cabelos brancos não serão vistos a levar pelas estradas cargas na cabeça ou nas costas. Nunca se viu um governante do Estado onde semelhantes resultados surgem — gente de setenta anos vestindo seda e comendo carne, gente de cabelos brancos que não sofre de fome nem de frio – deixar de alcançar a dignidade real”. “Seus cães e porcos comem os alimentos dos homens e não toma medidas restritivas. Há gente que morre de fome pelos caminhos e não lhes entrega o que têm depositado nos seus celeiros. Quando morre o povo, diz: “Eu

65

não tenho culpa. A culpa é do ano, que é mau”. Qual é a diferença entre apunhalar um homem e matá-lo matá lo dizendo: “não fui eu, foi a arma? Deixe Sua Majestade de culpar o ano e instantaneamente virão a si os homens de todas as Nações.

Ambos os pontos de vista tinham a agricultura como como foco central, mas eram extensíveis as atividades artesanais. Nesta época, delineia-se delineia se também a visão que a sociedade terá das classes produtivas, presente no texto de Guanzi (um autor legista da fase pré-Han): pré Han): em primeiro lugar viriam os letrados, donos do conhecimento e da sapiência; depois, os agricultores, sustentáculos da sociedade; em terceiro viriam os artesãos, que só transformam a matéria em objeto e os vendem; por fim, a classe dos comerciantes – detestada – por fazer lucro com as necessidades das das pessoas. Esta visão idealista suprime, obviamente, a realidade pobre de agricultores, dura dos artesãos, e necessária dos mercadores – mas é, antes de tudo, uma construção ideológica. Deixa de fora, também, as oligarquias rurais, um incômodo perene na história stória do país. Até aqui, nenhum modelo havia se estabelecido em definitivo, variando de reino para reino. A atribuição fundamental do Estado se constituía, efetivamente, em proclamar o calendário para as atividades agrícolas, e sua interferência no tema continuava continuava bastante superficial. As necessidades construídas

pelo

advento advento

dos

Estados

66

Combatentes

( (-481-221)

transformariam a economia num problema central destes reinos, dos quais Qin seria o mais bem sucedido.

Qin e Han Qin empreendeu projetos fundamentais fundamentais para dinamização da economia, além de unificar pesos, medidas e moedas. Tais operações foram indispensáveis para consolidar sua posição de domínio perante os outros Estados, podendo manter um vasto exército e consolidando a reunificação da China. Se algo o há que contribuiu para derrocada dos Qin, foi sua terrível pressão política sobre a sociedade; a economia, funcional a custo de sacrifícios tremendos, ia bem. Alguns monopólios estatais foram ensaiados (como a fabricação de armas), mas o controle sobre a economia ainda se baseava nas regulamentações e impostos. Coube aos Han implementar este sistema, aumentando sua extensão pela incorporação de novas áreas comerciais e tecnológicas. Os Han empreendem uma abertura de mercados, exportando seda (entre outros produtos) para o exterior - a famosa rota da seda surge nesta sta época –, facilitando o trânsito interno de mercadorias e comerciantes, e estimulando a produção de ferro, papel, sal, e outros produtos rentáveis. Sima Qian deu, no Shiji, um testemunho claro dessa d época:

67

Em suma, Shansi produz madeira, cereais, linho, pelos de boi e jades. Shandong produz peixe, sal, laca, sedas e instrumentos musicais. Qiangnan (ao sul do Yangzi) produz cedro, zu (madeira dura para a fabricação de blocos de impressão), gengibre, re, canela, minérios de ouro e estanho, cinábrio, chifres de rinoceronte, carapaças de tartaruga, pérolas e couros. Lungmen produz pedra para tabuletas. O norte produz cavalos, bovinos, carneiros, peles e chifres. Cobre e ferro são muitas vezes encontrados por toda parte, nas montanhas, espalhados como peões num tabuleiro de xadrez. É de tudo isso que o povo da China gosta, e tais artigos atendem às necessidades de sua existência e das cerimônias para os mortos. Os homens do campo os produzem, os atacadistas atacadistas os trazem do interior, os artesãos trabalham neles e os mercadores com eles negociam. Tudo isto se verifica sem a intervenção do governo ou dos filósofos. Cada qual faz o melhor que pode e utiliza seu trabalho para obter o que quer. Assim, os preços procuram procuram seu nível, indo as mercadorias baratas para onde são mais caras e dessa forma baixando os preços mais altos. As pessoas seguem suas respectivas profissões e o fazem por sua própria iniciativa. É como o fluir da água, que procura o nível mais baixo dia e noite, sem parar. Todas as coisas são produzidas pelo próprio povo sem que lho peçam e transportadas para onde há precisão delas. Não é verdade que tais operações ocorrem naturalmente, de

68

acordo com seus próprios princípios? O Livro de Zhou diz: “Sem os lavradores, não serão produzidos víveres; sem os artesãos, a indústria não se desenvolverá; sem os mercadores, os bens de valor desaparecerão; e, sem os atacadistas, não haverá capitais e os recursos naturais de lagos e montanhas não serão explorados”. Nossos Nossos alimentos e nossas vestes vêm dessas quatro classes, e a riqueza e a pobreza variam com o volume dessas fontes. Com isso, em escala maior, beneficia-se beneficia se um país; em escala menor, enriquece-se enriquece se uma família. São estas as inevitáveis leis da riqueza e da pobreza. p (Shiji, de Sima Qian).

No entanto, o crescimento descontrolado destas atividades econômicas preocupou o governo, promovendo o debate presente no Yantienlun. A riqueza material, aliada a cobiça, não trouxe consigo um bem estar pleno para a sociedade, e, e muitas desigualdades sérias e profundas continuavam a existir. A classe comerciante tornou-se tornou se atuante junto à corte e a administração pública, pleiteando cargos, facilidades, e preocupando severamente as instâncias políticas. O peso desta pressão econômica econômica incidiu diretamente sobre a população. Uma anedota do Kungzi Jiayu (escrito na época Han, embora se remeta a um período anterior), ilustra bem o quadro em que viviam os camponeses:

69

Confúcio contou a seguinte história: Certa vez, ia eu passeando pelass montanhas e vi uma mulher a chorar junto a um túmulo recente. Perguntei-lhe Perguntei lhe a causa de seu pesar e ela, secando as lágrimas, respondeu: - Somos uma família de caçadores. Meu pai foi comido por um tigre. Meu marido foi mordido por um tigre e morreu. E agora, ago meu filho... - Por que, então, não te mudas deste lugar? Não - respondeu a mulher. - Por que não? - Porque aqui - replicou a mulher - não há coletores de impostos.

As tentativas do Estado em intervir diretamente nas atividades econômicas se situam, portanto, rtanto, numa busca de harmonia. O Estado é a presença do Céu na Terra; ele deve buscar o bem estar do povo, como dizia Mêncio. Mais tais políticas iriam variar ao longo do tempo, e no final dos Han, o compromisso dos imperadores com os financistas e comerciantes comerciantes fez com que todos os tipos de concessão fossem dadas, minando a estrutura de arrecadação do Estado e destruindo-o. o.

70

Novas áreas comerciais Mas a estrutura econômica básica da China continuou sendo a produção agrícola, cravada na sociedade com peça inseparável inseparável de sua existência. A produção de arroz é um exemplo vivo disso: exigente, ela não pode ser realizada com ajuda de maquinários, envolve necessariamente um grande número de pessoas – a família camponesa – e se apresenta bastante rentável, além do próprio produto poder ser empregado das mais diversas formas. Esta flexibilidade permitiu que o arroz fosse – e seja, ainda -,, o alimento básico da China e de várias outras nações asiáticas. Em contrapartida, praticamente não existiram escravos como mão de obra em larga escala – a China tinha escravos, mas nunca foi uma economia escravista. Pilares como estes dão forma a uma parte da economia que não se alterou com o tempo, exceto quando do aumento de sua extensão. Mas a retomada empreendedora dos períodos Tang e Song reavivaram, sobremaneira, sobremaneira a economia, aumentando os campos de trabalho e produção. Esta é a época em que surge a porcelana, uma das molas mestras da economia chinesa nos próximos séculos, e a seda volta novamente a ser exportada em grandes quantidades, tidades, produzida por corporações cujo conhecimento de seu fabrico é guardado a sete chaves. Em torno do século 11, os Song conseguiam produzir uma quantidade de ferro que só seria igualada pela Europa 6 séculos depois. Uma invenção chinesa favorece todo este movimento produtivo: a impressão do papel-moeda. moeda. Vinculado a um valor em prata, o papel-moeda papel

71

facilitava enormemente o comércio, e causaria uma forte impressão nos europeus que chegariam depois.

O descompasso da época Ming e Qing Mas o crescimento traz traz seus problemas, é a regra da oposição complementar. Os Ming (sécs. 13 a 17) vêem os europeus chegarem, e junto com eles, toda uma nova demanda comercial. As porcelanas saem como nunca, e a balança comercial parece positiva. No entanto, a população aumenta ta bastante, o que começa a fazer baixar a renda geral. A produção agrícola começava a se mostrar insuficiente para sustentar a sociedade. O primeiro dos imperadores Min, Hongwu, teve uma preocupação aguda com a agricultura que, no entanto, foi abandonada por seus sucessores. Aparentemente, esperava-se esperava se que a entrada de recursos em prata superasse o crescente déficit, mas tal não aconteceu. A ascensão do Qing no séc. 17 foi acompanhada de medidas para restabelecer a economia, cujo equilíbrio continuou frágil. frágil. A esperança de continuar a manter a produção agrícola subsidiada pela prata estrangeira levou os Qing a inovar, criando corporações comerciais (Hong) responsáveis por negociar e obter o maior lucro possível junto aos mercadores estrangeiros – principalmente nte europeus. No entanto, a população aumentou ainda mais, fomentando crises periódicas de fome e epidemias – e consequentemente, afetando a estrutura produtiva da sociedade.

72

Os Qing e a queda do império Os Qing careciam de uma política econômica inovadora. inovadora. Suas estruturas políticas, no século 18, estavam estagnadas e corrompidas; a ausência de inovação tecnológica dificultou, igualmente, a criação de novas atividades rentáveis e da produção. As Guerras do Ópio e a abertura dos portos chineses as nações européias européias deu o golpe final na tradição econômica do país. O início do séc. 19 trouxe, finalmente, a crise estabelecida para o país. Pela primeira vez em sua história, a China tinha uma balança comercial deficitária; os tratados desiguais exigiram do governo alfândegas, indenizações exorbitantes, a abolição das Hong e traziam, para dentro do território, produtos manufaturados estrangeiros que começaram a destruir a indústria local. As tentativas de reforma – fracassadas pela atitude recalcitrante da imperatriz Cixi – lançaram os chineses na pior fase de sua história, arruinando por completo seu modelo econômico tradicional – e por conseqüência, o próprio império Qing.

A República A proclamação da república, em 1911, trouxe esperança – mas não soluções – para o povo chinês. Havia uma grande indecisão sobre adotar um modelo econômico liberal, semelhante ao europeu, ou investir num outro tipo, inovador, de orientação socialista-marxista. socialista marxista. Sun Yatsen tinha uma certa inclinação ao socialismo, mas seu curto tempo de governo governo não permitiu desenvolver nada de prático. A ascensão de Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a

73

divisão da China entre republicanos e comunistas tornou o país um palco de lutas insustentável, onde a definição de um novo modelo econômico seria, também, a opção pção do país para a modernidade. A solução só se deu, como sabemos, em 1949, com a vitória comunista. A república chinesa continuaria a existir, porém, em Taiwan.

A Economia Socialista Maozedong recebeu um país destroçado, mas percebeu que muito da estrutura ura econômica tradicional havia permanecido – a China ainda era, de qualquer forma, um país agrário. Sua percepção em investir num comunismo agrícola e camponês, ao invés de industrial, surtiu um efeito bastante positivo nos primeiros anos de seu governo. Mao conseguiu recuperar uma parte substancial da produção agrícola, conseguido dirimir – mesmo que exiguamente – o problema alimentar. De início, o modelo adotado de industrialização rápida – a construção de indústrias de base, dentro de uma linha clássica do pensamento soviético – modificou consideravelmente o panorama da indústria chinesa, que herdou, ainda, as instalações japonesas da segunda guerra na Manchúria. Mas Mao era um revolucionário nato, e não necessariamente um administrador capacitado. Políticas Políticas como a dos Planos Qüinqüenais e do Grande Salto (na década de 50) se mostraram desastrosas, ao tentar promover um crescimento rápido e artificial da economia. Um sistema socialista não é, a princípio, concorrencial e de mercado; por causa disso, o

74

estímulo ímulo ideológico não podia substituir o pragmatismo da realidade e das necessidades econômicas do país, e o desenvolvimento esperado não ocorreu. Até 1976, contudo, Mao tentou de várias formas compensar as deficiências de sua política econômica, oscilando entre sucessos e fracassos. Após sua morte, não tardou para que uma linha pragmatista assumisse o poder, reformulando muitas das diretrizes do comunismo chinês. Em 1977, a política das 4 modernizações incluía como uma de suas metas principais a reforma da indústria, tanto tecnologicamente quanto comercialmente. As fábricas deveriam ser preparadas para gerar lucro, alimentando os cofres do Estado e aumentando os salários dos empregados.

A situação atual O impulso a modernização lançou a economia chinesa a um um novo patamar pat de sucesso. Mais preocupados em concorrer no mercado do que, propriamente, seguir uma cartilha antiga, os chineses conseguiram rapidamente

absorver

novas

tecnologias,

alcançando

níveis

de

produtividade, a custos baixos, que reformularam por completo o panorama da economia mundial. Hoje, em torno de 75% dos brinquedos mundiais, por exemplo, são feitos na China. A maior migração de créditos americanos se dá para a China também, com a qual os EUA já têm uma balança comercial deficitária. O país buscou, inicialmente, entrar no mercado internacional por meio de produtos baratos, inovadores e relativamente úteis. O fenômeno das lojas de 1,99 é resultado direto desta política, mas

75

uma gama muito maior de produtos já faz parte de nosso cotidiano. Um grande rande número de indústrias estrangeiras tem se instalado no país, atraídas pelo mercado vasto, pela infra-estrutura infra estrutura operacional e pela mão de obra atraente, qualificada e de baixo custo. Em contrapartida, os chineses estabeleceram duras leis de remessa de lucros, conquistando em pouco tempo uma grande reserva cambial. Os desafios da China moderna são os de sustentar este crescimento. A grande poluição, a migração de trabalhadores do campo para a cidade em busca de empregos melhores e o conseqüente desabastecimento desabastecimento alimentar são problemas imediatos, cujos números e valores – sempre hiperbólicos nesta sociedade – já estão fazendo com que o Estado se preocupe, novamente, em como interferir na economia. O resultado dessas relações complexas mostra que a China, em em definitivo, nunca perdeu sua importância no planeta. Ao reconquistar um lugar estratégico na geopolítica mundial, o país traz consigo uma estrutura milenária, calcada num sentido de esforço e trabalho próprios desta civilização. O que vemos hoje é, de certo certo modo, a mesma China de séculos atrás – a analogia, entretanto, nos remete a procurar saber se hoje a sociedade é como a dos Tang, dos Ming, ou é algo novo. A capacidade em se adaptar dá novamente as cartas; tal como acontece no continente, Taiwan também m encontrou, por meio de um outro modelo moderno (liberal), um desenvolvimento significativo.

76

A China comunista se constitui, ainda, um modelo para as ex-nações ex socialistas, ideologicamente desorientadas, e para os países do terceiro mundo, cuja economia agrária agrária anseia, um dia, por mudar. Este “Socialismo de Mercado”, contradição que só a mentalidade chinesa poderia poderia conceber, explicar e aceitar, é um dos sistemas guias para o século 21.

77

O POVO AMARELO

A sociedade chinesa é gregária, e privilegia-se privil se como detentora dos direitos; o indivíduo se realiza, neste meio, tanto quanto ele conseguir anular-se anular a si mesmo, dissolvendo--se se na multidão. E o paradoxo chinês não termina por aí; ao realizar-se, se, este mesma pessoa que buscou um dia ser apenas mais mai um, passa a ser um destaque entre os seus, um modelo a ser seguido. O ideal de uma vida familiar, comunitária e unida, é um dos aspectos fundamentais da ideologia chinesa, vindo desde a antiguidade e sustentando-se se de modo incomum através dos tempos. Pode Pode ser, talvez, um dos fatores de coesão desta mesma sociedade; mas esta forma de pensar também defende que, para realização desta coesão, o individuo deve aperfeiçoar-se, se, estudar, dominar seus sentidos, desejos e metas. Disso se conclui que o macro--cosmo daa idéia de sociedade, na visão chinesa, não abre mão de modo algum do micro-cosmo micro - o ser humano, único-,, e mesmo a sua integração total (ou será submissão) depende, justamente, da construção de seu senso crítico. O que parece, pois, tão moderno em nossos discursos de inclusão é, ao mesmo tempo, a constatação de como as relações de poder podem estabelecer-se se por meio de relações culturais únicas. Se os chineses entendem alguma idéia de cultura, é para que ela, justamente, enquadre o indivíduo; ao mesmo tempo, tempo, se depende do mesmo aceitar e entender tais

78

imposições, isso lhe constrói a capacidade crítica, sempre tão necessária para a compreensão das estruturas sociais. Contudo, isso não parece tornar os chineses mais críticos que qualquer outro povo no mundo - ao contrário, sua paciência estóica, sua capacidade de resistir a períodos longos de estagnação e e conflito, demonstra a existência de um senso cultural capaz muito mais fortemente de articular a sobrevivência da tradição do que, propriamente, destruí-la. destruí Há, pois, algum elemento que torna eficaz a continuidade da própria sociedade sobre os indivíduos? A tentação da milenaridade atrai aqueles que buscam fórmulas de administração social mais eficientes; no entanto, é possível que esta durabilidade seja provocada provocada por condições e interpretações que os próprios chineses realizaram sobre sua sociedade. Neste capítulo, então, analisaremos o que pode ser dito destas visão chinesa sobre uma sociedade ideal.

A origem Matriarcal A sociedade chinesa, muito provavelmente, provavelmente, surgiu articulada por clãs matriarcais. Nos tempos primitivos, a mulher parece ter tido um papel preponderante como líder social, social, o que se apresenta em evidências evidê arqueológicas. Os daoístas guardam consigo, igualmente, o mito da mãemãe terra como provedora provedora de toda criação. Mais uma peculiaridade parece comprovar isso; a palavra "nome", em chinês (equivalente ao nosso sobrenome familiar) é formada por dois ideogramas, "mulher" e "vindo", o que quer dizer que o nome de alguém "vem de sua mãe". Sabedoria

79

atemporal poral chinesa: pode-se pode se sempre saber quem é a mãe, mas o pai é uma garantia de confiança. Mas quando começam os tempos documentados da história, a sociedade patriarcal já estava estabelecida. Quanto a mulher, caberá sempre lutar pela sua posição na sociedade, sociedade, caracterizando uma tensão que inevitavelmente se acentuará ao longo dos milênios.

