Missões jesuíticas no Itatim

May 28, 2017 | Autor: Isabelle Combès | Categoria: Ethnohistory, Paraguayan History, Etnohistoria, História do Brasil, Misiones Jesuíticas, Itatines
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Missões jesuíticas no Itatim Graciela Chamorro Isabelle Combès André Freitas

Introdução Itatim (português) ou Itatín (espanhol) era o nome de um porto sobre o rio Paraguai, ao norte da confluência com o rio Apa. O nome aparece pela primeira vez em documentos da cidade de Assunção, no Paraguai, por volta de 1543. Nos documentos posteriores, a província do Itatim está localizada na margem oriental do rio Paraguai, entre os rios Taquari, ao norte, e Apa, ao sul (CORTESÃO, 1952, p. 3), ou seja, situada em uma parte do território que hoje corresponde ao estado brasileiro de Mato Grosso do Sul. Esse topônimo, de origem guarani, pode significar “pedra branca”575 ou ser interpretado como itaati, “que quer dizer ‘pedras com pontas’ devido à grande quantidade de pedras que há nesta província” (FERRER, 1952 [1633], p. 30). O primeiro europeu a penetrar na região foi provavelmente o português Aleixo Garcia, que, em meados da década de 1530, acompanhado de um grande número de índios Carijó, partiu da ilha de Santa Catarina, atual município de Florianópolis, em busca de riquezas que se encontravam nas terras situ É uma tradução de 1565 feita pelo bispo de Assunção (Viaje de don Francisco Ortiz de Vergara, RAH, col. Muñoz, t. 88, a. 115, p. 212-218) e adotada, no século XVIII, por Sánchez Labrador (1910 [17--], t. I, p. 43).

adas em direção ao oeste.576 O trajeto percorrido por Garcia não é totalmente conhecido, mas sabemos que ele passou pelo porto do Itatim, convocando indígenas falantes da língua guarani que habitavam a região. Esses índios tinham o costume de “buscar metais” a oeste, portanto, conheciam os caminhos a serem percorridos. Foi o que narrou um índio chané a Domingo de Irala, em 1543: Perguntado como ele falava guarani e como conheceu o dito Garcia, disse que a causa porque falava guarani era que em tempos passados, antes da chegada de Garcia, houve uma grande confederação de Guarani no porto que chamam de Itatim, para os indígenas irem a buscar metais. Estes Guarani passaram por suas terras, atacando suas casas durante a noite, matando muitos dos seus, capturando mulheres e filhos, que levaram ao porto do Itatim. E, estando eles como escravos dos Guarani, passou por ali, Garcia, o qual ele e outros dois irmãos seguiram em busca do referido metal, acompanhados dos Guarani. (IRALA, 2008 [1543], p. 7-8).

De acordo com o testemunho posterior de Díaz de Guzmán (1835 [1612], p. 17), os acompanhantes indígenas de García eram mais de 2.000, sendo presumível que o grupo

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Adotamos aqui a releitura da epopeia de Garcia (e de suas datas) por Julien (2005).

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fosse formado por indígenas de diferentes etnias, oriundas de lugares distantes. Seguindo as pegadas do português, os espanhóis de Assunção, no Paraguai, também percorreram a região do Itatim. Tanto Domingo Martínez de Irala como Ñuflo de Chaves, em 1557 e 1564, levaram gente para o oeste, para lhes servir de guias.577 Essas expedições somente passaram pela região, sem fixar assentamentos espanhóis. Seu objetivo era ir para o oeste encontrar o “Rei Branco” e a “Serra de Prata” que, de acordo com os indígenas, existiam em terras do ocidente, com promessas de grandes riquezas. O sonho dos moradores de Assunção interrompeu-se em 1548, quando Domingo de Irala chegou ao rio Grande, em terras da atual Bolívia, e compreendeu que as riquezas sonhadas pertenciam ao Peru, já sob o controle de Pizarro. Mesmo assim, nas décadas que se seguiram, o governo do Paraguai, os bandeirantes578 e os jesuítas passaram a disputar o caminho para a serra, interessados em garantir direitos sobre a região do Itatim para hispano-americanos e luso-brasileiros, pois havia o desejo de dominar a rota comercial, catequizar os povos indígenas da região e ainda chegar à zona da prata. Com base em documentos da época, Jaime Cortesão (1952, p. 4) escreveu ter sido a disputa territorial “a principal causa do longo e implacável conflito entre bandeirantes e jesuítas, travado naquela região”. Contudo, as dificuldades geográficas (CORTESÃO, 1952, p. 29-30), a interferência dos povos indígenas Payaguá e Guaicurú nos povoados fundados por espanhóis e a resistência dos povos indígenas falantes de guarani

do Itatim acabaram adiando, por dois séculos, uma efetiva ocupação colonial da região.579 A província do Itatim era, assim, a região mais isolada e pobre do antigo Paraguai, no século XVII (GADELHA, 1980, p. 53-169). A fundação e os translados da cidade de Xerez para a região não afetaram diretamente aos Guarani falantes do Itatim. As encomiendas580 distribuídas naqueles anos nas imediações de Santiago de Xerez e na serra do Itatim muito provavelmente não saíram do papel e, portanto, não representaram uma ocupação efetiva da terra (CORTESÃO, 1952, p. 5; 49). Em 1599, a cidade foi transferida para as proximidades do Rio Mbotetey, na região compreendida entre os rios Aquidauana e Miranda. Os Guarani do Itatim viviam perto, mas não no mesmo povoado, segundo consta na carta de Diego de Torres, de 17 de maio de 1609:

Entre 3.000 e 3.500 Guarani do Paraguai acompanharam Domingo de Irala em 1548 (SCHMIDEL, 2008 [1567], p. 104; DÍAZ DE GUZMÁN, 1835 [1612], p. 80; CALVETE DE ESTRELLA, 1963 [1571], p. 50); entre 1.000 e 2.500 a Ñuflo de Chaves, em 1557 (DÍAZ DE GUZMÁN, 1835 [1612], p. 114; RESOLUCIÓN DE LOS CASOS, 2008 [1561], p. 109); e uns 5.000 entre Cario de Assunção e Guarani do Itatim seguiram a Ñuflo de Chaves em 1564 (DÍAZ DE GUZMÁN, 1835 [1612], p. 133). 578 Sobre os bandeirantes, remetemos ao artigo de Manuel Pacheco Neto e Ana Cláudia Marques Pacheco, neste volume.

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Xerez tem como 60 homens casados, tem muitos índios que vivem em povoados grandes de 500 ou mais índios, fica como a 80 léguas de onde fora povoada Santa Cruz de la Sierra e a 100 léguas da Villa Rica, os índios não são Guarani senão de outras nações [grifos nossos]. (TORRES, 1927, p. 187).

O mesmo padre indica que os “Ytatys” vivem a dois dias de Xerez e que alguns pedem o batismo (TORRES, 1927, p. 187). Conforme o jesuíta Diego Ferrer, os Itatim viviam entre  19 e 22 graus de latitude sul, entre o rio Paraguai, a oeste, e a serra de Amambai, a leste, região desde onde os padres jesuítas receberam os primeiros pedidos  formais de evangelização, a partir de 1612. A historiografia clássica costuma pensar essas missões, e todas as da antiga província Até meados do século XVIII, a região compreendida entre os rios Paraná, Paraguai e Apa fazia parte da capitania de São Paulo e era percorrida pelos bandeirantes em busca de índios a serem “preados” ou aprisionados. Alguns desses bandeirantes apossaramse de terras na região, mas não as ocuparam de fato (GRESSLER; SWENSSON, 1988, p. 10). 580 A encomienda foi uma instituição da América Espanhola e consistiu na concessão temporária de certo número de indígenas aos cuidados de um senhor, o encomendero, que devia catequizar e proteger os indígenas a ele encomendados em troca dos serviços prestados.

