Mito político, memória e a construção das \"famílias brasileiras\" na Ditadura do Estado Novo (1937-1945)

May 26, 2017 | Autor: Fábio Wilke | Categoria: History, History and Memory, Family, History of Brazilian Republic
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RESUMO Este artigo busca percorrer algumas questões que permeiam o estudo do político e do social. Especificamente trataremos sobre a construção de uma mitologia referida a Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que a ideia de união nacional através das ideias de família pública e de família privada ganha corpo, durante a Ditadura do Estado Novo. Por fim, um questionamento em relação à memória histórica que nos resta sobre o período, depois de toda uma construção simbólica através da propaganda política. Palavras-chave: Ditadura do Estado Novo; política; mito político; memória, família.

MITO

POLÍTICO,

MEMÓRIA

E

A

CONSTRUÇÃO

DAS

"FAMÍLIAS

BRASILEIRAS" NA DITADURA DO ESTADO NOVO Fábio Roberto Wilke1

Custosa é a tarefa de discorrer sobre o período histórico que abarca os anos de 1930 a 1945, no Brasil, sem relacioná-lo às vultosas transformações políticas e sociais ocorridas. O contexto se caracteriza por uma reorganização do poder político no país2 . Ao mesmo tempo em que o poder político hegemônico se recompõe, há um particular movimento burocrático de expansão que visa dar capacidade de execução ao projeto político de poder em voga. Nesta elaboração, nos deteremos majoritariamente ao recorte espaço-temporal que inicia com o golpe de novembro de 1937, o qual deflagrou a Ditadura do Estado Novo, que se estendeu até o ano de 1945. Ditadura esta que se distingue por aliar autoritarismo 3 político à construção da Legislação Trabalhista4 , que possibilitou a normativa das relações entre capital e trabalho em diversas categorias profissionais organizadas. Este é um paradoxo significativo a ser contemplado. O autoritarismo político promovido pela Ditadura do Estado Novo não pode ser apreendido apenas em seus aspectos conservadores e repressivos. Conjunta e 1

Aluno de mestrado do Programa de Pós -Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Em 1930 há o golpe armado perpetrado pelo grupo político de Getúlio Vargas que destituiu o grupo político anterior, ligado a São Paulo, do poder federal. Já em 1937 há novo golpe, desta vez deflagrando a Ditadura do Estado Novo, reafirmando o poder golpeado em 1930. 3 Recente obra que percorre a questão do autoritarismo político durante o primeiro governo Vargas é a de SILVEIRA, Helder Gordim da. ABREU, Luciano Aronne de. (orgs). De Vargas aos militares: autoritarismo e desenvolvimento econômico no Brasil. Porto Alegre: Edipucrs, 2014. 4 Aprovada pelo Decreto-Lei Nº 5.542, de 1º de maio de 1943. Dispositivos podem ser consultados em . 2

paradoxalmente, denota-se uma miríade de transformações levadas a cabo pela burocracia estatal que atingem significativamente os setores sociais ligados ao mundo do trabalho. Diante disso, este artigo pretende percorrer por algumas questões que possuem entre si a questão da família como eixo de ligação. Seja através da família considerada enquanto grupo social e histórico dotado de particularidades e alvo de ações políticas seja através da família considerada enquanto um conceito abstrato que pode ser utilizado para fins de retórica política. Do mesmo modo, este é um contexto no qual se percebe a construção de uma mitologia política em torno do pressuposto de novo Brasil. À ideia de formação de um novo país, centrado em uma nacionalidade vinculada fortemente a questão do trabalho, há a adição de um ideário político no qual a família ganha relevo no que se refere à retórica política. Por um lado a família, enquanto grupo social, ancorada nos pressupostos de trabalho pretendidos pela Ditadura, e como ambiente propício à formação e manutenção do trabalhador brasileiro. Por outro, ligada à ideia de nação, no sentido da "família brasileira". Noção que trás consigo características de união, de unidade e trabalho conjunto. Não podemos desconsiderar que é neste justo momento a consolidação de Getúlio Vargas como o "pai dos pobres". Caricatura que percorre até os dias atuais, mesmo que sob crítica da historiografia. Por outro lado, a questão da construção da memória neste contexto também nos interessa. Regimes de exceção, assim como a Ditadura do Estado Novo, utilizaram historicamente este recurso enquanto ferramenta política. Podemos pensar como exemplo os regimes fascistas europeus, na Itália e na Alemanha, onde a memória – voltada ao passado, mas também ao presente – serviu como instrumento político pertinente. Explicitamos, desde já, que consideramos a família um canal pertinente a ser contemplado nas pesquisas históricas que envolvem a Ditadura do Estado Novo, no Brasil. Sua possibilidade diversa de abordagem a transforma em objeto proveitoso. Neste sentido, levantaremos uma questão de análise a qual perseguimos que é: de que modo compreender a ideia conjunta de família - pública e privada - construída durante o Estado Novo. A retórica política desenvolvida por Getúlio Vargas e seu grupo politico é constituída, essencialmente, pelo recurso a união nacional. Esta união, que teria o trabalho como fio condutor, seria necessária para a definição dos pilares de sustentação da nova nação pretendida desde o início dos anos 1930 e ratificada com o Golpe de 1937. Neste sentido, podemos avaliar esta questão já nos primeiros discursos proferidos por Getúlio, como neste que apresentamos:

A nova Constituição, colocando a realidade acima dos formalismos jurídicos, guarda fidelidade às nossas tradições e mantém a coesão nacional, com a paz necessária ao desenvolvimento orgânico de todas as energias do país. Os imperativos de ordem e segurança predominam. Garante o trabalho e o capital, a família e o Estado, as atividades produtivas e o funcionamento regular do poder público. (VARGAS, Getúlio Dornelles, 1937).5

Ou seja, esta união ou nas palavras de Vargas, esta "coesão nacional", estaria disposta a um pretexto fundamental. Garantir o "desenvolvimento orgânico de todas as energias do país". Em relação a isto, percebemos que se refere ao funcionamento pleno das forças produtivas, elemento de transformação nacional. Prosseguindo neste sentido, em um primeiro momento abordaremos a concepção de família a partir de uma lógica privada. Ou seja, aquela que se traduz enquanto um grupo social composto por elementos que coabitam um mesmo local e que pode ser motivo de politicas públicas. De modo geral, nos anos de 1930, formada por homem, mulher e filhos6 . Isto nos possibilitará, posteriormente, realizar a ligação com o ideal público de família, aquele ligado ao bem comum e, no período em questão, ligado ao ideal mais amplo de nação. Feito isto, a junção destas concepções poderá nos propiciar uma proposição teórica mais ampla, que dialogue com o ideal de família proposto pela Ditadura do Estado Novo. Ideal este que passa pela construção do discurso político através da construção do mito Getúlio Vargas e, da mesma forma, de memórias, haja vista o esforço institucional em solidificar não somente uma imagem de presente, mas também de futuro a ser alcançado.

AS "FAMÍLIAS BRASILEIRAS": A FAMÍLIA COMO IDEIA PRIVADA

Recurso recorrente utilizado na retórica política do Estado Novo foi a necessidade de amparo a família. Em 1934, pela primeira vez, a família torna-se um dispositivo Constitucional7 . Isto porque o diagnóstico apontado por intelectuais e propositores políticos apontava para a necessidade de fortalecimento deste grupo social. Ao Estado, por sua vez, ficaria o encargo de subsidiar este fortalecimento principalmente através das políticas públicas. A ideia de que setores sociais viviam em condições de atraso civilizatório era preponderante e isto concorreria para o atraso do desenvolvimento nacional, que estaria 5

Disponível em . Acesso em 02/12/2015. 6 Não nos proporemos, por hora, ao debate acerca do aspecto conservador de família durante o período. Algo que julgaria maior esforço propositivo. 7 De acordo com POLETTI (2012, P. 16) o tema da família, assim como da educação e ordem econômica e social, foi posto ao cargo de José Américo, João Mangabeira e Oliveira Vianna nas discussões para elaboração dos dispositivos.

