MISSÃO E CIÊNCIA: OS VERBITAS E O ANTHROPOS NO BRASIL

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Missão e ciência: os verbitas e o anthropos no Brasil, p. 103 - 122

MISSÃO E CIÊNCIA: OS VERBITAS E O ANTHROPOS NO BRASIL1 Elizabeth Pissolato** Ronaldo Antonio de Souza***

RESUMO No presente artigo, acompanhamos a história do Instituto Anthropos do Brasil, uma instituição fomentada pela Congregação do Verbo Divino, SVD, que vincula a pesquisa em etnologia e lingüística à atividade missionária. Como um braço do Instituto Anthropos Internacional, o Instituto Anthropos do Brasil, criado nos anos 60, teve papel importante no país no que diz respeito à relação entre Igreja Católica e povos indígenas. Partimos de um comentário sobre a implantação da SVD no Brasil e as primeiras missões estabelecidas entre os indígenas, e a seguir analisamos a relação do projeto científico do Instituto com a perspectiva missionária adotada. Destacamos a visão evolucionista da ciência e o debate sobre inculturação na missão. Palavras-chave: História. Missões. Povos Indígenas. Instituto Anthropos do Brasil. RESUMÉ Dans cet article nous suivons l’histoire de l’Institut Anthropos du Brésil, une institution soutenue par la Congrégation du Verbe Divin, SVD, qui relie la recherche en ethnologie et linguistique à l’activité missionnaire. Comme une branche de l’Institut Anthropos International, l’Institut Anthropos du Brésil fondé dans les annés 60, a eu un rôle important au Brésil en ce qui concerne le rapport entre l’Église Catholique et les peuples indiens. Nous partons d’un commentaire sur l’implantation de la SVD au Brésil et des premières missions établies chez les indiens; ensuite nous analysons la relation du projet scientifique de l’Institut avec la perspective missionnaire qu’il a adopté. Nous avons souligné la vision évolutionniste de la science et le débat sur l’inculturation dans les missions. Mots-Clé: Histoire; Missions; Peuples Indiens; Institut Anthropos du Brésil. 1

O presente artigo resulta da Pesquisa “O Instituto Anthropos no Brasil: Pesquisa e Acervo Etnológico” desenvolvida no Programa de Iniciação Científica do Centro de Ensino Superior – PROBIC CES de fevereiro de 2007 a janeiro de 2008. O projeto foi desenvolvido pelo, então, aluno do Curso de História Ronaldo Antonio de Souza e coordenado pela professora do CES e antropóloga Elizabeth Pissolato. ** Etnóloga, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional /UFRJ, membro dos núcleos de pesquisa Núcleo de Transformações Indígenas - NUTI/UFRJ e Antropologia das Fronteiras Conceituais – UFJF, e professora da disciplina Antropologia no Centro de Ensino Superior – CES JF, no período de 2004 a 2008. *** Graduado em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora em 2008, e bolsista do PROBICCES de fevereiro a dezembro de 2007.

103 Juiz de Fora, 2008

Elizabeth Pissolato, Ronaldo Antonio de Souza

1 DAS MISSÕES ENTRE COLONOS E INDÍGENAS À EDUCAÇÃO NAS CIDADES A Sociedade do Verbo Divino (SVD), uma instituição de origem alemã e com sede em Steyl, na Holanda, chega ao Brasil no final do século XIX, no momento em que se discutia, no interior dessa Instituição, a possibilidade de ampliação de sua área de atuação para além dos povos asiáticos, tidos pela SVD como “genuinamente pagãos”, e o atendimento a países de tradição católica como os da América Latina (HEIDEN apud CÉSAR, 1989c, p. 549). Na obra Desafios missionários hoje, assinada por vários membros da SVD atuantes no Brasil, José Maria Wisniewski (1995, p.10), aponta como fatores importantes de sua vinda para o Brasil a criação de uma nova alternativa para os missionários verbitas formados na Europa e o custeio dos gastos oferecido por comunidades e paróquias brasileiras a esses missionários. Chegando ao Brasil, a SVD atendeu, primeiramente, aos colonos de origem alemã, um grupo social formado por emigrantes europeus de forte tradição católica. A vinda da instituição se deu após solicitação feita por colonos alemães do Espírito Santo, que pediam para que um padre de língua alemã os atendesse. A Igreja no Brasil absorveu tal solicitação e o primeiro pedido à SVD foi feito em 1890 pelo Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda. Em1892, novo pedido foi encaminhado pelo Secretário da Congregação Romana para negócios extraordinários, Arcebispo Domingos Ferrata, mas a primeira indicação, cercada de preocupações com relação às condições financeiras, sanitárias e de estabilidade social das áreas atendidas, só seria feita pelo Pe. Janssen, fundador e superior da SVD, em 1894. Os padres Francisco Dold e Tollinger chegaram, então, ao Brasil em 1895, quando os colonos de Santa Isabel e Santa Leopoldina, no Espírito Santo, cerca de 2.000 pessoas, receberam-nos. Esses verbitas atenderam à comunidade, organizando casamentos, batizados, ouvindo confissões e ensinando catecismo (CÉSAR, 1995, p.2-3; WISNIEWSKI, 1995, p. 11). Entendida por Pe. Janssen como temporária, a experiência dos verbitas no Brasil deveria preparar a instalação da SVD na Argentina. Mas, a partir do envolvimento com a vida dos colonos, não só os de origem alemã, como também poloneses e japoneses, os verbitas acabaram criando raízes no Brasil. Os autores notaram que os primeiros da Congregação a chegar, padres Dold e 104 CES Revista, v. 22

