MITO E PAIXÕES EM AVARMAS: O BALÉ SISÍFICO DE EUGÊNIA, MÃE DE MARCO

July 9, 2017 | Autor: Vera Lúcia | Categoria: Literatura brasileira
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MITO E PAIXÕES EM AVARMAS: O BALÉ SISÍFICO DE EUGÊNIA, "MÃE DE
MARCO"[1]


Vera Lúcia Alves Mendes Paganini [2]
Elza Kioko Nakayama Nenoki Murata e Maria Zaira Turchi[3]
RESUMO
Este trabalho pretende realizar um intercâmbio entre a semiótica, ciência
que sistematiza e desvela o mundo dos signos, descrevendo-os e
classificando-os segundo uma lógica e a literatura, arte de empregar a
palavra de forma a extrair dela várias possibilidades de significado. As
abordagens de leitura de um texto não se extinguem porque cada vez que um
leitor toma conhecimento de um conteúdo coloca nele suas impressões, seus
valores e, num movimento reflexo, retorna-o ao ambiente em que está
inserido com novas possibilidades. A discussão a seguir será uma das
possíveis leituras, associando a teoria do discurso de Greimas e Fontanille
com a teoria do imaginário de Gilbert Durand. A base para a análise será o
texto literário "Avarmas" de Miguel Jorge, cujo sujeito/protagonista é
Eugênia, à procura do filho Marcos, desaparecido durante o regime militar
no Brasil. A análise da sua jornada e peripécias será analisada sob o
prisma das paixões teorizadas pela semiótica e dos regimes do imaginário.
PALAVRAS-CHAVE: literatura, imaginário, mitos, semiótica, Avarmas.

Introdução
A leitura de um texto se dá primeiramente a partir do processo de
decodificação, quando temos contato com o conteúdo e buscamos compreendê-
lo. Existem elementos que nos ajudam a interpretar o que está à nossa
volta, mas para que se possa compreender bem um texto,
é necessário identificar o contexto (social, cultural, estético, político)
no qual ele está inserido. A identificação vai depender do conhecimento
sobre o que está sendo abordado e as conclusões referentes ao que está
escrito. Em determinados textos a informação sobre acontecimentos passados
contribui para sua compreensão. Por isso, quanto mais variado o campo de
conhecimento, mais facilidade encontrará o leitor para ler e interpretar o
que lê. O estudo de recursos de leitura serve para instrumentalizar o
leitor na busca de uma compreensão mais eficiente e eficaz das ideias que
veiculam na produção escrita do homem.
A semiótica é um dos campos de estudo que propõe a leitura de textos
por meio de instrumentos que direcionam a delimitação e a interpretação do
assunto e procura garantir a depreensão dos temas o mais fielmente
possível. Debruçados sobre tópicos dessa teoria, procuramos compreender que
o texto não se resume ao que está posto, mas se completa com as inferências
e os efeitos de significado dos subentendidos. Nesse aspecto a polifonia do
texto literário parece servir melhor aos propósitos de análise porque a
capacidade que as palavras adquirem de significar mais enriquece
sobremaneira a recepção do leitor.
Como afirma Larrosa, (2007), "As palavras que eu escrevo são as mesmas
que você lê, mas lhe dizem mais e outras coisas." Se a palavra, de modo
geral, possibilita mais de uma interpretação, o texto literário, carregado
de significados até ao "máximo grau possível" (MURATA, 2009), amplia essas
possibilidades. Assim, torna-se complicado fazer afirmações categóricas,
fechadas, quando se fala de interpretação; porém ao mesmo tempo, existem
estruturas teóricas que podem aparelhar o leitor para uma análise mais
próxima do real.
A teoria do discurso é uma dessas ferramentas. Para Zilberberg (1981,
p.25, apud Barros), cada sema tem dupla definição; o sema varia entre um
estado tenso e outro relaxado. Os percursos de tensão e relaxamento são
denominados modalidades tensivas. Neste estudo, as modalidades serão
utilizadas como instrumentos de análise para entender as paixões que movem
os sujeitos dos textos. Conforme Barros (2006, p.36):
O percurso do sujeito é constituído pelo encadeamento
lógico do programa da competência, pressuposto, e do
programa da performance pressuponente, ou seja, o sujeito
adquire competência modal e semântica, torna-se sujeito
competente para um dado fazer ou performance, executa-o,
passando a sujeito realizador.
Configura-se assim como uma existência modal em que o sujeito assume
papéis patêmicos. Os "estados de alma" estão relacionados à existência
modal do sujeito que segue um percurso entendido como estados passionais
dos enunciados; esse sujeito é movido por paixões que serão entendidas como
efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito de
estado. Seguindo esta orientação, escolhemos o conto "Avarmas", tirado de
uma obra com o mesmo título, de Miguel Jorge, pela sua constituição
simbólica e metafórica. Dele muitas vozes e muitos intertextos se
depreendem, podendo dizer mais e outras coisas a cada leitor. O tema mais
evidente no conto é um sujeito aflito (Eugênia), que se movimenta em busca
de um objeto (Marco), cujo destino é incerto. E todo o percurso da
narrativa se faz pelos caminhos trilhados por este sujeito: A personagem-
narradora do conto é uma louca que anda pelas ruas à procura de um filho
desaparecido. Como louca, "Sempre o caminhar. O meu caminhar, deselegante
desequilibrado. Um sapato na mão. Um calo no pé." (JORGE, 1980, p.133),
procura-o por todos os lugares, entrando e saindo de portas intermináveis,
numa peregrinação de idas e vindas sem fim.