ligado à precária situação geral da força de trabalho. Neste ponto é que a ideia privada de família ganha destaque. O reduto familiar passou a ser considerado pelo Estado como objeto a ser contemplado. O meio familiar, e aqui o pensamos como um conjunto social que tem a habitação, os hábitos alimentares e higiênicos como um complexo, passou a ser visto como um meio pertinente de intervenção estatal. Isto porque o trabalho neste contexto foi o condutor geral de todas as proposições políticas. Através dele é que se interligavam as ideias de nação, de prosperidade nacional e em última instância do próprio homem e cidadão. Desta forma, a intervenção estatal em âmbito familiar extrapola o sentido mais restrito de intervenção social. Está ligada a uma concepção proposta de desenvolvimento da nação. Ora, para que as forças produtivas nacionais prosperassem, seria necessário não somente o fortalecimento dos trabalhadores atuais e a eventual "correção" de práticas consideradas não condizentes, mas da mesma forma seria preciso que se fortalecesse e também aumentasse o número de futuros trabalhadores. Estes seriam os responsáveis futuros pela consolidação de um ideal de nação e desenvolvimento pretendido pelo movimento político hegemônico que se fortalece desde 1930, ratificando seus pressupostos em 1937, através da Ditadura do Estado Novo. Deste modo a interferência política na família em âmbito privado se desenvolve nestes termos, no sentido de amparar socialmente setores da sociedade que, às vistas da Ditadura, têm algo a contribuir no que se refere ao desenvolvimento das forças materiais do país. No contexto em questão fortalecer a família, em âmbito privado, significava conformar a formação social de um modo geral, pois ela era a que continha os trabalhadores, mas também as mulheres, aquelas pretensas responsáveis pela condução moral dos homens, e também as crianças8 , a quem caberia o papel futuro de braços da nação. Neste sentido, a ideia privada de família está relacionada a uma ideia social mais objetiva de família. Ou seja, ligada intimamente às políticas públicas, à intervenção estatal, às questões próximas e objetivas de desenvolvimento social. Saneamento básico, habitação, alimentação, proteção às crianças recém-nascidas, salário, etc. O diagnóstico traçado pela equipe política do Estado Novo apontava, desde 1930, para a necessidade de alçar a família ao posto de dispositivo constitucional, o que foi inaugurado em 1934 e confirmado na Constituição outorgada de 1937. A partir disso seria possível sua intervenção, no sentido de conformar hábitos e práticas não condizentes com os pressupostos de desenvolvimento que 8

A este respeito conferir a dissertação de Natascha Stefania Carvalho De Ostos, Terra Adorada, Mãe Gentil: representações do feminino e da natureza no Brasil da Era Vargas (1930-1945). UFMG, 2009.

seriam alcançados através do trabalho. Ao mesmo tempo esta ideia privada de família - pois se refere ao grupo social restrito dialoga com o ideal público de família – ou abstrato. Pressupomos que esta interligação entre um ideal privado de família e um público, tendo como fio condutor a questão mais ampla do trabalho, fortalece a retórica política dispendida a exaustão no Estado Novo, de criação de um novo país ancorado na moral e na força do trabalho. A união nacional através da "família brasileira" serve como um pertinente exemplo do modo em que estas duas ideias podem ser articuladas. Sendo assim, na continuidade desta elaboração passaremos à análise da ideia complementar de família que estamos propondo. A família enquanto ideia pública.

Esta,

ligada aos pressupostos mais gerais de nação pretendida pelo Estado Novo, se afirma no sentido de possibilitar a "coesão nacional" pretendida por Getúlio Vargas, através da unificada "família brasileira".

AS "FAMÍLIAS BRASILEIRAS": A FAMÍLIA COMO IDEIA PÚBLICA

Prosseguindo em nossa argumentação, nos deteremos à noção complementar e articulada de família que estamos propondo. Ou seja, a família enquanto ideia pública. Quando nos referimos a isso, pensamos a família conjugada na retórica política do Estado Novo. Esta está relacionada a enunciados que identificam a formação social brasileira de acordo com uma ideia mais ampla de nação, a "família brasileira". Getúlio Vargas desenvolveu uma escalada autoritária nos anos de 1930 a 1945. O ápice de suas ações antidemocráticas se deu com o golpe de novembro de 1937 que inaugurou a Ditadura do Estado Novo. Estas ações, de acordo com o ideal autoritário presente na ação política

do

grupo

hegemônico

ligado

a

Getúlio,

se apresentavam necessárias ao

desenvolvimento de um novo país, ancorado na moral do trabalho e na riqueza – e aqui não somente material, mas também ética, moral e cidadã - que o desenvolvimento das forças produtivas poderiam trazer consigo. Ou seja, mesmo que alheia às convenções democráticas, as intervenções políticas do Estado Novo se pressupunham "legítimas" por capitanear as mudanças rumo a uma nova organização social. Para isso, o apelo a "unidade nacional", a "coesão das forças orgânicas" entre outros dispositivos retóricos, se fazia recorrente nos discursos de Getúlio Vargas. Neste sentido é que a ideia pública de família ganha força. Ela seria capaz de realizar a junção desde a concepção privada de família até o ideal geral de nação, traduzido a partir do slogan "família brasileira". Como podemos observar neste

