Missão integral e o mercado de bens contemporâneo.doc

May 24, 2017 | Autor: Sidney Sanches | Categoria: Missiology
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ESPIRITUALIDADES, RELIGIÕES E A MISSÃO DA IGREJA EVANGÉLICA NO MERCADO
ATUAL DE BENS ESPIRITUAIS


Sidney de Moraes Sanches[1]


RESUMO


Este pequeno ensaio entende a espiritualidade como a relação entre o
espírito humano e o lugar no qual ele mora, vive e constrói sua identidade.
Lugar e ar, portanto, são metáforas para chão que nutre, alimenta, dá e
mantem a vida. As ofertas contemporâneas de espiritualidades são auto-
inclusivas, justapostas, não sobrepostas, e praticadas em conjunto, como em
um mercado de bens simbólicos/espirituais. A missão da igreja evangélica
atual é descobrir-se como supridora deste anseio por espiritualidades, e
oferecer uma espiritualidade extática e estética do sublime.


PALAVRAS-CHAVE: espiritualidades, mercado, religiões, transcendência,
sublime.

ABSTRACT

This little essay understands spirituality as a relationship between human
spirit and environment where it lives, breathes and builds your identity.
Place and air are metaphors for ground that nourishs, feeds, gives and
keeps the life. The contemporary offerings of spiritualities are self-
inclusives, juxtaposed, not superimposed, and are exercises in a whole,
like a market of a symbolic/spirituals goods. The mission of contemporary
evangelical Church is self-disclosured like furnishers of this anxiety for
spiritualities, and offering your own ecstatic and esthetic spirituality of
sublime.

KEYWORDS: spiritualities, market, religions, transcendence, sublime.

Introdução

Toda espiritualidade se relaciona com um lugar, um chão que a alimenta
e a modela, uma vida presente que todo ser humano experimenta. Em se
tratando dos dias de hoje, eles são descritos como multifacetados,
descentralizados, superfragmentados, hiperindividualizados, massificados,
midiatizados. Não nos deveria surpreender, portanto, que a espiritualidade
também seja assim caracterizada.


Nos dias de hoje, nem mesmo o Cristianismo se salva. A experiência
cristã é tão multifacetada, descentralizada, superfragmentada,
hiperindividualizada, massificada e midiatizada quanto são esses próprios
dias. Ela se realiza em micro-lugares, tais como: Protestantismo(s),
Pentecostalismo(s), Neopentecostalismo(s), Catolicismo(s). E, em micro-
temas: missão integral, libertação, feminismo, minorias, jejum e oração,
batismo com o Espírito Santo, santificação, guerra espiritual, cura
interior, discipulado, cultura, e muitos outros. Ainda que alguém queira
dizer que a espiritualidade é uma – a cristã, contudo ela é apenas
vivenciada nesses e outros diversos lugares. Isto é, só a experimentamos
desse modo.


I. Os dias de hoje como lugar de abundante oferta de espiritualidades


A metáfora do lugar sugere que a espiritualidade seja encontrável,
mapeável, senão não é um lugar. Onde procurar a espiritualidade, nos dias
de hoje? Não nas igrejas, mas na Internet, na TV, no cinema, nas ideias, na
cidade, no ar... Talvez essa seja a metáfora, ar, que melhor descreva este
tempo cuja atmosfera está encharcada de espiritualidade, que abastece o
mercado atual de espiritualidades.


O ar é a atmosfera que respiramos e da qual não nos preocupamos em
reconhecer, pois estamos imersos nela. Somos ensinados, pela Ciência que se
preocupa com a análise da natureza física das coisas, que ele é decomposto
em substâncias benéficas para os seres humanos, as principais sendo
Hidrogênio e Oxigênio, e as maléficas, que podem nos destruir como o Gás
Carbônico, afora muitas outras das quais ele é composto.