O que move o espírito humano: as pulsões da paixão
O A teoria da análise do discurso, no aspecto sobre semiótica das
paixões, desenvolve conceitos que instrumentalizam o estudo direcionando-o
a questionamentos como: qual seria a paixão que move este sujeito e o
impele na direção do objeto? Seria uma paixão simples, cuja relação sujeito-
objeto está modalizada de forma direta? Ou seria uma paixão complexa, em
que um agente fiduciário impediria/facilitaria o sujeito de alcançar o alvo
previsto? Greimas (apud Barros, 2001, p 63-64), afirma que para explicar as
paixões é preciso recorrer às relações actanciais, aos programas e
percursos narrativos que determinam o comportamento do sujeito: "Os
'estados de alma' estão relacionados à existência modal do sujeito, ou
seja, o sujeito segue um percurso, entendido como uma sucessão de estados
passionais, tensos-disfóricos ou relaxados-eufóricos". Então:

Distinguem-se, em primeiro lugar, paixões simples ou
paixões de objetos, resultantes de um arranjo modal de
relação sujeito-objeto, de paixões complexas, em que
várias organizações de modalidades constituem na instância
do discurso, uma configuração patêmica e desenvolvem
percursos. A regra é a complexidade narrativa e percursos
passionais complexos.
Nesta teoria, as paixões simples são modalizadas pelo /querer-ser/ e o
sujeito se relaciona diretamente com o objeto. As complexas têm um estado
inicial de espera, que pode ser denominado de espera simples ou espera
fiduciária.
Na espera simples o sujeito deseja estar em conjunção ou
disjunção com um objeto de valor, sem, no entanto, nada
fazer para isso.[...] Nesta espera, o sujeito do estado
deseja que a conjunção se realize, mas não quer ser o
sujeito do fazer. [...] Na espera fiduciária, o sujeito do
estado mantém com o sujeito do fazer uma relação
fundamental na confiança. O sujeito de estado pensa poder
contar com o sujeito do fazer para realizar suas
esperanças ou direitos, ou seja, atribui ao sujeito do
fazer, um dever/fazer. (idem)
A espera fiduciária acrescenta ao programa da espera simples o
seguinte programa narrativo: S¹ crer {S² dever - (S¹ O)} No conto
"Avarmas", o sujeito Eugênia se comporta como um sujeito de espera,
desejando que a conjunção se realize, mas não quer/não pode ser o sujeito
do fazer, responsável pela transformação. Ela bate de porta em porta, nos
quartéis, hospitais e até na porta da Igreja procurando o filho. A cada
batida deposita a confiança no outro de que encontrará o filho. Baseado
nisso pode-se afirmar que se trata de uma paixão complexa, uma vez que o
sujeito de estado (Eugênia) deposita num sujeito do fazer um dever/fazer:
ela espera que o outro dê conta do lugar onde está seu filho Marco. Pode-se
representar esta espera pela seguinte modalização:


Considerando-se a modalização, é possível afirmar que a paixão que
move o sujeito Eugênia (S¹) é uma paixão complexa. Seu filho, Marco (O)
está desaparecido. Sem dúvida ela fica em estado de espera. Espera que ele
apareça. Embora ela não esteja parada, só lhe resta esperar, enquanto
busca. Conforme Barros (2001, p 64) "A esperança é um dos efeitos de
sentido da espera relaxada; a insegurança, que gera aflição, decorre da
espera tensa". Eugênia se comporta, nesse aspecto, como o sujeito da espera
tensa, aquela que gera aflição. Ao longo do texto, percebe-se que Eugênia
entra em estado de aflição, e chega à desilusão, à frustração. Esta
configuração passional, na visão de Greimas e Fontanille (1993) seria a
insatisfação, que leva a estes estados de alma e configura três grupos de
paixões complexas: amargura ou mágoa; decepção ou desilusão e frustração ou
tristeza. Sem dúvida a paixão que move o sujeito Eugênia encontra-se num
desses grupos. São as paixões da ausência.
Ando por este caminho em espaços espaçados de pedras e
asfalto. Por entre casas e olhares e pessoas. Devagar se
formam interrogações em torno de mim. Reconheço que não
penteei os cabelos e nem me perfumei. Existo ainda assim.
Resisto. Bato, com a mão firme, nesta porta. É uma enorme
porta, e me parece pesada. Abre-se com dificuldade. Alguém
faz sinal para eu não me mover e permaneço de pé,
esperando ordens. De qualquer modo é uma esperança.
Consigo respirar. Respiro fundo. Olho para os lados, como
não querendo nada me buscando consolidar minhas suspeitas.
Tenho tempo para pensar e penso que foram buscá-lo, meu
Marco. (JORGE, 1980, p. 134)
Eugênia quer encontrar Marco; procura-o batendo de porta em porta. Há
uma insatisfação decorrente da disjunção do sujeito com o objeto-valor
desejado, que provocou um estado intenso e não-eufórico de não-conjunção. E
para que a conjunção seja possível, o sujeito do querer S¹ coloca suas
esperanças no sujeito do fazer S², que é convencido a querer realizar a
ação. É preciso que haja, neste ponto, a adesão do sujeito do /querer-
fazer/ para que as ações progridam. Greimas, (apud Barros, 2001, p. 66)
explica que: "A instauração desse sujeito é um dos três caminhos para o
relaxamento da situação tensa de falta. Os outros dois são voltar a
acreditar _ /crer-não-ser/ - /não-crer-não-ser/ - /crer-ser/ _ ou prolongar
a aflição na 'paixão' distensa da resignação." O /querer fazer/ define-se
pela intencionalidade desse sujeito que pode despertar hostilidade no
sujeito de estado. Então S² comporta-se como destinador ou anti-sujeito.