O indivíduo como parte da sociedade Os chineses entendem, desde a antiguidade, que um ser humano se constrói junto aos outros. Não há pessoa que possa ser dita humana se não tiver sido construída pela educação e o convício social. Mêncio, Mêncio, Xunzi e outros autores Confucionistass discutiriam se, ao nascer, o ser humano é bom ou ruim, séculos antes de Locke, Hume e Rousseau. A solução foi dada, ao final, em torno do séc. -22 por Dong Zhongshu, pensador que afirmava que o ser humano tinha propensões 勢(shi) (shi) naturais, derivadas da existência de um agente ou outro (água, fogo, metal, madeira e terra) em maior quantidade na sua constituição física - ainda assim, no entanto, acreditava-se se que o ser humano vinha com um potencial maior para o bem do que, propriamente pro para o mal. A vitória de Mêncio Mêncio neste quesito se deve em função de duas afirmações; primeira, que se o ser humano não fosse bom por natureza, não se preocuparia em constituir sociedades ou leis que o protegessem e o ajudassem - o caos seria, assim, assim, absoluto. Além disso, pessoas más não se preocupariam em criar leis, a não ser para se proteger uma das outras - mas

80

quem as seguiria, se todos fossem maus? O segundo argumento se baseia na idéia de que esta preservação, garantida pela própria sociedade, sociedade, é positiva. Pode ocorrer que as relações sociais de equilíbrio não sejam aplicadas, mas isso se daria em função da ignorância ou de uma maldade que pode ser cerceada. Logo, a sociedade existe para garantir ao indivíduo, desde o seu nascimento, a sobrevivência sobreviv - e o ser humano, consequentemente, garante a sociedade a sua existência, ao dar continuidade a este encadeamento. Este conjunto de relações, portanto, é positivo - e logo, calca-se se no bem. Assim sendo, um chinês vem ao mundo com potencial de ser humano, hum mas só se realiza em convívio com os outros. Abandonado numa floresta, por exemplo, quanto tempo ele sobreviveria? E, se fosse adotado por macacos, quais seriam seus modos e valores? Tal dívida com a cultura e a sociedade é constatada desde cedo pelos chineses, e por isso é tão forte o desejo de integração.

A Família (jia) A família, e em escala maior, o clã (shizu), são os pilares da estrutural relacional da sociedade chinesa. Já nos tempos antigos, teias complexas de parentesco orientavam as relações relações de poder, devidamente estudadas por Marcel Granet em seu ótimo livro "A civilização chinesa" e também por Leon Vandermeersch em "Wang Dao, la voie reale".

81

Estes conjuntos familiares ordenavam, organizavam e pressionavam a sociedade de acordo com seus interesses interesses particulares. Tal é a necessidade de coesão dessas redes que Sima Qian, nos sécs. -2 -11 conseguiu, no Shiji, reconstruir parte delas (na verdade, as famílias nobres), explicando suas origens, ascendências e conexões possíveis. Isso era demasiado importante; im mostrava quais clãs possuíam antiguidade, respeito, poder e principalmente, uma ancestralidade digna de louvor. Este fator referendava, para uma família, o seu sucesso em integrar-se integrar se a sociedade e administrar, condignamente, seus negócios - ou ao menos, era o que eles buscavam representar socialmente. A perenidade deste sistema é incrível dentro da sociedade chinesa, e tradicionalmente ele se confunde com outras instancias da vida política, social e econômica. Nas comunidades interioranas, os clãs organizavam a divisão do trabalho, escolhiam os possíveis jovens que poderiam se candidatar aos exames imperiais, julgavam e puniam os crimes menores, administravam causas legais e exerciam funções religiosas nos templos dedicados aos ancestrais. Já nas cidades, cidades, os clãs agiam como grupos econômicos e políticos, formando corporações e partidos bastante influentes no cotidiano e na administração pública. Obviamente, estes esquemas não se aplicam uniformemente na sociedade. As parcelas mais pobres da população população já sofriam de problemas que consideramos modernos; dissoluções familiares, dificuldades de emprego, ausência de uma coesão interna da família. Há um ideal de família, portanto,

82

mas que se realiza de modo variado - e muitas vezes díspar - dentro da própria sociedade.

As relações de poder Muitas vezes a estrutura familiar se sobrepõe ao Estado, como é caso das dinastias e das casas nobres. Os chineses não entendiam isso como algo totalmente errado - cargos de confiança são construídos por relações de fidelidade -,, mas entendiam claramente o perigo que isso representava na harmonia social, na medida em que se favorecia um grupo em detrimento de outros. A idéia do funcionalismo público, criado para dirimir estas concentrações perigosas e ensejar um sistema meritocrático meritocrático foi bem sucedida na China, a, mas exigiu, mesmo assim, certa reforma dos costumes. Podemos rastrear a conscientização do problema quando Confúcio busca estabelecer quais são as relações de poder ideais dentro da sociedade:

Os deveres de obrigação universal são cinco, e as qualidades morais pelas quais eles são sustentados são três. Os deveres são os compreendidos entre o governante e o governado, entre pai e filho, entre marido e mulher, entre o irmão mais velho e o mais novo, e os que decorrem entre entre os amigos. São esses os cinco deveres de obrigação universal. Sabedoria, compaixão e coragem - são essas as três qualidades morais do homem, universalmente

83

reconhecidas. Não importa de que modo os homens põem em exercício essas qualidades morais, o resultado resultado é um único e o mesmo. (Zhong hong Yong). Yong

Como se pode ver, a idéia, aqui, é a de que a família deve ser o núcleo inicial de formação do indivíduo; no entanto, seu dever final é servir a sociedade, e não apenas a um grupo. Confúcio, cuja vida foi marcada pela ausência do pai e pela devoção de sua mãe, parece ter percebido, bem cedo, o quão importante é o papel destas redes familiares para a integração social - mas elas são um meio, e não um fim em si mesmas - sem o que, o individuo nunca pode alcançar algum alg tipo de liberdade e sabedoria.

Os anciãos O ancião, por seu acúmulo de experiência, é venerado pelos familiares. Ter um avô é um privilegio; um bisavô, algo ainda mais digno. A dívida com os anciãos é carnal - graças à eles estamos no mundo; é também social, social, pois são eles que transmitem em os rudimentos da cultura e dão dão a primeira educação que uma pessoa tem. Espera-se Espera se que ele tenha sabedoria, e sua palavra é respeitada - quando não seguida automaticamente, se o ancião ainda tiver condições de exercer uma liderança lúcida. Os filhos e a família, neste caso, são sua aposentadoria. Cabem a eles sustentá-los los em sua idade avançada, mas não raro, os idosos envolvem-se envolvem

84

nos cuidados familiares e na formação dos netos. Nesta fase, dedicam-se dedicam a passatempos, artes, leituras l e atividades de gosto próprio - como disse Xunzi, o ser humano deve estudar até o fim de seus dias, pois o conhecimento é infindável e sempre nos reserva surpresas. Um funeral sincero, o pranto de admiração e sua entrada no pavilhão dos ancestrais são a sagração de uma vida.

A Piedade Filial (Xiao) Confúcio tentou delinear os princípios pelos quais uma família deveria se auto-organizar, organizar, e de como se dariam as relações de intimidade entre seus membros. Tal conceito foi explicado no Xiaojing - texto que se supõe apócrifo, mas ainda assim, aceito sem grandes ressalvas pela intelectualidade chinesa. Nele, Confúcio definiria o que seria Xiao - traduzido de forma aproximada como "piedade " filial", ou talvez "fraternidade", conceito fundamental nas relações sociais entre parentes, nas amizades e no trabalho. Xiao funde, de fato, hierarquia, devoção e respeito à sabedoria. A proposta de Confúcio, neste caso, parece ser a de resolver os dilemas morais ligados ao conflito de interesses entre família X sociedade, sociedade, estabelecendo um nível de obediência e importância nos acontecimentos cotidianos:

Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te Senta te de novo e te

85

explicarei a questão. Nossos corpos – cada fio dee cabelo, cada fragmento de pele – nós herdamos de nossos pais e não o devemos atrever-nos nos a danificá-los danificá ou feri-los. los. Este é o começo da piedade filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades idades futuras e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais, continua com o serviço do governante, e se completa pela formação do caráter. (...) Assim como servem a seus pais também servem às suas mães mãe e igualmente as amam. Assim como servem a seus pais servem aos seus governantes e igualmente os veneram. Amor se tributa principalmente à mãe e veneração é que principalmente se tributa ao governante, quando estas duas coisas são cultuadas no pai. Portanto, to, quando servem ao governante com piedade filial, são leais. Quando servem aos seus superiores com veneração, são obedientes. Por não faltarem, em sua lealdade e obediência, aqueles a quem servem, são capazes de conservar seus vencimentos e posições e manter ma seus sacrifícios. (Xiaojing). ).

O Xiaojing (Tratado Tratado da Piedade Filiam) é um texto sucinto, porém fundamental, para a compreensão do ideal de vida social entre os chineses.

86

O papel papel feminino Numa história de 5000 anos, o papel da mulher é algo dificilmente dificilm analisável, principalmente se levarmos em conta que ele não se mantém imóvel, estável ou claramente definido, como se pode presumir numa leitura rápida e superficial da questão. Na China, como dissemos, os primeiros clãs são matrilineares; a preponderância preponderância do patriarcalismo é posterior, e já está "pronta" na época Shang. No entanto, as mulheres nunca entregaram facilmente a sua posição, e podemos entender o seu papel histórico muito mais como conflituoso do que, propriamente, de submissão total. Mozi dizia d que "a mulher sustentam metade do Céu", e sem ela nada existiria. Os daoístas aceitavam o mesmo ponto de vista, e muitos de seus cultos e da alquimia sexual por eles praticadas colocava a mulher em posição de veneração. Aceitar que a sujeição da mulher mulher é uma marca na sociedade chinesa é cometer, por conseguinte, um sério erro de observação. Os direitos da mulher, na China, sofreram uma um degradação mais séria a partir do período Yuan (séc. 13 e 14), e grande parte dos costumes vis que lhes foram impostos derivam de uma agudização dos problemas sociais e políticos das últimas dinastias chinesas. A condição de sua inferioridade foi debatida desde a antiguidade - e se há debate, é porque não há consenso. Uma série de quatro textos fundamentais (Nujie ( “O Livro feminino”, de Han; Nu Lunyu “Analectos Femininos”; Nujia “Lições domésticas”, e Nuzhuan “Modelos para as Mulheres”), escritos desde a época Han até a dinastia Qing (ou seja,

87

um de mais de mil anos de história) buscou, por variadas razões, interpretar - ora ra positivamente, ora negativamente - os papéis e modelos femininos adequados ao funcionamento correto da sociedade. É importante ressaltar que muitas vezes estas discussões não encontram eco nas parcelas mais pobres da sociedade - muitas vezes comandadas por mulheres viúvas ou abandonadas as quais cabia, a todo custo, manter a coesão familiar e sustentar os seus membros através do trabalho honesto. Logo, é verdade quando se diz que as mulheres tinham seus casamentos arranjados; que se submetiam aos pais, depois depois aos maridos; que viravam servas de suas sogras; que muitas vezes um filho homem era preferido; que em tempos de crise, ela podia ser vendida (mas isso em geral afetava as crianças, masculinas ou femininas); e por fim, que seu destino era, em geral, cuidar uidar da casa e da família. Tudo isso é verdadeiro, como foi também (e em alguns lugares, ainda é) para a sociedade brasileira. Mas se negligencia alguns aspectos dessas relações familiares, tais como: as mulheres poderiam ser matriarcas numa família poderosa, poderosa, e isso não raro acontecia; podiam recusar noivos, ainda que escolhidos pelos pais; tinham direito ao divórcio e recebiam seus bens, em caso de separação ou viuvez; a China teve ao longo da sua história duas imperatrizes, além de várias personagens femininas ininas famosas por sua força, conhecimento ou influência junto ao poder. Quanto ao hábito de enfaixar os pés, além de ser uma marca típica das elites e da classe média, foi uma moda tão vil quanto os espartilhos

88

europeus, que ue causavam tuberculose. Maldições Maldiçõ s estéticas como essa estão indissoluvelmente ligadas a trajetória feminina. O que se pode extrair disso é que a história chinesa é permeada por uma tentativa contínua de o patriarcado estabelecer-se estabelecer como forma única de poder nas relações de gênero. Se seu sucesso fosse absoluto, tantos textos não teriam sido escritos tentando justificá-lo, justificá aprová-lo lo ou defende-lo. defende Hoje, vive-se se a excrescência destes tempos recentes de machismo, combatidos pela ideologia comunista, mas cumpliciados nas classes mais baixas da d população. O livro de Xinran, “As boas mulheres da China”, é uma denúncia das tentativas do masculino afirmar-se, afirmar se, novamente, no seio da sociedade chinesa. A modernidade, porém, é a uma barreira decisiva para isso, e espera-se se que tal retorno a tradição seja seja apenas uma rebarba nas novas gerações.

Ritos (Li) O que se traduziu pessimamente como "ritos" (Li), talvez fosse mais adequadamente entendido como "práticas sociológicas". Novamente, retornamos a Confúcio. Para ele, Li era o cerne dos modos de conduta da e na sociedade, o que exigia uma explicação aprofundada de seus fundamentos, procedimentos e aspectos estruturais. O que se consigna, pois, no Liji - o "Tratado dos ritos" (ou se preferirmos, o pouco sonoro "Tratado das práticas sociológicas") são os modos modos pelos quais devemos agir em sociedade, e o papel de d seus elementos constituidores:

89

Li não é senão a cristalização do que é correto. Se uma coisa está de acordo com os padrões corretos, novas práticas sociais são instituídas, embora as ignorassem os governantes governantes do passado. Exemplo do correto é o encaminhamento de cada classe de pessoas em seu próprio setor, e assim se articula a verdadeira humanidade. Aqueles que seguem o correto, observando o caminho adequado e cultivando a verdadeira humanidade, tornar-se-ão ão hábeis administradores. A verdadeira humanidade constitui a base da conduta apropriada e encarna a adequação aos padrões corretos. Aqueles que atingiram à verdadeira humanidade tornam-se tornam se líderes da espécie humana. [...] Li é o princípio da cortesia e do respeito mútuo. Por isso, quando aplicado ao culto nos templos, tem-se tem se a piedade; quando aplicado na corte, tem-se tem se a ordem nas esferas oficiais; quando aplicado no lar, tem-se tem se a afeição entre pais e filhos, harmonia entre os irmãos; quando aplicado na n cidade, tem-se se o acatamento da ordem entre os mais velhos e os mais moços. Eis por que tinha cabimento o que dizia Confúcio: "Nada melhor do que a li para a preservação da autoridade e para o governo do povo. (Liji).

Por este motivo, o Liji (Manual dos Rituais) é um manual riquíssimo sobre a mentalidade sociológica chinesa; neles estão explicados os modos corretos

90

de se vestir, as razões disso; como se fazer cumprimentos, saudações, rituais religiosos e sacrifícios; como se deve estudar; o que é a música; música o que é política; como ser sábio, e assim sucessivamente... Uma leitura desse texto explica muito sobre os modos de agir dos chineses; sua aparente introspecção, a necessidade de conter-se conter se diante dos outros, a gentileza franca, o resguardo perante o desconhecido, desconhecido, a fidelidade e a dedicação ao trabalho - muitas dessas coisas são explicadas pela sensível análise que Confúcio fez do espírito de seu povo, consolidando aí as orientações necessárias paras a gerações futuras.

Redes sociais Mas a vida gregária não não se faz apenas em família; ela se estabelece, também, nas redes de relações sociais que indivíduos, grupos e comunidades tecem entre si, a fim de beneficiarem-se beneficiarem se mutuamente. Estas redes tiveram vários nomes ao longo da história, e hoje são chamadas de “Guanxi”. “G Estes laços são construídos na base de trocas e acordos materiais, mas dependem também de amizade e confiança mútua. Tais redes formam, muitas vezes, aquilo que entendemos como troca de favores, clientelismo, associações de auxílio mútuo, sociedades sociedades secretas ou grupos de interesse. Pragmáticos, os chineses não consideram absurdos tais procedimentos, ao contrário; pregam que haja equilíbrio em sua execução para que o todo não saia perdendo para a parte.

91

As regulações em torno dessas redes sociais são, são, portanto, bastante flexíveis, variáveis e oportunas. Na China histórica, as sociedades secretas já foram muito importantes em processos revolucionários; do mesmo modo, as corporações de comerciantes valeram-se valeram se da sua capacidade de união para combater monopólios opólios estatais na época do império; e hoje, um empresário chinês preocupa-se se bastante em associar-se associar se a quem quer que for, aproximando-se se vagarosamente por meio de jantares, conversas particulares e alguma convivência com seus futuros parceiros. A lógica pura e simples do mercado, e seus atrativos financeiros, não são absolutamente decisivos para a construção de uma Guanxi - os critérios da confiança mútua e de uma associação "familiar" são indispensáveis.

A nova sociedade Os desafios da modernidade para a estrutura social chinesa são, justamente, o da continuidade e da adaptabilidade. As exigências da superpopulação já enterraram, por agora, os anseios antigos de uma família gigantesca, e fragmentaram por completo o poder dos clãs. Se o machismo insiste em e voltar e se consolidar, a visão comunista de mundo deu munição suficiente para que as chinesas não aceitem mais uma pura e simples submissão. Em Taiwan, esta mesma modernidade - aliada ao pragmatismo da necessidade econômica e histórica - deslocou a mulher er do seu espaço tradicional de dona do lar para o de uma ativa trabalhadora.

92

As exigências da economia de mercado têm forçado os chineses, inequivocamente, a observar os papéis da relação indivíduoindivíduo-produçãosociedade na geração do bem estar coletivo. Se por por um lado a economia está indo bem, os índices de poluição estão afetando severamente o meio ambiente - quanto, pois, vale o desenvolvimento? A preocupação central da vida social chinesa está naquilo que Confúcio chamou de Ren, "Humanismo"; ideograma formado formado pelas palavras "pessoas" e "dois". "Duas pessoas em harmonia", é o que diz Ren. De que maneira, pois, as gerações futuras desenvolverão seus modos de agir, seus "Li", para que a harmonia entre o indivíduo e sua comunidade possa se manter?

93

OUTRO OUTRO MODO DE DIZER O MUNDO

"... [ela] contempla os modos do homem, para efetuar as mudanças culturais cultura no mundo. Na verdade, como tem m sido grande a importância da literatura no decurso dos tempos!" (Xia Tong, séc. +6)

No século 18, os chineses empreenderam empreenderam um monumental resgate intelectual de sua cultura através da constituição constituição do Siku Quanshu (Os quatro tesouros dos Livros), uma gigantesca coletânea que incorporava desde os textos mais antigos do Confucionismo até que o que havia sido escrito na época. O volume inigualável de páginas, a contagem em milhares de caracteres, esses e outros elementos vivificavam a grandiosidade desta civilização, e o desejo de reter a sua centralidade cultural e histórica. O objetivo do Siku Quanshu não era nada modesto; ele pretendia, p simplesmente, guardar tudo que havia sido escrito (e consagrado) na história da China até então. Obviamente, o trabalho de pesquisa para a construção de seus volumes acabou por ensejar um estudo mais aprofundado da própria literatura chinesa, gerando gerando anexos posteriores. O grosso da obra, porém, atinha-se atinha se a uma literatura clássica, já aprovada pela sua resistência e continuidade.

94

Cabe-nos nos aqui um apontamento interessante; mas como os chineses organizavam essa sua literatura? Uma apresentação vasta de nomes de obras, autores ou épocas não daria conta do caso de analisar o que nos propomos aqui. Os chineses criaram seus cânones literários num passado bastante distante, e como tal, usaram-nos usaram nos de guia para criar (ou reproduzir) velhas idéias e visões de mundo. O que analisaremos aqui, portanto, é este entendimento sobre a literatura chinesa na visão dos próprios, buscando compreender a sua estrutura constitutiva.