Talvez essas informações científicas sejam importantes quando se trata
de melhorar ou piorar o ar que todos respiramos. Talvez elas impressionem
quando se descobre que se pode manipular o ar, separar suas partes boas das
ruins, guardar as partes boas em garrafões e vendê-los para melhorar e
prolongar a vida de pessoas nos hospitais.


Ela também nos diz que no ar passa tudo o que nós precisamos ou
consumimos, que pode nos matar ou nos fazer viver. As bactérias e vírus
mortais, as ondas de rádio e TV, os fios e cabos suspensos no ar, as balas
e palavras que saem das armas e das nossas bocas. Mais do que o chão, a
terra, o ar é o lugar onde nos movemos, vivemos e existimos, sem sequer
sabermos de onde vem e para onde vai. Não é à toa que o ruah hebraico e o
pneuma grego insistam que o espírito que age por Deus é ar.


Terrível mesmo é a falta do ar. Que o digam os seres humanos asmáticos
e os que padecem de problemas respiratórios. Também que o diga quem se
sente sufocado, enforcado, afogado, perplexo, por isso mesmo, com a
sensação de que está sem ar, sem fôlego. É assim que se parecem muitos
cristãos nos dias de hoje.


Quando falta o ar, a Ciência pouco ajuda. Trata-se de viver e somente
é possível respirando-o. O ar é o mundo que respiramos e sentimos a
necessidade dele quando ele parece nos faltar, quando o mundo não parece
mais familiar, quando ele parece envenenado e as pessoas usam máscaras que
filtram o ar para não ter contato direto com ele. No entanto, é impossível
parar a respiração, é impossível deixar de viver no mundo. A alternativa é
a morte.


Interessante quanto ao ar é que dele não se pode fazer reservas, nem
do passado nem para o futuro, a não ser em pequenas quantidades. Ele existe
para ser consumido. Essa condição de existência no mundo impõe aos seres
humanos a ordem do presente. É ela que orienta o espírito humano e, assim,
a sua espiritualidade, carregada de um presente intenso e urgente. Ele
sabe, quanto ao passado, que se respirou algo; mas, quanto ao futuro, o
máximo que sabe é que deve continuar respirando o ar de agora, e
sofregamente.[2]


Habitantes de um mundo urbano, a arquitetura urbana retira o
horizonte, veda o futuro, encerra o espírito humano em uma caixa, onde
parece que ele repete cotidianamente as mesmas experiências. O ar está aí,
porém viciado, a vida já está dada, o caminho já foi definido, cabe-lhe
apenas seguir respirando sem maior significação.


Dizia o pregador:


Que prazer tem o homem debaixo do Sol?[3]


Assim, o presente oferece o único ar que os seres humanos respiramos.
Ele se apresenta como um mundo de sensações bastante complicado para o
espírito humano. A sensação é de confusão quanto ao passado, que provoca a
avaliação de cada decisão tomada, cada gesto efetuado, cada palavra dita.
Ele nos obriga a buscar pela memória; mas ela é difusa e interesseira.


Nesse presente, não há futuro, não há escatologia, um fim aonde se
chegar, porque ele já chegou. Não há o que planejar, por que tudo já está
planejado. Não há o que organizar, porque tudo já foi organizado. Deve-se
somente encaixar naquele lugar que melhor agrada, nos sonhos que já foram
sonhados antes por outros.


Se a sensação mais forte não é de caminhar para um fim, a sensação é
de que o fim já chegou. Não é apocalíptica, é escatologia. Não é à toa o
sentimento atual de juízo e cansaço. As promessas da Modernidade falharam,
o Sol fez e concluiu seu percurso, e, sem percebê-lo, o tempo passou para
todos, deixando um enorme gosto amargo de fim de campeonato, com as emoções
em frangalhos, a mente sobrecarregada, e imposta a necessidade espiritual
de prosseguir vivendo.