Com Eugênia a situação tensa de falta relaxa cada vez que ela, ao
bater em uma porta, encontra solução provisória. "Consola-me saber que esta
terceira porta está se abrindo. [...] Devagar para não perder a calma, nem
as articulações que se tornam difíceis. Custa-me reconhecer a mão do meu
filho." (JORGE, 1980, p.135) Mas logo em seguida a solução é frustrada
porque Eugênia não encontra o filho e volta à procura; isto é, "volta a
acreditar _ /crer-não-ser/" que o objeto encontrado não é o objeto
procurado: "avanço com certa segurança. Estou decidida. Forço uma das
portas e rapidamente todas as outras se abrem. Vigio-as como louca."
(idem); "Continuo no meu alegro, em outro tom mais prolongado e mais fino:
Meu Marco. Quero meu filho (JORGE, 1980, p. 138); ou ainda: "Faço uma nova
investida. A porta abre-se e meu corpo é projetado com violência dentro de
quatro paredes [...] Em urgência, faço funcionar a língua e a boca: Meu
Marco, quero o corpo de meu filho" (p.138-9).
Para configuração dos dispositivos actanciais modais, temos S¹, S² e
O(S³) que se movimentam na narrativa. Sendo que S¹ está em busca de O e
procura um acordo fiduciário com S², porque espera nele a concretização e
finalização do estado de espera. O S² é movente e variável, porque a
configuração do S² vai depender dos lugares por onde o S¹ passa. A cada
momento ele surgirá de uma maneira diferente. O S² pode ser um policial, um
médico, um padre ou outro representante das instituições por onde o S¹
passa efetuando sua busca. A cada porta em que bate encontrará um sujeito
de fazer. O objeto-de-valor (O) às vezes se comportará como S³ (actante),
mover-se-á dentro da narrativa nos momentos de retorno ao passado do S¹,
quando então o O (S³) ainda se encontrava em conjunção com S¹:
Marco ainda espera por mim e está assim, simplesmente
perto de mim, com o inocente olhar. Ouço-o. Vejo-o. Aperto-
o contra o peito. Não digo palavra para não perturbar o
momento. Mas esse instante me diz respeito. As manhãs.
Belas manhãs, haveria diálogos: Arranjava-lhe os livros e
os pequenos objetos, lava-lhe a roupa. Haveria de ser
assim: Responsável, apresentava-me seus amigos e seus
planos nos estudos. Ria-se muito também das coisas
singulares. (JORGE, 1980, p.139)
Em resumo temos a configuração de uma paixão complexa em que S¹
encontra-se em não-conjunção com O e mantém uma relação de espera tensa,
fiduciária, com um S², por meio do qual espera entrar em conjunção com o
objeto-valor. Esta leitura possibilita o desenvolver da narrativa, mas não
dá conta dos significados que se extraem, por exemplo, nos movimentos
executados por S¹ na dinâmica da sua busca.
A estrutura frasal do texto nos direciona a outros caminhos. Evidencia
um conjunto de orações entrecortadas, curtas ou longas, mas na ordem
direta, que parecem realizar um traçado de dança ou de notas musicais. Há
referência a certo movimento: primeiro, segundo e terceiro movimento, como
se fosse um alegro[4], a execução de uma melodia, ou de uma dança circular,
sem fim. Essa interação das artes nos remete a Bakhtin (2003), com o estudo
da polifonia das vozes que se cruzam nos textos, evocando significados para
além do texto. "Continuo no meu alegro, em outro tom mais prolongado e mais
fino: Meu Marco. Quero meu filho. A poeira voltou a ocupar o mesmo lugar."
(JORGE, 1980, p.138). O intercâmbio das artes traz outras linguagens
simbólicas para o texto, cujas metáforas, plenas de significado, revelam
outros sentidos. É a própria polifonia.
O retorno constante ao que a personagem Eugênia chama de primeiro
movimento marca o seu retorno à rua e à procura de porta em porta. Cada vez
que uma busca é mal sucedida há o registro, do escritor, da expressão
indicativa de retorno, na verdade a cada início de parágrafo. O texto se
constrói em sete parágrafos, como se fosse o movimento da música pelas sete
notas musicais, num concerto macabro, ou num movimento de dança, como um
balé cíclico cujo final é sempre retorno:
Sempre o primeiro tempo ou o segundo...(primeiro
parágrafo) (JORGE, 1980, p. 133)
Volto ao primeiro movimento... (segundo parágrafo) (idem)
Ainda o primeiro movimento: (terceiro parágrafo) (idem, p.
134)
Ainda o primeiro movimento: (quarto parágrafo) (idem, p.
135)
Novamente no primeiro movimento (quinto parágrafo) (idem,
p.139)
Alegroandante (sexto parágrafo) (idem, p. 140)
Volto ainda ao primeiro movimento, ou ao segundo, ou ao
terceiro. Sempre o mesmo caminhar, o meu caminhar. Sou
Eugênia, mãe de Marco. Uma senhora ou uns passos. Um
trapo. (sétimo e último parágrafo) (idem, p. 140)
Os retornos remetem à ideia de idas e vindas de volta ao mesmo ponto.
O que permite extrair do texto o tema mitológico de Sísifo. Como o mito
grego, Eugênia, sempre faz o mesmo percurso de ir em busca do filho pelas
ruas, pelas calçadas, batendo em portas, carregando a sua rocha, e, ainda
como Sísifo, o seu movimento é em vão. Volta sempre ao mesmo ponto, como o
retorno de Sísifo todas as tardes à planície da espera. Assim, com
elementos do texto, como os citados acima, é possível demonstrar esse mesmo
esforço repetitivo de Eugênia, que não tem fim e nem recompensa.