A tensão entre forma e sentido Como tudo na China, Wenxue (‘Estudo ( do Escrito’,, o mais próximo próx que podemos encontrar de “literatura” nesta civilização) é permeado pela tensão da oposição complementar, pelo arranjo contínuo que se dá entre yin e yang. Todos os textos têm uma forma – o modo como eles são escritos, como suas palavras estão arrumadas arrumada – e um sentido – ou, o discurso inserido

na estratégia da

escrita.

Obviamente, existiram

sempre

descontinuidades entre uma proposta de classificação e a criação de um novo gênero literário. Dois são os textos básicos que delinearam a tentativa de construir ir uma taxionomia textual que desse conta do problema; o Wenfu (Ensaio sobre a escrita, aprox. séc. +3) e o Wenxin Diaolong (O Coração do escrito e o cinzel do dragão, aprox. séc. +6). O primeiro aborda o exercício da escrita, e os procedimentos da inspiração; inspiração; o segundo destaca os modos de escrever e os gêneros textuais. Ambos nasceram para serem seguidos

95

solenemente pelos estudiosos, e desrespeitados audaciosamente pelos artistas. A criatividade também é milenar na China, e não deveríamos esperar que fosse diferente.

O Dao da escrita Pois a literatura é uma via (Dao), e pode levar ao conhecimento das coisas. Está na introdução do Wenxin Dialong;

Por isso, sabemos que o dao, através dos sábios, concede a literatura; e os sábios, por meio da literatura, manifestam manifestam o dao, para que prevaleça sem barreiras em todas as partes e se realize, constantemente, sem menoscabar. O Tratado das Mutações diz: "o que origina o movimento do mundo está em palavras". A razão pela qual as palavras podem mover o mundo é que elas são a escrita e a estrutura do dao.

Então, como o classificar a via? Como dividí-la dividí la em métodos diferentes? Eis que se dá o arranjo entre o múltiplo (forma) e o uno (sentido), novamente, em todos os níveis de manifestação - e para dar-lhe lhe alguma ordem surge, surge então, o cânone, tentado arrumá-los arrumá de alguma forma didática.

96

Sibu – As quatro categorias Por conta disso, os chineses do século +18 18 fazem um arranjo bastante distinto das obras contidas no Siku Quanshu. Quanshu. São as chamadas sibusibu as quato categorias – que constituem constituem as linhas mestras da classificação de uma literatura que se entendia consolidada em suas regras gerais.

Confucionista a dos Jingbu - A primeira das categorias é a da literatura Confucionista, clássicos (jingbu). Nela estavam contidas as obras resgatadas por Confúcio, C consideradas como as mais antigas de toda a China. No entanto, se nela aparecem os textos arcaicos – como o Yijing (o Tratado das Mutações) ou o Shujing (Tratado dos Livros) – outros escritos incorporar-se-iam iam a esta lista de clássicos, tais como os próprios textos da escola Confucionista. Confucionista O setor dos clássicos evoluiu, abrangendo as obras de estudo da língua e da escrita, dicionários, lexicógrafos e manuais de ensino. Qual o sentido de um jingubu, portanto? O que tornava um livro classificável como o tal? Eis novamente a tensão de forma-sentido. forma sentido. Se os textos arcaicos dispensam apresentação, depois disso os estudiosos de literatura parecem ter preferido, por bem, assentar o sentido de um “clássico” como algo que permitisse compreender a estrutura do próprio próprio chinês (escrito e falado). Disso resultou que, após a construção do corpo básico de obras da antiguidade, todo o restante seria interpretação – e nisso, um dicionário como o Shuowen jiezi – faz mais sentido, nesta categoria, do que um belo livro de poesia.

97

Shibu – A segunda categoria, shibu (gênero histórico), mostra a especificidade deste discurso literário chinês. Uma categoria especial é concedida a esse tipo de escrito que, em prosa, mantém o fio condutor da cultura chinesa com o passado. A história história é um objeto de veneração nesta civilização milenar. Para além dos anais dinásticos básicos, inventados pelo historiador Sima Qian (aprox. sécs. -2 -1), 1), a categoria da história possui mais 14 subcategorias que se dividem em metodologia e teoria da história, histó geografia, histórias regionais, bibliografias, etc. Uma vasta produção historiográfica conectava os chineses diretamente com sua ancestralidade, dando-lhe lhe o peso da tradição. Se em forma ela pouco muda o estilo da escrita, em sentido, a história chinesa chine mantém-se se crítica (por mais que tentemos enxergar, sempre, um compromisso do historiador com o poder estabelecido). Sima Qian, ao menos, tinha a plena convicção do potencial da história, expresso neste comentário;

Ela distingue o que é suspeito e duvidoso, duvidoso, elucida o certo e o errado, e decide o que é incerto. Classifica o que é bom como bom e o que é ruim como ruim, honra o que é digno e condena o que não é merecedor. Preserva existências perdidas e restaura as famílias em deterioração. Esclarece o que foi negligenciado e restabelece o que foi abandonado (Shiji, 130).

98

A História, pois, sempre foi uma fonte importantíssima de conhecimento para os chineses. Ainda que uma "literatura", ela se propunha construída e realizada de uma tal maneira que poderia dizer-se, d se, seria "baseada em fatos reais" - se nos permitirmos o chavão. Pois a literatura, para os chineses, é baseada em coisas reais - até mesmo a imaginação é algo que existe - mas a maneira como ela se expressa, e o intuito incluso no escrito, dizem por si os objetivos de um gênero. E a história, em suas pretensões, visa salvar a verdade - seja lá o que isso quer dizer.

Zibu – O gênero dos mestres (zi) diz respeito aos tipos de escritos cuja função era pensar e interpretar a realidade. Esta definição simples, simples, porém extremamente complexa e escorregadia, é mais do que pertinente para uma categoria que inclui todo o tipo de exercício da sensibilidade e da reflexão. Nos zibu encontramos os escritos das ditas “escolas filosóficas”, mas também da religião dos budistas; vemos os tratados científicos ao lado das enciclopédias e dos tratados sobre arte; as novelas estão simpaticamente situadas junto dos livros de medicina ou agricultura; e os tratados de adivinhação convivem harmoniosamente com os de matemática. Como C disse Liu Xie no Wenxin Diaolong, "as doutrinas dos mestres constituem os escritos que penetram no Dao e contemplam suas paixões". Os zibu, portanto, não constituem uma forma definida, mas seu sentido é claro; tudo aquilo que permite ao ser humano criar-se cria se intelectualmente é uma via (Dao), e como tal, deve ser apreciada. Este tipo de classificação

99

provavelmente enlouqueceria um crítico literário ocidental, mas seria certamente bem recebida por um Einstein. Dentro da lógica chinesa, que poderia ser aí criticada iticada como pouco “científica” no ponto de vista ocidental, a coexistência desses saberes é, justamente, o sentido de uma ciência que opera por meio de analogias e relações cósmicas. A carga moral destes discursos, portanto, se constrói de modo completamente completamente alheio ao de nossa realidade:

Em todas as formas físicas está o dao, e dentro destas formas estão as coisas em plena ação. Por isso, o dao são todas as coisas em ação; e as coisas em ação são todas, obviamente, o dao. (Chen Mingtao)

gias (jibu) formam a última das categorias, congregando Jibu – As antologias compêndios fabulosos de música e poesia. Neste ponto, é importante fazer uma ressalva fundamental para se compreender o estudo da literatura chinesa. Como disse Gil de Carvalho, em seu ensaio sobre o tema presente no livro “A Dama Luminosa”, a poesia chinesa é uma pedra basilar para compreender a interpretação que os chineses dão aos seus próprios escritos. Afinal, a poesia nasce com os textos mais arcaicos (como é o caso do Shijing, resgatado por Confúcio), úcio), e ela se constitui na mais bela expressão da tensão forma-sentido. sentido. O poema, quando belo, traz consigo a capacidade de expressar tudo – a imagem, as palavras, a idéia.

100

"A escrita da poesia se baseia na experiência interior emotiva, e na cena exterior do mundo; nenhum dos dois por si só completa a poesia, nem está em conflito um com o outro". (Xie Chen, séc. +16)

O estudo da poesia chinesa, pois, é um estudo do chinês em si – de suas ambigüidades, de seus ideais, de sua visão onírica ou pragmática da realidade. O modo ideal de expressar-se expressar se é obtido por meio dela, a poesia; e por isso não devemos estranhar uma categoria inteiramente dedicada a ela:

A poesia implica um talento especial que nada tem a ver com os livros; contém um significado a parte que nada a ver com os princípios da razão. E, no entanto, a menos que o poeta tenha lido muito e investigado os princípios detalhadamente, não chegará ao limite. O melhor é o que se chama "não tocar a candeeiro da razão nem cair nos cepos das palavras". A poesia poe canta a emoção da natureza de cada um [...]. Quanto aos poetas de hoje, chegam com estranhas interpretações e conceitos do ofício; assim, tomam a verborragia por poesia, o mero talento e erudição por poesia, poes inclusive a mera discussão. (Yenyu, séc. +13 13)

101

Após o Siku Quanshu Mas o que devia ser prisão, como sempre, virou a pilha de escombros sobre o quais o moderno fez sua escada. O mesmo século 18 veria surgir uma onde de novos textos que sacudiriam esta estrutura tradicional de análise do Siku Quanshu; afinal, o que dizer do teatro, dos novos romances (o caso do Houlumeng, o ‘Sonho do Pavilhão Vermelho’, V , é um exemplo clássico), da literatura erótica, e mesmo da chegada dos livros estrangeiros – tão estranhos, repulsivos, e ao mesmo tempo, tão instigantes! instigantes! É esta mesma antologia quase sacra que os revolucionários chineses criticaram, e que no final do século 19 serviu de referência – negativa – para a construção de uma nova literatura. Os autores que vivenciaram o fim do império estrangeiro Qing, a chegadaa dos europeus, e as décadas de crise da sociedade chinesa, eram em geral bons conhecedores desta literatura clássica, que havia perdido o sentido de instruir para gerar uma fossilização intelectual. Luxun, um dos grandes críticos desta época, denunciou o modo clássico de escrever e de expressar-se, se, pouco acessível ao povo; Laoshe apresentou a dura realidade chinesa em seus escritos; e Guomoro, engajado escritor comunista, arqueólogo, poeta, dono de uma mente prodigiosa para caracteres, passeou por entre todos dos estes gêneros antigos como bem quis para defender um modo marxista de entender a realidade.

102

O Realismo comunista e a nova literatura Li Dazhao, em 1920, defendia o seu ponto de vista sobre a literatura:

“Os termos que, meramente, usam o chinês moderno moderno não pertencem à nova literatura; tampouco serão aqueles que falam somente de novas doutrinas, de novos feitos, novos personagens ou termos (...) a nova literatura é aquela que descreve a realidade social”.

Guomoro, um dos maiores intelectuais chineses do século 20, afirmava igualmente que:

“Nós nos opomos à serpente capitalista, nós nos opomos a qualquer religião que renegue a vida. Nós nos opomos a uma literatura de escravos. Nosso movimento apregoa o espírito de classe proletária e da humanidade jovem”. jov (1923)

Este seria o mote da nova literatura chinesa. Os comunistas, após a revolução vitoriosa de 1949, esperavam criar um novo tipo de literatura popular, implantando um vasto programa de educação que contemplava temas do cotidiano e da realidade como como motes de inspiração poética e

103

ideológica. Concursos de poesia eram realizados, de modo a fomentar uma ação artística popular. Operários, camponeses e humildes cidadãos eram estimulados a contar sua vida por meio da arte, gerando uma produção de qualidadee variada. Ainda assim, o relaxamento do comunismo após a morte de Maozedong trouxe à baila novamente uma literatura de resistência, de crítica ao sistema. Enquanto isso, Taiwan e os chineses da diáspora mantiveram-se se ligados as tradições antigas, e Lin Yutang Yu – um de seus principais autores – reformou os clássicos, tornado-lhes lhes acessíveis ao público ocidental. Estes novos temas (e escritores) são variados; em geral, estes escritos continuam a tratar da realidade, mas por meio de uma visão distinta daquela do discurso ideológico governamental. Mais uma vez, o que virou cânone, serve de base para o novo. As valorizações do sexo e do consumismo tornaram-se veículos de embate contra o sistema; o regime censura ocasionalmente algumas dessas obras, mas nem sempre e com tanta constância como seria de se esperar. Apesar das críticas ocidentais sobre a liberdade de expressão (mas lembremos, até hoje existe censura nos EUA e mesmo no Brasil, ainda que por motivos mercadológicos), os chineses têm produzido, e com relativa relativa liberdade, uma leva de novos textos cuja intensidade já merece nova análise por parte dos especialistas. Ou seja, em breve eles estarão classificando aquilo que irá mudar – é o inevitável da literatura chinesa, e quiçá, do mundo.

104

ENTRE AS MONTANHAS E OS MARES

Como em tudo que se estuda sobre a China, falar da religião e da mitologia é, desde o início, um problema conceitual. O entendimento que os chineses têm dos seus "mitos" confunde-se confunde se facilmente com a religião e a filosofia, embora seja bem demarcado demarcado por uma literatura específica. O que vamos, pois, abordar neste ensaio? Devemos fazer uma seleção de temas, posto que nos veremos obrigados, de certo modo, a repetir algumas informações dadas em outros textos deste mesmo volume. O que buscaremos tratar aqui é do conjunto de crenças que alimenta o imaginário chinês e que nos permite classificá-los, los, até certo ponto, como tradições religiosas. Obviamente isso tem os seus limites, que serão dados paulatinamente. A princípio, pio, a própria idéia de religião - tal como encontramos no mundo judaico-cristão - não se repete entre os chineses. O mundo desta civilização não se encontra desligado da natureza e das divindades, ao contrário; ele está plenamente inserido no cosmos, no qual o ser humano é o seu melhor intérprete. rete. Desde os tempos antigos os chineses sondam a realidade, elucubrando sobre seus atributos e convivendo com o desconhecido como algo que, simplesmente, pode vir a ser (ou não) conhecido um dia.

105

O xamanismo A primeira razão que podemos entender como sagrada, entre os chineses, surge ainda nos tempos proto-históricos, proto históricos, advinda da sistematização do xamanismo. O Animismo xamânico foi encontrado em todas as partes da China, e arraigou-se se na população. Até hoje pratica-se, pratica se, no país, uma espécie de religião popular opular inclassificável - se bem que, algumas vezes, incorporado diretamente pelo daoísmo religioso. Estas crenças estruturam-se estruturam num sistema caótico, ligado por meios complexos a um outro mundo do qual somos reflexo e manifestação. Os xamãs descobriram por meio do sonho e do êxtase mediúnico - momentos mais próximos da morte - que o outro mundo é semelhante ao nosso, mas lá as forças manifestam-se manifestam se e toda sua plenitude. Foi este pensamento que criou os cultos aos animais, aos espíritos da natureza, e os deuses deuses sob forma de astros e entidades zoomórficas. Durante o período Shang, o que encontramos são vestígios deste pensamento já institucionalizado, na forma de um culto imperial organizado. Os diálogos com o além se estabeleciam por meio de carapaças de tartaruga uga ou ossos oraculares, nos quais os espíritos forneciam as informações de como proceder. Os indícios, esparsos, afirmam que os chineses da época dedicavam-se dedicavam se justamente à estas forças da natureza, as quais já se dirigiam como entidades corporificadas e inteligentes. i A época dos Zhou traria uma reforma importantíssima nesta interpretação do cosmo; as forças da natureza obedeceriam a uma única entidade, chamada Tian (Céu). O Céu não seria necessariamente um deus, ou O Deus,

106

mas uma consciência unificada, um principio inteligente que operaria os modos de manifestação da natureza. Esta reinterpretação influenciou, sobremaneira, os modos dos chineses encararem suas perspectivas religiosas. Os seguidores de Confúcio, por exemplo, sempre entenderiam a existência desta única entidade como fator o formativo do universo, chegando por vezes a afirmar a inexistência de uma vida após a morte - embora o mestre defendesse ardorosamente a existência dos espíritos. Daoístas e Budistas não tiveram problemas sérios com esta concepção, oncepção, embora mantivessem o Céu como uma instância reservada aos seus deuses e budas. Quanto ao povo, pareceu-lhes pareceu uma concepção demasiado profunda e distante, mas respeitosa demais para ser ignorada. Ainda que se dirigissem ao além, tinham - e tem - o céu como o espaço deste sobrenatural.

Os espíritos e os Ancestrais Voltemos aos espíritos, pois os chineses não os deixaram de lado. Confúcio defendia a invocação e os rituais destinados aos ancestrais, tanto como forma de respeito, quanto de orientação e proteção:

As oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé redondo e o vaso quadrangular postos em ordem, e os instrumentos de música - o qin, o sebo a flauta, o xing xing (pedra musical suspensa

107

por um fio e batida como gongo), os guizos e tambores, tudo tudo nos seus lugares, e a oração do “sacrifício aos mortos” e a de “resposta dos mortos” eram cuidadosamente elaboradas e lidas a fim de que os espíritos do céu e os dos ancestrais pudessem baixar ao lugar do culto. Todas essas práticas tinham o propósito de manter a devida distinção entre governantes e governados, preservar o amor entre pais e filhos, incutir a gentileza entre os irmãos, regular as relações entre superiores e subalternos, e estabelecer de parte a parte as condições de convívio entre marido e mulher, para que sobre todos pairasse a benção do d Céu. (Liji) Quando se honram os mortos e a memória dos ancestrais remotos se mantém viva, a virtude de um povo encontra-se encontra se em seu apogeu. (Lunyu)

Ao mesmo tempo, no Lunyu (Diálogos), dizia ao seu discípulo discípulo Zilu para se preocupar com os vivos, e não com os mortos. Contradição? Talvez não. Provavelmente o Mestre entendia que os espaços estavam definidos, e precisavam ser respeitados - mas ao mesmo tempo, isso tornava pragmática a necessidade de resolver os assuntos humanos. Confúcio não se furtava, pois, de usar os Conselhos do Yijing para fins oraculares, mas sabia que a ultima decisão em um assunto deste mundo era feita por nós mesmos.

108

Por conta disso, se os outros sistemas invocam até hoje médiuns para resolverem esolverem seus problemas, na época Han um Confucionista chamada Wang Chong duvidava mesmo da existência de fantasmas. Um pequeno trecho de seus argumentos nos mostra com que perspicácia o autor era capaz de criticar as crenças no além;

Desde que teve começo começo o universo, milhões de pessoas têm morrido, em tempos diferentes. O número dos que hoje vivem é muito menor que o dos que morreram no passado. Se, portanto, os mortos se tornassem fantasmas, deveríamos encontrar um fantasma a cada passo. Se alguém vê fantasmas fantasmas junto a seu leito de morte, deveria vê-los vê los aos milhões, enchendo todas as ruas, os becos, os vestíbulos e os pátios, e não apenas ver um ou dois fantasmas... É da natureza das coisas que um fogo novo possa ser aceso, mas não há fogo extinto que comece comece a arder de novo. Novos seres humanos nascem, mas é impossível que um homem morto volte a viver. (...) A forma decorre da associação com o espírito, mas o espírito também se torna consciente por associação com a forma material. Não havendo fogo que arda por si só, como haverá espírito consciente sem corpo? Quando pessoas falam e fazem coisas ao lado de quem dorme, o adormecido não sabe disso. Da mesma forma, quando se fazem coisas boas ou más na presença de um caixão, o defunto não

109

pode

ter

consciência

disso. disso.