Na ausência de algo a mais por fazer, da desistência de que surja um
buraco no céu de onde alguma novidade desça, sob a ameaça dos buracos que
brotam das profundezas da terra de onde saem todos os males, o espírito
humano agoniza e se diverte com isso. O grotesco, o sujo, o inominável, o
amoral, o deturpado, polui o ar tornando-o irrespirável. O espírito humano
se diverte com a própria sensação de morte, com o próprio sufocamento.


Sem futuro, a antiga noção judeu-cristã de sacrifício, tão cara ao
Cristianismo e à Modernidade, perdeu o sentido.[4] Era a certeza de que há
um futuro que o justificava. Esse futuro era oferecido como prêmio pela
renúncia a algo, aqui e agora, em troca de outra coisa mais à frente. Se o
ser humano passasse a vida inteira se sacrificando financeiramente, os
filhos e netos teriam uma vida melhor mais à frente.


O sacrifício também era o preço a pagar pelos erros cometidos no
passado, individuais ou coletivos, e que traziam, como consequência no
presente, sofrimento, pena, castigo, culpa, e a esperança futura de uma
expiação, perdão, alívio. Desligado do passado, perdeu-se o significado do
sacrifício. Sem um futuro a se realizar, não há razão que justifique o
sacrifício.


Todavia, o sacrifício não foi removido da experiência humana de estar
no mundo de hoje. Com um presente inesgotável à frente, ele deve ser bem
vivido e isso a qualquer preço. Quanto mais caro, melhor a vida, sendo esse
o sacrifício que se conhece. Dedica-se a vida à devastação, verdadeira
rapina de coisas, denominada consumo ao qual os seres humanos dedicam a
maior parte do que obtem com algo chamado trabalho, convenientemente
chamado nos dias de hoje, de luta.


Quando não se pode pagar à vista, faz-se dívidas, acumulando-se a
culpa, e recebendo castigo não depois, mas agora mesmo, por meio dos
mecanismos de crédito e financiamento, resultando em condenação e exclusão.


Um antigo sábio cristão-judeu, na carta de Tiago, dizia:


Vocês cobiçam coisas, e não as têm; vocês vivem a lutar e a
fazer guerras! Pedem e não recebem, porque pedem para gastar
em seus prazeres![5]


Seja a busca pelos melhores bens e serviços, seja a exclusão dessa
possibilidade, faz pender o espírito humano sobre o Nada e o Vazio, entre o
medo de ter e perder, e o medo de perder e não mais ter. Semelhante ao
antigo temor de ficar fora do céu, indo para o inferno, pior é ficar fora
do mercado de trabalho, do mercado de consumo, do mercado das bênçãos
religiosas, do mercado das celebridades.


2. As Religiões descobrem o mercado atual de bens simbólicos/espirituais


Bourdieu[6] define o mercado de bens simbólicos como aqueles bens
alocados no pólo espiritual nas dicotomias corpo/espírito,
material/espiritual. Ao refletir sobre a economia dos bens simbólicos, ele
a coloca como prevalente nas relações sociais, nas quais ao ato de dar
corresponde ato semelhante de retribuição.


Segundo ele, este toma-lá-dá-cá, tem as seguintes propriedades: 1)
ambiguidade, pois o caráter do dom e da generosidade é que devem sustentar
as relações sociais; 2) mistificação, pois nem quem dá nem quem recebe
admitem que dar-retribuir seja a base da relação estabelecida; 3) recusa da
explicitação, pois não se pode apontar o preço da dádiva, tanto de quem dá
quanto de quem recebe; ainda que seja possível calculá-lo, não é uma
questão de dinheiro, mas de doação; 4) crença, pois é opinião comum de que
este é o modo de fazer com que as coisas funcionem.