A imagem, o mito: o balé sisífico de Eugênia.
O mito: nas várias definições elaboradas ao longo dos tempos, os
autores comungam a ideia de que um mito não só valida ou autoriza costumes,
ritos, instituições, crenças, mas também é responsável pela sua criação.
Patai (1974), por exemplo, afirma que há uma recíproca fecundação entre o
mito e os aspectos da vida cultural classificados como costumes, ritos,
instituições e crenças, que foram se modificando dinamicamente de acordo
com as mudanças na estrutura das sociedades; e os novos mitos criam novos
padrões socioculturais e, inversamente, novos costumes e novas situações
sociais criam novos mitos
Elegeu-se Sísifo neste momento para um estudo comparativo com Eugênia
porque segundo a mitologia grega, por toda a eternidade, ele, como castigo
por enganar, duas vezes, Tânatos (a morte), e ter afrontado Zeus levando
água para o seu povo, foi condenado a rolar uma grande pedra de mármore com
suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava
quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o
ponto de partida através de uma força irresistível. Por esse motivo, a
tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada "Trabalho de
Sísifo". Sísifo tornou-se conhecido por executar esse trabalho rotineiro e
cansativo. Tratava-se da punição para mostrar-lhe que os mortais não têm a
liberdade dos deuses. Os mortais só têm a liberdade de escolha no âmbito
terreno, devendo, pois, concentrar-se nos afazeres da vida cotidiana,
vivendo-a em sua plenitude. A necessidade de mudar é que os torna criativos
na repetição e na monotonia.
A imagem do esforço repetitivo, sem recompensa, reproduz, sim a ideia
de Sísifo. Eugênia, como o mito, é obrigada a enfrentar esta situação que
não lhe deixa saída. Como o mito, não se resigna, mas não tem saída, e tem
esperança na recompensa do encontro. Mesmo que o encontro seja com o filho
morto. Por isso ela não desiste da procura. Reveste-se, assim, de um
sujeito batalhador, aguerrido, por isso um caminhante. Sempre de pé, em
posição vertical, pronta para a batalha pode-se dizer, recorrendo ao
imaginário, uma imagem de regime diurno. Durand (2009, p.26) descreve como
imagem do regime diurno, o elemento "Ligado à verticalidade do ser humano,
[...] Trata-se aqui de dividir, de separar, de lutar" como faz Eugênia, que
na procura pelo filho está sozinha, separada do mundo contra quem luta.
Portanto parece aceitável utilizar na análise do texto a relação destas
representações simbólicas do imaginário.
Mas o que é o imaginário e o que são os regimes? Durand afirma que
imaginário é a essência do espírito, o conjunto das imagens e das relações
que constituem o capital pensado do homo sapiens onde se organizam todos os
procedimentos do espírito humano. Segundo Pitta, (2005, p. 15),
interpretando as ideias de Durand:
O imaginário, nessa perspectiva, pode ser considerado como
essência do espírito, à medida que o ato de criação (tanto
artístico, como o de tornar algo significativo), é o
impulso oriundo do ser (individual ou coletivo) completo
(corpo, alma, sentimentos, sensibilidade, emoções...) é a
raiz de tudo aquilo que, para o homem, existe.
Há outras definições de imaginário, cada uma com suas
particularidades, entretanto, é comum a todas elas a ideia de que o
imaginário está na essência do espírito humano, e abrange, entre outros
elementos, os shèmes, os arquétipos, os mitos, os símbolos. Alguns desses
conceitos serão explicitados para maior compreensão do que será discutido,
tomando como base o que Pitta (2005) registra. Segundo a autora, para
Bachelard, o imaginário se organiza a partir das imagens, e estas: "[...]
formam a instância imediata e universal do psiquismo" [...] (apud PITTA,
2005, p. 43-56) A psicologia do imaginário se torna então inseparável de
uma ontologia e mesmo de uma metafísica, que tem como fim uma arte de
viver.
A autora explica que Eliade e Jung têm pontos em comum ao definir o
imaginário a partir de questões histórico-religiosas. E na raiz desta noção
de imaginário está o mito porque "O mito irriga a história, ele dá um
sentido, uma estrutura, ao que seria apenas uma acumulação insignificante
de eventos.[...] O trabalho do historiador das religiões é, então, o de
apreender, além da diversidade e do brilho das imagens, o universo do
símbolo." (ELIADE, apud PITTA, p. 60-61).
Conforme Pita (2005), Eliade sendo historiador tem menos confiança nos
sonhos como experiência do imaginário do que Jung, que julgava a
experiência onírica individual elemento essencial. Eliade privilegia a
experiência coletiva. Entretanto a ambos as imagens simbólicas, para serem
mais eficazes, são reagrupadas em relatos organizados, os mitos; e Patai,
(1974, p.29) afirma que para Jung, a formação dos mitos é um processo
psicológico que constitui traço essencial ou vital da psique humana, e cuja
existência pode ser igualmente demonstrada no homem primitivo e no moderno.