MISSÕES JESUÍTICAS NO ITATIM

jesuítica do Paraguai, como missões de “Guarani”. Da mesma forma, a historiografia colonial do Rio da Prata frequentemente afirma a boa disposição dos povos indígenas para acolher o evangelho, esquecendo que a região esteve igualmente cheia de grupos descontentes que resistiram à missão. Mais do que desenvolver uma “verdadeira” história das missões do Itatim, que já foi realizada,581 queremos dar relevância a dois tópicos, que têm a ver com a imagem indígena construída pela história: além dos grupos guarani falantes, muitos outros viviam na região e, inclusive, integraram as missões jesuíticas (FREITAS, 2013); se realmente existiu um protagonismo indígena favorável à missão, também foi tenaz a resistência imposta às reduções e à colonização espanhola.

Itatim indígena Nas primeiras fontes paraguaias, os habitantes do Itatim são genericamente chamados de “Cario”: esse era o nome atribuído aos Guarani que viviam nos arredores de Assunção e foi utilizado como sinônimo de “guarani falante” nas primeiras décadas de vida da cidade espanhola.582 Uma única exceção é a carta enviada por Domingo Martínez de Irala ao Rei, em 1553, que evoca os “amigos Itatim” (IRALA, 1877 [1553], p. 577). Contudo, o uso generalizado desse termo como etnônimo é posterior, e corresponde ao início das missões jesuíticas na região a partir do século XVII. Em 1633, o padre Diego Ferrer583 descreve esses “Itatim” desta maneira: Por exemplo, ver GADELHA, 1980; SOUSA, 2004. Ver o artigo de Graciela Chamorro neste volume e COMBÈS, 2010, p. 30. 583 Diego Ferrer era o nome castelhano de Diego Ransonnier. Sacerdote, nasceu em 11 de novembro de 1600, em Borgoña, e ingressou na Companhia na Província de Flandro Belga, em 17 de outubro de 1619. Chegou a Buenos Aires em 29 de abril de 1628. Missionário entre os Itatim, faleceu na redução de San Ignacio de Itatines, em 7 de outubro de 1636, aos 36 anos (SOUSA; FERREIRA, 2006, p. 5). 581 582

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Todos estes Itatim são de boa complexão natural e não diferem dos demais Guarani, no entanto são mais civilizados que outros Guarani que temos tido contato até o momento. Na língua possuem uma pequena diferença dos demais Guarani, aproximando-se um pouco da linguagem dos tupis. De fato, alguns dizem que não são verdadeiros Guarani e nem tupis que chamam Tememinó. (FERRER, 1952 [1633], p. 30).

Sabemos que, efetivamente, os Tememinó eram um grupo Tupi da costa atlântica do Brasil. O dado de Ferrer é de grande importância no que toca às migrações tupi-guarani empreendidas em direção ao ocidente, no período pré-colonial. Também é conhecido o fato de que os guarani falantes do porto do Itatim foram protagonistas de muitas dessas migrações, impulsionados pela “busca do metal” do ocidente, e, talvez, para reencontrarem o Tamõi, um antigo herói civilizador (COMBÈS, 2011b). A “grande confederação”, aludida pelo Chané que conversou com Irala no ano de 1543, aconteceu no porto do Itatim, rumo a oeste. Vários grupos de Itatim já haviam se estabelecido em terras da atual Bolívia antes que chegassem os primeiros espanhóis, tal era o caso dos Pitaguari e dos Bambaguaçu. Todos esses grupos, chamados “Itatim” nas fontes coloniais de Santa Cruz de la Sierra, são os antepassados dos atuais Guarayo na Bolívia (COMBÈS, 2010, p. 134; 172-175, 2013). No entanto, não há nenhuma informação nas fontes coloniais que permita afirmar que o porto do Itatim tenha sido o único ponto de partida de tais migrações, ou sua única origem. Ele pode ter sido a etapa de um trajeto mais longo, como o foi para Aleixo Garcia no início do século XVI. De fato, os trabalhos do linguista alemão Wolf Dietrich podem confirmar essa hipótese. Em 1986, Dietrich sugeriu uma possível origem das migrações na costa de Santa Catarina, no Brasil (1986, p. 194), hipótese que retomamos em outro trabalho (COMBÈS, 2011, 2011b). O mais interessante é que, em outro trabalho, o mesmo Dietrich afirma ter encontrado uma alta taxa de proximidade entre o 557

idioma guarayo e o tupinambá (DIETRICH, 1990). A três séculos de distância, as observações do linguista parecem confirmar as observações do padre Ferrer. Seja como for, a mesma carta do padre Ferrer nos proporciona alguns dados etnográficos sobre os antigos Itatim. Ele os descreve como: [...] ágeis na caça, seu exercício comum de recreação é levar um tronco de madeira as costas que pesa mais de 30 quilos, e correm dois juntos, cada um com seu tronco as costas, e o que corre mais rápido torna-se vencedor. Suas armas são arco, flecha e macana, e alguns possuem lanças. Em tempo de guerra envenenam as pontas de suas flechas, de maneira que o ferido, ainda que superficialmente, vem a morrer: são destros a correr a cavalo, porque no campo aberto caçam veados a cavalo, vencendo os mesmo pelo cansaço. Homens e mulheres têm vestidos de algodão com listas muito bonitas de muitas cores. Comumente cada índio não tem mais de uma mulher. Seu modo de casamento é que o índio e índia que queiram se casar, vão pela manhã a casa do cacique ou feiticeiro principal, o qual mistura uma erva que bebem em uma cuia com água. Após beberem, o marido e a mulher trocam a erva, colocando num único buraco. Este é o sinal exterior do casamento, ou melhor, do concubinato, porque depois vivem juntos o tempo que quiserem. E quando o marido quer casar com outra mulher, deixa aquela, e o mesmo faz a mulher. Me parece que estes índios em seu modo natural de viver não conhecem a perpetuidade do matrimônio. (FERRER, 1952 [1633], p. 30).

Por meio de outras fontes, sabemos que, assim como a maior parte dos grupos guarani, os Itatim enterravam seus mortos em urnas ou vasilhas (SÁNCHEZ LABRADOR, 1910 [17--], t. I, p. 62). Também conheciam um jogo com uma bola feita de goma, que seguia existindo entre os Guarayo da Bolívia no século XVI, qualificado de “jogo sagrado” (ANUA-1589, 1929, p. 930; DEL TECHO, 1897 [1673], lib. 10, cap. XVI). De acordo com Métraux (1929, p. 930 n. 31), esse jogo seria um empréstimo feito pelos Guarani a algum grupo arawak. Os dados são importantes, porque outros costumes dos Ita558

tim parecem ter sido influenciados por outros povos. É o caso, por exemplo, das tatuagens feitas pelas mulheres, que Ferrer afirma não ter visto “em outras partes da nação guarani”: Com pontas de agulhas ou espinhos se picam, fazendo jorrar o sangue. Ferem quase a metade do corpo, pois tiram o sangue de cada poro, até que haja uma superfície ou lista larga de aproximadamente dois dedos, a qual torna-se negra ao secar. Depois picam novamente a carne, deixando outra lista semelhante e logo outra lista feita a pontaço de agulhas ou espinhos. E assim têm os braços e pernas, quase todo o corpo listado, que nunca poderá se apagar. Além do mais, a metade do rosto, desde as orelhas até o nariz, para baixo, no lugar onde cresce a barba no homem, tudo é picado e marcado na cor negra [...] não fazem isso para outro fim, que não seja, o desejo que possuem de se tornarem mais formosas. (FERRER, 1952 [1633], p. 30-31).