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Tollinger, assim como toda uma geração formada na Europa do final do século XIX, possuíam visões etnocêntricas e preconceituosas a herança indígena e africana presente na sociedade brasileira (VALLE, 1995, p.38-39; WISNIEWSKI, 1995, p. 9). Como princípio de diversificação nas atividades, os primeiros contatos com povos indígenas se dão a partir de maio de 1905, quando uma incursão de dez dias pelo Rio Doce leva o Pe. Paulo Gruber e o Ir. Germano Speckemeier, guiados por Henrique Van de Kamp, a um grupo chamado pelo verbita de Nöcrätio, definido como “semi-selvagem”. O relato da expedição foi perdido, mas Pe. José Vicente César (1995, p. 60) acredita ter sido o primeiro contato realizado com um grupo Macro-jê de nome Nacrehé ou, possivelmente, com o grupo botocudo chamado Krenak. Em plena mata, um dos primeiros atos dos membros dessa expedição foi a realização de uma missa. Gruber (apud CESAR, 1989c, p.555) afirma que esses indígenas eram muito receptivos às miçangas, medalhas e santinhos que ele distribuiu. César (1989c, p.555), por sua vez, observa que na foto da missa não aparecem índios, mas somente missionários. Conforme o Pe. Paulo Gruber (apud CESAR, 1989c, p. 555), havia nessa região algo em torno de 20.000 indígenas, que teriam pedido, através de seus “caciques”, para que as missões entre eles fossem reabertas. A atuação dos missionários junto a grupos indígenas do Rio Doce não contava com a aprovação do Pe. Arnaldo Janssen que via na criação de colégios e seminários em áreas urbanas livres de doenças e com apoio financeiro da população o melhor caminho para os verbitas no Brasil; porém a missão já havia se estabelecido quando a ordem contrária à sua instalação chegou e, dessa forma, o superior da Congregação optou por aguardar os resultados das atividades junto aos índios do estado (WISNIEWSKI, 1995, p. 28; CÉSAR, 1995, p. 61 - 62). No continuar da missão, segundo Gruber, o que se buscou fazer foi uma adaptação da missão aos moldes das reduções jesuíticas e, para isto, terras foram compradas às margens do Rio Doce em um local denominado Porto Belo; contudo, conforme a avaliação desse missionário, a aproximação de órgãos governamentais da área da missão fez com que os indígenas se afastassem dos verbitas e, em 1907, a missão perdia o fôlego. Por outro lado, o não reconhecimento do trabalho por parte do fundador da Congregação, expresso em uma carta datada de 23 de março de 1908, dá o golpe final na missão do Rio Doce. De acordo com Pe. Janssen, a SVD, no Brasil, deveria 105 Juiz de Fora, 2008

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concentrar seus esforços no projeto de uma grande missão no sul e atuar no ensino a comunidades de áreas urbanas (CÉSAR, 1995, p. 61). A chegada da SVD ao sul do Brasil se deu em março de 1907, quando os padres Matias Esser e Nicolau Símon foram para Guarapuava, cidade próxima à fronteira com o Paraguai e o Mato Grosso. A intenção do fundador da SVD era montar uma grande missão em que a Ordem tomasse sob sua responsabilidade paróquias na região das fronteiras entre Brasil, Argentina e Paraguai. À frente dessas paróquias, o trabalho dos verbitas seria o de unir os indígenas dos três países numa mesma missão (CÉSAR, 1989c, p.557). O início da pastoral verbita com os índios do Paraná se deu, oficialmente, em 1907, quando o Pe. Guilherme Teodoro Muenster empreendeu viagens pelas matas da região que duraram até dez meses na busca de índios para reuni-los. Em seus relatos, Muenster afirma ter encontrado pequenos grupos de Botocudos e Coroados, tendo os últimos fortes traços de miscigenação e sendo classificados pelo missionário como “mestiços acaboclados”. Muenster também encontrou outros grupos indígenas, que não chega a classificar, em engenhos de açúcar e aguardente, que teria considerado “[...] material humano que não prometia muito para o cristianismo [...]” (MUENSTER apud CÉSAR, 1995, p.98). Assim, o trabalho de busca, inicialmente, não gerou os frutos esperados; no entanto, após Muenster ter encontrado um grupo de “30 famílias de índios” na Serra da Pitanga, uma base foi comprada pela SVD às margens do Rio Ivaí, onde teve início, em julho de 1911, a missão verbita. Segundo Pe. César (1989c, p. 558-559), os resultados dessa missão não foram considerados satisfatórios pelas lideranças da Congregação e o fracasso se deu primeiro por não serem índios Guarani, e sim Jê, da etnia Caingangue, com valores culturais muito diferenciados dos primeiros, e pelo fato de se encontrarem em um estágio “bastante desculturado”. Outro motivo teria sido a intervenção estatal através do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Devido a esses “problemas”, a missão se manteve somente até 1922, quando o terreno foi vendido. Mais tarde, na década de 1940, Pe. Humberto Ostlender desenvolveria trabalhos no campo da Lingüística, elaborando um “glossário de 1.725 expressões” da “fala caingangue” (CÉSAR, 1995, p. 99). Alexandre Otten (1995), em seu texto Evangelização e Inculturação, observa um vazio de informações sobre as atividades da SVD entre grupos indígenas no período de 1922 a 1962, em contraste com os dados sobre as 106 CES Revista, v. 22