Pode-se dizer que essas definições, anteriores a Durand, serviram de
suporte ou, muitas vezes de contraponto à sua teoria e terão aqui um papel
semelhante. Servirão para compor o corpus de análise pela visão de
imaginário e do mito. O próprio Durand, ao conceber sua teoria, faz
restrições ao referencial teórico já existente:
Todas essas classificações nos parecem pecar por um
positivismo objetivo e tenta motivar os símbolos
unicamente por meio da ajuda de dados extrínsecos à
consciência imaginante e [...] não dão conta desta força
fundamental dos símbolos que é de se ligar, para além das
contradições naturais, dos elementos inconciliáveis, das
barreiras sociais e das segregações dos períodos da
história. Parece, então que se deva procurar as categorias
motivantes dos símbolos nos comportamentos elementares do
psiquismo humano. (apud, PITTA, 2005, p.92)
Na sua teoria do imaginário, o autor coloca-se numa perspectiva
globalizante porque posiciona-o na confluência do objetivo com o subjetivo,
do mundo pessoal e do meio cósmico ambiente; e denomina a operacionalização
das imagens de trajeto antropológico do imaginário que é uma maneira
própria para cada cultura de estabelecer a relação existente entre sua
sensibilidade, pulsões subjetivas, e o meio em que vive, tanto o meio
físico como o social.
A razão do emprego do termo trajeto se deve ao fato de
este antropólogo enfatizar o processo de o indivíduo,
diante da multiplicidade de imagens recebidas e
conservadas em sua memória, precisam escolher e combinar
algumas delas no processo constante de sua organização,
interior ou exterior. (MURATA, 2009, p. 48)
Ao definir esse trajeto, organiza uma classificação por meio de dois
regimes das imagens, tendo-as como matriz do pensamento. Para Durand:
A primeira característica da imagem que a descrição
fenomenológica revela é que ela é uma consciência e,
portanto, como qualquer consciência, é antes de mais nada,
transcendente. A segunda característica da imagem que
diferencia a imaginação dos outros modos da consciência é
que o objeto imaginado é dado imediatamente no que é,
enquanto o saber perspectivo se forma lentamente ou por
aproximações sucessivas. (DURAND, 1997, p. 22)
É nas imagens constituídas pelo tecido da escrita que poderemos
compreender as representações simbólicas de que o autor lança mão para
extrair sentidos. Em "Avarmas", a organização pelo seu campo semântico
possibilita a leitura voltada para o regime diurno das imagens. Antes de
definir, entretanto, pensemos os regimes sob o prisma da classificação de
Durand, que os define estabelecendo três conjuntos de engramas acomodados
em dois regimes, o diurno e o noturno. Murata (2009, p. 49) explica:
As imagens do primeiro conjunto (engramas da ascensão)
constituem imagens heróicas e compõem o regime denominado
diurno; as do segundo conjunto (engrama da deglutição)
formam as imagens místicas e constituem o regime chamado
noturno; as do terceiro conjunto (engrama da copulação)
são as imagens da síntese e pertencem também ao regime
noturno. Aos dois últimos engramas, corresponde, portanto,
um único regime, porque Durand considera, em primeiro
momento, que há uma íntima relação entre a deglutição e a
copulação.
Os regimes são estruturas esquemáticas que podem dimensionar a análise
do texto pelo seu conteúdo, levando em conta seus componentes sintáticos,
semânticos e lexicais. Os componentes de "Avarmas" direcionam o estudo para
o regime diurno, uma vez que:
O regime diurno contém as imagens que figurativizam a
atitude heróica para vencer qualquer situação, seja de
angústia, de medo ou de adversidade, implicando o sentido
e a percepção do confronto e o uso de toda e qualquer
arma: palavras, gritos, agressões físicas, evocando a
figura exigente e autoritária do Pai, responsável pela
Lei. Temos aqui os gestos de levantar, gestos de luta,
ligadas à posição vertical, do confronto (símbolos
ascensionais, especulares e diairéticos). São
privilegiados os processos dialéticos, a tendência à
abstração do meio ambiente e à inclinação para fragmentar
o tema e a forma de expressão, focalizando a parte e não o
todo. Os verbos ou os gestos reportam, em geral, ações que
marcam processos de distinção, separação ou afrontamento,
evidenciando o pensamento por antítese, a atração pela
contradição e o conflito (MURATA, 2009, P. 50)
"Avarmas", traz a imagem de Eugênia, uma mulher em atitude heróica
para vencer qualquer situação, seja de angústia, de medo ou de
adversidade... por todos os lugares da cidade em busca de Marco, o filho
desaparecido. Enfrenta todas as situações que se lhe aparecem e não
desiste. Considerada louca, é expulsa dos os lugares onde entra, muitas
vezes maltratada fisicamente, mesmo assim não desiste:
Desafio minha sensatez, minha cólera. Alguém cantava
canção antiga, tentando quebrar minha ira. Bato na porta
com as duas mãos e com os dois pés. O canto perdura.
Insisto atirando-me contra a parede. Não sei medir o
tempo, mas sei que ele se interrompe. Reavivo todos os
momentos e todos os tormentos. Faço nova investida.
(JORGE, 1980, p.138).
No decorrer da busca, depois de tantas portas batidas, por onde entrou
e foi expulsa, ou nos lugares em que alguém a recebeu e mostrou outros
corpos: "Eles pareciam perguntar: qual desses é seu filho? Qual desses é
Marco? É como ressuscitar a própria alma" (idem), Eugênia não desiste
mantém-se ereta, em posição vertical de elevação e de afrontamento. Esse é
um dos elementos que denota o regime diurno da imagem. Todo o texto é feito
de frases curtas, pensamentos entrecortados; as vozes ásperas e os gestos
agressivos de quem a expulsa dos lugares em que entra fazem contraste com a
sua figura inferiorizada e silenciosa. Os verbos reportam ações que marcam
separação e investidas. Há uma realidade atitética nesta mulher trôpega,
rota, louca: "Volto ainda ao primeiro movimento, ou segundo, ou terceiro.
Sempre o mesmo caminhar, meu caminhar. Sou Eugênia, mãe de Marco. Uma
sombra ou uns passos. Um trapo" (JORGE, 1980, p. 140). Ao mesmo tempo em
que o seu corpo é frágil, um trapo, como a narradora mesmo se coloca, sua
vontade é inquebrantável, ela não interrompe a jornada, não se queda.