As aldeias descritas por Ferrer reuniam entre 100 e 200 famílias (FERRER, 1952 [1633], p. 31) e, ao que parece, estavam organizadas em bairros ou divididas por parcialidades, cada um com seu cacique. E foi parte de uma dessas aldeias que, em 1597, foi afetada pelas encomiendas “de papel” na “comarca do Itatim, alcançando dois principais, cada um com sua casa, um que se chama Tacayruy e outro Caraya, com todos seus cacique e índios a eles sujeitos” (CORTESÃO, 1952, p. 10-11). A mesma organização, por bairros, é encontrada também entre os Itatim que passaram a viver a oeste do rio Paraguai (PORRES, 1949 [1578]). Muito provavelmente, os indígenas “sujeitos e pertencentes” aos caciques principais não eram todos Itatim, mas sim cativos de guerra, como os Chané, encontrados por Irala, e os Ñuguara,584 que, conforme Susnik (1975, p. 96), eram cativos “guaranizados”. 584

A grafia desse grupo indígena também pode ser encontrada como Nuara, Nijara ou Nhuara, versão aportuguesada de Ñuára. Os líderes desse povo teriam se submetido voluntariamente – com suas esposas e crianças, 1.200 pessoas ao todo – ao serviço dos espanhóis, segundo Guillermo Furlong (1962), sendo por isso considerados indígenas “de paz”.

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Por um lado, é correto pensar que esses dados são importantes porque nos forçam a pensar nos Itatim como um conjunto de guarani falantes; por outro lado, eles reforçam a ideia de uma constante interação entre esses Itatim e seus vizinhos. Entre eles, podemos mencionar os Xaray585 do Pantanal, pois tanto os Guarani do Itatim como seus parentes da outra margem do Paraguai e os Bambaguasu podiam se casar com mulheres Xaray.586 Em 1633, o padre Diego Ferrer observa que, da mesma maneira que os “Orejones” (indígenas do Porto dos Reis, ao sul do Pantanal), os Xaray “são muito amigos” dos Guarani “porque se casam e vivem a seu modo com mulheres Guarani e os Guarani se casam e vivem com suas mulheres” (1952 [1633], p. 47). É muito provável, portanto, que as tatuagens das mulheres Itatim sejam empréstimos da cultura xaray. Os outros habitantes não guarani da região foram descritos em 1633 pelo mesmo padre Ferrer, sob o nome de “Gualachos”, outro termo genérico recorrente nas fontes coloniais. Não designava um povo específico, pois, como escrevera Ferrer (1952 [1633], p. 45), “sob o nome de Gualacho, compreende- se todas as nações que não possuem como língua própria a língua guarani”. De fato, muitos são os povos que foram chamados de “Gualachos” ou “Guañana”, outro termo genérico sinônimo de Gualacho, sobretudo ao sul e sudeste do Brasil.587 De acordo com Ferrer (1952 [1633], p. 45-47), os Gualacho da região estariam a oeste do rio Paraguai. Entre eles, estariam os Guaná, Tunu e Guaramo, grupos chaquenhos de língua arawak e guaykurú. Ferrer comenta que alguns desses grupos podiam comercializar com os Itatim, mas naquele momento histórico não podiam passar o rio Paraguai, devido aos constantes ataques dos Ver COMBÈS, neste volume. RELACIÓN GENERAL, 2008 [1560], p. 59; NÚÑEZ CABEZA DE VACA, 1944 [1555], cap. LX. 587 Cf. HERVÁS Y PANDURO, 1800, p. 193; BESPALEZ, neste volume. 585

índios Payaguá, que pretendiam ter exclusividade no comércio com os Itatim. Também havia os Guayarapos (Guaxarapos), descritos como índios lavradores; em outras fontes, no entanto, foram considerados exclusivamente canoeiros, tal como os Payaguá.588 Além desses, mais ao norte, havia os Charaye (Xaray) e os Orejones do Pantanal. A oeste do Paraguai, os principais Gualacho são os Payaguá. Que não somente são inimigos dos espanhóis, mas também de todas as demais nações vizinhas. Eles não têm relação de amizade com outros grupos, apenas com os Itatim, com quem realizam um constante comercio. Os mesmos têm vindo muitas vezes para ver os padres, trazendo consigo caça e pesca. (FERRER, 1952 [1633], p. 47).

Pouco mais tarde, em 1644, o jesuíta Francisco Lupercio Zurbano relaciona em um catálogo informações sobre diversas populações indígenas que a Companhia de Jesus pretendia reduzir no Itatim. Os Cuantos, Guacamas, Guchitas e os Guatos, falam a lingua Guayarapo e são considerados lavradores. Entendem a língua as nações seguintes: Nambiquaruco, Characu, Quiriquichi, Doii e Curmani. Não são lavradores. Goñi, Cocone, Ayagua, Guaquichi, Tata, Guental, Guinchum, Cureche, Ciyu, Charare, Guayarapos, e todos mais, são lavradores, que é positivamente salutar para plantar entre eles a semente da fé. (ZURBANO, 1664 apud PASTELLS, 1915, p. 126).

Os Guató, presentes nessa relação, também tiveram um papel importante nas missões do Itatim. Assim, a grande quantidade de diferentes populações que habitavam a região, com um contato intermitente entre elas, obriga-nos a revisar a afirmação tanto de jesuítas quanto de seus historiadores de que as missões do Paraguai, e as do Itatim em particular, não foram – longe disso, aliás – exclusivamente Guarani (Ilust. 170).

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Sobre os Guaxarapo, ver MÉTRAUX, 1996 [1946], p. 37; 54 e SUSNIK, 1978, p. 22-24.

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ILUSTRAÇÃO 170 - MAPA: PROVÍNCIA DO ITATIM, POR O P. SÁNCHEZ LABRADOR. (FURLONG, 1936, MAPA 95)

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A missão por redução: Primeiras tentativas no Itatim As primeiras tentativas de evangelização no Itatim efetuaram-se sob o modelo da “missão por redução”. No princípio da colônia, a evangelização realizava-se de forma itinerante, uma espécie de peregrinação apostólica de sacerdotes que se deslocava ocasionalmente dos povoados espanhóis até os povos de índios, a quem eram ensinados os sacramentos. Nessa forma de evangelização, era obviamente mínima a influência que a nova religião poderia exercer sobre os indígenas. Com a instituição das encomiendas, em 1556, surgiram homens, mulheres e até crianças que tentaram desestabilizar a colônia, pois, de acordo com a carta do clérigo Martín González, os indígenas perceberam que não havia fim para seus trabalhos (CARTAS DE INDIAS, 1877, p. 626). Nesse contexto, Hernando Arias de Saavedra, então governador do Paraguai, propôs o chamamento e envio de missionários que reduzissem os selvagens pela pregação religiosa (GARAY, 1942, p. 55-56). Transplantavase, assim, para terras paraguaias, a chamada “missão por redução”, já praticada em outras partes, como no México e no Peru. A palavra reducción era de uso comum na Espanha dos séculos XVI e XVII. A Igreja espanhola conferia a si mesma um dever reducional, que era idêntico ao seu dever civilizador e cristão: a criação de uma nova ordem civil e religiosa em todos os seus domínios, o que requeria certo grau de urbanização (MELIÀ, 1988, p. 194, 249). Os primeiros missionários a colocar em prática a missão por redução foram os franciscanos, com a chegada dos Frades Luis Bolaños e Alonzo de Sanbuenaventura, em 1575. Depois de aprenderem a língua guarani, esses missionários começaram a catequizar guarani falantes da região de Assunção, “ocupando-se também de iniciar os indígenas na vida política” [policía, no original], o que Necker (1990, p. 63) interpreta como o esforço por suprimir a nudez, a poligamia e a coabitação em casas sem paredes divisórias.