Se,

portanto,

quem

está

simplesmente a dormir, com sua forma corporal intacta, não pode ter consciência do que ocorre, como será isto possível quando a forma corporal já estiver decomposta? decompos (Luheng, de Wang Chong) Chong

Os chineses, no geral, acreditam ainda ainda (e muito) na existência de almas. O ser humano, a princípio, possui dentro de si Hun (a alma espiritual) e Po (alma animal, ou material). Se uma pessoa consegue cumprir o seu ciclo de vida, pode ir para outro lugar ou reencarnar (veremos adiante), ou ainda, a transformar-se se em shen (espírito iluminado, um deus ou divindade cultual). No entanto, se morre de forma violenta ou se suicida por razoes egoístas, hun não consegue se livrar de po e então, pode virar um guei - espírito animal, fantasma ou vampiro - preso a este mundo até que os rituais de libertação apropriados sejam realizados. De muito pouco adiantou, para o povo, o ceticismo de Wang.

O Fantástico e o Imaginário A capacidade autêntica que o pensamento mitológico tinha de sobreviver na China é, porr outro lado, notável. Wang nunca conseguiu fazer tanto sucesso quanto um livro publicado mais ou menos na mesma época, intitulado Shanhaijing - o ‘Tratado Tratado das montanhas e dos mares’. mares . Nele há o primeiro

110

compêndio de geografia e fauna mitológica chinesa, com com uma descrição repleta de seres fantásticos e lendas antigas. Uma literatura desse tipo surge para se contrapor a razão, e seu alcance é dificilmente mensurável. Ao contrário do mundo grego, em que Homero e Hesíodo foram os primeiros, na China a redação dos dos mitos chega muito depois da escrita. Um exemplo clássico desta mesma condição é o problema do mito de criação; os chineses não propuseram nenhum em sua antiguidade mais remota, remota, e Confúcio Confú não nos informa nada sobre isso. De fato, parece que, para os antigos, antigos, o ser humano não tinha condição alguma de saber o que houve antes dele próprio. O mito que surge depois, de Pangu, é nitidamente importado de outras regiões, durante o período Han. Um relato interessante destas propostas sobre a criação do mundo está no livro de Anthon Christie, ‘Mitologia Chinesa’.. Com uma bela iconografia e textos acessíveis, este livro nos apresenta uma introdução bastante agradável dos mitos chineses. Fato é, no entanto, que os chineses no geral não se preocuparam com a criação, mas m sim com o funcionamento do universo. No comentário comentário das Dez asas do Yijing (o Tratado ratado das mutações), Confúcio inicia a história da humanidade quando nos damos conta de que somos seres humanos. Este pragmatismo parece ser único na história das religiões.

Vida após a morte e reencarnação A alternância e o debate entre a certeza (e a incerteza) da vida após a morte foi alimentada pelos budistas, cujas propostas para explicar o mundo e o

111

sobrenatural pareciam bastante atraentes quando chegaram ao país em torno do séc +4. Antes disso, apenas Zhuangzi supunha um ciclo de retorno para a terra. Os daoístas religiosos incorporariam, depois, a idéia popular do julgamento da corte celeste - um tribunal especial era constituído pelo juiz do inferno, e julgava os méritos de de uma alma. Se boa, poderia ir logo para o Céu ou reencarnar - se não, seria torturada algum tempo até poder reencarnar novamente. O céu chinês, como foi dito, é apenas uma reprodução do que vemos na terra. Uma pessoa poderia esperar uma boa colocação do outro outro lado, mas continuaria a trabalhar e viver como se estivesse na terra. Poderia, ainda, interferir como ancestral, antes de voltar. Os Confucionistass da época Song não acreditavam muito nessas coisas, e sua tendência era de crer que a alma simplesmente se dissolvia junto com o corpo. Afinal, que ue evidências de alma possuíam para provar sua existência? Somente entre os budistas firmou-se firmou se o dogma da reencarnação, muito popular em contos chineses fantásticos. Os fantasmas, porém, são um dos temas preferidoss da literatura; o Soushenji (Histórias de fantasmas), da época Tang, é um desses livros dedicados inteiramente a histórias de terror envolvendo guei's.

112

Ainda o Céu Mas que céu chinês é este? É um espaço em aberto, em que convivem todas as forças e personagens gens do mundo mítico-religiosos mítico religiosos chinês. Se para os Confucionistass o Céu é uma razão operante da natureza, para daoístas e budistas este espaço ganha contornos notavelmente autênticos e diferenciados. Para os daoístas, nele residiria a divindade suprema, o Imperador de Jade, o soberano de todo o céu. Junto com ele, estariam seus deuses e auxiliares, vivendo em palácios e propriedades tais como na terra. No entanto, é com extrema flexibilidade que os chineses recebem os budistas no céu. Lá, eles também localizam localizam o espaço de Buda, como aparece na epopéia do Rei macaco (Xiyouji). O pensar chinês, neste ponto, parece tratar-se se de um discurso de crenças; o que uma pessoa acredita, é o que irá vivenciar junto aos seus deuses. Se acreditar em outra coisa, é o que fará fa também.

Os Deuses Se são inumeráveis os deuses chineses, alguns são fundamentais para a existência da sociedade. Os deuses do lar são mais chamados pelo povo do que as divindades maiores. Veja-se Veja se o caso do deus da cozinha, por exemplo; é ele quem leva o relatório anual da casa para o tribunal do inferno, apresentando a conduta dos membros de uma família. Agradá-lo Agradá lo é uma boa

113

forma de conseguir um melhor julgamento após a morte. Os guardiões da porta também afastam os maus espíritos, protegendo a família de energias ruins. Os ancestrais, ainda, dão bons conselhos e aparecem em sonhos quando necessário. Os grandes deuses, pois, são invocados em ocasiões públicas e eventos sociais. Sua cosmogonia é explicada em um texto tardio, mas interessante, chamado "A criação criação dos deuses" (Fengshen yanyi). Mas é a proximidade dos espíritos que garante a maior interferência na realidade. Uma canção popular sobre o deus da cozinha é bem direta sobre isso:

No último dia da duodécima lua o deus do Lar volta para o Céu para contar ontar o que viu cá na Terra. Antes de o queimarem em fumo o tornarem, toda a família lhe dá de comer para que fique com o ventre farto. Leitão bem assado, peixe mui gostoso, bolos aloirados, frutos bem maduros, o vinho, um regalo, não se olha a despesas. O deus do Lar esquece as querelas, as palavras insolentes, as faltas de todos. Sobe ao Céu bêbado e satisfeito.

114

O que é preciso depois é arranjar outro deus!

A longa trajetória desse des e pensar religioso fez a corte celeste se transformar em algo idêntico a corte te imperial da terra (embora os chineses vissem isso i de forma contrária). Eles têm, t m, inclusive, o seu "Olimpo" no monte Taishan (a "montanha suprema"), mas não sabemos dizer quem subiu lá para conferir apesar de que os mundos espirituais e terrestres se interpenetram, interpenetram, não sendo necessário encontrar nada lá para supor que os deuses existam. Os ministros do céu administram o ‘além’ como os daqui o fazem. Ocasionalmente recebem adendos, como Guandi - deus da justiça que teria sido um herói durante a época dos três três reinos. Uma das peças fabulosas desta história é a figura de Guan Yin (ou Kwan yin), um antigo bodisatva budista que transformou-se se numa deusa protetora das mulheres e crianças. Este parece se tratar de um dos poucos casos em que um deus muda de sexo ao a longo de seu culto, e firma-se se numa forma diferente da sua original. Novamente, a ausência de informações sobre o mito pode simplesmente legitimá-lo, legitimá ao invés de exterminá-lo. lo.

O Bestiário Neste mundo fantástico, os chineses também conceberam atributos especiais e aos animais - imaginários ou não. A figura do tigre e do dragão dominam o mundo animal, mas outros animais como a fênix, a tartaruga, o macaco e o

115

unicórnio tem seu destaque garantido. São dois os ciclos explicativos das funções animais: um está ligado ligado a dinâmica dos 5 agentes (no qual cada animal representa um dos agentes) e o ciclo do zodíaco (composto por 12 animais). Cada um deles representa um sentido ordenador do mundo, mas é curioso notar como eles mudam. Por exemplo: os 5 animais que representam entam os agentes na medicina chinesa (galo, carneiro, cavalo, boi e porco) são diferentes daqueles que aparecem no Fengshui (a arte do vento e da água, a técnica de arquitetura e geomancia clássica da China); dragão, fênix, serpente, tartaruga e tigre. O unicórnio, nicórnio, segundo Sima Qian, anuncia a vinda de Confúcio, mas não faz parte do zodíaco. Animais como o elefante e o rinoceronte, existentes no mundo Shang, desapareceram (ou nunca fizeram parte) da mitologia. As raposas, porém, alimentam o imaginário, podendo pode transformar-se se em seres humanos e terem uma longa vida. O dragão tinha sua existência "comprovada" pelos misteriosos ossos achados em escavações ocasionais (com certeza, fósseis), e os chineses podiam, ainda, contar com a presença de novas espécies; na época Ming, por exemplo, um par de girafas presenteadas ao imperador foi considerado um bom presságio, pois estes animais de pescoço longo "viam longe". longe". Mas neste bestiário chinês, chin não se pode esquecer nem mesmo do singelo rouxinol, tema de histórias infantis infa diversas, ou da gralha, animal de estranho papel na conexão entre o mundo dos humanos e dos espíritos.

116

Imortalidade Um dos elementos que toma corpo na religiosidade chinesa é a idéia de imortalidade. Esta proposta já existia na época Qin, já que o primeiro pr imperador foi um dos que morreu atrás de um elixir da longa vida. A lógica era simples: se com remédios podemos estender nossa vida, então não seria possível encontrar um meio de harmonizar o corpo com a natureza indefinidamente? Se esta busca não foi foi sistematizada durante um bom tempo, no final do período Han um daoísta chamado Ge Hong escreveu no seu Baopuzi os fundamentos e disciplinas da alquimia daoísta, servindo de referência posterior para todos os outros que desejavam atingir a imortalidade. Uma apresentação belíssima desta questão está no livro de John Blofeld "Taoísmo, a busca da imortalidade", que mesmo sendo antigo - e não tendo sido feito por um historiador - nos fornece um quadro bastante acessível dos sentidos e significados destas buscas busc para os daoístas. De qualquer modo, os chineses nunca puseram totalmente em dúvida a existência da imortalidade. Os oito imortais daoístas, grupo de figuras fantásticas sticas com poderes especiais, têm t m todos uma história humana que explica sua entrada na imortalidade. imortalidade. Ninguém os viu; mas se ninguém os procura, também, como podem ser vistos? Eis uma lógica irrefutável para a manutenção do mito.

117

A Continuidade E o que há de esperar para o futuro? As tradições religiosas já estão voltando a China, após uma breve diminuição diminuição nos tempos mais duros do comunismo. Os chineses nunca foram ateus convictos, mas sempre foram pragmáticos o suficiente para saber das necessidades do agora. Se hoje um arquiteto usa de Feng Shui para localizar adequadamente uma construção, trata de d colocarlhe também um bom alicerce para garantir sua solidez. Maozedong, que tanto combateu as superstições, hoje se transforma numa espécie de padroeiro e santo da justiça. Os funerais prosseguem da mesma maneira de séculos atrás; queima-se queima dinheiro paraa pagar as despesas no tribunal do inferno. O sentido religioso milenário, construído construído pelo equilíbrio das "três " vias" - Confucionismo, Confucionismo daoísmo e budismo, ou sanjiao -,, volta simplesmente a ocupar o seu lugar no imaginário coletivo. Na antiguidade, quando o budismo dismo começou a entrar na China, os chineses achavam que Buda era Laozi que retornava com sua doutrina completa. Depois, descobriram que Buda era um estrangeiro, e achinesaram o budismo até ele se tornar um orgulho nacional. Esta receptividade e flexibilidade flexibilidade são as condições fundamentais do senso religioso chinês, e com elas os chineses seguirão adiante. Este é o futuro de qualquer religião que queira estar com os chineses; sincretizar--se. se. E, por fim, vale o velho espírito popular chinês, ilustrado por estaa anedota:

118

Os três fundadores das religiões chinesas, encontrando-se encontrando se um dia aborrecidos no Céu, decidiram ir dar uma volta pela Terra. Certo dia, fatigados e cheios de sede, aperceberam, num lugar solitário, uma nascente, perto da qual trabalhava um camponês. campo Buda, acostumado a mendigar, foi encarregado de pedir autorização ao camponês para se saciarem na fonte. Buda apresentou-se, se, e o camponês disse-lhe: disse - Já que aqui estás, autorizo-te autorizo te de bom grado a que bebas da nascente se me responderes a uma pergunta. pergunta. Porque é que afirmas serem os homens livres e iguais, mas consentes que nos teus mosteiros haja um superior que está acima dos outros? Buda não deu resposta. Laozi apresentou-se, apresentou por sua vez. - Vós, os daoístas - disse o camponês -,, pretendeis possuir o segredo do elixir da longa vida. Então porque é que não o destes aos vossos pais, e os deixastes morrer? Vendo os seus dois compadres em maus lençóis, Confúcio ofereceu-se se para responder às perguntas do aldeão. - Bom - prosseguiu este -, tu ensinas que não se deve abandonar os mais velhos, mas passaste a tua longa vida a vagabundear de príncipe para príncipe. Como justificas tal atitude? Confúcio, por sua vez, nem tugiu nem mugiu perante a malícia do pobre camponês.

119

- Bem - disse este -, vão lá matar a sede,, se querem refrescar-se, refrescar mas não se julguem acima do comum, quando a vossa sabedoria é tão depressa desmentida, e as vossas lições tão depressa esquecidas.

120

TUDO ESTÁ PARA SER DESPERTO

A estética chinesa explica-se, explica se, como tudo que vimos até aqui, pelas antigas anti cosmovisões chinesas. Tudo está prestes a ser manifesto - o que devemos é encontrar o meio para realizar esta operação, e o autor da proeza é o cientista, o sábio ou o artista. Um determinado tipo de matéria - madeira, barro, metal ou pedra - tem sua propensão ropensão (shi) e só pode ser trabalhado de um modo específico; podemos entalhar a madeira, mas não podemos derretê-la, la, por exemplo; o barro pode ser moldado, mas não tem a resistência do metal; e assim sucessivamente, demonstrando que cada tipo de obra tem um Li (princípio) subjacente o elemento empregado em sua constituição. O artista, pois, é aquele que descobre como manifestar o Li de uma obra de arte neste mundo, o mundo de Qi (matéria); sua genialidade e técnica na execução lhe dão, por conseguinte, a alcunha de hábil, mestre ou de meramente repetidor. Tudo já está contido no objeto que se irá trabalhar. Uma pedra só pode ser talhada de acordo com seus veios; isso significa que o artista visualiza, antes de trabalhá-la, trabalhá la, o que ela se tornará, e sua perfeição perfe decorre da aproximação entre a imagem física e a imagem mental concebida a priori. A estética chinesa é dominada, portanto, pela idéia de uma subjetividade aparente - ainda que escondido, o belo será revelado, e os sinais do que ele virá a ser já estão estã contidos na matéria bruta.

121

As Técnicas As técnicas artísticas acompanham a tecnologia desde a antiguidade, e o artista chinês se confunde com o pesquisador. O trabalho em bronze, existente desde a época Shang, é um exemplo disso; os experimentos realizados dos levaram os chineses, desde cedo, a terem um domínio excepcional sobre a fundição, as técnicas decorativas e mesmo do trabalho em moldes, que permitiam a produção em massa de um mesmo tipo de objeto. O que se vê, neste caso, é a ação do artesão de metais metais e do artista se complementando, estimulando um ao outro na busca do aprimoramento. Cedo, os chineses aprenderiam a lidar com o ferro, com as camadas inoxidantes e finalmente com o aço, séculos antes da Europa. Estes mesmos processos se aplicaram ao trabalho trabalho de olaria. Veja-se Veja as conquistas chinesas com cerâmica, porcelana, vitrificação e o uso de pigmentos. Desde os guerreiros de terracota de Qin - cujas partes foram, em sua maioria, executadas em moldes - até as peças únicas produzidas pelo artista, o campo mpo dos ceramistas atingiu níveis diversos de realização, sempre acompanhados da descoberta. Os europeus ficaram fascinados pela capacidade chinesa em montar jogos de porcelanas com o mesmo desenho estampado; quanto aos chineses, a realização da subjetividade subjetividade aparente se dava no singular, e sua admiração se voltava, sempre, para as peças únicas. Por outro lado, a escrita chinesa, ideográfica, transformou o pincel em seu principal instrumento de execução. O bi (pincel de pêlo) ganha importância tremenda nas formas expressivas chinesas, sendo empregado desde o

122

cotidiano, no ato de escrever, à pintura de grandes dimensões, e se constitui numa técnica a parte dentro desta civilização.

Arte, tempo e dinastia As dinastias chinesas compreenderam o papel expressivo da arte, e buscaram se representar por meio de símbolos ou tendências estilísticas que marcassem o seu período. Os Shang criaram os vasos trípodas de bronze, que repetiam incessantemente o motivo do Taotie, um monstro mitológico cuja aparição nos bronzes os distinguia como uma marca cultural; os Zhou diversificaram o uso do mesmo bronze, mas suas orquestras de sinos musicais (de metal ou pedra) são um distintivo do período; Qin fez seus trabalhos em barro; Han divulgou a seda, a laca e a pedraria... E poderíamos poder continuar a lista por todas os períodos dinásticos. Isso fica ainda mais evidente quando vemos, por exemplo, o contraste entre a cerâmica tricolor da época Tang, que desaparece para dar lugar a porcelana monocromática, simples e craquelada do período Song. Todas estas passagens artísticas são, também, passagens de tempo e de ideologias. Mesmo na época de Maozedong, momento recente da história, o governo comunista também criou sua marca estética, a pintura realista. Abominando as "invencionices" do que eles consideravam "surrealismo burguês", o período da revolução foi governado pela busca em expressar a realidade de forma "autentica e temática". Até mesmo um projeto de arte proletária foi criado, estimulando camponeses e operários a pintarem, esculpirem esculpire ou

123

fazerem teatro popular. Somente agora, no momento das reformas chinesas, a arte está seguindo outros caminhos - o que significa a mudança do olhar sobre o mesmo real.

Mas o que se manifesta? Mas, se há um Li (princípio) presente na matéria bruta que virá virá a ser a obra de arte, então porque ele não surge tal como deveria ser? Em função deste ser o mundo da mutação, em que ela se manifesta. O artista é quem faz o "parto" da obra de arte, mas segundo uma concepção que lhe é própria. Certos expedientes têm que ser seguidos; como vimos, a matéria tem propensões que dirigem a sua forma de manifestar-se, manifestar se, mas cabe ao mestre interpretar esta subjetividade aparente e dar-lhe dar lhe um sentido. se Logo, quando a obra vem à tona, ela pode ser original, inventiva, quanto pode ser malfeita ou mal acabada. Podemos "prender" o Li dentro de um estilo de época, e a beleza de uma pintura ou vaso será tão mais duradoura quanto, teoricamente, aproximar-se aproximar se do que ela realmente "é" (ou, deveria ser...). Disso resulta a inevitável contradição; contradição; então, como saber o que é a perfeição se não podemos atingi-la? atingi la? Se toda manifestação de uma obra de arte é incompleta e imperfeita, como podemos saber então que há algo "perfeito"? Nesta hora, a resposta chinesa circula dentro de sua própria lógica.