O movimento circular que cumpre mostra ao leitor que seu caminho não
tem fim. O último parágrafo do texto se liga ao primeiro harmoniosamente.
Qualquer dos dois poderia iniciar ou fechar a narrativa, revelam o mesmo
comportamento de Eugênia, entrar e sair de portas que se abrem e que se
fecham sobre seus passos. Como Sísifo, ela sabe disso, não desiste. O
movimento circular que percorre a narrativa reforça a ideia do mito, mas
traz também a ideia da espiral, que se liga ao regime noturno da imagem. A
espiral, conforme Chevalier e Gheerbrant (2002, p.398):
[...] tem relação com o simbolismo cósmico da Lua, o
simbolismo erótico da vulva, o simbolismo aquático da
concha, o simbolismo da fertilidade (voluta dupla,
chifres, etc.); em suma, representa os ritmos repetidos da
vida, o caráter cíclico da evolução, a permanência do ser
sob a fugacidade do movimento.
Embora predomine no texto o regime diurno da imagem, como já foi
constatado, em alguns momentos nota-se a presença de símbolos do regime
noturno, como por exemplo, esse movimento em espiral, que confirma um
aspecto do regime noturno, mas não atrapalha, pelo contrário, enriquece a
harmonia do texto. Pode-se dizer que o caminhar de Eugênia cumpre um
movimento espiral. Não é apenas circular porque suas idas e vindas podem
ser retorno ao mesmo ponto da busca, porém não é retorno ao mesmo espaço
geográfico. O desenho da sua trajetória, a cronotopia do seu caminhar
progride sempre, pois vai demarcando pontos pelas ruas da cidade e não há
verdadeiramente um retorno. É o desenvolver das pulsações dos ritmos
repetidos da vida, sob a fugacidade do movimento na progressão do tempo-
espaço. Na sua condição de mulher, Eugênia tem um comportamento de
acolhida, aconchego quando fala de Marco antes do desaparecimento:
Revejo-o entrando em seu primeiro terno de brim, untando o
cabelo, dizendo que estava sendo esperado numa festa. Eu
tinha que estar agradecida por ele ter deixado o quarto e
os livros e ir se divertir um pouco. Mesmo quando ele
voltava e me tirava da solidão, eu agradecia por ele ter
voltado antes da hora marcada e lá ia ele, novamente para
seu quarto e seus livros. Era sempre ele: Maduro. Correto.
Amparando a mim e a todos que o cercavam com firmeza, com
seu jeito de entender as coisas. E eu, Eugênia, me sentia
mãe na firme lucidez de protegê-lo (JORGE, 1980, p. 133).
É a sua condição materna que comanda as suas ações de acolhimento e
aconchego. Ao se lembrar do filho vivo, quando criança, adolescente, em
casa, a dureza da expressão ameniza, o comportamento suaviza, e os gestos
assumem uma postura eufemizante de intimidade. Neste momento as imagens
evocam o regime noturno na sua característica sintética.
Ora, é notável verificar igualmente que as estruturas
sintéticas eliminam qualquer choque, qualquer rebelião
diante da imagem, mesmo nefasta e terrificante, mas que,
pelo contrário, harmonizam num todo coerente as
contradições mais flagrantes. (DURAND, 2002, p. 346)
Isso mostra que mesmo que Eugênia tenha uma postura de guerreira e
batalhadora, não perde a essência feminina e as imagens que a rodeiam são
artifícios que concorrem para, ao mesmo tempo, expressar sua índole
guerreira, como uma leoa, quando se trata de defender a cria; e sua doçura,
quando se volta para o ser que gerou. Neste momento do texto, as imagens do
regime noturno sintético exercem o papel de conciliador dos contrários e
harmonizador das contradições, mostrando o que é próprio desta natureza:
A imaginação sintética, com as suas faces contrastadas,
estará mais ainda, se isso é possível, sob o regime do
acordo vivo. Já não se tratará da procura de um certo
repouso na própria adaptabilidade, mas de uma energia
móvel na qual adaptação e assimilação estão em harmonioso
concerto.( DURAND, 2002, p. 346)
Como se percebe, embora seja de acolhida, o regime da estrutura
sintética não é uma energia plácida, estática. É a energia que harmoniza os
contrastes, mas sempre em movimento. Isso combina perfeitamente com a ideia
que evolui a narrativa. No corpo de uma mulher frágil habita a energia de
um guerreiro imbatível. Sendo que acaba prevalecendo a têmpera masculina do
lutador.
A narrativa é tecida pelas malhas de muitos símbolos. Chevalier e
Gheerbrant (2002), no seu Dicionário de Símbolos explicam que a expressão
simbólica é o esforço do homem para decifrar e subjugar um destino que lhe
escapa através das obscuridades que o rodeiam. Essas definições podem
orientar o leitor e direcioná-lo para uma interpretação mais específica dos
temas. Sobrepõem-se os símbolos que se ligam às configurações do regime
diurno da imagem, como por exemplo, os pés trôpegos, que sustentam os
passos de Eugênia;
Pé (passo): o pé do homem deixa a sua marca sobre as
veredas – boas ou más – que ele escolhe, em função do seu
livre-arbítrio. Inversamente, o pé leva a marca do caminho
– bom ou mau – percorrido. Isso explica os ritos de
lavagem dos pés, que são ritos de purificação. [...] O pé
seria também um símbolo da força da alma, segundo Paul
Diel, no sentido de ser ele o suporte da posição vertical,
característica do homem. Quer se trate do pé vulnerável
(Aquiles), ou do manco (Hefestos), toda deformação do pé
revela uma fraqueza da alma. (p. 695-697)
Expressam a sua força de alma, sendo o suporte da posição ereta que
ela mantém, reforça o regime diurno, da batalha. As portas que abrem e
fecham simbolizam a passagem entre dois mundos, convidam a atravessá-las,
mas também sugerem o "[...] convite à viagem rumo ao além" (p.735).