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Provavelmente pelo ano de 1579, esses missionários deslocaram-se rio Paraguai acima, na região dos guarani falantes denominados de Tobatim, nas proximidades do rio Manduvirá; na região dos chamados Guarambaré, entre os rios Jejui e Aquidabán; e na região dos Itatim, entre os rios Apa e Miranda, com o objetivo “de pacificar as populações indígenas que tinham se rebelado e voltado a seus antigos ritos e costumes” (DURÁN ESTRAGÓ, 1987, p. 99). Embora estejam entre os primeiros grupos contatados pelos espanhóis, os Itatim, por estarem a mais de 400 quilômetros de distância de Assunção e por sua característica aguerrida, mantiveram-se livres do domínio espanhol por mais tempo, e sua província não foi incluída na repartição inicial de encomiendas, em 1556 (NECKER, 1990, p. 72). Um episódio ocorrido em 1568 mostra que, provavelmente, os Itatim temiam mais os espanhóis de Santa Cruz de la Sierra, localizada ao ocidente do rio Paraguai, que os de Assunção. Nesse ano, duas expedições espanholas saíram de Santa Cruz: a do bispo de Assunção, Francisco Ortiz de Vergara, acompanhado por Felipe Cáceres, que regressava à Assunção; e a de Ñuflo de Chaves, que deveria acompanhá-los no primeiro trecho da viagem. Chaves foi morto no caminho por indígenas do Itatim do oeste do rio Paraguai, que receavam as contínuas explorações espanholas em suas terras, em busca de metais preciosos. Cáceres e o bispo decidiram seguir em direção ao rio Paraguai e passar para Assunção. Previamente, enviaram um mensageiro, Jacome, para avisar aos Itatim que a missão espanhola era uma missão de paz, mas Jacome acabou sendo morto pelos Itatim da aldeia de Anguaguazú. A expedição espanhola seguiu seu rumo em direção ao rio Paraguai, sem “maiores insucessos”. Três dias antes de chegar ao rio, encontraram “sete ou oito índios com suas mulheres e filhos, que vinham da outra parte a visitar os que estavam nesta, pelo fato de serem todos parentes”. Na bagagem desses indígenas, os espanhóis encontram a adaga do mensageiro Jacome. Um Itatim foi submetido a tormentos e acabou confessando que todos os

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indígenas “daquela terra estavam determinados a não deixar passar aos espanhóis e que lhes fariam fazer uma guerra cruel até exterminá-los”. Passando finalmente o rio Paraguai e chegando à margem oriental, na província do Itatim, os espanhóis encontram as aldeias desertas e as pessoas em retirada, como na guerra (DÍAZ DE GUZMÁN, 1835 [1612], p. 141-142). Muito além de ser apenas um fato histórico pontual, é bastante importante o fato de que os Itatim do oriente do rio Paraguai continuaram visitando seus parentes que tinham migrado quatro anos antes para o outro lado do rio. É igualmente importante assinalar que, também nesse caso, a guerra contra os espanhóis foi articulada entre os Itatim de ambas as margens do rio Paraguai, como mostra esse relato. Na margem oriental do rio, precisamente na região denominada Itatim, os indígenas estavam fora do controle dos espanhóis na época da chegada dos franciscanos. Nas suas primeiras incursões missioneiras, Bolaños e Sanbuenaventura certamente não fundaram reduções, pois em 1580 eles já se encontravam novamente nas proximidades de Assunção, fundando, então, a primeira redução franciscana, a de Altos, a 40 quilômetros da capital do Paraguai. Os franciscanos rumaram novamente rio Paraguai acima até a região norte, fundando seis reduções – Tobatim, Jejui, Atirá, Ipané ou Pitum, Perico e Guarambaré – no transcurso de pelo menos quatro expedições, entre 1579/1580 a 1599. Aqui interessa, sobretudo, a redução de Perico, integrada por indígenas Ñuara (Ñuguara ou Ñuara), população não guarani da região que hoje é o Mato Grosso do Sul (NECKER, 1990, p. 73-74). A redução de Perico foi fundada, provavelmente, em 1582, quando a dupla de franciscanos visitou as populações do norte mais distantes de Assunção, ou seja, os Itatim (NECKER, 1990, p. 76). A última ação franciscana no norte deu-se em 1597. Em 1599, a administração de todas as reduções dos frades, exceto a do Itá, foi passada para o clero secular, pelo bispo Vásquez de Liano (NECKER, 1990, p. 77). 562

A missão por redução: Os jesuítas Menos de 30 anos após os franciscanos, foram chamados os jesuítas, que chegaram a Assunção em 1608, dedicando-se ao aprendizado do guarani e iniciando suas reduções em 1610. Na definição do jesuíta Antonio Ruiz de Montoya (1985 [1639], p. 34), “reduções” eram os povoados de indígenas que, “graças à diligência dos padres”, abandonaram sua antiga usança – de viver em selvas, serras e vales, junto a arroios, “escondidos” em casas que distavam léguas umas das outras – e passaram a viver juntos em povoados, de acordo com a “vida política (civilizada) e humana, beneficiando algodão com que se vestiam”. Assim, tanto os franciscanos como os jesuítas conceberam as reduções como laboratórios onde deveria se processar a conversão massiva e efetiva dos indígenas e possibilitar a vida desses indígenas numa sociedade sedentária e urbana. Porém, enquanto as reduções fundadas pelos franciscanos estiveram organicamente a serviço do sistema colonial paraguaio – portanto, das encomiendas –, as reduções jesuíticas do Paraguai foram concebidas como contestação a esse sistema, por isso suas reduções foram fundadas longe dos povoados de espanhóis, para não colidir com a expectativa dos conquistadores. Os jesuítas foram fortalecidos em sua posição pelas Ordenanzas de Alfaro589 (11 de outubro de 1611), que visavam pôr ordem na instituição das encomiendas e evitar abusos contra os indígenas (CARDOZO, 1991, p. 223). Diego de Torres, Provincial da Companhia de Jesus no Paraguai, apoiou o Visitador Alfaro e, desde o início, os inacianos foram incumbidos de controlar os povoados indígenas não dispostos a servir aos encomenderos, mas dispostos a serem vassalos diretos do Rei. A importância das Ordenanças de Alfaro transparece no fato de o padre jesuíta Roque González ter feito um resumo do documento em guarani que carregou consigo em suas 589

As ordenanças levam o nome de Francisco de Alfaro, Visitador da Audiência de Charcas.