O funcionamento das trocas simbólicas depende de uma alquimia na qual
a percepção e a avaliação do que acontece sejam idênticas de ambas as
partes. Trata-se de uma estrutura social igualmente simbólica, da qual
tanto aquele que dá quanto aquele que recebe fazem parte, e são
semelhantemente estimulados a cumprir as exigências simbólicas da troca.
Normalmente, a doação gera um reconhecimento que se transforma em fator de
aceitação e submissão ao doador da parte de quem recebeu a doação. Forma-
se, então, entre ambos um capital simbólico.


Bourdieu identifica essa lógica do mercado de bens simbólicos nos bens
culturais e nos bens religiosos. No que se refere aos bens culturais,
quanto mais pura a arte, mais fruto da doação, ela será, mais
reconhecimento produzirá, e menos estará sujeita ao cálculo ou preço. Neste
caso, permanece a visão da arte "...junto com a ideia do artista puro, que
não tem outro objetivo senão a arte, que é indiferente aos valores do
mercado, ao reconhecimento oficial, ao sucesso..."[7]


Quanto aos bens religiosos, a igreja é a administradora destes, que se
recusa a reconhecê-los como tais. Daí a dubiedade da linguagem:
evangelização/marketing; fiéis/clientes; serviço sagrado/trabalho
assalariado; oferta/dinheiro. Sua base está na economia da oferenda, na
qual um bem material é transformado em um bem espiritual por sua
disponibilidade para Deus. O encarregado de fazer tal transformação é o
discurso religioso manipulado pelos encarregados de manter a economia de
bens espirituais em funcionamento. Desse modo, aquela que dá seu tempo e
recursos para limpar a igreja, não está fazendo um ato de faxina, típico de
uma empregada assalariada, mas está fazendo um ato espiritual, de limpar a
casa de Deus, cuja recompensa é a dedicação a Deus no intuito de agradá-lo.


Portanto, a economia das trocas espirituais ou simbólicas possui uma
lógica que não se submete nem depende da economia material, ainda que possa
ser traduzida nos termos desta. Um pregador que recebe uma oferta após uma
conferência de evangelização em uma igreja não é a mesma coisa que um
palestrante que recebe um honorário após uma séria de palestras em uma
empresa ou ente público. A lógica das trocas espirituais ou simbólicas
requer que qualquer interesse econômico seja recalcado, o que introduz
grande ambiguidade na interpretação das ações de doação e reconhecimento, o
que requer uma aceitação, opinião ou crença comum de que é assim que as
coisas funcionam ou devem funcionar para dar certo.


Ora, é exatamente no terreno dos bens simbólicos/espirituais que se dá
o surpreendente retorno da Religião ao ocupar ou, pelo menos, ajudar a
tornar o Vazio contemporâneo tolerável.


O abandono da Religião foi um daqueles planejamentos da Modernidade
mais contraditados e que contribuíram para o descrédito desta, por mais que
os valentes defensores dos ideais secularizantes da Modernidade ainda
queiram insistir neles. Por um breve momento, ela fez crer que os seres
humanos não eram mais religiosos, para, agora, descobrir que eles nunca
deixaram de ser religiosos.


Não se sabe quem mudou? Se a terminologia científica para a
experiência religiosa dos seres humanos ou se os seres humanos. De fato, os
dois mudaram. O que se estuda, nos dias de hoje, como religião tem muito
pouco a ver com o que a Modernidade chamava de Religião, normalmente as
denominadas Grandes Religiões mundiais: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo,
as religiões orientais, as religiões animistas, nessa ordem. Religião, nos
dias de hoje, pode ser qualquer coisa que se queira chamar assim. É muito
comum ouvir: esta é a minha religião.


Também, mudou o ser humano. Religião, para ele, possui várias
possibilidades dependendo da tensão entre individualidade e coletivividade.
Ora ele é um autônomo, ora ele é um autômato de alguma experiência
religiosa. Mas, essa experiência não vai muito longe do que lhe é possível
para respirar no mundo no qual vive. Ainda assim, ele é mais exposto a
experimentações, podendo se tornar um híbrido religioso, isto é, todos os
deuses ao mesmo tempo, aqui e agora.