Colocados desta forma é como se fossem o anúncio da morte de Marco, o aviso
de que ele já fez a viagem, que as buscas são/serão ineficazes.
O pássaro que voa cego (a própria imagem de Eugênia, como reflexo da
sua condição): "[...] a leveza do pássaro comporta, entretanto, como
acontece frequentemente, um aspecto negativo [...] leves, mas, sobretudo
instáveis, esvoaçando de lá para cá, sem método, sem método de sem
sequência; o que o budismo chamaria de distração..."(p.687). "Um pássaro
asmático voa sobre a galeria e em seu louco e cego vôo bate em todas as
portas. Mas, estranho mistério, ninguém aparece" (JORGE, 1980, p.135). Esta
é uma das imagens que retratam melhor a condição de Eugênia. Como um
pássaro cego, ela se atira contra todas as portas, irracionalmente.
O cão, que late raivoso, atrás de uma das portas onde ela bate: "Os
cães são considerados como animais impuros. Os Jnun aparecem muitas vezes
sob a forma de cães negros. O latido de cães perto de uma casa é presságio
de morte."(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p.180) Todo o texto é um presságio
de que Eugênia não encontrará o filho procurado. Os latidos dos cães fazem
eco à angústia e ao sofrimento da personagem. A presença de cães latindo se
junta a outros elementos criando a bacia semântica que justificará a
prevalência do regime diurno das imagens sobre o regime noturno.
As pedras, os pedaços de madeira (talvez estátuas) representando a
coisificação do ser; as pedras do calçamento das ruas, irregulares, duras e
frias que atrapalham o seu caminhar concretizam o que o dicionário de
símbolos registra como produtos da terra, originários da terra, fabricados
a partir dos quatro elementos, por isso mesmo intimamente ligados ao homem
(ao ser humano), participando da sua constituição: "A pedra e o homem
apresentam um movimento duplo de subida e de descida. O homem nasce de Deus
e retorna a Deus; a pedra bruta desce do céu, transmutada ela se ergue em
sua direção" (idem, p. 696).
"Tinha a certeza de uma vida naquela casa. Ou eram elementos? Pedras?
Pedaço de madeira? Há uma figura em cada porta como um caçador à espera da
caça." (JORGE, 1980, p. 138) Os elementos que cercam Eugênia concorrem para
a sua agonia. Participam da sua dor, ajudando mitigá-la ou acirrando
cruelmente a intensidade. A madeira, do latim significa matéria (a madeira
de construção). "Na Índia, é um símbolo da substância universal, da matéria
prima [...] Na liturgia católica é muitas vezes adotada como sinônimo da
cruz e da árvore..." (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p 579). Abrangendo o
significado da cruz, a madeira traz a simbologia do sofrimento de Jesus
Cristo, sua via crucis em direção ao gólgota, que analogicamente nos remete
a Eugênia e a sua via crucis da procura do filho. Como o Cristo, ela se
imola, se coloca na condição de mártir, sofre injúrias, desprezo, aflições,
é rechaçada e espancada. E como ele, não perde o objetivo. Entretanto, para
ela, a jornada não tem final. Porque, como a Virgem Maria, não veio para
salvar a humanidade, mas para dar ao mundo o Filho e protegê-lo, e esta
missão, a de proteger, para as mães não tem final.
Os livros, onde Marco buscava conhecimento. "Mesmo quando ele voltava
e me tirava da solidão, eu agradecia por ele ter voltado antes da hora
marcada e lá ia ele, novamente, para seu quarto e seus livros" (JORGE,
1980, p.133). Sendo o livro símbolo da ciência e da sabedoria, conforme
Chevalier e Gheerbrant, pode indicar o perigo que Marco corria ao estar
sempre com eles, estudando. Buscar o saber é perigoso. Quem se apropria da
ciência, do conhecimento, não aceita aprisionamentos. Levando em conta que
a obra estudada foi publicada no início da década de 1980, e o autor tinha
uma posição clara contra o regime ditatorial vigente, é possível afirmar
que o livro é um forte símbolo de subversão e de resistência contra a força
imposta. Muitas obras foram proibidas durante o regime militar no Brasil.
Associar Marcos ao uso dos livros para aquisição do conhecimento indica um
caminho de leitura que pode justificar um dos motivos do seu
desaparecimento. Pode ter sido preso por comungar ideias de liberdade com
outros: escritores, artistas, professores, que sofreram represálias por
lutarem em favor da democracia; por isso mesmo presos, torturados, uns
mortos outros exilados em países estrangeiros.
Entre tantos outros elementos que possibilitam outras tantas leituras,
foram selecionados esses porque estão facilmente identificáveis na
interpretação pela linha do imaginário relacionando-os e os seus
significados simbólicos aos regimes constantes da teoria de Durand e aos
conceitos de Chevalier e Gheerbrant. Muitas vezes a escolha dos elementos
textuais, as presenças de certas palavras e as suas combinações nos textos
direcionam a interpretação. As teorias escolhidas para análise completam
adequadamente o processo.
Esta leitura foi enriquecida com análise de um percurso gerativo
propiciado pela semiótica, caminhando com o sujeito do querer /S¹/ em busca
do seu objeto valor /O/, influenciado pelo sujeito do fazer /S²/, que neste
estudo tem um papel negativo porque impossibilita a conjunção S¹ + O,
concretizando assim a paixão da ausência, que é uma paixão do grupo das
paixões complexas, em que há uma espera fiduciária, no caso desta narrativa
não concluída.