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andanças nas regiões banhadas pelos rios Paraná e Uruguai até seu martírio, em 1628, no Caaró, onde o material foi queimado com outros livros, imagens e apetrechos religiosos do missionário. É possível perceber, portanto, que as reduções jesuítas no Paraguai foram mais radicais que as dos franciscanos, no tocante à implementação do que cada ordem compreendia por nova ordem civil. A esse respeito consta, por exemplo, que, no dia 19 de março de 1614, Fr. Luis Bolaños, então custódio da Província Franciscana do Paraguai, junto ao clero secular e demais religiosos críticos às ordenanças, solicitava que elas fossem corrigidas e adequadas à realidade (CARBONELL DE MASY, 2005, p. 82 n. 4). Isso mostra que os franciscanos procuraram conciliar sua missão com a provisão de braços para a economia colonial, o que caracterizou também os jesuítas a serviço da coroa portuguesa, no Brasil (MONTEIRO, 1992, p. 487). Como as reduções jesuíticas do Paraguai foram, de certa forma, um lugar onde os indígenas tentaram se defender do ataque de encomenderos e bandeirantes, podem ser consideradas “locais” de refúgio (CHAMORRO, 2008, cap. II). No início do século XVII, os Itatim deslocaram-se para o sul, provavelmente impressionados pela incorporação dos Ñuguára (SUSNIK, 1979-1980, p. 105; 162) ao sistema das encomiendas. Também teria impulsionado esse deslocamento o fato de se sentirem pressionados pela fundação do povoado de Santiago de Xerez, bem como pelas encomiendas do governador Ramírez de Velasco e pelas incursões dos paulistas (CORTESÃO, 1952, p. 317). Ou seja, tudo leva a crer que, na conjuntura em que se encontravam os povos indígenas, a redução jesuítica parecia ser uma porta de salvação. Em 1612, o padre Francisco San Martín recebe, em Guarambaré, uma comissão formada por três índios de Santiago de Xerez, a qual, de acordo com o registro, pedia por jesuítas para doutrinar aos índios da sua cidade (GADELHA, 1980, p. 171). Os padres hon-

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raram seus hóspedes com “algumas cunhas, facas, contas e outros objetos de troca; a Ñanduavusu [o máximo chefe Itatim] deram um chapéu” (CORTESÃO, 1951, p. 24). Um ano mais tarde, o padre Diego de Torres escreveria ao padre geral da Companhia: O que mais influi em minha determinação é que, a partir dessa região, abre-se para nós a porta para muitos outros, de onde nos chamam e de onde saem (porque dificilmente eles se separam de sua terra nativa) para nos visitar, rogar e suplicar que lhes façamos o favor de viver entre eles e que nos encarreguemos do cuidado de todos eles. Os que mais insistem com essa súplica são os chamados Itatim, os quais, devido a seu trato com os Guarambaré e por conselho destes, pedem com muita frequência que entremos em suas terras. (CARTAS ANUAS, 1927-1929 [1613], p. 293-294).

Os indígenas queriam escapar tanto dos espanhóis de Assunção quanto dos bandeirantes vicentinos em busca de escravos, que assolaram em particular toda a região do Guairá (Paraná) por volta da década de 1630. Um Itatim disse claramente aos jesuítas que: “onde recebem [os índios] aos padres, não entram espanhóis, pois, isso é o que somente buscamos” (FERRER, 1952 [1633], p. 37). Após a destruição das treze reduções do Guairá e dos povoados de Villarrica e Ciudad Real pelos paulistas, finalmente a solicitação das comunidades indígenas do Itatim pôde ser atendida. Assim, em 1631, os jesuítas Diego Ferrer e Van Surck, na companhia de indígenas que escaparam à catástrofe ocasionada pelos bandeirantes no Guairá, foram enviados pelo Superior das Missões, Antonio Ruiz de Montoya, para a conquista espiritual dos povos itatim, distribuídos em seis núcleos reducionais (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 4, p. 27; SÁNCHEZ LABRADOR, 1910 [17--], t. I, p. 21). Começou, assim, uma segunda etapa da catequese nos grupos itatim. As primeiras missões, organizadas em 1632, são destruídas no ano seguinte pelos bandeirantes. Duas novas reduções são restabelecidas em 1634: Nuestra Señora de Fe de Taré e San Ig-

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nacio de Caaguaçú. A primeira destas reduções era a mais próxima do rio Paraguai e devia, de fato, servir de “ponte para passar para outra margem do Paraguai” (CORTESÃO, 1952, p. 101). Essa fixação permitiu que outros indígenas (os “Gualachos” de Ferrer) integrassem a redução, em particular os chamados “povos canoeiros” como os Guató e os Payaguá. Um documento de 1640 informa as tentativas efetivadas para reduzir os Guató junto à redução de Nuestra Señora de Fe de Taré. Segundo Jaime Cortesão, esse documento faz parte do caderno de registros da Companhia de Jesus que descrevia o estado das reduções do Itatim na década de 1640: Redução de Nossa Senhora do Taré [...] Era esta redução a 2ª e última desta Missão, a mais nova e esperança das outras, por estar à vista de muitas nações, ainda que pequenas de gentios, as quais há algumas mais próximas e aptas ao evangelho. A mais próxima é a dos Guató, cuja primeira aldeia está como a 14 léguas de distância. Para onde foi enviado o padre Alonso Arias a ver a pré-disposição daquela gente seja através de intérprete seja por si mesmo, já que algumas palavras ele sabia da sua língua [...]. Em sinal de amor e confiança que demonstraram, mudaram rapidamente seu povoado para esta margem do rio [Paraguai], perdendo o receio que antes possuíam. [Após a mudança] tornaram-se muito frequente as visitas que faziam de seu povoado aos padres. (CORTESÃO, 1952, p. 84-86).

De acordo com a citação precedente, os Guató estavam próximos de aceitar a redução. Já haviam se estabelecido na mesma margem do rio em que estava Taré e faziam visitas constantes ao povoado. A redução dos Guató junto a Taré veio a se confirmar na carta do padre Manuel Berthod, escrita em 1652, quando este observou que o padre Domingo Muñoa havia “retirado alguns infiéis guatós, índios de outra língua” para integrá-los aos do Tare (BERTHOD, 1652 apud CORTESÃO, 1952, p. 102). Na opinião de Jorge Eremites de Oliveira (1995, p. 90), que estudou a população guató, “na redução de Nuestra Señora de Fee del Taré, também participavam alguns Guató”.

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Sobre a redução desses grupos, Nicolás del Techo comenta que os “Guatós, Gualachos e outros povos que falavam vários idiomas, não muito distantes de Xerez, desejavam, ao parecer, receber o pão da doutrina evangélica, caso houvesse alguém para ministrá-lo” (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 4, p. 76). Ou seja, as reduções não eram apenas uma reivindicação dos Itatim, mas também dos demais povos da comarca. Nicolás del Techo comenta sobre o processo inicial de uma redução entre os Payaguá: Os Payaguá, nação que habitava distante do novo povoado de São Pedro e São Paulo, nas margens do Paraguai, eram tão cruéis, que não sem razão, foram comparados aos Guaicurús. Desde que os espanhóis se estabeleceram naquela região, tinham devastado as proximidades com incessantes incursões. Agregaram-se a eles em distintas ocasiões os neófitos que fugiam por serem de maus costumes ou por estarem cansados dos serviços prestados [aos espanhóis]. Por meio destes indígenas souberam os payaguas que os religiosos, sem prejudicarem os indígenas em sua liberdade, cuidavam nada mais do que da alma dos mesmos. Não tendo desconfianças da Companhia, se apresentaram ao padre Rançonnier e manifestaram o desejo de estabelecerem-se em povoados. Às palavras, seguiram-se os atos, tomando suas casas de esteiras, organizaram as mesmas em forma de aldeia, próximos a redução de São Pedro e São Paulo. Mas, como são de caráter volúvel, muito depressa abandonaram esta residência e se foram para os locais onde antes habitavam. Em outros quatro povoados que se estabeleceram, cuidaram os missioneiros de instruí-los no Cristianismo e batizar as crianças. (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 4, p. 76).