pronunciamento de Getúlio9 para o dia 1º de maio de 1940, anunciando novas medidas na política trabalhista: Na continuação dêsse programa renovador, que encontrou no atual Ministro do Trabalho um eficiente e devoto orientador, assinámos, hoje, um ato de incalculável alcance social e econômico: a lei que fixa o salário mínimo para todo o país. Trata -se de antiga aspiração popular, promessa do movimento revolucionário de 1930, agora transformada em realidade, depois de longos e acurados estudos. Procurámos, por êsse meio, assegurar ao trabalhador remuneração equitativa, capaz de proporcionarlhe o indispensável para o sustento próprio e da família. O estabelecimento de um padrão mínimo de vida para a grande maioria da população, aumentando, no decorrer do tempo, os índices de saúde e produtividade, auxiliará a solução de importantes problemas que retardam a marcha do nosso progresso. (VARGAS, p. 293, 1940).

Com este exemplo podemos denotar o tom dos discursos de Vargas. Toda a lógica de seus enunciados progredia para um sentido de homogeneidade, de coesão nacional. Não ao acaso ele celebra a "marcha do nosso progresso" que seria alcançada devido à implementação do salário mínimo, esforço coletivo que traria consigo a capacidade de estabelecer um "padrão mínimo" de vida para a população, mas sem perder de vistas o fato de que aumentaria com o decorrer do tempo os "índices de saúde e produtividade". Ou seja, as ações políticas pretendidas pelo Estado, durante o Estado Novo, estavam associadas ao desenvolvimento amplo e conjunto da nacionalidade, através de todas as benesses que o desenvolvimento do trabalho traria consigo10 . É de acordo com isso que Angela de Castro Gomes (1999) desenvolve sua argumentação. Para as forças políticas do Estado Novo, a família transformara-se em um canal eficiente de ligação entre o específico e o geral, o particular e o público. Suas ações, traduzidas através das políticas públicas, ocorreram no sentido de fortalecer o trabalhador brasileiro propiciando, deste modo, que a "marcha para o progresso" se desenvolvesse do modo pretendido. Como nos denota discorrendo sobre ações do governo para o ano de 1942: Ainda antes do término do ano de 1942, em dezembro, o governo federal noticiou a criação do Serviço de Subsistência, cujo objetivo era oferecer mercadorias abaixo do preço de mercado às famílias trabalhadoras, ultrapassando as fronteiras da fábrica como espaço de ação educativa, na medida em que chegava a casa e família operárias. Assim, segundo os termos da propaganda estado-novista, Vargas estaria fazendo do Brasil “um lar imenso”, e do Estado, um “Estado -Previdência”. 9

Discurso pronunciado no Estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações do dia do trabalho. Disponível em < http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/getulio-vargas/discursos1/1940/16> Acesso em 02/2012/2015. 10 Neste sentido Angela de Castro Gomes (1999) desenvolve a ideia de "concepção totalista de trabalho" que seria o tipo de abordagem realizada pela equipe política do Estado Novo em relação ao trabalho. De acordo com esta concepção "totalista" seria necessario abordar o trabalho não somente em seus aspectos trabalhistas, propriamente, mas também em questões como saúde, alimentação, habitação, entre outros.

(GOMES, p. 62, 1999).

Não podemos deixar de ressaltar o fato de que neste período é salutar a atuação de um dos principais departamentos do período, o Departamento de Imprensa e Propaganda, o D.I.P., fundado em 1943. Percebe-se, deste modo, que há uma atuação conjunta de formulação desta ideia do Brasil enquanto um "lar imenso", sugerindo que a "nação brasileira" deveria reunir suas forças em conjunto por fazer parte de uma única "família brasileira". Desta forma, se denota uma dupla atuação que concorre nesta lógica. Por um lado as ações efetivas dos Ministérios e Departamentos através dos Decretos-Lei, atuando materialmente a partir da promoção de políticas públicas variadas de amparo às famílias de trabalhadores. Por outro a atuação do Departamento de Imprensa e Propaganda em diversas esferas sociais promovendo a ideia de Getúlio Vargas como o "pai da nação", como bem nos demonstra Oliveira (2001). Ao mesmo tempo em que solidifica a noção de que fora Getúlio Vargas aquele que doara a Legislação Trabalhista de 1943. Sendo assim, até aqui tentamos formular uma concepção que une dois ideais distintos, porém complementares, de família. Por um lado aquele ligado ao âmbito privado, particular. Por outro uma ideia de família geral, ligada à concepção de nação pretendida pela Ditadura do Estado Novo. Postulamos que a retórica política do Estado Novo lançou mão destas duas ideias, utilizando-as de modo conjunto, de acordo com sua pretensão.