124

Admitindo que há o princípio (Li), o máximo que podemos fazer aqui, no mundo material, é uma leitura dele - mas não sua compreensão absoluta. Afinal, o pensamento categórico chinês é uma lista de analogias; o que define um vaso, por exemplo, é sua função, forma, material, etc...isso gera uma diversidade tão grande que o conjunto de coisas que vem a definir o que é um "vaso" torna-se torna se mais um guia estético ou funcional do que, propriamente, a existência da idéia de um "vaso absoluto ou perfeito". Melhor seria dizer, portanto, que as essências da matéria bruta definem uma gama de possibilidades que uma coisa pode vir-à-ser, vir ser, e no mundo da matéria, ela "estará" de um tal modo adequado ao seu princípio. Isso é um aspecto da perfeição, que garante a continuidade da obra.

As regras estéticas Foi Xiehe (+479+502) 502) quem lançou, no Guhua Pinlu (Biografias de pintores antigos), as regras fundamentais para alcançar um nível da habilidade e execução satisfatório para a obra de arte. Embora seus comentários se destinassem m a pintura, o modelo estético por ele criado encontrou ressonância em todos os outros campos artísticos. As regras de Xiehe são:

- Ritmo e vitalidade: assim como o universo, que tem suas leis imutáveis, a obra de arte tem um ritmo de criação próprio. Ela tem tempo certo para se

125

realizar, não pode ser atrasada ou adiantada. A pincelada, o torno do oleiro, a fundição do bronze, todos exigem uma quantidade específica de energia para manifestarem uma peça, um modo pelo qual se molda a matéria. Não seguir o ritmo tmo significa perder matérias-primas matérias primas e idéias, manifestando apenas aspectos do Li de forma feia e distante. Sobre isso, disse Hanzhuo (sécs. +11 +12); “numa pintura, preste atenção primeiro ao ritmo, depois preocupe-se se com a realidade das formas. Pare, então, então, e reflita; se você não tiver idéia de como a obra irá se desenvolver, ou se sua preocupação for com detalhes trabalhosos, você já terá perdido o ritmo”.

- Padrão de execução: para se pintar, é preciso conhecer o pincel, as tintas e o verniz; para fundir ir o bronze, é preciso conhecer os metais, o forno e as ligas. A construção de uma obra de arte exige o domínio da técnica e sua aplicação constante. Dois métodos diferentes não podem ser utilizados para fazer um mesmo vaso ou quadro, pois a técnica se ajusta ajusta a propensão do Li presente na matéria-prima prima que se trabalha.

- Semelhança: retratar uma paisagem exige saber como é essa paisagem. No entanto, a reprodução nunca será idêntica ao original. É o artista que precisa dominar, portanto, a capacidade de aproximar-se apr ou afastar-se se da realidade, utilizando este recurso para imprimir mais energia na realização de uma idéia.

Su

Dongpo

(1036 1101) (1036-1101)

comentou

126

o

assunto,

afirmando

categoricamente: “quem julga uma pintura apenas pela fidelidade aos objetos fala como um m ignorante imaturo”.

- Cor e Detalhamento: “observe um lado da montanha e você a compreenderá”, dizia uma antiga frase chinesa. Compreendendo os detalhes, aprendendo a dominar as cores, o artista percebe que uma montanha é, na verdade, um conjunto de ângulos, ângulos, cores, tons, brilhos, reflexos e sombras que estão muito além do que as primeiras impressões mentais registram. Cores e detalhes representam as manifestações específicas da energia Qi, e seu uso aproxima (ou distancia) o artista do Li que ele deseja manifestar.

- Composição: compor é criar o ambiente propício à imagem, à transformação da matéria. Uma pintura deve ser harmônica: como transmitir, por exemplo, uma idéia de calma e paz retratando uma batalha? Como fundir e montar um vaso de bronze se os moldes moldes não encaixarem, ou se a liga estiver errada? Compor é, antes de tudo, harmonizar todos os elementos – ritmo, padrão, semelhança, detalhes e cores - para se obter o máximo efeito possível, atingindo o Li da obra de arte. Se bem sucedido, o artista conseguirá seguirá extrair da peça a beleza imortal, o Li verdadeiro, fazendo-a fazendo ser admirada por qualquer ser humano que possa vislumbrá-la. vislumbrá

127

- Modelos e variações: esta última regra refere-se refere se ao trabalho de aprimoramento do artista. Um discípulo deve adquirir experiência experiência com os mestres, imitar suas obras, aprender tentando realizar cópias e dominando suas técnicas. Os Mestres já trilharam o caminho que o aprendiz está iniciando. São um manancial de experiência na transformação do vazio em beleza, verdadeiros modelos do que é ser artista – alguém que aprendeu a dominar a natureza, a captar e desvendar o que está escondido, ou como disse o mestre Confúcio “um sábio que, sacudindo a poeira do antigo, revelou o novo”.

Seja uma interpretação do passado, ou a transposição de de um modo pedagógico antigo de estudar para o campo da arte, o fato é que o pensamento deste artista consolidou os fundamentos estéticos da arte chinesa, e doravante a explicação dos sentidos, motivos ou técnicas teriam sempre como alicerce a sua metodologia metodolog de análise e trabalho.

Pintura e Caligrafia A Pintura tornou-se se a área consagrada da arte chinesa. Os pintores, igualmente estudiosos, analisaram e desdobraram os conceitos da estética para os campos da caligrafia, poesia e música. Não raro vemos uma pintura p dedicada a uma poesia ou vice-versa. vice versa. Provavelmente esta condição específica da pintura se deu em função do exercício que lhe era própria, a

128

inventividade. As pinturas, sendo basicamente únicas, constituem o espaço privilegiado para manifestar o Li no no vazio da tela. Mesmo as cópias de pinturas exigem uma habilidade muito grande (em função disso, os melhores copistas eram bastante admirados na China, e se entendia que eles estavam a um passo de tornarem-se tornarem se grandes artistas). Uma pequena história ilustraa a adoração que os chineses tinham na beleza da pintura, e no seu potencial de manifestação:

Um artista de grande renome pintara quatro dragões numa parede. Nada faltava aos dragões: possuíam oitenta e uma vértebras, divididas em nove séries de nove, número número este altamente benéfico. Ostentavam também em longos bigodes de fogo de cada lado das faces e, no cimo da cabeça, o poh shan, sem o qual não poderiam voar pelos céus. Mas o pintor não lhes pusera os olhos. Perguntaram-lhe Perguntaram o motivo de tal omissão. Disse ele, suspirando: - Já que o desejais... Tomando um pincel, traçou os olhos dos monstros, que logo eriçaram o seu poh shan, saltaram da parede, franquearam a janela e desapareceram no céu. (Wenchilu, Coleção de narrativas n fantásticas, de Yudi)

129

A Caligrafia desfruta, neste ínterim, de um prestígio desconhecido no Ocidente. O ato de escrever um ideograma deixa de ser a mera representação de uma palavra (dentro da escrita regular) para tornar-se tornar o modo de expressão da idéia contida no mesmo símbolo da palavra. Disso decorre que alguns exemplares caligráficos supostamente contém os sentimentos do autor, da expressão única de um momento; outros alcançam um nível de distorção que só podem ser lidos por um especialista, ou pelo próprio artista que os escreveu. Alguns Alguns calígrafos, usualmente pintores (e o mesmo, ao contrário), encontraram a redenção ao criar um estilo, posteriormente copiado por discípulos ou praticantes da arte. A caligrafia tornou-se se um campo particular da arte chinesa, consagrado à manifestação mais pura e simples da simbologia escrita. Talvez por estes motivos, pintura e caligrafia firmaram-se firmaram se também como setores de elite na estética chinesa. Seu contraponto é representado pela cerâmica e pelo artesanato, igualmente ricos, mas que não foram capazes de produzirem suas próprias teorias interpretativas. Além disso, o aspecto prático e necessário da olaria, marcenaria e fundição no cotidiano diminuíam, por vezes, a sua apreciação estética por parte dos críticos.

Cerâmica e porcelana Mesmo sendo um domínio domínio de objetos simples, a cerâmica chinesa construiu, para si, uma tradição de beleza, requinte e preciosidade. O oleiro transforma-se se também num artista; mesmo que preso a sua oficina, ele não

130

capta as paisagens externas como o pintor, nem teoriza sobre elas, el mas se sintoniza com o gosto dos experts e realiza obras únicas. A par da produção em escala, desde a antiguidade, os chineses gostam das cerâmicas únicas, e das esculturas impossíveis de serem reproduzidas. O vaso, em si, se transforma numa peça decorativa decorativa cujo poder reside, muitas vezes, em simplicidade e técnica esmerada. Quem conhece um arranjo de Feng Shui ou mesmo do Zen irá perceber que, muitas vezes, uma parede inteira do cômodo é dedicada a um prato, vaso ou escultura - neste momento, ele serve também de foco para a meditação, de justaposição entre o vazio (parede) e matéria sólida (objeto). Além disso, cabe aqui a experimentação que estes artistas realizaram com seus materiais, criando a expressão máxima e acabada da olaria que é a porcelana. Mistura istura do barro com o gaolin (pasta de sílica), e aquecida em temperaturas longamente testadas e conhecidas por eles (e pelos metalúrgicos), a porcelana consegue efeitos indecifráveis, somente conhecidas na Europa em torno do século +18 - ao menos on nze séculos depois de ser produzida na China. A verdade porcelana chinesa conquistou este espaço de nobreza na apreciação estética, ainda que seus artistas sejam desconhecidos. Com a pintura, ela é o outro grande sustentáculo da arte chinesa, tornando periféricos os outros segmentos, e alcançando grandes valores de mercado até os dias de hoje.

131

Música Quanto à música, esta possui sua própria dimensão no imaginário chinês, sendo objeto de estudo das filosofias e ciências chinesas. Desde Confúcio, a música não é somente te a sonoridade, ou expressividade melódica; ela alcança o íntimo do ser de tal maneira que altera seus sentimentos e revela suas intenções, sendo um instrumento fundamental de reflexão. Várias teorias foram escritas sobre isso, e a capacidade da música música atravessar o consciente e o inconsciente intrigava os pensadores. O próprio Confúcio dedicou-lha lha todo um ensaio, que se perdeu; dele sobram fragmentos, presentes no Liji (Manual dos Rituais), que mostram a amplitude de seu poder:

Música é a forma segundo segundo a qual se produzem os sons, que brotam do coração humano quando tocado pelo mundo exterior. Assim, quando nele é tocada a fibra da tristeza, são amargos e tristes os sons produzidos; quando é tocada a fibra da satisfação, são langorosos e lentos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da alegria, são brilhantes e expansivos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da ira, são ásperos e duros os sons produzidos; quando é tocada a fibra da piedade, são simples e claros os sons produzidos; quando é tocada tocada a fibra do amor, são gentis e doces os sons produzidos. Estas seis espécies de emoção não são normais: são estados produzidos pelo toque

132

do mundo exterior. Por isso os reis da Antigüidade preocupavam-se se com as coisas capazes de afetar o coração humano:: assim buscavam eles orientar os ideais e as aspirações do povo por meio da li, estabelecer a harmonia dos sons por meio da música, regular a conduta social por meio do bom governo, e evitar a imoralidade por meio do castigo. Li, música, e castigo, bem como como o governo, têm um objetivo comum promover o equilíbrio nos corações humanos e realizar os princípios da ordem política. A música brota do coração humano. Quando suscitadas, as emoções exprimem-se exprimem se por sons, os quais, ao assumirem forma definida, constituem constituem a música. Por isso a música de uma nação próspera e feliz é tranqüila e alegre, e o governo é ordeiro; a música de uma nação atrapalhada manifesta insatisfação e raiva, e o governo é caótico; e a música de uma nação destruída mostra apenas tristeza e saudade do passado, e o povo é infeliz. Eis como sempre encontramos governo e música em estreita relação. A clave de C (Dó) simboliza o rei; a clave de D (Ré) simboliza o ministro; a clave de E (Mi) simboliza o povo; a clave de G (Sol) simboliza os negócios os do país; a clave de A (Lá) simboliza a natureza. Quando se harmonizam as cinco claves, não há sons discrepantes. Quando desafina a clave de C. a música perde o seu fundamento e o rei descura os próprios afazeres; quando desafina a clave de D, a música perde erde a sua gradação e os ministros prevaricam;

133

quando desafina a clave de E, a música é triste e o povo sente-se sente desgraçado; quando desafina a clave de G, a música é fúnebre e os negócios do país complicam-se; complicam se; quando desafina a clave de A, a música sugere perigo e o povo passa miséria. Quando todas as claves desafinam e se confundem, generaliza-se generaliza se a discórdia e pouco mais viverá a nação.

Acreditava-se se não só no poder da música em avaliar a cultura de Estados inteiros e de pessoas, mas também de alterar a consciência consciência do indivíduo. A música era compreendida como um atributo cósmico, e na natureza ela se encontrava presente e manifesta nas coisas mínimas. Dong Zhongshu defendia, por exemplo, que a afinidade entre objetos e estados se dava como na ressonância musical: sical:

Quando se verte água no solo, esta evita partes secas e procura as úmidas. Quando se põe fogo em um tronco, esse evita o molhado e queima as partes secas. Todas as coisas rechaçam o que é distinto e seguem o que é igual; por isso, quando dois qi são o semelhantes, completam-se; completam se; quando são diferentes, repelemrepelem se. A prova disto é muito clara: afinar instrumentos musicais. A nota Kung ou a Shang tocadas no alaúde serão respondidas por notas Kung ou Shang de outros instrumentos de corda. Soam por si mesmas. s. Do mesmo modo, as coisas bonitas chamam

134

outras coisas da classe das bonitas, as repulsivas chamam chamam as repulsivas. Isto provém do modo complementar pelo qual respondem as coisas da mesma classe. As coisas chamam umas as outras, igual com igual, como um dragão dragão que traz a chuva, um leque abana o calor, ou um lugar onde haja passado um exército estará cheio de fogueiras. As coisas, bonitas ou feias, têm todas a sua origem. Se crermos que constroem o destino, é porque nada conhecemos de sua origem. Não há nenhum nenhum sucesso que não dependa, em seu início, de algo anterior, a que responde por que pertence a sua mesma categoria, e por isso se move. Como se disse, quando se toca a nota Kung, outras cordas reverberam por si mesmas em ressonância complementar; se tratam de coisas comparáveis, afetadas de acordo com a classe a que pertencem. São movidas por um som que não tem forma visível, e quando os homens não vêem a forma acompanhando o movimento e a ação, descrevem o fenômeno como um "soar espontâneo". E onde quer que haja uma reação mútua sem nada visível para explicá-lo, lo, descrevem o fenômeno como "espontâneo". Cada coisa está ligada mutuamente a outras, e muda quando as outras mudam.

Curiosamente, as teorias musicais chinesas estavam atreladas ao sistema yinyin yang e do o wuxing. Os antigos acreditavam numa escala pentatonal (as outras

135

duas notas eram tidas como variações de tom), e seus grupos instrumentais também eram outros. Cada nota estava ligada a um estado da matéria; os instrumentos, igualmente, classificavam-se classificavam por or atributos, tais como a sua constituição. Para termos uma idéia, um sistema chinês antigo defendia que os instrumentos podiam ser divididos por "bambu, madeira, pedra,...", categorizando-o o por material. Mas este não era o único. Na China, a música nos oferece oferece a possibilidade de testemunhar instrumentos e melodias milenares, que sobreviveram ao longo dos séculos graças às longas tradições e a sua beleza. Se as notas existem, falta então despertar a melodia e a composição. Tudo está para ser desperto, como em toda arte. Ainda hoje, podemos ver baladas ancestrais executadas por orquestras seculares, cujos instrumentos aparecem nas antigas pinturas, nos bonecos de barro das tumbas ou em livros. Uma ausência intrigante, porém, é a da pauta. Os chineses não criaram criaram um sistema para superar esta questão, e as musicas eram ensinadas por um mestre, grande depositário das mesmas. ‘A A música completa o ser humano’, humano diziam os Confucionistas. s. Quando da junção da idéia, palavra e melodia, a música supera a prosa e a poesia, e pode expressar-se se mesmo sem uma letra cantada. Nas pantomimas, nas canções populares ou eruditas, na ópera, a música manifesta um domínio único. No Shijing (Tratado das Poesias), um dos mais antigos clássicos chineses, algumas letras são de canções, feitas feitas para serem musicadas ou para serem cantadas durante a labuta. De alto a baixo, ela está presente na sociedade.

136

Neste campo, pois, nada deve a China para a compreensão da beleza tão singular que caracteriza a musicalidade.

137

O IMPÉRIO DO MEIO

Aquilo que chamamos amamos "China" é, em seu idioma original, Zhong Guo - País (Guo) ou Reino do Centro (Zhong). Pretendeu-se Pretendeu se denominar este mundo de várias formas, e entre as antigas encontram até algumas belas (como "Catai", importada de um idioma mongólico). Mas a China, mais mais que um país ou reino é, em si, uma civilização. Isso significa que a construção de um sistema de governo dentro e para esta cultura envolve especificidades - algumas delas que fazem passar longe, inclusive, o que entendemos como "política". A noção de ser o centro do universo - o mundo do meio - apenas reforçou a peculiaridade dos regimes e das formas chinesas de governar-se, governar se, bem como o entendimento do assunto. O mundo imperial é a sua construção mais duradoura, mas nem sempre única e imóvel, como propuseram propuseram os historiadores da longa duração. O fenômeno do império chinês é digno de nota, afinal; como algo fundado a pelo menos 4 mil anos atrás veio a se desfazer, somente, em 1912? Por analogia, é como se o último faraó do Egito abdicasse na mesma época! O tempo é marcante nesta análise - quando Qin empreendeu a unificação imperial no século - 3, os chineses já se acreditavam descendentes de uma civilização com, ao menos, dois milênios de cultura. O que estudaremos neste capítulo é como os chineses desenvolveram desenvolver métodos para gerir seu próprio universo, em consonância com suas teorias

138

filosóficas e administrativas. Um descompasso sério estabelece-se, estabelece se, por vezes, entre as teorias e as práticas, mas algumas características substâncias se mantém. Um estudo deste, portanto, portanto, é também uma constatação de um ideal de ordem que esta civilização construiu para si.