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atividades ligadas à educação em centros urbanos. Conforme dito anteriormente, o fundador da Congregação sempre incentivou a atuação dos missionários no meio educacional, o que faria com que os verbitas assumissem colégios e seminários. O primeiro seminário a ser aceito no país foi o de Vitória, em 1895, mas o trabalho não durou mais que “uns meses”, reunindo apenas cerca de sete seminaristas. No ano de 1898, o seminário de Santa Isabel foi entregue à diocese local e a SVD se retirou do Espírito Santo (CÉSAR, 1995, p. 9-10; WISNIEWSKI, 1995, p. 13). Nesse tempo, a SVD já havia se fixado na cidade centro político e eclesiástico do país. O Seminário de Petrópolis foi aceito em 1897, cidade de onde a SVD começa a se expandir no Brasil, a pastoral buscando atender não só aos alemães mas também aos nativos do país. Para o Pe. Arnaldo Janssen, era este o local ideal de se montar a sede da SVD no Brasil, porém Petrópolis possuía muitos padres e madres e uma população relativamente pequena, dificultando as intenções da Congregação e novos locais começaram a ser estudados (WISNIEWSKI, 1995). A mais significativa expansão seria para a cidade de Juiz de Fora, onde a SVD atuou no Colégio Stella Matutina e, em 1901, aceitou como doação a Academia de Comércio. Além desses colégios, os padres da SVD assumiram também a Igreja Matriz e as capelas de Matias Barbosa e de Coronel Pacheco. No momento da doação, a Academia de Comércio encontrava-se em construção. Seguindo orientações de Pe. Janssen para que o ambiente atendesse a, pelo menos, 200 internos, a SVD ampliou o projeto do prédio para três andares, mas os dois últimos andares só seriam acabados em 1991, noventa anos depois, e o projeto inicial de transformar o terceiro andar em dormitórios não foi seguido, instalando-se no local novas salas de aula. As obras iniciais de 1901 contaram com empréstimos vindos de Steyl e ficaram prontas em 1905 (WISNIEWSKI, 1995). Em 1901, a SVD aceita diversas paróquias e escolas menores. No Paraná assume as paróquias de Muricy, São João do Triunfo e Palmeira; em Minas funda a Escola das Servas do Espírito Santo em Juiz de Fora e de volta ao Espírito Santo assume duas escolas paroquiais em Santa Isabel e Santa Leopoldina. Entre 1901 e 1912, há um intenso movimento da SVD aceitando paróquias em vários estados do Brasil e também são aceitos um ginásio em Vitória (ES) que funcionou até 1916 e o Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte que, assim como a Academia 107 Juiz de Fora, 2008

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de Comércio, mantém-se até os dias atuais (WISNIEWSKI, 1995, p. 27-29). Quanto ao braço feminino da SVD no Brasil, as primeiras Servas do Espírito Santo desembarcaram em agosto de 1902, depois de seguidos pedidos feitos pelo Pe. Koester, reitor do Stella Matutina. Koester pedia professoras que falassem fluentemente o francês e tivessem boa noção do Português, pedido que teria gerado grande desconforto no fundador da SVD que sentia ojeriza pela influência da cultura francesa no Brasil (CÉSAR, 1995, p. 52). As seis primeiras Irmãs assumiram o Colégio Stella Matutina, que possuía algo em torno de 14 alunas à época. À frente do Colégio, as Irmãs buscaram sua manutenção com certa independência financeira dos missionários verbitas, ingressando na Sociedade Propagadora de Ciências e Artes, em 1903. Daí teceram ramificações para outros estados como o Paraná, o Espírito Santo e o Distrito Federal, atuando principalmente em colégios (WISNIEWSKI, 1995, p. 50-53). Entre 1914 e 1925, a SVD atua nos Estados de São Paulo e Goiás com colégios que, posteriormente, tornaram-se de pouco interesse para Congregação, por falta de recursos, a maioria estando situada em comunidades sem condições ou interesse de financiá-los. No colégio de Batatais, em São Paulo, segundo César (1995, p.73,74), um outro fator foi importante para a desativação: o contexto internacional relacionado à Alemanha e aos conflitos bélicos da Europa do início do século XX, agravados pela atuação nacionalista de verbitas alemães, ato mal visto por autoridades civis e eclesiásticas nacionais. 2 O INSTITUTO ANTHROPOS E SUA MISSÃO O aprimoramento do processo missionário verbita deu origem à Revista e ao Instituto Internacional Anthropos, na Alemanha. Um periódico, destinado a publicar análises antropológicas produzidas por missionários verbitas de diversas partes do mundo, é criado em 1905. Com o nome Revista Internacional Anthropos, esse periódico é fundado pelo Pe. Wilhelm Schmidt e tem o seu primeiro número publicado em 1906, contando não só com a aprovação, mas com o incentivo do fundador da Congregação (PIEPKE, 2007, p. 108, 110). Segundo Joachim G. Piepke (2007, p. 110-112, 115), a intenção do fundador da revista era criar um fórum em que os missionários forneceriam conhecimentos e receberiam aperfeiçoamento em Antropologia e que serviria de apoio ao trabalho missionário da SVD na busca da compreensão e inserção 108 CES Revista, v. 22