Outros grupos também se aproximaram da redução de Taré, levando-nos a conceber a hipótese de que esta redução tenha tido uma grande diversidade em seu meio. O catálogo elaborado pelo padre Francisco Lupercio Zurbano, já mencionado anteriormente, continha a informação de que haviam se dirigido a Nossa Senhora do Taré, “algumas vezes por seu interesse”, índios “guaxarapos e com eles alguns índios da outra margem” do rio Paraguai. O religioso comentou que “se lhes oferecessem

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padres” para acompanhá-los a seus povos, “talvez os aceitassem, devido ao interesse que tinham em seus presentes. Com isso, muito caminho seria andado para a entrada em [outras nações de índios Guarani] e também em outras nações de Gualachos” (ZURBANO, 1644 apud PASTELLS, 1915, p. 126). Porém, as bandeiras paulistas continuaram a investir sem trégua contra as missões paraguaias. Os documentos recopilados por Jaime Cortesão (1952) evocam, em particular, os ataques de 1637, 1647 e 1648. Essas ações sangrentas tiveram consequências não somente sobre os indígenas da margem oriental do rio Paraguai, mas também sobre os da margem oeste. Assim, muitos Itatim resolveram cruzar o rio para fugir das bandeiras paulistas. Em 1647 e 1648, “muitas [famílias] tem passado à outra margem do rio Paraguai” (CORTESÃO, 1952, p. 105). Esse tema é abordado no artigo de Roberto Tomichá, neste mesmo livro. Sob a pressão dos bandeirantes, os jesuítas deslocaram as reduções do Itatim da parte oeste do atual Mato Grosso do Sul para o norte da região oriental do Paraguai, até as margens do rio Jejui (CORTESÃO, 1952, p. 3). No entanto, a segunda fase de evangelização no Itatim foi efêmera, devido, principalmente, à desagregação contínua e generalizada dos indígenas reduzidos. Essa fragmentação tinha duas explicações: a ausência prolongada dos jesuítas das reduções e as malocas590 dos paulistas, que enganaram o próprio cacique principal, Ñanduavusu (SUSNIK, 1979-1980, p. 163).

Resistência indígena O padre Ferrer, já citado, dizia dos Itatim que eram “naturalmente bons”, e com “mais modos e polícia” que outros grupos guarani. Mas esses povos, “naturalmente bons”, tornaram-se os protagonistas e as lideranças das campanhas de resistência. Ou seja, nem

todos os povos do Itatim aceitaram passivamente o novo sistema social e religioso. Um dos principais caciques disse a ele [ao Padre] […] que voltasse para sua terra porque não admitiriam outro ser no lugar daquele que herdaram de seus avós […]. Outro, não com menos desacato e desrespeito, disse-lhe que também era sacerdote e sabia proferir a palavra de Deus aos indígenas e que, portanto, desocupasse a terra. (CARTA ANUA de 1632-1634, Manuscrito de Granada, f. 273, apud MELIÀ; GRÜNBERG; GRÜNBERG, 1976, p. 163).

Em 1632, os jesuítas sofreram investidas dos bandeirantes liderados por Ascenso Quadros, que, com a cumplicidade dos colonos de Santiago de Xerez,591 atacou as aldeias mais populosas dos Itatim, inclusive aquelas assistidas pelos jesuítas. O padre Ferrer descreveu como os Itatim reduzidos foram aliciados pelos bandeirantes a combater contra seus irmãos: Trouxeram-lhes os vizinhos de Xerez que haviam se entregue a eles e, como nos primeiros povos que entraram neste Itatim não encontraram nenhum Padre […] disseram a Paracu [líder indígena] e a sua gente [...], que não vieram atacar os filhos [indígenas das reduções] dos Padres, que como eles tinham igreja e viviam bem; mas que vieram apenas, chamados pelos Padres, para vingar-se de alguns índios dos povoados mais recônditos do Itatim que haviam difamado ao Padre […] e, como com os Portugueses vinham os espanhóis de Xerez, [...] que afirmavam o mesmo, foi fácil persuadir os Índios na ausência do Padre que fossem com eles lutar contra seus irmãos. (FERRER, 1952 [1633], p. 39).

A população sobrevivente foi aldeada em duas reduções próximas aos rios Apa e Paraguai. Devastadas as lavouras, a população teve que enfrentar, ainda, a seca de 1633, uma inundação em 1634 e uma epidemia que dizimou dois terços da população e obrigou os padres, atingidos pela peste, a voltarem para Assunção.

Essa cumplicidade não livrou o povoado de Santiago de Xerez da destruição pela bandeira de Ascenso Quadros, nos anos subsequentes, sendo repovoado pelos paulistas, em 1678, e renomeado de Nova Xerez.

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Maloca era o termo usado pelos jesuítas para designar as entradas dos bandeirantes, os maloqueiros, para cativar indígenas na região.

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Nessas condições, somaram-se aos indígenas que tinham se embrenhado nas matas por medo dos bandeirantes as famílias reduzidas do Itatim, que, por não terem o que comer, espalharam-se pelos montes (GADELHA, 1980, p. 245-247). Quando os padres regressaram à região, em 1639, a situação das reduções era desalentadora, tanto em Santo Ignácio de Caaguaçu como em Taré. Segundo os jesuítas, de cristãos, os índios não tinham mais do que o nome, pois haviam voltado ao seu antigo e “detestável” modo de ser (CORTESÃO, 1952, p. 100-101). Cronistas da conquista, como o Pe. Lozano, atestam que os Guarani eram governados por caciques e feiticeiros ou magos (FURLONG, 1953, p. 130); na terminologia contemporânea, aludia-se com esses nomes a dois tipos de líderes e a dois aspectos da liderança, a política e a espiritual, que muitas vezes estavam entrelaçadas. Como bem resume Louis Necker, [...] Havia dois tipos de chefes entre os Guarani. Um deles exercia seu poder principalmente em virtude das relações de parentesco [...] (como) pai de linhagem. Por outra parte, havia “chefes-xamãs” que [...] suplantaram com frequência os chefes hereditários mediante a demonstração de poderes mágicos excepcionais. (NECKER, 1990, p. 30).

O líder civil (pa’i) era pai de linhagem ou da família extensa e passou para a história sendo designado pelo termo arawak “cacique”. Por sua vez, o líder religioso (karai) – referido nas crônicas, entre outros nomes, como feiticeiro, mago e chupador, por dominar a técnica da sucção – passou a ser denominado de xamã, na etnologia. Em geral, afirma-se que os missionários, particularmente os jesuítas, deram-se muito bem com os pa’i e muito mal com os karai. Os pa’i forneciam gente e mão de obra para as reduções e colocavam à disposição dos padres seus conhecimentos topográficos e sua condição de pai de parentela. Sem sua colaboração, as reduções teriam se tornado inviáveis, como bem notou Ítala Becker. Eram cada vez milhares de pessoas, movendo-se centenas de quilômetros, em fuga precipitada, com famílias e bens para se instalar

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numa terra virgem desconhecida. O que teria sido dessas populações sem os seus caciques! Os missionários sozinhos mais dificilmente venceriam esta tarefa. (BECKER, 1992, p. 13).