As concepções antigas Embora creiam ser descendentes de uma cultura antiqüíssima, os chineses demoraram um bom tempo para redigir os meios pelos quais possamos compreender mpreender sua estrutura governamental antes do século - 6. Se nada sabemos sobre a Dinastia Xia nestes termos, sobre os Shang as pesquisas apontam para a existência de uma realeza palaciana, pautada em um poder organizado por reis e cuja sucessão era garantida garantida dentro do clã, em caráter hereditário. As dimensões do espaço chinês fomentaram uma transformação deste sistema, incapaz de administrar vastas extensões de terra. Com a vinda dos Zhou, no séc. -12, 12, o poder se reestrutura no sistema Fengjian - que anacronicamente ronicamente classificamos como "feudalismo", embora possua muitas de suas características - estabelecendo uma monarquia central cujo poder encontrava-se, se, porém, fracionado em diversos reinos. A autonomia destes reis e seus palácios era suficiente para que os chineses não construíssem, ainda, a noção de um país. Acreditando fazer parte de uma mesma cultura, as variações regionais sobre costume, escrita, leis eram suficientes, no

139

entanto, para que os chineses não desenvolvessem uma cosmovisão cosmovis administrativa dee sua própria civilização. Como o mesmo poder encontrava-se encontrava se nas mãos dos clãs dominantes, não havia espaço para o que entendemos, aqui, como uma ação política por parte da população. As revoltas camponesas eram geradas pela falência da produção, fome ou pobreza po - dificilmente contestava-se se o regime, apenas sua eficiência. Tal mentalidade nos faz inferir, portanto, que a idéia central deste sistema, desde antiguidade, constitui-se constitui se numa relação contratual e moral, longe de perfazer uma teoria devidamente organizada. orga

O Mandato Celeste Foi no século -6, 6, pois, que o onipresente Confúcio dedicou-se dedicou se a investigar, interpretar e propor o cerne de uma teoria "política" para a civilização chinesa. Indo além, o mestre propunha que suas observações não se aplicavam somente nte ao presente, mas provinham justamente de uma longa tradição estabelecida, a qual sua proposta de conservação e revigoramento se aplicava. O que Confúcio afirmava é que o império existia desde a época Xia, e possuía algo em torno de 2000 a 3000 anos de existência; suas formas administrativas modificaram-se modificaram se conforme a necessidade, pois imperadores como Yu, por exemplo, moravam em cabanas (!) e tinham uma vida extremamente simples; que o poder de administrar a terra provinha do Céu,

140

e daí ser chamado Mandato Mandato Celeste (Tian Ming); e que esta razão cosmológica defendia uma articulação (nos moldes da oposição complementar) de vários binômios, tais como "homem e natureza", "indivíduo e família", "família e Estado", etc. na formação de uma escala hierárquica e funcional ncional da sociedade. Novamente, a interpretação do sistema administrativo não pressupunha uma "ação política" por parte do povo; cabia ao governo organizar, ordenar e atender reclamações pelos canais corretos, fazendo a sociedade funcionar por meio dos compromissos compromissos pessoais, sociais e econômicos. Em primeiro lugar, porém, devemos compreender o que Confúcio queria dizer com este Mandato do Céu; o Céu, aqui, não é entendido como uma entidade pessoal ou um deus em particular, mas como uma razão ecológica de existência. xistência. Estamos inseridos na natureza, e fazemos parte de seu funcionamento. Para mantermos a ordem e harmonia (He), é necessário que os seres humanos encontrem seus papéis na vida cotidiana e na existência. Administrar este complexo sistema impedido seus seus excessos, executando a lei e interferindo nas calamidades é atributo de um ser, portanto, que é escolhido pela natureza para estar no poder - o filho do céu, ou imperador (Di). Ele deve definir e aplicar os atributos governamentais, morais e virtuosos que ue mantém a conexão equilibrada com a natureza. A perda desta conexão implica nos excessos ou ausências, que fomentam as catástrofes naturais, e por conseqüência, a perda do Mandato. Um governante não se encontra preparado para realizar seu papel apenas por por ter nascido no

141

momento certo; mediante um grande esforço intelectual e ético ele alcança esta capacidade, e recebe em troca a ordem e a grande paz (Taiping). As implicações da proposta Confucionista foram recebidas de forma diferenciada pelos governantes da época; todos concordaram com a ancestralidade de seus direitos, poderes e atribuições. No entanto, a grande maioria detestou as obrigações, os discursos moralistas e a necessidade de retificar-se se para manter o equilíbrio. Por causa disso, Confúcio foi perseguido; séculos depois, a sucessão de crises mostrou que a harmonia havia se tornado impossível, e o mestre foi tido como vidente.

A Teoria do Poder Imperial No caos dos Estados Combatentes, as teorias de governo desdobraram-se, desdobraram existindo propostas daoístas, daoístas, moístas e legistas. Esta última tornou-se tornou extremamente atraente para o Estado de Qin, em função de seu discurso centralizador e unificador. Os legistas entendiam a razão de governo como forma de por uma ordem marcial no mundo; para isso, o recurso simples das leis, e o monopólio econômico e da violência bastavam para estimular as relações produtivas e inibir o crime e a desarmonia. Por outro lado, esta proposta entendia que era necessário um rompimento com passado para a instauração desta nova forma administrativa, sem o que o vício dos antigos regimes - para eles representados em grande parte por Confúcio - repetir-seia indefinidamente.

142

O Legismo compreendia o próprio ser humano como ator das questões ditas políticas, excluindo a idéia de que o Céu determinava a existência das casas dinásticas. Para a manutenção do poder bastava uma força militar poderosa, comandada diretamente pelo príncipe. Com estas diretrizes Qin conseguiu, paulatinamente, sair de uma posição inferior diante dos outros reinos e tornar-se se a nova casa imperial do país. As conquistas administrativas de Qin fizeram o seu primeiro imperador acreditar que estava reinventando a sua civilização - motivo pelo qual ele se auto-denominou denominou o "Primeiro imperador de Qin", ou Qinshi Huangdi, como com se nunca houvera antes nenhum outro soberano na China como ele. Se a estrutura administrativa mostrou-se mostrou se relativamente eficaz, ela foi incapaz de inibir as revoltas que se sucederam após a morte de Qinshi. Tais movimentos foram causados por uma profunda insatisfação com a repressão social e a espoliação econômica, que havia afastado os bandidos das estradas, mas também, matou e prendeu milhares de camponeses em corvéias infindáveis veis promovidas pelo governo. Mêncio, M ncio, um dos discípulos posteriores de Confúcio, afirmou - desenvolvendo um dos aspectos já propostos pelo antigo mestre - que a função de um governo é o bem estar do povo; e se ele não for capaz de cumpri-la, cumpri la, perde inevitavelmente o mandato celeste

pelas

mãos

do

mesmo

povo.

Esta

profundamente fundamente na continuidade do império chinês.

143

concepção

ressoaria

O Império Han Ao assumirem o poder, os Han decidiram que seria melhor manter parte da estrutura administrativa desenvolvida pelos Qin, posto sua eficácia comprovada. No entanto, medidas atenuantes como a diminuição dimin dos impostos, redução de punições, abolição de crimes e estímulo ao livre pensamento fizeram desta época um momento próspero da história chinesa. Os Han perceberam que poderiam aprimorar ainda mais esta nova estrutura, resgatando conceitos das doutrinas doutri Confucionista e daoísta. Tal proposta aparece num pouco conhecido texto, o Xinyu, de Lujia (séc -3), que define um novo papel para a arte de governar. Lujia estava presente na ascensão do primeiro imperador Han, Liu Bang, e tornou-se tornou se seu principal conselheiro. elheiro. Seu entendimento sobre o império consistia em renovar a idéia do Mandato Celeste (já que as conclusões de Confúcio e Mêncio se mostraram acertadas), reformando o sistema administrativo dentro de novos critérios. Um deles, que viria a ser a mola mestra mestra da sociedade chinesa no futuro, baseava--se na antiga idéia Confucionista de escolher os funcionários públicos mediante exames seletivos, colocando nos cargos os mais capazes e competentes. Com isso, a China desenvolvia o primeiro sistema de concurso em e todo mundo, e tal proposta tornar-se--ia o meio principal de ascensão dentro do governo. Se a questão administrativa ficava resolvida por esse expediente, restava ao governo, no entanto, organizar o sistema dentro de critérios éticos que mantivessem o seu poder e, ao mesmo tempo, não se mostrassem

144

repressivos como foram àqueles queles empregados por Qin. O Mandato Celeste reforçava a centralização do poder, mas esse deveria ser diluído pelas administrações locais. Cabia ao Estado o papel de intervir quando necessário, ário, e promover em larga escala a educação e os bons costumes; por outro, o imperador deveria interferir o mínimo possível no cotidiano e nas atividades econômicas, deixando o povo livre de obrigações desnecessárias aqui, Lujia utiliza inclusive o conceito conceito de "wuwei" (Não ação) empregado pelos daoístas. Tais fusões fizeram do Estado chinês uma máquina funcional equilibrada, razoavelmente eficiente e com funcionários, em geral, capacitados. Os meios de ação política do povo em geral continuavam baseados na na petição, no campo jurídico e na mobilização ocasional; no entanto, a abertura dos concursos públicos promoveu um aumento substancial na mobilidade social, distribuindo a participação das classes sociais no poder, e a ação direta dos funcionários nas províncias províncias e localidades melhorou a qualidade da administração pública.

A estrutura de sucessão Confúcio entendia que a melhor forma de sucessão era a meritória, e não hereditária. Durante toda a história imperial da China discutiu-se discutiu se sobre as vantagens dos dois ois sistemas, embora moralmente o sistema meritório parecesse o mais correto. No entanto, a grande ênfase dada à família criava

145

uma contradição - afinal, quem seria mais confiável do que os próprios filhos, netos ou sobrinhos? Não houve uma solução final para para isso, embora a tendência fosse dos imperadores nomearem um de seus filhos como sucessores - isso era necessário, já que o filho mais velho não herdava automaticamente o cargo. A fórmula usual encontrada foi a de um soberano ter vários filhos, e entre eles les "designar o mais sábio". Cumpriam-se Cumpriam se assim os dois requisitos, não desautorizando o sistema de seleção meritória.

Eunucos Um grupo que se associou intimamente ao poder foi o dos eunucos, homens que se castravam para obter cargos de confiança no governo, governo, fossem fosse como conselheiros, assistentes, auxiliares, etc. A lógica por trás desta prática era de que os eunucos, incapazes de gerar descendentes, não poderiam então fazer uso de suas riquezas e bens, senão em vida, e teriam pouco interesse no luxo. Além disso, sso, a privação do desejo sexual diminuiria ainda mais suas intenções de poder dominador, colocando-os colocando os como servis e em posição de inferioridade. Os letrados odiavam profundamente os eunucos, pois pois os tinham como fofoqueiros, intrigueiiros e ignorantes. De fato, ato, alguém que se privava de sua masculinidade e esperava obter poder pelo meio mais fácil era visto como um ser repugnante e desprezível, aproveitador e incompetente. No entanto,

146

os eunucos bailavam em torno dos haréns imperiais, das concubinas, das famílias lias reais, e serviam numa ampla gama de serviços domésticos e administrativos que os tornavam grandes intercessores junto aos poderosos. "Escreva uma petição ou pague um eunuco", dizia um adágio antigo. Desde a época Han, os eunucos se transformaram, num órgão parasitário do poder. Mesmo assim, os governos não abriram mão deles. Sendo difícil o uso de um homem ou mulher em tarefas de confiança íntima, os eunucos conquistaram um espaço no poder que se manteve até o fim do império. Ser eunuco se constituía no o meio mais rápido de ascensão dentro do governo e na sociedade, e a habilidade da intriga e da espionagem eram consideradas um complemento ideal. Por outro lado, a servidão era o seu destino, e sem um patrão, um eunuco dificilmente encontrava uma posição social.

Organização administrativa Nas "Histórias modelo", iniciadas por Sima Qian e que contam a cronologia das dinastias, encontram-se encontram se tratados sobre a estrutura de governo das dinastias, fornecendo-nos fornecendo nos um quadro amplo destas instituições, bem como as mudanças nelas efetuadas. Sabemos, por estas fontes, que na época Han, por exemplo, o imperador era e auxiliado, diretamente, por três conselheiros principais e nove ministros. Os três conselheiros eram o chanceler (Zheng Xiang), o secretário imperial (Yushi Dafu) e o grande general (Tai Wei), e cabia-lhes, cabia lhes, respectivamente,

147

coordenar os assuntos de Estados externos, internos e militares. Já os ministros possuíam atribuições que incluíam desde a tesouraria e a guarda palaciana até mesmo o cuidado com as estrebarias imperiais. imperiais. Por meio destes ministros, se faziam fa executar as ordens junto às administrações locais - governadores, prefeitos e postos militares, recebendo deles relatórios periódicos. No período Tang, com a evolução dos sistemas de concurso público, um conselho o especial foi criado para cuidar deste assunto, bem como distribuir os funcionários em suas funções e cargos. O sistema aumentou o número de cargos, mas manteve, em essência, o mesmo funcionamento. No período Song, porém, as dimensões do governo forçaram a formação de um conselho dee Estado no lugar dos três conselheiros imperiais. s. Este conselho, composto por cinco o a nove pessoas, era definido diretamente pelo imperador, mas provinha, em geral, de ministros experimentados. As máquinas comandadas pelos ministérios foi aperfeiçoada, mas também ficou mais pesada, sendo necessário a formação de um conselho fiscal interno. Note-se se que, até a chegada dos europeus, durante o período Ming, os chineses não contavam com um sistema diplomático claramente definido, sendo recebidoss pela chancelaria imperial sob a designação de visitantes ou tributários. O sistema chinês entendia - com certa razão - ser único no mundo, mas a miopia das ultimas dinastias solapou o funcionamento desta estrutura.

148

O Concurso Público O fenômeno dos concursos concursos públicos foi tão intenso que os chineses chegaram mesmo a criar um deus que auxiliava os estudantes. A oportunidade de um cargo seguro, bem provido e de renome acalentava o sonho de muitas famílias, e um estudante aprovado tornava-se tornava se respeitado pelos seus familiares e mesmo na cidade de origem, quando estas eram pequenas. Os conhecimentos exigidos baseavam-se baseavam se numa análise das obras Confucionistas, s,

e

se

pretendia

que

um

bom

intelectual

era,

consequentemente, um bom administrador. Os exames eram feitos por especialidades: Livro da História (Shujing), Poesia (Shijing), Mutações (Yijing), etc, e pedia-se pedia se ao candidato que fizesse um ensaio sobre determinado tema escolhido pela comissão julgadora. Tais comissões, organizadas entre os letrados imperiais, eram absolutas e incontestáveis. Após o concurso, os funcionários eram designados, de acordo com sua colocação, para um determinado posto e função onde eram necessários. necess Como eram realizados de três em três anos, havia uma renovação de quadros, contando as substituições substituições por aposentadoria ou abandono. Os melhores colocados podiam ser chamados para funções especiais ou escolherem os lugares em que desejavam servir. Não raro, a satisfação de alguns jovens era retornar a Terra natal com uma boa colocação. Modificações de colocação regional podiam ser feitas mediante acordos entre os aprovados, mediante permissão dos superiores.

149

Este sistema funcionou com bastante eficiência até a época Ming, quando começou a degenerar num meio político de fortalecimento de poder e repressão. ão. Na época Qing, a manutenção do poder nas mãos dos Manchus praticamente destruiu a capacidade operativa dos funcionários, ainda que os concursos ocorressem. Diante das ameaças externas que viriam, estes servidores mostrar-se se-iam incapazes de manter o poder er e o governo funcionando.

Mandarins A famosa figura do Mandarim é uma criação recente na história da China, e pode-se se dizer que ela toma corpo, principalmente, durante o período Qing. O termo "mandarim" não existe em chinês, sendo uma evolução de "mandar", r", palavra cunhada pelos portugueses. Assim, mandarim equivale a "mandatário", alguém com poderes especiais. Esta denominação equivale a um grupo especial de funcionários que detinham uma vasta extensão de poderes (jurídico, militar, executivo, econômico),, agregando em nível local a representatividade legítima do imperador. Muitas vezes a vulgarização do termo criou confusão entre os funcionários do sistema de concursos e aqueles escolhidos diretamente pelos manchus para executarem funções especiais. Para entendermos como isso funcionava, devemos nos permitir uma analogia; imaginem, nos dias de hoje, um funcionário de carreira, que estudou com afinco durante anos, vem galgando postos por mérito ou por tempo de serviço, mas se encontra

150

impedido de assumir o mais alto cargo de sua autarquia porque a nomeação para este último deve-se deve se a um critério político, tal como a escolha feita pelo presidente para a chefia de um ministério. O que aconteceu com o dito "mandarinato"

foi

algo

semelhante.

Os

manchus

mantiveram

o

funcionalismo concursado, mas colocavam nos cargos de chefia (os mandarins) elementos de sua própria etnia, quebrando a estrutura de poder e a hierarquia. Além disso, a fusão dos poderes em suas mãos os permitia interferir em todas as repartições, prefeituras prefeituras ou quartéis sobre sua jurisdição. Assim sendo, era difícil para um chinês alçar um cargo de poder durante o período Manchu. Os portugueses acompanharam o período de transição entre os Ming e os Qing, captando a essência do problema. No entanto, como foi dito, o termo vulgarizou-se, vulgarizou e no século 19 costumava-se se empregar a palavra para qualquer funcionário (concursado ou não) que tivesse algum tipo de poder, chefia ou influência junto ao governo. Não é preciso dizer que a ingerência manchu tornou o sistema sistema público difícil de administrar. Salvo o raro talento de alguns oficiais, em geral os nomeados criavam atrito com seus subordinados concursados, que respondiam de forma cínica ou corrupta ao desmando. Na crônica cr portuguesa do séc. 19 "Tasi "Ta yang guo", a análise das forças armadas chinesas mostra, por exemplo, um nível de abandono e incompetência inacreditável para esta instituição.

151

A crise do sistema Salvo uma frustrada tentativa de reforma reforma em 1898, conhecida como "Reforma eforma dos 100 dias", promovida por um um jovem imperador que foi logo derrubado, o império chinês agonizou, junto com sua maquina burocrática, durante longos anos. Nesta época o regime de concursos também foi abolido, mas nenhuma solução consistente foi proposta para substituí-la substituí (enquanto isso,, o ocidente adotou este regime de seleção, que posteriormente serviria para o ingresso no governo e nas universidades). O advento da República pretendeu dar algum tipo de ordem para a questão, elaborando planos educativos e governamentais inspirados em modelos mo europeus, mas praticamente sem sucesso. Novamente, foi à chegada dos comunistas ao poder, em 1949, que pôs ordem na situação.

O regime comunista O regime proposto por Maozedong absorveu a idéia da República, mas nos moldes do regime de partido único. único. Na prática, isso significou a diluição da participação política do povo, mas fomentou o seu acesso as instancias públicas. Novamente, não se idealizou na China continental um sistema eleitoral nos moldes das democracias democr ocidentais, substituído por um governo em que os funcionários graduados participavam de uma assembléia - o congresso chinês - no qual desempenhavam os papéis executivos executivo e legislativos.. O primeiro ministro, eleito neste congresso, desempenha o papel de governante, e o presidente, de representante represen do país.

152

Ao contrário do que se imagina, Mao nunca foi, porém, detentor de um poder absoluto e incontestável. Em 1966 ele chegou a ser afastado do poder, só retomando-o o por força de uma ação popular iniciada pela Revolução Cultural. Pela primeira vez, vez, ocorria no mundo comunista uma revolução dentro de outra - na visão chinesa, uma tentativa de evitar o revisionismo e manter a estrutura política e ideológica vigente. No entanto, tão logo Mao morre em 1976, a linha moderada assume o poder, inicia uma "desmaozição" esmaozição" do governo e enseja práticas econômicas e políticas mais flexíveis, proporcionando uma nova prosperidade para o país. Deng Xiaoping, artífice destas reformas e personalidade carismática, foi preso e resgatado várias vezes durante o regime maoísta, maoísta, mas não criticou diretamente Mao ao assumir o poder - dedicou-se se a indicar os excessos e erros do regime como um todo, mas não buscou quebrar a aura mítica do grande timoneiro. Os dias de hoje encontram um partido que conserva muito, ainda, da antiga visão isão "política" chinesa. Um regime burocrático, pesado, cuidadoso, em vários aspectos repressor, repressor mas também, preocupado com o bem estar da população. Seja em discurso - mas com uma mobilização prática que impressiona os idealistas - o atual regime chinês entende tende que a prosperidade comum e o enriquecimento da sociedade beneficiam beneficia a nação como um todo. A concepção parece extremamente simplista, mas tem dado provas de eficácia. O outro lado desta flexibilização está na noção de liberdade individual; ela ocorrerá, ocorrerá, tal como desejam alguns especialistas ocidentais?