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em outras culturas. Essa interação evitaria falha na comunicação dos verbitas com povos de culturas diferentes e produziria estudos em diversos campos da vida deles. Assim, o periódico funcionaria como meio de organizar e viabilizar os estudos produzidos por missionários que atuariam como colaboradores da revista e disporiam de um centro com formação científica para desenvolver os trabalhos. A Revista Internacional Anthropos obteve a aceitação e reconhecimento do meio acadêmico (QUACK, 2006), dessa forma, crescendo o número de participantes e também as formas de publicação. Para atender à nova realidade, foi fundado, em 1931, pelo mesmo Pe. Schmidt, o Instituto Anthropos, situado em Viena. O Instituto, buscava não mais apenas publicar artigos e estudos como era feito na revista, mas também incentivar expedições de pesquisa em vários países (ANTHROPOS INSTITUTE, 2007; PIEPKE, 2007, p.118,119). 3 A ANTHROPOS NO BRASIL Atendendo a pesquisadores de diversos países, o Instituto Anthropos desenvolveu ramificações e, dessa forma, chegou ao Brasil. Aqui seu principal colaborador e incentivador foi o Pe. José Vicente César, que, juntamente com o Pe. Guilherme Saake, seriam os colaboradores brasileiros para a Revista Anthropos (PIEPKE, 2007, p.120). Saake é responsável por “numerosas produções científicas” entre os anos de 1950 e 1962 (CÉSAR, 1989c, p. 560) e Pe. César atua entre as décadas de 1960 a 1990. A criação do Instituto Anthropos no país envolve ao menos dois aspectos importantes. Alexandre Otten (1995, p.65-70) aponta as mudanças que ocorrem no interior da Igreja Católica em nível mundial a partir de 1962. No discurso proferido pelo Papa João XXIII para a abertura do Concílio Vaticano II, a Igreja é instada a mudar seu foco para um aperfeiçoamento de sua visão antropológica da fé, ou seja, a Igreja deveria mudar sua forma de evangelização para uma aproximação com respeito à identidade do outro e a evangelização em si seria obra do Espírito Santo, o que foi, desde então, chamado evangelização inculturada. Por outro lado, desde o início da década de 1960, tomava forma no interior da Igreja no Brasil “[...] um senso de responsabilidade religioso-científica [...]” que levaria a pretensões de se criar aqui um centro de estudos avançados em Antropologia (HEEKEREN, 1979, p.1). O novo contexto no interior da Igreja 109 Juiz de Fora, 2008

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vai facilitar a ramificação no Brasil do projeto antropológico da SVD que já vinha se relacionando com povos indígenas desde os primeiros anos de atividade da Congregação. Em 1962, influenciado pelo molde do Instituto Anthropos da Alemanha, o Instituto Anthropos Brasileiro de Etnografia foi, então, fundado. Mas é a partir de junho de 1965, com a entrada do recém-doutor em Antropologia pela Universidade de Friburgo, Pe. José Vicente César, que o Instituto toma novos ares. César vai promover uma organização das contas e regularizar legalmente o Instituto. E, através de uma “ata fictícia” elaborada em 1967, a criação do Instituto é recuada para 16 de fevereiro de 1960, data escolhida em homenagem ao nascimento do Pe. Guilherme Schmidt, que havia falecido em 1954. Outra providência foi a mudança do nome do instituto para Instituto Anthropos do Brasil (HEEKEREN, 1979, p.1). O primeiro registro de uma obra para o acervo do Instituto é datado de 1965, e identifica-se como responsável pela organização inicial deste acervo o Pe. Pedro Holz. Segundo Heekeren (1979), a partir de então, o Instituto começa a ganhar campo de influência e já em 1970, durante o segundo encontro sobre a Pastoral Indígena organizado pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), apresentase como referência no campo da missão junto aos indígenas. Tendo Pe. César como presidente desde a sua fundação até o falecimento desse verbita em 1995, a Anthropos do Brasil teve maior atuação entre 1968 e meados da década de 1980, com repercussão nos meios de comunicação e formação de um grande acervo. César (1981c, p. 283) define a atuação da Anthropos do Brasil no período de 1968 a 1975 como “[...] o centro em que giravam as iniciativas da Igreja em favor dos índios [...]”. Heekeren (1979, p. 2) destaca a atuação de seu diretor: [...] o maior valor que projeta a entidade nos seios culturais são as contribuições abalizadas que o Diretor tem condições de oferecer no campo da Antropologia, mormente na legislação indígena no Brasil, nos problemas de terras pertencentes aos índios e no campo da pastoral indígena no Brasil.