Sob essa nova demanda do espírito humano chama a atenção a criação de
uma nova área do saber nas Ciências Humanas nos dias de hoje sob o nome de
Ciências da Religião. Chama ainda mais a atenção, sobretudo, o retorno da
filosofia contemporânea à religião[8], descobrindo que r(R)eligião ou
d(D)eus é o lugar onde chegou a secularização efetuada pela Modernidade, em
uma espécie de: d(D)eus morreu, vamos conversar sobre e(E)le.[9] Chama,
definitivamente, a atenção, o fato de a Teologia ser excluída ou excluir-se
inteiramente desse movimento contemporâneo do ar, reduzindo-se ou sendo
reduzida a mera espectadora, dedicada como sempre esteve à preservação de
si mesma pelo estudo de doutrinas, dogmas e credos.


A Religião, assim, se fez definitivamente necessária nos dias de hoje,
sendo a experiência da espiritualidade o seu bem simbólico mais proeminente
e atraente. Uma das alternativas mais bem sucedidas é o salto que ela
propõe, o escape para o angelical, o onírico, o celestial, feito de
recursos produtores de alguma sensação de bem estar, de êxtase, normalmente
tendo as emoções exploradas ao máximo. Por elas, o espírito humano se
entretem, se mantem suspenso de qualquer juízo, compromisso, análise. Ele é
drogado, impedido de pensar, de compreender, de refletir, sentindo-se
confortavelmente entorpecido.


3. A missão da igreja evangélica atual como supridora dos bens
simbólicos/espirituais por meio da oferta de uma espiritualidade extática e
estética do sublime


Êxtase é uma palavra utilizada na experiência humana de transcender.
Transcender é outra daquelas palavras que, de tão usadas, acabaram perdendo
qualquer sentido nos dias de hoje. Um retorno ao uso original, sugere que
transcender trata da elevação a algo superior em relação à posição na qual
se encontra quem usa a palavra. Transcender, portanto, é: elevar-se,
ultrapassar, colocar-se acima.[10]


Fica sempre a questão do que é transcendido. Nesse caso, os usos
variam mais ainda, porém dois são bastante claros. As pessoas usam essa
palavra para falar de algo que vai além delas mesmas, seja para fora delas,
seja para dentro delas. E, também, usam essa palavra para dizer de algo que
está acima de sua experiência comum, cotidiana.


Há, assim, duas características importantes do uso da palavra
transcender na experiência humana de estar no mundo, pessoal ou coletiva.
Uma delas é a experiência de elevação, um deslocamento de baixo para cima.
A outra, sugere a experiência de ir além, de ultrapassar certos limites
condicionados pela própria experiência humana. Por isso, ao êxtase é
associado o uso de outros termos, como: in-comum, extra-ordinário, sobre-
natural. O êxtase produz sensações de arrebatamento, de enlevo, de encanto,
como se aos sentidos e à mente fossem oferecidas experiências,
conhecimentos e contatos impossíveis de se ter acesso em condições normais.


Até a Modernidade, o êxtase era uma prática quase exclusivamente
religiosa. A Modernidade, desconfiada e independente da experiência
religiosa, propôs o êxtase através de diversos meios por ela
disponibilizados, tais como: as substâncias químicas e naturais; as
religiões orientais e animistas; o alcance de certos valores morais ou de
uma meta na vida; e até a conquista de uma competição esportiva. Trata-se
de um tipo de êxtase sem religião.


Nos dias de hoje, e em continuidade com essa experiência moderna, o
êxtase é proposto em outras experiências humanas, como: na performance,
principalmente nos eventos de entretenimento e diversão onde os
acontecimentos são propositalmente orientados para produzir efeitos
extáticos nos seres humanos. No consumo, no qual se criam ambientes,
shopping-centers ou lugares exclusivos, de modo a estimular efeitos
extáticos vinculados ao gozo de bens e produtos. No culto ao ídolo, no qual
o encontro ou mero toque em um ser humano elevado à admiração e desejo de
imitação dos demais produz o êxtase.