Considerações finais


Para se chegar à descrição passional do sujeito com fundamentos
teóricos consistentes, é necessária uma investigação ampla dos discursos,
observação dos arranjos modais, da sintaxe e da semântica dos textos e as
implicações das suas relações intertextuais. Chega-se a um coeficiente
lógico tomando como ferramentas os programas e percursos narrativos de
sentido. Neste trabalho, procurou-se utilizar tais recursos para
identificar no texto literário "Avarmas" o percurso realizado por um
sujeito em busca do seu objeto valor. E, nesse caminho, suas atitudes, seus
movimentos, as paixões que o moveram na direção do objeto, os empecilhos e
percalços responsáveis pelo sucesso ou o fracasso da sua jornada.
Os componentes imagéticos da narrativa são determinantes na
compreensão das relações que se estabelecem no plano semântico e evocam
significados para além do texto, referenciados nos efeitos de sentido
imanentes do que está posto. O imaginário é o modo de operacionalizar as
imagens. É pela narratividade, principio organizador do pensamento, que as
imagens apreendidas pela imaginação são estruturadas. No estudo das imagens
desse texto, seguiu-se a orientação de Durand, para estabelecer a bacia
semântica que possibilitou determinar o regime predominante (diurno,
noturno). Os elementos simbólicos que se agregam aos sujeitos e ao objeto
tornam possível notar forte intertextualidade entre Eugênia, a protagonista
da narrativa e Sisifo, o ser mitológico famoso pelo castigo que recebeu de
realizar a mesma tarefa todos os dias, sem, contudo, ter sucesso na sua
conclusão. Esta aproximação mostra que, assim como Sísifo, Eugênia, no
percurso de sujeito em busca do objeto valor, também realiza a mesma
"dança" do mito, cujos movimentos são de idas e vindas infrutíferas.
Retornos ao ponto de partida, num vaivém sem fim.
O conto de Miguel Jorge retoma claramente o mito e a sua estrutura
metafórica se configura em ideias que se complementam e contribuem para
moldar uma tessitura superficial onde subjazem outros sentidos. Por trás do
que está posto, muitas vozes podem ser ouvidas, polifonicamente, como
denúncia. Se levarmos em conta que Marco representa um dos muitos filhos
desaparecidos durante o regime militar no Brasil, devido à época e às
circunstâncias em que a obra foi produzida, pode-se afirmar que toda a
construção textual converge para um objetivo maior que é esconder, mas ao
mesmo tempo registrar para que as injustiças praticadas durante o regime
não passassem em branco e pudessem ser um dia combatidas efetivamente.
De tudo o que se discutiu, depreendem-se muitas possibilidades, entre
elas estabelecer diálogo da história com a literatura. O uso de tais
subterfúgios ocorre quando a situação exige, especialmente se emana de
estados brutais de cerceamento de liberdade. A saída é utilizar o texto
literário muitas vezes como arma. A obra literária, no que ela expressa,
consegue definir, pelas estruturas frasais, as paixões que movem os
sujeitos da narrativa a realizarem os percursos necessários a atingir seus
objetos valor. A estética textual e a disposição das palavras, das frases,
a organização sintático-semântica, a localização dos parágrafos, períodos e
frases não são formas aleatórias, mas são escolhas do escritor que ajudam a
compor o resultado final.
A linguagem simbólica e as imagens favorecem o jogo
literatura/imaginário; pelo imaginário, os isomorfismos dos esquemas
relativamente estáveis e agrupamentos de "estruturas vizinhas" (DURAND,
2002, P. 64) definem o regime, aqui, predominantemente diurno. Mas acima de
tudo isso, os jogos de significados impressos no texto nos revelam o ser
humano na eterna batalha contra as crueldades que o semelhante às vezes lhe
impõe; suas dores, suas angústias e sofrimentos reveladores dos estados de
alma do autor, acima do texto.


REFERÊNCIAS


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Paulo: Martins Fontes, 2003.

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______. Iniciação à teoria do imaginário. Trad. Danielle Perin Rocha Pitta.
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FERREIRA, Aurélio B.H.. Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. São Paulo:
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PATAI, Rafael. O Mito e o Homem Moderno. São Paulo: Cultrix, , 1975.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert
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[1] Artigo produzido como requisito parcial de conclusão da disciplina:
Imaginário, mitos e semiótica das paixões, componente do quadro de Mestrado
e Doutorado na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás;
[2] Aluna da disciplina Imaginário, mitos e semiótica das paixões,, em
caráter especial, no Programa de Pós-graduação da UFG;
[3] Professoras Doutoras da Faculdade de Letras, titulares da Disciplina.
[4] Em música, é o conjunto de todas as características de uma composição
musical que podem variar de acordo com a interpretação. Em geral, a
expressão engloba variações de andamento (cinética musical) e de
intensidade (dinâmica musical), bem como a forma com que as notas são
tocadas individualmente (acentuação) e em conjunto (articulação ou
fraseado). Em geral, o compositor da obra musical fornece na partitura
todas as indicações da execução esperada, mas dois intérpretes nunca
executarão a música da mesma forma. Mesmo entre duas execuções pelo mesmo
intérprete, podem ocorrer pequenas variações. Essas variações não são
falhas; ao contrário, são esperadas; é a expressão que diferencia uma
execução mecânica de expressão artística. (FERREIRA, 1988, p. 54)



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S¹ querer (Eugênia) {S²
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