Nesse período, o Instituto passa por uma importante mudança, ganhando sede ampla em Brasília, deslocamento que foi defendido pelo presidente sob a justificava da “[...] ampliação do prédio para instalação do Museu Etnográfico e 110 CES Revista, v. 22

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Biblioteca do Instituto e pela proximidade da Universidade Nacional de Brasília e também de órgãos nacionais que se ocupassem de problemas educacionais e indígenas [...]”, entre outros (INSTITUTO, 1972, p. 5). Na nova sede que se realiza, então, em abril de 1972, o 3o Encontro de Estudos sobre a Pastoral Indígena, patrocinado pela CNBB, no qual ficou acertada a criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), cujo primeiro presidente foi o então presidente do Anthropos do Brasil, Pe. César (HEEKEREN, 1979). Heekeren (1979, p. 2) afirma que, através de César, o Anthropos e o CIMI exerceram “notável influência” na criação do Estatuto do Índio, que seria aprovado em dezembro de 1973. O próprio César apontaria, ainda, sua contribuição no sentido de criar seções regionais do CIMI, na intenção de atender melhor às necessidades das diversas regiões do país (CÉSAR, 1981c, p. 283). Mas já em 1975, o Pe. César deixa de estar à frente do CIMI, demonstrando em diversas publicações seu descontentamento com a atividade “indigenista” do Conselho Indigenista Missionário do mesmo e também de órgãos indigenistas governamentais, ponto que será comentado adiante. Em Brasília, a organização do acervo museológico e bibliográfico do Instituto é intensificada nos anos de 1975 a 1982, período marcado por descobertas arqueológicas feitas pelo Pe. César na região de Capela Nova, ao sul de Belo Horizonte, na década de 1980. São urnas indígenas e pequenos vasos que passam a integrar o Museu do Instituto (INSTITUTO..., 1972, p. 2). Além dos acervos, desde 1971, trabalhos de assistência seriam realizados junto a povos indígenas nas imediações da cidade de São Paulo: “[...] assistência material e religiosa a índios Guarani por ocasião das festas natalinas [...]” (INSTITUTO..., 1972, p. 3). Além disso, a difusão de conhecimento e a formação de pessoal para o trabalho com sociedades indígenas sempre ocuparam a atenção do Presidente do Anthropos. Em janeiro de 1980, Pe. César foi convidado a realizar um curso de Pastoral Indígena a missionários do Paraguai (BRASIL-NORTE SVD, março de 1980). E, em seguida, teria recebido convite para “[...] assessorar nesse assunto uma importantíssima reunião das maiores autoridades pastorais do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano)” (HEEKEREN, 1979, p. 2). Como dito anteriormente, César se manteve à frente da presidência do Anthropos do Brasil durante toda sua fase ativa e, no final da década de 80 e início dos anos 90, ele recusou diversos pedidos da Congregação do Verbo 111 Juiz de Fora, 2008

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Divino para que o Instituto fosse transferido de Brasília para Juiz de Fora. Por fim, em 1991, por conta de seu estado de saúde, a transferência tornou-se obrigatória. Desde então, o acervo bibliográfico e museológico do Instituto encontra-se sob a custódia do Museu Etnográfico da Academia de Comércio de Juiz de Fora. Atualmente, a Congregação do Verbo Divino estuda a reativação do Anthropos do Brasil, conforme informou Joachim G. Piepke, Diretor do Anthropos Internacional, durante a palestra proferida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 24 de maio de 2007. 3.1 O LUGAR DA CIÊNCIA Le Roy (1906, p.4), em um texto de abertura da Revista Anthropos sobre o “papel científico dos missionários”, afirma como vocação primordial daqueles que se lançam no ofício heróico do trabalho da evangelização o “salvar almas pelo evangelho”, tanto quanto isto seja possível e para quantos povos a missão possa alcançar, que motiva e deve motivar a opção de quem abandona a própria cultura e país para dedicar-se à missão. Cem anos mais tarde, Pe. Joachim Piepke (2007, p. 109), diretor do Instituto Anthropos Internacional, ao fazer um balanço das atividades da Instituição, afirmaria o lugar da ciência como subsidiária ao trabalho missiológico, entendida aqui a Missiologia como um ramo da Teologia voltada para a reflexão teórica e dos “métodos de proclamação do Evangelho entre os povos”. A afirmação do lugar primordial da missão religiosa teria se mantido na história da Congregação do Verbo Divino sem conflitos com o projeto científico. A ciência é aqui considerada base para a ação missionária, fornecendo elementos para o conhecimento dos povos e a comunicação para a transmissão da palavra evangélica. A evangelização compreenderia, assim, uma “pesquisa antropológica de base”, conforme Piepke (2007, p. 109) a denomina e, vale lembrar, uma pesquisa linguística também “de base”1. Noutro nível, ainda retomando as palavras do Diretor, a atividade missionária realizada nesses moldes poderia ou deveria, efetivamente, ser produtora de ciência, isto é, no campo da Missiologia. Se o lugar conferido à ciência parece não ter se tornado objeto de polêmica no campo missionário, o sentido da missão religiosa e particularmente a noção de inculturação produziu um conjunto de discussões e perspectivas divergentes. 1

Observe-se que o Anthropos Institute, em seu site na internet, define-se como instituto de pesquisa nas áreas da Linguística, Antropologia e “Religion Studies”.