153

Tal conjectura é muito pouco plausível, numa nação que ignorou a idéia de democracia e onde o conceito de ordem se sobrepõe ao da individualidade. A China de hoje tem uma criminalidade muito menor - em termos te numéricos - do que os EUA, por exemplo. A manifestação de 1989 na praça Tiananmen também foi um fracasso em termos representativos, e a escalada de violência tão propalada pela mídia ocidental esteve muito aquém do que ocorreu de fato. Uma visão de mundo, mundo, estruturada no comunitarismo, entende que a execução do poder envolve rigidez, dada a extensão e o frágil equilíbrio da sociedade com o meio. Assim sendo, o comunismo parece não ter apagado os vestígios da mentalidade imperial, embora tenha assumido ideologicamente ideologicamente uma série de compromissos com o bem estar do povo. Alguns especialistas gostam de dizer que o império chinês nunca desapareceu, na verdade, e que os governantes comunistas comportam-se comportam se como tal. Tal visão é um tanto exagerada, mas guarda um sentido de verdade; os chineses não pensam, ainda, em reformular por completo a sua noção política de mundo. Preferem os governos que pouco se metem em suas vidas, mas põe ordem nas ruas. Deixando as pessoas trabalharem, todos cuidarão de sua parte. Vagos, estes conceitos mascaram o antigo anseio de um governo paternalista, como proposto por Confúcio, que garanta as condições necessárias para a sociedade evoluir. Uma vez, no Lunyu, um discípulo de Confúcio lhe perguntou qual eram as três coisas fundamentais para um reino ser bem sucedido. O mestre lhe respondeu: "comida na mesa, um bom

154

exército e confiança nos governantes". O Discípulo continuou a perguntarperguntar lhe; se uma dessas coisas fosse tirada, qual seria a menos danosa? "O exército", disse o mestre; com barriga barriga cheia e confiança nos governantes, as pessoas oas lutarão até a morte por seu país. "E se mais alguma coisa lhes fosse tirada, o que seria menos prejudicial?", continuou o discípulo. "A comida", respondeu Confúcio para o atônito aluno; "sem confiança nos nos governantes não se pode fazer nada. Se você confiar neles, pode lutar e passar fome pelo seu país; mas se não confia, pode ter comida na mesa e segurança nas ruas que você nunca se sentirá seguro para empreender o que quer que seja". Simples, este é um norte para os governantes de todos os tempos.

155

VISÕES DOS BÁRBAROS

Um campo fértil e interessante é o estudo da identidade identidade e da alteridade entre os chineses. A China é uma civilização, uma cultura antiga que engloba múltiplas etnias. A majoritária, denominada denominada Han, compõe a grande massa que compartilha deste arcabouço; no entanto, a civilização chinesa não é impermeável as influencias externas, como se supõe. A relação dos chineses com os habitantes fora do seu mundo é cíclica, variável e circunstancial. Não se pode falar de uma xenofobia absoluta entre os chineses, como também não se pode criticar infindavelmente a sua postura cultural. Os chineses foram - e de certo modo ainda são - sinocêntricos, e lêem o seu redor pelas suas estruturas mentais. A pergunta que fica é se os ocidentais fazem muito diferente, ainda que invoquem a criação da "universalidade".

O que é ser chinês? Desde a Antigüidade, ser chinês é uma noção vaga. No tempo dos Zhou, ser chinês equivalia a compartilhar uma cultura comum, dividida porém porém entre vários reinos e regiões. Confúcio entendia que esta era a terra do centro, o lugar em que havia uma cultura estabelecida e milenar; fora dela existiam os bárbaros, que ele assim denominava por terem um modo de vida diferente do seu.

156

No entanto, as primeiras singularidades na concepção de "ser chinês" já aparecem na visão do mestre; em primeiro lugar, compartilhar esta cultura não significa, necessariamente, compreendê-la compreendê la em seus meandros. Tanto o é que Confúcio lamentava o estado geral de sua gente, gente, e o abandono das pessoas em relação às tradições; além disso, ele ameaçou várias vezes ir morar com os bárbaros, tal era sua decepção com os "seus". Para o mestre, os bárbaros podiam não ter as mesmas tradições que as suas, mas eram tão pessoas (Ren) quanto uanto ele. Assim sendo, podia ser até melhor morar com os "incultos" do que com aqueles que, teoricamente, deveriam praticar os costumes e rituais que tornavam alguém um "cavalheiro" (junzi). Desta forma, podemos perceber que o conceito de identidade cultural cultu de Confúcio é, antes de tudo, um estado e um domínio da ancestralidade, dos valores que tornavam alguém chinês. Isso significava, por conseqüência, que alguém "podia" se transformar em chinês, e que esse alguém, enquanto praticasse estes ritos, "estaria "estaria chinês"; mas essa não seria uma condição perene. Um degenerado moral, por exemplo, constituía o indivíduo a margem da sociedade, e logo, "animalizado" ou que "deixava de ser gente" (= não ser mais chinês). Por outro lado, uma pessoa nascida no estrangeiro estrangeir e que se dedicasse ao estudo e prática da língua, cultura e tradições chinesas poderia vir-a-ser ser chinês... Sendo endo inclusive admirado por não ter a vantagem natural de nascer no país. Confúcio não conhecia muitos estrangeiros em sua época, mas é bem provávell que mantivesse sua opinião sobre outros povos mais estranhos que

157

os bárbaros do norte. De qualquer modo, a cultura chinesa estabeleceu-se estabeleceu como a referencia unificadora da civilização, razão pela qual encontramos hoje dialetos que escrevem o mesmo chinês que pronunciam, porém, de modo diferente. O contraste entre o Mandarim (chinês oficial) e a pronuncia cantonesa no sul da China é um exemplo flagrante desta condição. Mas isso só mostra que os chineses estiveram, desde sempre, muito mais dispostos e interessados intere em assimilar do que propriamente excluir. A xenofobia enofobia na China tem raízes históricas, que veremos adiante. Hoje, os chineses se entendem também uma etnia, de caracteres genéticos mais ou menos estabelecidos; em grande parte isso se deveu as hediondas hedionda teorias segregacionistas que os europeus levaram para o país, alcançando um "sucesso" amargo em estabelecer diferenças e criar tensões raciais.

Os outros nos tempos antigos Uma série de fatores naturais isolou a China (ver capítulo sobre o espaço chinês), levando-aa a entrar em contato tardiamente com outros povos absolutamente diferentes de suas tradições. Quando isso acontece, sua cultura já está organizada o suficiente para ler o "outro" pelos seus próprios matizes. Mesmo assim, o eco de um Confucionismo humanista manifesta-se manifesta na flexibilidade com que os chineses encaram o mundo lá fora. Durante o período Han, quando a China entra em contato com o império romano e o império parta, as descrições que dão dessas civilizações alçam-nas alçam à

158

condição de povos "equivalentes", "equivalentes", por assim dizer, ao império do meio. Um trecho dessas descrições pode nos ajudar a compreender melhor esta visão do outro:

O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas cidades dades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas bordadas e deslocam-se deslocam se em carros muito pequenos. Os governantes desempenham suas funções durante um curto espaço de tempo e são escolhidos entre os homens mais valorosos. Quando as coisas não vão bem, bem, são substituídos. [Há aí um anacronismo, pois trata-se trata se de uma referência aos cônsules da época da República.] O povo de Daqin possui elevada estatura.(...) Vestem-se Vestem se diferentemente dos chineses. Sua terra produz ouro e prata, todas as espécies de bens preciosos, preciosos, âmbar, vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da China, através de Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que transformam em fina gaze. Os mágicos de Daqin (sírios?) são os melhores do mundo. Sabem engolir fogo e fazer malabarismos com várias bolas. Os Daqin são honestos. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre barato. Os silos e o tesouro público estão sempre repletos. O povo de Anxi impede-os impede de comunicar-se se conosco por terra; além disso, as estradas são infestadas de leões, o que

159

torna necessário viajar em caravana e com escolta militar. Os Daqin aqin primeiramente enviaram emissários à nossa terra (em 166 d.C.). Desde então, seus mercadores têm feito freqüentes viagens a Rinan (Tonquim). (Hanshu, de Bangu)

Esta descrição da vida imperial romana romana estava um tanto atrasada (o que se fala nesse fragmento o estava mais próximo da época da República), mas o tom é o que nos interessa; os romanos eram considerados culturalmente evoluídos, em função de algumas características específicas.

A noção de ser civilizado Pois nessa visão chinesa, ser civilizado (chinês) não é, apenas, ser Confucionista.. Equivale também ter e morar em cidades, e praticar agricultura; estar ligado a terra e ser sedentário, desenvolvendo técnicas que fazem evoluir a relação do ser humano com a natureza, e não apenas depender dela e de seus caprichos. Possuir um sistema político e leis avançadas, capazes de equilibrar as relações entre as pessoas e os poderes. O contrário de tudo isso era a vida do nômade, dos terríveis Xiongnu - que, expulsos da China, atacariam atacariam depois o império romano como "hunos" entre tantos outros povos que viviam em estado de "selvageria". Chega a ser interessante perceber que o Ocidente acharia a mesma coisa dos hunos e dos

160

germanos. Mas, para os chineses, os romanos constituíam uma uma civilização equivalente a sua, e por isso mesmo digna de respeito e admiração. Quanto ao fluxo de estrangeiros, os anais dinásticos nos informam que os ocidentais (ou, qualquer povo vindo da África, Arábia, Oriente Médio ou Europa) continuaram a aparecer aparecer nos portos e fronteiras chinesas, mesmo durante as épocas de crise.

O cosmopolitismo Tang Se o fim de Han apenas arrefeceu o ímpeto das comunicações com o exterior,

o

período

Tang

resgatou

todo

este

cosmopolitismo,

desenvolvendo-o o ao máximo. Os Tang transformaram transformaram em moda a representação de mercadores estrangeiros, adotaram o barrete persa como chapéu, disputavam as mercadorias de luxo vindas do Ocidente pela rota da seda, que amavam com gosto por seu exotismo, e receberam todas as religiões vindas com a diáspora do fim do mundo romano; cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, maniqueus, pagãos, etc... Um imperador Tang afirmou mesmo que "todas eram vias para A Via (Dao)". Os chineses desta época não tinham receio dos estrangeiros, senão aqueles que ameaçam suas fronteiras e sua cultura. Os árabes os atacam, mas uma batalha de proporções épicas (Talas) demarca a fronteira entre as terras do Islã e dos chineses; mesmo isso não impediu a recepção dos muçulmanos na China - e, contanto que a lei básica fosse observada, observada, qualquer credo era considerado uma opção intelectual e devocional.

161

O tempo de introspecção da dinastia Song diminuiu um pouco o interesse pelos estrangeiros, mas não o comércio e o intercambio cultural. Listas de embaixadores e suas respectivas regiões regiões de origem eram minuciosamente anotadas, e o conhecimento sobre o exterior era razoável. O início do trauma chinês com os estrangeiros viria com a expansão mongol, que iniciaria o tempo das terríveis invasões estrangeiras.

Começos de um receio exterior As críticas as culturas dos estrangeiros eram pontuais, como foi a de Hanyu feita ao budismo na época Tang. Mesmo assim, o budismo transformou-se transformou num sucesso dentro da China, mostrando a capacidade de absorção desta civilização. O que surge com o império mongol (Yuan) é uma época de preconceito, separação racial e temor diante do bárbaro. Genghis Khan era um grande conquistador, cuja capacidade limitada de diálogo causava pavor entre os súditos. Os mongóis impuseram um regime repressor, que aviltava a condição ição dos chineses dentro de seu próprio país. Quando retoma o poder, a sociedade chinesa tem sua visão de mundo obscurecida pelo receio do estrangeiro. Os Ming estabeleceram estabelece m um regime duro, tanto interna como externamente. Realizam navegações incríveis, como as de Zheng He, mas abandonam toda a tecnologia e os ganhos diplomáticos para se interiorizarem. Numa das medidas claustrofóbicas tomadas para evitar as ameaças vindas do mar, o governo ordena o

162

abandono das faixas de terra costeiras, numa distancia de 15 km terra adentro. E a chegada dos portugueses apenas reforça este temor. A apresentação dos europeus é a pior possível. Tentam tomar a terra pela força, agem de modo arrogante, ignoram a cultura chinesa, chinesa e negociam como se fossem tão poderosos quanto o império império do meio. Num primeiro momento, os chineses contiveram de maneira eficaz a presença destes estrangeiros. No entanto, os lusos aprendem a lição e buscam estabelecer formas de diálogo mais ma s interessantes ao comércio. De invasores, transformam-se se em aliados, aliados, ao combaterem os piratas japoneses, e conseguem a concessão de Macau. O trabalho de Fok Kai K Cheong (em “Revista da Cultura”, Macau, 1995) mostra que os letrados chineses não chegaram a um acordo nítido sobre como lidar com os estrangeiros. Divididos em dois partidos, partidos, um favorável a convivência e outro a expulsão, os funcionários do império testavam fórmulas que pudessem dar conta deste desafio, mas sem uma continuidade:

Em 1530, em resultado deste debate alargado entre apoiantes de uma política proibitiva do comércio comércio marítimo e os abolicionistas que apoiavam um comércio regular, mas controlado, emergiam dois temas dominantes. O primeiro fundamentava-se fundamentava se num temor profundo que os portugueses e os seus semelhantes pudessem alterar a paz e, por isso, ameaçar a segurança na costa. Tal temor era partilhado por ambas as partes. Os abolicionistas

163

especificavam que o comissário-adjunto comissário adjunto da Defesa Militar e o comandante da Defesa Costeira contra os piratas, em locais como Dongguan e Nantou, deveriam examinar todos os navios que se aproximassem dos portos com mais vigilância. Os estrangeiros, como os portugueses, que não apresentassem credenciais para participação no comércio tributário, deveriam ser excluídos das zonas costeiras e subjugados por meios militares,

caso

resistissem. resistissem.

Contudo,

os

proibicionistas

realçavam a eficácia de penalizar severamente os que tentassem fazer comércio com navios estrangeiros com o objetivo de desencorajá-los los de virem à China. O segundo tema era o valor do comércio marítimo. Aqui, havia uma fissura entre os dois grupos.

Os

apoiantes

de

uma

política

proibicionista

consideravam o comércio com os estados marítimos meramente como um meio de os pacificar, para que se pudesse manter a segurança das zonas costeiras. Os abolicionistas, por outro lado, estavam am convencidos de que o comércio marítimo dava um contributo vital ao bem-estar bem estar econômico das províncias costeiras. Assim, aconselhavam o recomeço do comércio regulado, mesmo correndo o risco de possíveis pilhagens por parte dos portugueses que, pensavam eles, eles, podiam ser repelidos se as medidas de defesa marítima fossem apertadas. Estes dois temas vieram a determinar em grande medida a atitude dos

164

funcionários do governo Ming em relação à presença dos portugueses na China, hostil ou simpática.

O despreparo para lidar com estas questões ficou claríssimo quando ocorreu a crise no fim do período Ming. Os Jurchen (Manchus), "aliados bárbaros" convocados por uma das facções imperiais para conter os separatistas, acabaram se aproveitando do vácuo e tomaram o controle controle do país, formando a nova dinastia - os Qing. Com isso, os chineses vêem se repetir o seu pesadelo cultural, tão temido quanto a perda de seu passado - o domínio estrangeiro. Os Qing repetem várias da ações de seus antecessores mongóis, instaurando um regime egime opressivo, segregador e isolacionista. Tanto a relação com as regiões periféricas quanto com os europeus não supera a concepção do "regime tributário", e a visão sinocêntrica consolida-se consolida como uma barreira psicológica, reticente em relação ao estrangeiro estrangeiro e cada vez mais contida. Os Qing herdam esta percepção de afastamento. Os estrangeiros são tolerados nos portos, mas proibidos de adentrar o país, salvo exceções obtidas pelos jesuítas. A proibição oficial de se ensinar chinês aos estrangeiros é a prova va máxima deste desejo de isolacionismo; não se devia permitir a possibilidade de alguém sinizar-se, sinizar se, exceto aos próprios nativos! Com isso, a dinastia jurchen criava uma medida contraditória, perversa e insolúvel; quem não viesse a ser chinês, não poderia viajar pela China, do

165

mesmo modo como era impossível alguém viajar pela China para aprender a cultura chinesa porque não se podia ser chinês! Sem canais de diálogo, a civilização chinesa desta época não conhecia os estrangeiros, e sustentava sua ignorância com uma aparente estabilidade econômica. Quando da chegada dos ingleses no final do séc. 18, com a embaixada do Lorde Macartney, a reação Qing não poderia ter sido pior. Um relato fantástico deste encontro de civilizações pode ser visto no livro "o Império o imóvel", de Alain Peyrefitte. A carta que o imperador chinês envia ao oficial britânico é uma peça literária de intransigência grotesca, absurdamente caipira e alheia;

Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista, ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam [...] Não tenho necessidade dos manufaturados de vosso país. [...] Cabe a vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior devoção e lealdade no futuro, futuro, para que, através da perpétua submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranqüilidade a vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum produto dentro de suas fronteiras. fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca de nossos produtos. [...] Não esqueço

166

a distância solitária de vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar; tampouco esqueço vossa escusável escusáv ignorância sobre os costumes de nosso império Celestial. [...] Obedecei tremendo remendo e não sejais negligente! negligente

A que nível os chineses tinham chegado! Antes um centro de saber, o Reino do Meio tornara-se, se, praticamente, uma aldeia. Perdera conhecimento, isolara-se se numa visão de mundo diminuta e limitada. Eis o grande perigo dos regimes que lutam contra a educação; preocupados sempre com as revoluções internas, esquecem-se esquecem dos perigos que vem de fora.