No terreno espiritual, porém, os missionários tentavam banir qualquer vestígio de poder indígena.592 Os karai eram líderes carismáticos, muitas vezes itinerantes, que atuavam, sobretudo, em períodos de crise. Eram eles, como consciência crítica do grupo, que percebiam o mal na terra e lutavam contra ele. Eles resistiam aos desafios insolúveis da vida, como certamente lhes pareceu ser a primeira fase da missão cristã. Já os pa’i representavam uma liderança que se destacava nas questões civis e militares. Sabendo atuar com diplomacia, eles se deixaram reduzir com suas famílias, quando, entre os ataques de bandeirantes e encomenderos, verificaram que as reduções eram o lugar menos ruim que lhes restava. Conforme a conjuntura, no entanto, reconhecia-se o poder de um cacique sobre o de outros. Esse cacique principal ficava incumbido de promover a solidariedade entre as várias famílias e de expandir a consciência exclusiva (oréva, “nós” que exclui a segunda pessoa, com quem se fala) para a inclusiva (ñandéva, “nós” que inclui essa segunda pessoa), de modo que toda uma unidade sociorregional pudesse enfrentar unida determinados problemas que afetavam a vida das comunidades. Como no âmbito de competência civil, em tempos de crise reconhecia-se também a autoridade de um karai extraordinário que, É interessante observar que, com o termo karai, Luis Bolaños traduziuao guarani, pelos anos 1580, as palavras “cristiano” e “bautizado”. Mas os índios que se batizavam não ingressavam na sociedade dos novos karai, dos conquistadores. Estes já tinham retido para si o significado exclusivo de “senhor” que tem poder para exigir respeito e submissão. Ruiz de Montoya, algumas décadas depois, porém, critica esse uso e afirma que, com esse vocábulo, os indígenas honraram, no passado, seus “feiticeiros”. Mas a usança anterior a Montoya prevaleceu até os dias de hoje. Ironia da história: o termo que no passado significava o ideal de pessoa para os indígenas passou a indicar exatamente o contrário: o esvaziamento do ser indígena, sua cristianização. De modo que um não karai (não cristão) é um ser sub-humano (MELIÀ, 1998, p. 28-29; RUIZ DE MONTOYA, 1876b [1639], f. 90).

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pelo seu carisma, tornava-se um karai dos karai. Ele tinha trânsito livre nos povoados e sua benevolência era pleiteada pelos pa’i de toda a região. De um modo privilegiado, esse karai era o dono da palavra e isso o amparava a afirmar-se na região como um enviado para falar. Com o poder de seus discursos, conseguia a adesão de várias famílias extensas às suas convocações festivo-cerimoniais. O karai também ampliava a consciência do grupo do exclusivo oréva para o inclusivo ñandéva. Convém ter em mente, porém, que, às vezes, uma única pessoa podia acumular as virtudes de pa’i e de karai593 e que, normalmente, um pa’i precisava de um mínimo de virtude xamânica para ser respeitado, acudir terapeuticamente a grande família e mantê-la coesa. Em outras palavras, não lhe bastava ter força convocatória se não tivesse força invocatória, o que de certa forma confere com as sínteses etnológicas sobre as sociedades tribais no sentido de, nelas, a economia, a política e a religiosidade não estarem organizadas separadamente (SAHLINS, 1970, p. 27-28). Quando os missionários retomaram seus trabalhos, tiveram que enfrentar a resistência indígena. Se, no início, os povos indígenas do Itatim aceitaram receber a catequese dos jesuítas, essa disposição foi mudando à medida que caciques e xamãs perceberam que o crescente prestígio dos padres, além de prejudicar a liderança tradicional indígena, não impedia a invasão dos bandeirantes. Nesse contexto, a fama de “naturalmente bons” dos povos do Itatim começou a se transformar, e os grupos começaram a não mais aceitar o sistema social e religioso implementado pelos jesuítas. Assim, os líderes religiosos que não aderiram às reduções engajaram-se em verdadeiras cruzadas anticoloniais. Na Carta Anua de 1632 a 1634, que sintetizava os feitos dos missionários, o superior da missão conta que alguns líderes indígenas exi593

Convém lembrar que o uso desses termos pelas comunidades indígenas atuais não preservou o significado histórico. No Brasil, Pa’i foi equiparado a “cacique” e passou a designar o líder religioso, enquanto o líder nas questões temporais passou a ser designado pelo termo estrangeiro “capitão”.

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giram dos missionários que não deixassem os europeus entrar em suas terras. Os povos indígenas pediram aos jesuítas que abandonassem o local, afrontaram-lhes com palavras e atitudes, romperam a aliança que tinham selado com eles e retornaram aos velhos costumes, a exemplo do líder indígena Ñanduavusu (ZURBANO, 1644 apud PASTELLS, 1915, p. 123, 124). Esse líder Itatim, entre 1644 e 1645, atiçou o ânimo da população contra os jesuítas, aos quais insultou e agrediu fisicamente durante uma celebração no templo da redução de Santa Fé. Ele teria reagido a uma repreensão do missionário, dizendo que “desejava transmitir às gerações vindouras os costumes das gerações passadas”. Os ouvintes aderiram a essa reação e retiraram-se do templo. Com isso, a autoridade dos padres ficou extremamente desgastada, a ponto de o povo não fazer mais caso de algum deles. Em resposta, os inacianos decidiram sequestrar Ñanduavusu, juntamente com sua família, e desterrá-los em Yapeyu, uma redução da frente missionária do Uruguai localizada a 200 léguas do Itatim. Conforme o relato jesuítico, a igreja voltou a ser frequentada e os índios substituíram suas “danças e amores desonestos” por “bons costumes” (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 5, p. 269-270). Nas imediações da mesma redução, outro caso foi compilado pelo mesmo Nicolás del Techo. Um “certo índio”, chegado de “remotos países” em abril ou maio de 1645, com suposto “objetivo de comerciar”, é apontado como o detonador de mais uma rebelião contra os padres da Companhia. A missão do Itatim, em uma das tentativas de alcançar indígenas que moravam à margem direita do Rio Paraguai, enviou o experiente padre Romero para fazer o primeiro contato com os chefes dessa população. Era sabido que a tarefa seria difícil, dada “a multidão de adivinhos e prófugos das reduções que moravam naquela comarca”, e a chegada do missionário acabou coincidindo com a de uma dessas pessoas temidas: Guyrakeray (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 5, p. 273).

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Casualmente, naquele ano, chegou procedente de remotos países, com objetivo de fazer comércio, certo índio com um sobrinho seu. O padre Romero o instruiu nos mistérios da fé cristã, ofereceu-lhe presentes e lhe rogou vivamente que procurasse a conversão dos seus paisanos, pelo que seria recompensado [...]. Guyrakeray concordou, aparentemente, com o plano, mas, na realidade, fez o contrário. Aconselhou seus compatriotas a declarar guerra ao novo povoado e, consequentemente, à religião cristã [...]. Quando retornou à sua terra atiçou o ânimo dos indígenas contra o padre Romero. (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 5, p. 277).