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Não cabe aqui acompanhá-las de forma sistemática, mas é interessante apontar algumas questões que ocuparam lugar importante na história do Anthropos no Brasil. Antes, contudo, do comentário sobre a atuação do Instituto junto aos povos indígenas no Brasil, segue uma breve análise de suas atividades no campo científico. Observa-se, de início, o lugar de encontro entre fé e ciência no contexto de formulação do projeto missionário, com particular atenção à concepção de ciência que estaria na base das atividades de pesquisa e difusão de conhecimentos empreendidas pelo instituto no Brasil. 3.1.1 Civilizar A primeira teoria antropológica, que busca construir um pensamento científico sobre a humanidade em sua unidade (biológica) e diversidade cultural, é o evolucionismo social. A noção central dessa escola antropológica que predomina no século XIX e influencia, sobremaneira, um conjunto de disciplinas desde então é a de que as sociedades humanas se desenvolvem a partir de um único caminho, passando de formas menos elaboradas a mais elaboradas, em todos os campos do conhecimento e atividade humana, da vida material à espiritual. Tal noção serviu de base para grande parte das missões civilizatórias empreendidas junto a povos ditos, então, primitivos, os quais, sob a ótica do evolucionismo, deveriam, necessariamente, caminhar em direção à civilização, estando, contudo, no momento de sua descoberta pelos ocidentais, vivendo no que se considerava como estágios anteriores da História da Humanidade. Progresso é uma noção chave formulada pelo pensamento evolucionista e que fundamentou, em grande parte, as missões religiosas no que por elas foi compreendido como trabalho de elevação moral levado a povos não-cristãos. Reunir à cristandade os povos pagãos seria, nessa perspectiva, uma obra grandiosa aos olhos de Deus e um bem maior para a Humanidade, considerando-se aqui tanto o que é pensado como evolução moral-espiritual quanto o progresso tecnológico. A ciência possui nesse contexto histórico papel absolutamente fundamental. Não apenas o conhecimento do processo de desenvolvimento da Humanidade pretende-se científico, formulando-se a partir de dados empíricos e da comparação sistemática entre os costumes dos povos (trata-se 113 Juiz de Fora, 2008

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da primeira aplicação do método comparativo em Antropologia), como também se torna um consenso a idéia de que é necessária e mesmo urgente a pesquisa sobre as diversas formas de sociedade e costumes em todos os continentes e particularmente entre os povos considerados os mais primitivos que estariam em vias de extinção. Um motivo, então, importante na perspectiva dos teóricos evolucionistas é a documentação para a pesquisa. Compreende-se aqui a preocupação com a coleta e registro do maior número possível de informações sobre povos que, em curto espaço de tempo, na visão dos evolucionistas, transformariam seus costumes a partir do contato com a civilização. Tal perspectiva aponta a importância da constituição de grandes inventários dos usos e feitos da Humanidade, em todas as áreas da vida e deu origem à organização de museus bastante conhecida que utiliza uma classificação universal externa às culturas para a apresentação de um conjunto de objetos, descolados de seu contexto de produção. Para além do valor da documentação de estágios que permitiriam acompanhar o caminho trilhado pela Humanidade, a ciência deve fundar a missão civilizatória. O Ocidente (em sentido amplo), diriam os evolucionistas, representaria o maior grau de desenvolvimento alcançado pela espécie humana, estando implicado na tarefa de resgatar de sua infância os povos nãocivilizados. Não é possível deixar de notar a afinidade entre textos escritos pelo principal responsável pelo Instituto Anthropos no Brasil e o projeto civilizatório formulado nestes termos. O olhar para povos que estariam em vias de se extinguir, a ênfase ao seu atraso tecnológico, a afirmação de uma evangelização que não deve abrir mão da transmissão da moral cristã, considerada, sem dúvida, uma forma mais digna em comparação a costumes inferiores dos silvícolas, tudo são formulações sustentadas por uma perspectiva da evolução conforme anteriormente apresentada. No contexto do Instituto Anthropos do Brasil, cuja atuação e perspectivas pode-se conhecer principalmente através das publicações de autoria de seu presidente, o Pe. José Vicente César, um grande investimento é feito no campo científico. A amplitude do projeto científico pode ser observada no texto do Estatuto do Instituto, publicado no Diário Oficial da União (D.O.U.) em fevereiro de 1973. Na apresentação dos fins do Anthropos são listados: Promover [...] estudos em Etnologia e Lingüística no Brasil; fomen-

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tar [...] o progresso das ciências [...]; incrementar pesquisas de campo [...]; estimular publicações [...]; erigir museus [...]; manter cursos de formação (em Antropologia) [...]; promover encontros de estudo para missionários [...] (ESTATUTO..., 1973, p. 1413).