A agressão imperialista A China era grande demais para ser controlada por inteiro, mas os europeus percebam que podiam tirar partido dela. Usando sua tecnologia militar superior, ingleses e portugueses impuseram seus pontos de vista ao imperador. As Guerras do Ópio, realizadas pelos primeiros, demonstraram a possibilidade bilidade de domar o império do meio e obter concessões vantajosas. Portugal exigiu o mesmo logo depois, e seguiram-se seguiram se franceses, alemães e japoneses. O governo Qing não sabia o que fazer, senão reprimir ainda mais os chineses. Solapada a sua capacidade representativa, representativa, os manchus não conseguiam mudar seu ponto de vista xenófobo, e sentiam-se sentiam se cada vez mais

167

isolados. A abertura do Japão demonstrou que era possível adaptar-se adaptar aos novos tempos, sem perder a essência de sua cultura. No entanto, os chineses não encontravam contravam espaço para isso, e os letrados comprometidos com o poder estrangeiro limitavam-se limitavam se a repetir uma ladainha moralista, afirmando uma suposta "superioridade cultural" que iria salvá-los salvá los do estrangeiro. André Levy, em seu livro "Cartas do Extremo Ocidente" Ocidente" nos traz um panorama riquíssimo dessa visão sinocêntrica sobre a Europa. Um grupo de chineses viajou por vários países do velho continente, anotando seus costumes, hábitos, cotidiano, etc. Não surpreende que a observação destes viajantes é de espanto o total quanto aos costumes dos "bárbaros brancos". A idéia original de Confúcio quanto a lidar com o outro foi fossilizada numa alteridade exclusivista, que via de modo pejorativo as culturas alheias:

Existem alguns resquícios dos costumes da idade de ouro ouro do terceiro milênio na excelência da administração das escolas, dos hospitais, das prisões ou da prefeitura de todos esses países ocidentais. Quanto à doutrina que reverencia Jesus, ela inspira, contudo, o temor do Céu e o domínio de si, a consciência do d dever de ajudar o próximo e de tirar proveito das coisas: ela não é tão contrária assim à Via do nosso santo Confúcio. O Parlamento com duas Câmaras, alta e baixa, também está de acordo com a idéia antiga de partilhar com as massas os castigos e as recompensas. pensas. É verdade que se produz, aqui ou ali, abusos, e

168

que às vezes ministros ou militares poderosos cobiçam o monopólio do poder; buscam o apoio do populacho, tramam complôs e forçam o soberano a abdicar, como ocorreu recentemente no Brasil e no Chile. Décadas Décadas atrás, tais acontecimentos se davam com muita freqüência, em uma situação análoga à da Confederação Chinesa antes da redação das Primaveras e Outonos, por Confúcio (no século VI antes da nossa era). A esse respeito, sua concepção de relacionamento entre ntre soberano e súdito parece um tanto quanto contrária à Via do nosso santo Confúcio. Rapazes e moças com mais de vinte e um anos são declarados emancipados e não têm que pedir autorização aos pais para se casar. Quando um rapaz se casa, ele se separa dos pais, vai morar em outro lugar com a mulher e gera a própria fortuna; no pior dos casos eles nem se falam mais. Ainda que se possa preferir isso à hipocrisia das relações entre pais e filhos na China, ou às brigas entre nora e sogra, tratar os pais como meros eros passantes equivale a rejeitar o parentesco de sangue. As leis proíbem que se chegue à agressão física. Um filho que atinja o pai é condenado a três meses de prisão. O mesmo vale para o pai que bate no filho. O motivo é que eles se baseiam no amor, sem graus de diferenciação como preconiza a doutrina heterodoxa de Micius (forma latinizada de Mo Di, o filósofo que viveu entre os séculos V e IV antes da nossa era): eis como se chega a uma tal aberração. A relação entre pais e filhos é um

169

tanto quanto contrária contrária à Via do santo Confúcio. É costume no Ocidente dar-se se mais valor à mulher do que ao homem. Se um homem encontra uma mulher no caminho, ele deve deixá-la deixá passar e caminhar na frente. É de bom-tom, bom tom, nos banquetes, que se sirva antes a mulher do que o homem. homem. Quando uma mulher tem um amante, mesmo sendo esposa de duque ou marquês, não é raro que ela abandone o marido, e ninguém estranha que ela se case de novo. Se o marido tem uma amante, a esposa pode processá-lo, lo, exatamente o contrário da nossa antiga teoria teoria de apoio ao yang e repressão do yin. As mulheres têm vários homens antes do casamento, e às vezes não tem sequer vergonha de ter uma criança. É por isso que muitas mulheres não se casam nunca, detestando o constrangimento que traria a presença de um marido. arido. A relação entre esposos é um tanto quanto contrária à

Via

do

nosso

santo

Confúcio.

Certamente,

no

desenvolvimento de cada país, toda doutrina política merece consideração.

Mas

no

que

concerne

às

três

relações

fundamentais, no final das contas, aqueles aqueles países não valem a China. Mesmo os ocidentais parecem prestes a admiti-lo, admiti lo, já que reconhecem que o nosso país foi a primeira região civilizada do mundo. Entretanto, a mudança não poderia se operar de forma brutal, pois os costumes resultam de um longo processo. processo. Considero que o cristianismo foi um fator de civilização, e que seu poder de atração era grande em uma época em que o

170

Ocidente estava em um estado primitivo, mas ele está em um beco sem saída; é uma via inexoravelmente incompleta e criticável. O menor enor erro pode levar a milhas de afastamento. Isso não é uma prova? (Xue Fucheng, 1891).

Os chineses repetiam assim a metodologia do ultraje, que aprenderam ao longo dos séculos com as invasões estrangeiras. O Colonialismo europeu conseguia ser, no entanto, entanto, inédito em sua capacidade agressiva. Em Hong Kong, no início do século 20, podia se encontrar um parque público em que se lia a placa "proibida a entrada de cães e de chineses". Não é de se estranhar que, inúmeras vezes, as revoltas chinesas deste período período reivindicavam a expulsão dos estrangeiros.

O Mundo contemporâneo A derrubada dos Qing vem acompanhada da retomada das possessões estrangeiras, e da recuperação da identidade chinesa. Salvo Macau e Hong Kong, todas as outras colônias retomam ao poder nativo. nativo. A República chinesa incorpora a noção de se ocidentalizar para adquirir cultura e tecnologia capazes de torná-los torná los páreos e competitivos no mundo moderno, mas de modo autóctone e independente. A mente chinesa guiou-se, guiou neste contexto, por escolher as formas formas que lhe pareciam mais convenientes para

171

ensejar este processo de adaptação - e no caso principal, novamente, pela adoção da teoria comunista. Quanto à visão do mundo exterior, a China acordou então para a universalidade, mas manteve muitas de suas reticências reticências quanto as antigas nações colonialistas. Veja-se Veja se novamente o caso de Hong Kong e Macau; a primeira voltou, com má vontade da coroa inglesa, para as mãos chinesas, e foi considerada uma vitória e uma reparação por estes; quanto a Macau, foi negociada da com uma tranqüilidade quase natural, sem cisões, dado o tempo de relação que Portugal havia desenvolvido com a China, e do encontro de um modelo de comunicação satisfatório entre ambos. No campo externo, a China de hoje aproxima-se aproxima se dos países com que não nã teve grandes atritos, tendo presença ativa na África e bons entendimentos nas Américas. Algumas desconfianças em relação às nações européias, ao Japão e os EUA estão sendo superadas em função dos interesses comerciais, mas a atitude da sociedade chinesa é de reserva em relação a estes países. Depois das experiências terríveis sofridas com os estrangeiros, só agora o país afasta-se se lentamente da xenofobia. Demorará um tempo para que a China volta a ser realmente cosmopolita, como foi um dia durante os Han ou os Tang, mas já hoje os efeitos da globalização se fazem presentes na mentalidade cotidiana. Um estrangeiro que aprende a língua, conhece um pouco da cultura e se porta de modo adequado consegue conquistar um certo respeito do cidadão comum chinês. Não se deve esperar uma incorporação completa, e a atitude

172

de alguns ocidentais (principalmente os esotéricos) de se afirmarem "chineses" ou sinizados é tida como patética e digna de piada. Mas a China de agora quer que o mundo a entenda, de modo sério, tanto quanto ela foi forçada a compreender o que estava fora de sua tradição. Um humanismo real depende de assimilar a cultura desta civilização, tanto quanto espera-se espera que ela compreenda e aceite os modos de vida ocidentais. Retorna-se, Retorna de certo modo, o sonho de de Confúcio; "entre os 4 mares, somos todos irmãos"; e abre-se se novamente o caminho para uma nova integração mundial, equilibrada e raciocinada para além das tensões destrutivas. Mas será, ela, realizável?

173

SABERES E CIÊNCIAS

Neste último texto, trataremos da ciência tradicional chinesa, e de como ela constitui um outro modo de construção de conhecimento distinto do "ocidental". Está fora de questão discutir o quanto a China moderna aprendeu com estas importações tecnológicas; contudo, fiel a proposta deste livro, queremos entender o que sobrevive, na estrutura do pensar chinês, desta forma de investigação científica, e as razoes de sua durabilidade. Um estudo deste gênero se baseia em fontes antigas, mas que estão dispersas. Por uma grande ironia, o responsável responsá por agrupá-las las novamente foi um pesquisador inglês, Joseph Needham, que na década de 50 iniciou sua vasta e densa obra ‘Sciene Sciene and civilization’ civilization in China, cujo objetivo era o descobrir o que - e como - foi inventado neste país. Grande parte deste capítulo capítul deve-se a esta obra. Antes de Needham, os historiadores ocidentais se contentavam em afirmar que aquilo que os chineses haviam descoberto era um acaso ou, era importado do oriente médio ou da Índia. Nada valorizava, de fato, o conhecimento chinês. Os próprios próprios chineses sentiam, também, um sentimento de inferioridade e desinteresse muito grande pela sua cultura antiga, em função dos tempos obscuros e de atraso promovidos pela dinastia Qing.

174

A retomada deste conhecimento foi paulatina, e deveu muito as revoluções revol chinesas no século 20. Só assim a sociedade interessou-se interessou se em investigar novamente a si mesma, e suas origens. A procura de um equilíbrio entre a ciência ocidental e a chinesa é buscado, desde então, por meio de estudos comparativos que possam explicar explica e justificar uma a outra. Como dissemos, porém, esta descoberta demorou a ocorrer. A história da ciência chinesa demorou a ser feita, e muito de seus conhecimentos antigos e sistemas sumiu. Essa foi também uma oportunidade perfeita para charlatões e falsários, ários, que se utilizaram de aspectos superficiais e incompletos desta ciência para conseguirem dinheiro, fama ou uma aura de sapiência. iência. É o caso clássico dos exoteristas, e oteristas, que raramente tem um conhecimento profundo sobre o assunto, acham que já leram muito e repetem afirmações dogmáticas que eles mesmo criaram, mas que insistem serem milenares. Em geral, eles se arvoram defensores de uma tradição, e insistem em não dialogar com os defensores das "ciências ocidentais" (em geral, também, os mais incompetentes, que fazem política para compensarem suas más formações). Nada mais distante do que tem sido a atitude dos chineses e dos cientistas sérios na atualidade.

Ho uve uma ciência na China? Comecemos pelo básico; na antiguidade não havia, exatamente, uma definição de ciência na China. A situação das ciências naturais e investigativas chinesas era parecida com a da antiga filosofia ocidental antes

175

de Galileu e Descartes; elas estavam incorporadas nas Jia (escolas de pensamento), e constituíam tão simplesmente "modos" ou técnicas de ver o mundo (veja-se se o ensaio sobre literatura). Esta não separação ocorria em função dos sistemas interpretativos da natureza que os chineses haviam criado, e que se remetiam a tempos antiqüíssimos e cuja eficácia era dada como válida e correta. rreta. Assim sendo, tais investigadores compunham "linhas de pesquisa" que não hesitavam em se especializar em algo (mecânica, botânica, química) e que viam, nisso, uma profunda conexão com a ordem social e cósmica, explicando-as explicando por meio de suas descobertas.

Sistemas As ciências tradicionais chinesas estabeleceram-se, estabeleceram se, desde cedo, por meio do sistema Yin-Yang Yang e do sistema Wuxing (cinco ( estados da matéria ou ainda, wujing, "cinco essências"), mas não devemos esperar que eles tenham nascido prontos e nunca foram criticados criticados ou reavaliados. Estes sistemas categorias funcionam por meio de relações analógicas, que muitas vezes foram objeto de disputa entre os chineses. Dois exemplos podem ser dados; na época Han, por exemplo, Dong Zhongshu Zhongshu defendia o sistema dos cinco estados, s, mas que se aplicavam ao corpo ou aos objetos da natureza segundo as circunstâncias, tal como também aparece no ‘Tratado Interno’’ (Neijing), o primeiro e principal livro de medicina chinesa da antiguidade. antiguidade. Assim, o espaço tem quatro direções, a natureza tem 4 estações, e o corpo tem cinco "energias", são cinco os cereais básicos da alimentação, etc. No entanto, na

176

mesma época, um outro texto, o Huainanzi, fazia correlações numéricas e qualitativas diferentes; afirmava, por exemplo, que haviam nove direções no espaço, tais como no ove cavidades no corpo, e que as vísceras também eram cinco,, de acordo com as energias. Na dinastia Han posterior, Bangu escreveu, no Baihutong, que tais correlações eram ainda mais diferentes, difere posto que o espaço tinha seis direções, e que haviam cinco estações do d ano, etc. O que isso significa? Que cada um destes sistemas propunha interpretações diferentes dos eventos naturais, influenciando, por conseguinte, o exercício das ciências investigativas. investigativas. Aos poucos a teoria dos cinco agentes presentes em Dong e no Neijing consolidou-se, se, mas não sem uma ampla gama de testes e discussões. A segunda consideração envolve, novamente, a formulação de cada um destes sistemas, através da discussão dos atributos naturais dos elementos. Um outro exemplo pode ser dado; se o quente é yang, e o sal faz calor na garganta, ele também é yang? Além disso, o sal atrai a água (yin), logo, os opostos se complementam, então isso seria uma prova de que o sal seria yang. No entanto, outros autores afirmam que a água do mar é salgada, e como é maleável eável (atributo de yin), logo, o sal pode ser yin também. Tanto o é que o sal atrai o doce; e ele atrai justamente a água, em sua forma doce (yang), para restaurar o equilíbrio. Enfim, qualquer uma dessas visões apresenta uma longa lista de argumentos analógicos analógicos para justificar-se. justificar Admitir um destes pontos significa, conseqüentemente, aceitar todo o sistema junto, filiando-se filiando se a uma escola. O erro muito comum dos iniciantes

177

ocidentais é transplantar a sua idéia de "verdade única" para ciência chinesa, transformando-se se em discípulos de uma só visão e afirmando, categoricamente, que só há uma versão das coisas e que as outras estão erradas. Este é mais um dos erros que só comprometem um estudo sério da história da ciência chinesa.

Métodos de investigação Céticos cos como Wang Chong (época Han) foram responsáveis por criarem regras para o desenvolvimento de padrões sérios de pesquisa na China antiga. Como não havia um monopólio acadêmico destas pesquisas, desde cedo os chineses aprenderam que a comprovação de suas teses necessitava sempre apresentar resultados eficazes e reproduzíveis. Como ocorre até hoje, determinadas invenções de caráter valioso podiam ter seus meios de produção guardados em segredo. Tal ocorreu com a seda, a porcelana e a pólvora, por exemplo, que que durante algum tempo estiveram sob a supervisão do Estado. No entanto, os chineses sabiam que tais monopólios eram impossíveis de se manterem indefinidamente, e depois de algum tempo os resultados destes conhecimentos eram publicados em livros, cuja divulgação divu determinava o seu sucesso. É curioso notar que, mesmo com uma um metodologia exigente, depois do século 18 as ciências chinesas começaram a cair numa decadência tremenda. Seu potencial criativo desapareceu, a ponto de se supor que suas conquistas anteriores ores seriam lendárias. De fato, a ação política dos Qing, como

178

comentamos, foi extremamente deletéria para o livre pensar, e as nações que não valorizam seus cientistas têm t m por destino, infelizmente, a dominação política e econômica. De qualquer modo, no que que consistia essa investigação? O sistema básico consistia em identificar um elemento, e definir quais eram suas propriedades básicas dentro do sistema yin-yang yin yang e wuxing. A partir disso, estabelecer as correlações e testá-las; testá las; se funcionassem, demonstravam um raciocínio correto; se não, o objeto precisava ser reavaliado. O caso da pólvora é um exemplo. Carvão, salitre e enxofre são três substâncias ncias que tem cores yang e propriedades yang (retenção de fogo). Se misturadas, elas poderiam gerar um grande yang? Neste Neste caso, a resposta foi afirmativa. O mesmo procedimento se aplicou eficazmente em questões médicas e químicas, comprovadas tanto pela extensa e segura farmacopéia chinesa quanto pela acupuntura. No caso das ciências matemáticas, tais procedimentos permitiram permiti aos chineses descobrir antes dos europeus o número pi e o triangulo de pascal, e conhecerem, por si mesmos, o Teorema de Pitágoras. No entanto, o procedimento por analogias não foi suficiente para avaliar algumas boas teorias astronômicas, e mesmo que uma delas propusesse um sistema solar séculos antes de Kepler, a concepção de que a orbe celeste girava em torno da Terra prevaleceu na maioria dos casos até o período moderno. Por fim, um outro tipo po de método de trabalho envolvia envolv os desafios práticos ou a observação. Algumas das realizações chinesas devem muito a

179

necessidade ou ao planejamento, como foi o caso dos moinhos d'água ou de vento, bem como os mecanismos (correia, roda dentada, coroa, etc.) que envolvem sua construção e a transmissão de energia. Tais Tais inventos decorreram justamente de situações em que os cientistas imaginavam soluções mais eficazes para determinados tipos de problemas, ou da observação de suas possibilidades. Tal foi o caso, igualmente, da descoberta do magnetismo (e a conseqüente criação criação da bússola) e do petróleo, e de suas propriedades combustíveis.

A influência das invenções chinesas O inventário das criações chinesas é extenso e demonstra claramente que, até o período já citado de estagnação desta civilização, a China era o principal ipal centro tecnológico do mundo. A sua superação pela Europa transformou-se se num processo inevitável, posto que estes países precisavam compensar, a todo custo, sua inferioridade numérica e de recursos. Mas, a grande revolução ocidental dependeu, ainda assim, assim, da difusão de engenhos chineses, notadamente a pólvora, a bússola e o leme de popa, além do papel. Quanto a impressa, cinqüenta anos antes de Gutenberg os chineses já imprimiam em tipos móveis e podiam colocar nas páginas figuras com 7 cores ou textos de idiomas idio diferentes - mas, a descoberta do alemão parece tratar-se se de um processo autêntico de elaboração. Deve-se se ter um cuidado muito grande com a grande lista de descobertas chinesas; afinal, nem todas elas influenciaram o pensamento ocidental, tal

180

como se acreditou creditou também que um dia a China seria uma importadora de conhecimentos da antiguidade. Acreditar que as coisas são inventadas apenas uma vez é uma falácia tão grande quanto imaginar que o teorema de Pitágoras foi levado da China para a Grécia ou vice-versa. vice rsa. As disputas sobre a primazia temporal de certos inventos também são, muitas vezes, inúteis. Os chineses criaram a pólvora e, no entanto, seu armamento era totalmente inferior aos dos europeus no início do século 19; por outro lado, a medicina chinesa, totalmente alheia aos procedimentos europeus, havia sido muito mais eficaz no tratamento e prevenção de muitas doenças, sendo uma das responsáveis pelo grande aumento populacional junto com avançadas técnicas de agricultura.

A continuidade A superação geral ral imposta pelas ciências ocidentais causou um baque tremendo nesta ciência tradicional, a ponto dela ser encarada quase como superstição. Os chineses viram-se viram se obrigados a rever muitas de suas crenças quanto a estes procedimentos investigativos, e em grande gran parte reconheceram o avanço tremendo obtido pelos europeus em vários campos. A reorganização dos quadros de ciência e tecnologia na China foram feitas aos moldes europeus, e as atividades acadêmicas neste campo são idênticas as promovidas nos currículos ocidentais. O debate que se estabeleceu, pois, é quanto a sobrevivência deste pensamento tradicional. Percebe-se Percebe se que ele não

181

é inútil em muitos setores, mas a questão é como evoluí-lo, evoluí lo, de modo a ser de uso válido. A medicina tradicional conseguiu, por exemplo, exemplo, encontrar um espaço próprio na China, e tem sido disseminada no Ocidente de forma intensa. De baixo custo e sumamente eficiente na prevenção, suas teorias, ainda que não bem entendidas a luz de nossa ciência, são aceitas como um sistema complementar ao da medicina de intervenção ocidental. O mesmo ocorre com farmacopéia. No campo da física, teorias como a da perenidade do universo tem sido debatidas, e vários autores ocidentais vem discutindo sua incorporação a cosmologia acadêmica. O que virá deste futuro será, novamente, um exercício de produção intelectual. Se for possível a total conciliação destes pensares, isso só poderá ser feito por cientistas que estejam dispostos a admitir as conquistas de cada uma das partes do mundo. A temporalidade temporalidade é uma impressão enganosa - se a China já foi o centro científico do mundo, Europa e EUA podem o ser agora, mas o futuro pertence ao diálogo.

182

‘Mirações do Celeste’’ faz parte da série Escritos Sínicos de André Bueno, Bueno e é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Uso nãonão comercial-Vedada Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Unported Based on a work at escritosinicos.blogspot.com. escritosinicos.blogspot.com ISBN 978-85-65996-08 08-2

183

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.