Em consequência, muitos indígenas começaram a se opor à fundação de povoados cristãos. Um desses opositores foi Mboroseni, que chegou a ser preso pelos bandeirantes, mas escapou e passou a viver com várias concubinas perto da redução de Santa Maria de Fé. Ele dizia ser uma divindade, repartia cruzes de ministros de igreja e varas de alcaide aos índios. Em sua “prédica” aos índios, confrontava o modo de ser tradicional com a vida reduzida. Companheiros, estamos na beira do abismo e ao lado da felicidade. O primeiro, se adotamos a religião estrangeira; o segundo, se a rejeitamos. Fácil é saber o que nos convém. [...] O intento dos sacerdotes estrangeiros é reunir os índios que andam errantes, imbuir-lhes mil superstições e fixá-los em reduções. Impõem leis severas aos conversos [...]. Não acrediteis que se trata apenas de palavras. Olhai Ñanduavusu, cacique do Itatim, condenado com sua gente a perpétuo desterro. Comparai tal miséria com a liberdade que gozamos nós e com a que desfrutaram nossos antepassados [...]. Sede fortes agora no começo, para que não ocorra que com o tempo e a indústria dos inimigos o mal careça de remédio. Sirvam de exemplo tantos neófitos [...] que, ainda que quisessem, não poderiam se livrar do jugo. Onde quer que a nova religião aprisiona as almas, ficam os corpos sujeitos à dura escravidão. (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 5, p. 278-279).

Referindo-se ao triste fim que coube a Ñanduavusu, Mboroseni criticava a atitude enérgica que os jesuítas adotaram com os Itatim, 568

tentando alcançar, por meio de um sequestro coletivo, o que não lhes foi possível alcançar com palavras de amizade e com ameaças. Para cortar o mal pela raiz, “Guyrakeray continuou derramando bílis e veneno contra a Companhia [...] e não parou até que deixou preparada a conjuração” (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 5, p. 279). Tramada a conspiração, o chefe escolhido, Tucambi, armou quarenta guerreiros e, “fingindo que seu objetivo era receber o batismo”, partiu com eles à procura do padre Romero. Após assassinarem o padre, os conjurados repartiram entre si os ornamentos sagrados do sacerdote. O número de seguidores de Guyrakeray chegou a dezenas, mas pouco tempo depois acabaram se dispersando (DEL TECHO, 1897 [1673], v. 5, p. 283-286). Em carta escrita em Lima, Peru, em 17 de novembro de 1645, Antonio Ruiz de Montoya conta ao Irmão Diego de Chaves sobre o martírio do padre Pedro Romero, com quem fizera noviciado e fora seu “condiscípulo”, “companheiro” e “parente próximo” (CORTESÃO, 1952, p. 69). Além desse gênero de resistência, os padres jesuítas tiveram que arcar com os prejuízos causados pela entrada dos bandeirantes nas últimas reduções do Itatim, em setembro de 1647 e novembro de 1648. Os sucessivos ataques denotam, na avaliação de Neimar Machado de Souza (2004, p. 78), que os bandeirantes fixaram acampamento nas proximidades das reduções e conheciam muito bem a região graças às informações que lhes foram passadas por residentes em São Paulo que eram antigos moradores da cidade de Xerez. Após esses ataques, os poucos índios que restaram foram com os jesuítas à missão de Caaguaçu. Mas os bandeirantes, tendo à frente Raposo Tavares, não lhes deram trégua e voltaram a atacar em Caaguaçu. O missionário Cristóbal Arenas foi aprisionado com muitos índios. No confronto, houve perdas dos dois lados. Os jesuítas e seus índios fugiram até as proximidades do rio Ypané, na esperança de poder contar com o apoio do governador

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do Paraguai. Entretanto, foram surpreendidos com a intimação do bispo de Assunção, frei Bernardino de Cárdenas, que lhes obrigou a abandonar o Itatim e a entregar a obra a um clérigo. Sob protestos, os inacianos saíram do Itatim em dezembro de 1648 (CORTESÃO, 1952, p. 94 et seq.). No entanto, pouco mais de um ano depois,594 suas missões lhes foram restituídas. Os padres Justo Mansilla e Barnabé de Bonilla foram incumbidos de juntar os indígenas reduzidos que tinham se espalhado. Machado de Sousa (2004, p. 85 et seq.) aponta que esses missionários, “após muito trabalho conseguem reunir novamente povoados distantes de até 70 léguas de distância para onde se haviam retirado cerca de 800 famílias”. Coube-lhes também atrair de novo os muitos índios que haviam partido para o outro lado do rio Paraguai. Os jesuítas puderam trabalhar no Itatim com relativa tranquilidade por mais nove anos, até 1659, quando a redução de Nossa Senhora da Fé foi transferida para perto de Assunção e incorporou a população oriunda de Santo Ignácio do Caaguaçu.

Considerações finais Se boa parte do total da população indígena reduzida misturou-se à população regional mestiça e não indígena depois da expulsão dos jesuítas, esse não foi o caso dos povos do Itatim. Dada a quase inexistência de povoados coloniais na região, é provável que apenas uma parte muito pequena dessa população tenha sido incorporada à população colonial paraguaia. A população do Itatim que migrou para outras frentes missionárias, ao que se sabe, permaneceu até o fim sob a orientação 594

Data do dia 7 de março de 1650 a restituição das missões do Itatim aos jesuítas.

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jesuítica. À população da América portuguesa foi integrada parte dos Itatim capturados e vendidos como escravos nos atuais estados brasileiros de São Paulo e Rio de Janeiro. Os dados apresentados por Sánchez Labrador (1910 [17--]) e Gadelha (1980) levam a crer que houve também Itatim reduzidos que voltaram a se embrenhar nas matas e se deslocaram para o sul. Outros, como já observamos, encontraram refúgio a oeste do rio Paraguai, engrossando o grupo dos “outros Itatim”; i. e., daqueles da região de Santa Cruz de la Sierra. Num cálculo superestimado, dois mil indígenas teriam sido reduzidos e batizados pelos jesuítas no Itatim (SOUZA, 2004). Que fim levaram eles? Como é vastamente registrado, os grupos que abandonaram as reduções voltaram a se espalhar pelas matas (CORTESÃO, 1952, p. 55; 102; 105; 193; 204; 206; 292), reencontrando-se com aqueles que permaneceram “livres” nos seus esconderijos ou fugitivos na sua própria terra (SÁNCHEZ LABRADOR, 1910 [17--], t. I, p. 16). Em todo caso, nos parece importante ressaltar alguns aspectos ao finalizar estas páginas: primeiro, que a convivência nas reduções, as fugas conjuntas e a resistência organizada reforçaram os laços já existentes entre os Itatim e seus vizinhos Guató e Payaguá. A história e os historiadores não podem esquecer esses “outros povos” que os escritos jesuíticos, em muitos casos, ocultaram, quando falaram de suas “missões Guarani”. Finalmente, esses mesmos escritos jesuíticos, e a fama adquirida pelas missões do Paraguai tampouco podem ocultar este fato: os indígenas do Itatim – Itatim, Payaguá e demais “Gualachos” – que foram reduzidos, o foram por menos de três décadas, de maneira descontínua e em número provavelmente insignificante frente à população que permaneceu fora das reduções.

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