Assim, o compromisso com a ciência estaria presente em todas as dimensões da atividade do Instituto Anthropos no Brasil, desde a formação dos padres para o trabalho junto a populações indígenas, passando pela constituição de acervos (material e bibliográfico) e a implementação de pesquisas de campo, até a produção e difusão de conhecimentos com a publicação de estudos, a organização de cursos e a ocupação, inclusive, de uma posição importante no meio acadêmico brasileiro, com postos nas universidades (ESTATUTO, 1973). Investimentos para a formação do acervo do museu de etnologia e da biblioteca de Antropologia e Linguística foram documentados em balanços registrados em ata (INSTITUTO..., 1972), com mais de 80% do orçamento apresentado sendo utilizado para a compra de livros, viagens a campo para coleta de material e frete de peças. Quanto à participação do Instituto no campo acadêmico, registre-se a atuação do Pe. César como professor de Antropologia no Seminário Maior e Faculdades Católicas Integradas de Brasília. Voltando aos pontos anteriormente apresentados com respeito ao evolucionismo social, pode-se também notar, no Estatuto do Instituto, o interesse pelas sociedades indígenas consideradas fadadas ao desaparecimento e em vias de serem absorvidas pela Comunidade Nacional. Há uma preocupação na documentação museológica de suas práticas culturais, especialmente porque tais culturas seriam pouco conhecidas e uma preocupação com a assistência aos indígenas associada àquela imagem da assimilação pela sociedade envolvente. Tal perspectiva aparece com muita clareza em trabalhos escritos pelo Pe. César e também no próprio texto do Estatuto. Entende-se que a inserção na civilização ocidental cristã é um processo que, necessariamente, ocorrerá e que a mediação da Igreja aí é fundamental. O “progresso” é visto aqui como movimento unilinear e unidirecional, estando à frente dele a sociedade cristã ocidental. A questão dos povos que vivem fora do mundo civilizado cristão seria, sob esta ótica, a de como inserir-se neste mundo de forma “humana”, não violenta. Mas não há caminho alternativo pensável nem que pudesse ser comparável em dignidade a este, da cristandade e civilização.

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3.2 O COMPROMISSO COM OS INDÍGENAS Conforme foi dito anteriormente, a experiência de missões verbitas entre os povos indígenas no Brasil remonta à virada do século XIX para o XX, quando a SVD se instala no país. Não há, contudo, fontes documentais ou bibliográficas que permitam avaliar a atuação da Congregação de modo sistemático nas missões estabelecidas no Espírito Santo e no Paraná durante as duas primeiras décadas do século XX e, muito mais tarde, nos anos 1980, na Amazônia. A partir da criação do Instituto Anthropos no Brasil, por outro lado, tornase possível acompanhar, principalmente através dos escritos do Pe. César, as formas de atuação e noções que teriam orientado a atividade do Instituto junto aos povos indígenas. Os esforços se voltaram, ao que parece, principalmente para a discussão sobre o que deveria ser o trabalho missionário e de pastoral junto a povos nativos e também no campo da legislação indígena. Antes do comentário de ambos, vale destacar algumas idéias-chave conforme formuladas pelo Pe. César. Seguindo a linha de pensamento expressa por Le Roy (1906) no início do século, Pe. César afirma a tarefa evangelizadora dos índios como obra civilizatória que não deve abrir mão dos valores moralmente superiores do Cristianismo, afirmados frente a costumes “baixos” de outros povos: Enculturar-se à medida do LOGOS de Deus, assumindo nossa humanidade em Jesus de Nazaré, não significa que devamos nos rebaixar às paixões e mazelas de outros povos e culturas [...]. Sejamos gregos com os gregos, judeus com os judeus, índios com os índios, porém para elevá-los espiritual e moralmente, conduzindoos a Cristo, ao Evangelho [...]. Costumes contrários à lei natural não podem ser tolerados, menos ainda assumidos pela moral cristã [...], (CÉSAR, 1989a, p. 272).

“Evangelizar” corresponde, assim, a uma forma de “civilizar” que envolve diversos aspectos da vida e coloca, de modo particular, a questão da distância entre as culturas no que diz respeito ao “progresso tecnológico”. Quanto a essa distância, Pe. César considera “o Índio” como “problema a desafiar nossas gerações” (CÉSAR, 1991, p. 246): Sociologicamente considerado, o aspecto central do problema se

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manifesta nos atritos e dificuldades procedentes do convívio entre uma civilização tecnologicamente avançada qual a cristã e ocidental e as culturas nativas em estágio de desenvolvimento estancado, como que paradas no tempo e no espaço. (CÉSAR, 1991, p. 246 - grifo dos autores).