O sublime é uma palavra bastante usada em associação com o
transcender.[11] Por ser este uma elevação, o sublime sugere a experiência
humana da perfeição, do degrau mais alto em uma escada ascendente, por isso
mesmo se torna o objetivo, a meta. Na religião é, frequentemente,
identificado com o divino na sua posição de pura perfeição, ou de
santidade. A metáfora mais comumente usada para descrevê-lo é luz.


O sublime produz a sensação humana da incomunicabilidade por estar
perante algo impossível de descrever, de imaginar e, ainda mais, de falar.
A melhor forma de comunicar o sublime é a arte, não o conceito e nem a
linguagem ordinária. E a arte relaciona o sublime com a estética, isto é, o
sentido de beleza, o qual, por sua vez, aponta para a generosidade, para o
dom.


Na Modernidade, a estética se tornou uma ciência filosófica que
tratava de aplicar os princípios da razão à criação artística e seu impacto
sobre os sentidos e emoções humanas dentro dos limites dessa mesma
experiência. Ela tratava da ordem, da organização, do útil. Era uma forma
de valorização do progresso moderno. Poucas pessoas sabiam, ainda que
vagamente, do uso da estética, sendo ela restrita a uma experiência humana
acessível a poucos.


Nos dias de hoje, contudo, a estética assumiu lugar importante entre
as pessoas e grupos no chamado culto à beleza. Esse culto nada mais é que
uma busca disfarçada do sublime. O uso comum e conceitual da arte cedeu
espaço para a linguagem da poesia, da metáfora, do símbolo, como meio de
alcançar o sublime, ao invés de descreve-lo ou defini-lo. Desse modo, a
linguagem religiosa e teológica retomou todo o seu vigor, não mais como
expressão de conceitos e definições, mas como caminho para se alcançar e se
comunicar o encontro com o sublime.


O uso da palavra sublime, nos dias de hoje, deslocou o uso da palavra
transcender. Essa sempre sugeriu uma posição da pessoa do lado de fora e
além dos limites da sua experiência humana de estar no mundo. Esse caminho
para fora, para além, de certo modo, foi cortado da possibilidade humana
hoje com a demolição da metafísica.


No entanto, dentro da experiência humana pode-se experimentar algo que
estaria entre aquilo que é visível e aquilo que não é. É como se a própria
experiência humana fosse vivida no limite entre uma realidade e outra,
sendo esta outra realidade impossível de uma clara representação. É típico
da experiência humana o uso do véu, que encobre e revela ao mesmo tempo,
mas não com muita clareza. Nos dias de hoje, e sob a influência da
mitologia oriental, fala-se de um portal, um meio de acesso entre um lugar
e outro. Na Ciência, diz-se de buracos negros e certas portas no universo
que dão acesso a outro universo.


A Religião, nos dias de hoje é profundamente orientada para a
experiência humana extática e estética do sublime. Isso não é nenhuma
novidade, pois, tradicionalmente, é na Religião que se encontram os maiores
estímulos para essa experiência. Não raro, nos dias de hoje, é exatamente
isso o que as pessoas e grupos buscam quando se tornam religiosas e são as
sucessivas experiências extáticas e estéticas que as mantém religiosas.


Para uma experiência religiosa cristã, não falta conteúdo para a
oferta de uma espiritualidade do extático e do estético. Primeiro: Deus,
conforme apresentado no Antigo Testamento, é representado como sublime e
elevado. Sua perfeição, também chamada santidade, o coloca muito além,
muito acima e no mais alto degrau no modo como os seres humanos
experimentam a criação. Os caracteres da invisibilidade, da
imprevisibilidade, da liberdade de Deus são-lhe atribuídos de modo a
ressaltar essa representação.