Essas idéias do “atraso” indígena e do “problema” da convivência entre indígenas e civilizados remetem diretamente às noções centrais do evolucionismo social e produzem uma imagem bastante negativa em relação ao que, atualmente, denomina-se, no campo dos direitos indígenas, a autodeterminação desses povos. Tais idéias deixam de considerar absolutamente a qualidade de sujeitos históricos dos indígenas, ignorando o fato de que eles também formulam, a partir de sua experiência histórico-cultural, interpretações sobre o contato com o mundo civilizado, adotam posturas neste processo etc. Não é intenção deste artigo aprofundar tal debate em termos teóricos; é interessante, contudo, pontuálo para refletir sobre alguns envolvimentos e posições que o Instituto Anthropos do Brasil parece ter assumido com base nas idéias antes comentadas. Vistos como “sobreviventes” [do contato com os brancos] “acaboclados” (ou, na definição eufemística, “aculturados”), os “desamparados selvagens” (CÉSAR, 1991, p. 246) são tidos como objeto de grande interesse para a Igreja Católica, uma “causa” altamente merecedora de sua atenção e engajamento. No texto “Os Índios e as Missões” (CÉSAR, 1979, 1980a, 1980b, 1980c, 1981a, 1981b, 1981c, 1982a, 1982b, 1982c) publicado em diversos fascículos da Revista Atualização, o padre César expõe sua crítica a uma ação missionária adotada por certa parcela da Igreja, principalmente a partir do Concílio Vaticano II, em 1968, que, no seu entender, em defesa de uma “inculturação” (entendida, conforme Pe. César, de maneira equivocada), abandonaria o motivo maior da evangelização como centro da missão. Pe. César critica, particularmente, as orientações que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) assumiria a partir de 1975. O presidente do Anthropos parece considerar o desenvolvimento da questão indígena no interior da Igreja Católica como um movimento que passa da posição “humilde” de quem se propõe a colaborar com o Estado brasileiro em prol da “salvação do nosso silvícola” até a posição arrogante, em seu julgamento, de quem se opõe como “verdadeira potência” [referindo-se ao CIMI], ao governo e às instituições nacionais ligadas à questão (CÉSAR, 1981b, p. 157). Na avaliação de Pe. César (1981b, p. 157), havia, em fins dos anos 117 Juiz de Fora, 2008

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1950 e início dos 60, um “serviço de comunicação e animação em torno da problemática indígena brasileira” encaminhado pelo Pe. Lourenço van Sonsbeek como subsecretário do Secretariado Nacional de Atividade Missionária da CNBB. Em 1968, realizou-se o 1º Encontro de Estudos entre Missionários e Antropólogos, igualmente promovido pela CNBB, quando se falava em “promoção humana do Índio” e da exigência, por parte dos missionários, de “aculturar-se” “[...] sendo mister tornar-se como membro da própria tribo, valendo-se [os missionários] dos recursos da cultura índia a ser evangelizada [...]”; mas, na visão do padre, a Igreja teria se desviado de sua missão junto aos povos indígenas quando inicia um processo de “laicização” do CIMI. Desse Conselho, que foi presidido pelo próprio Pe. César de sua criação em 1973 até 1975, o bispo de Goiás Velho e delegado do Secretariado supramencionado, Dom Tomás Balduíno, teria “se apoderado” em junho de 1975 (CÉSAR, 1981b, p. 157), a partir do que haveria um processo crescente de afastamento do que é tido, nos moldes da missão evangelizadora tal qual apresentada nos textos anteriormente citados, como o papel da Igreja. No campo da legislação indígena, depara-se novamente com a perspectiva da assimilação mencionada anteriormente. Como diz Pe. César, comentando os resultados do 2º Encontro de Estudos realizado na sede do Anthropos, em São Paulo, em fevereiro de 1970, os missionários ali reunidos com antropólogos e o então presidente da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), “[...] reafirmam a posição assumida de preparar as populações indígenas para uma integração harmoniosa na sociedade nacional” (CÉSAR, 1981b, p.162). As conclusões desse Encontro, definido pelo jornal O Estado de São Paulo como “encontro entre a Ciência e a Fé” (28/02/1970) antecipariam o artigo 1º do futuro Estatuto do Índio, aprovado em 1973, de cuja elaboração o presidente do Anthropos do Brasil teria participado diretamente. A legislação indigenista no Brasil, desde o Estatuto do Índio, terá uma mudança significativa de orientação apenas em 1988, com a aprovação da nova Constituição Brasileira. Da perspectiva assimilacionista ou da “integração” do Estatuto passa-se ao direito à diferença, ou seja, ao direito à opção por viver conforme a orientação da própria cultura (BRASIL, 1988, artigos 231 e 232). Em um comentário escrito por Pe. César (1989b) intitulado “Os índios e a Nova Constituição”, ele critica o texto constitucional, nos artigos 231 e 232: O novo texto constitucional sobre os índios é de redação pesada,

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pobre de estilo, prolixo, arrastado e repetitivo, longe da concisão e clareza do art. 198 da Emenda Constitucional de 1969, que serviu de base para o Estatuto do Índio, criando nova ordem jurídica de ampla proteção aos aborígines do Brasil, (CÉSAR, 1989b, p.12).

Defensor do Estatuto do Índio – que, na mesma matéria, intenta que “[...] não seja simplesmente considerado revogado frente à nova e atual Carta Magna [...]” -, o padre não vê como avanço a mudança de perspectiva e lembra o ponto de vista defendido no Estatuto: o de “[...] uma integração progressiva e harmoniosa que, sob cautelas, caminhará para a emancipação do regime tutelar (artigos 9, 10 e 11)” (CÉSAR, 1989b, p. 12). Artigo recebido em: 26/06/2008 Aceito para publicação: 20/10/2008

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