No Novo Testamento não é muito diferente. Isso é notado na glória de
Deus que preenche momentos significativos da narrativa evangélica de Jesus
Cristo. O auge dessa identificação acontece no relato joanino. Nele, Jesus
Cristo se torna um meio de acesso à glória de Deus Pai, sendo feito à
imagem de Deus, refletindo a sua glória e, por fim, é exaltado e entra na
própria glória de Deus.


Assim, a experiência humana de Deus o é do sublime, e, portanto,
também, extática e estética, produzindo espiritualidade semelhante. Essa
espiritualidade não precisa ser, necessariamente, um transcender para algum
lugar fora da humanidade, em busca de uma origem ou de um fundamento último
e final de qualquer coisa que seja.


Segundo: o extático nessa espiritualidade indica que Deus chama para
um encontro para além da experiência humana cotidiana que a enleva, que a
arrebata, que a esvazia e a preenche com novos sentimentos e sentidos,
implicando um novo olhar sobre a própria experiência.


Terceiro: o estético nessa espiritualidade indica que Deus se
apresenta como no limite da posse e da comunicação, porém sem se dar ao
domínio do ser humano e nem à sua representação em linguagem humana.
Portanto, só se pode falar de Deus enquanto o belo, o prazeroso, o
agradável. Tanto a impossibilidade da representação quanto a imagem do belo
só se permitem expressar na arte. Nela e por ela, tenta-se capturar a
forma, mas se dá vazão aos sentidos e aos sentimentos.


Quarto: nessa espiritualidade, Deus é o sublime que se dá e é
recebido, gerando a experiência humana da generosidade, simulacro da graça.
Deus, portanto, é claramente recebido e toda experiência humana de Deus
apenas pode ocorrer como uma experiência de recepção. Esta requer uma outra
experiência humana: a abertura. Porque Deus se dá, ele se abre. Porque o
ser humano o recebe, ele também se abre. A espiritualidade, desse modo,
provoca e estimula a abertura como a típica experiência humana de estar no
mundo enquanto recebe a Deus.


Conclusão


Se toda espiritualidade se relaciona com um lugar, um chão que a
alimenta e a modela, o presente da vida humana se identifica com a busca
incessante do prazer, da alegria, da abertura a toda experiência
gratificante e gratuita. As palavras êxtase e estética se encaixam bem como
descritoras e guias da experiência humana contemporânea. É possível inserir-
se nesta experiência humana por meio do domínio dos bens
simbólicos/espirituais que são valorizados e apreciados.


A igreja, como portadora dos bens simbólicos/espirituais, neste caso,
religiosos, possui na linguagem extática e estética do sublime o recurso
para oferecer o cultivo da própria experiência religiosa que satisfaça o
anseio dos seres humanos, contemporaneamente, sendo este um espaço de
atualização e realização da missão integral da igreja evangélica no mundo
atual.


Bibliografia

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VATTIMO Gianni. Depois da Cristandade.São Paulo, Record, 2004

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[1] Doutor em Teologia. Professor na Faculdade Teológica SulAmericana.
Pastor batista.
[2] GUMBRECHT, 2005, p. 10.
[3] Eclesiastes 2:22.
[4] LÖWY, 2005, p. 6.
[5] Tiago 4:2,3.
[6] BOURDIEU, p. 157.
[7] BOURDIEU, p. 180.
[8] ROUANET, 2002, p. 9-11.
[9] Os melhores exemplos: DERRIDA J., VATTIMO G. (Orgs.). A Religião. O
Seminário de Capri. São Paulo, Estação Liberdade, 2000; VATTIMO G. Depois
da Cristandade; DERRIDA J. Acts of Religion. London, Routledge, 2002.
[10] TRANSCENDÊNCIA, TRANSCENDER. In: FERREIRA, 1975, p. 1397.
[11] SUBLIME. In: FERREIRA, 1975, p. 1330.
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