De uma forma,

referindo-se as suas ações práticas, de intervenção social, que visavam à conformação de setores da formação social e também a promoção de melhores condições de vida tendo em vista sua otimização da capacidade de trabalho. De outra quando se referia à nação, à nacionalidade, à construção de um novo país. Isto propiciou certa unidade discursiva, dando coesão ao discurso de unidade nacional tão proferido por Getúlio Vargas. Realizar a comunhão entre estes dos aspectos de família possibilitaria construir um fio condutor que ligaria desde a casa do trabalhador até a nação, do indivíduo à formação social. Da mesma forma, este exercício nos permite avançar à próxima questão, que compreendida em conjunto com o que propomos acima, realizará a síntese de nossa proposição geral.

Trata-se da construção de uma mitologia política ao redor da figura de

Getúlio Vargas e ao mesmo tempo a solidificação de uma memória social referente ao Estado Novo.

"TRABALHADORES MEMÓRIA

DO

BRASIL": MITO POLÍTICO E A CONSTRUÇÃO DA

"A retórica nacionalista certamente não desapareceu, mas divide cada vez mais a cena com outras línguas da identidade coletiva". É com esta afirmação, dentre outras, que Winter (2006, p. 70) inicia sua reflexão em artigo sobre a relação entre memória e política 11 . Winter estaria equivocado, caso estivesse se referindo ao período que abarca os oito anos de hegemonia política de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, à frente da Ditadura do Estado Novo. Em tempos atuais vive-se sob a égide do que Nora (1993, p. 8) denominou de o "fim das sociedades-memória”

12

. Isto seria o resultado de certa dilatação temporal, causada pelas

intensas perturbações sociais e políticas ocorridas, sobretudo, ao transcorrer do século XX. Afirma, "a nação não é mais o quadro unitário que encerrava a consciência da coletividade" (1993, p. 12). Constatação pertinente, compartilhamos. A transição do século XX para o XXI se fez sob importantes transformações de ordem econômica e politica, sobretudo trazendo consigo a memória13 de todas as sevícias ocorridas nos conflitos armados de amplitude mundial. Ao mesmo tempo as identidades se fortaleceram, preenchendo um espaço que por décadas foi ocupado pelo Estado-nação. Não à toa emergem os conceitos como identidade coletiva (CASTELLS, 1999) e mesmo memória coletiva (HALBWACHS, 2006). De outro modo, o contexto histórico do Estado Novo nos aponta para um cenário diverso. Este foi um período de intensa propaganda nacionalista, voltada à construção de uma nacionalidade caldada sob os pressupostos do trabalho. A Ditadura do Estado Novo, a partir de 1937, lançou mão de um sem fim de instrumentos políticos de coerção social. Aqui devemos pensar não somente dispositivos de repressão, ligados ao embate direto e violento. Da mesma forma a propaganda e a construção de uma memória nacional e, sobretudo, o vislumbre de um futuro a ser perseguido, pode ser analisado sob este mesmo aspecto coercitivo, a nosso ver. Isto porque o ideal de nação pretendido durante o Estado Novo significou a coerção e a conformação de contingentes expressivos da formação social. O indivíduo, nestes tempos, deveria estar subsumido à ideia geral de nação. 11

WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o "boom da memória" nos estudos contemporâneos de história. In: SELLIGMAN-SILVA, Márcio (org). Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó, SC: Argos, 2006. 12 Nesta mesma passagem Pierre Nora destaca o fim das "ideologias -memórias". A nosso ver Norra se equivoca ao ligar a "ideologia-memória" somente à construção de memórias nacionais e também, nos parece a de utopias sociais. Por outro lado, é preciso perceber que se de fato há o desmantelamento dessas ideologias durante o século XX há da mesma forma, a cons olidação do modo de produção capitalista em escala global e que também é produtor de ideologia. Se não mais aquela que assegura a transição do passado para o futuro, aquela que assegura um presenteísmo temporal. 13 Compartilhamos da análise de Jöel Candau (2014) sobre memória coletiva. Este realiza uma leitura crítica relativa ao conceito de "memória coletiva", sobretudo nos termos utilizados por Maurice Hallbwacs. Candau afirma que, de fato, existem memórias coletivas, pois não há como encerrar certo tipo de unidade ou homogeneidade de memória mesmo em grupos relativamente pequenos.

Da mesma forma não podemos desprezar a influência da concepção corporativista pretendida pela política varguista, a qual buscava o almejado "apaziguamento das classes". Assim, Souza (2008, p.104,) exemplifica nossas considerações ao destacar análise de Vianna (2001, p. 129) acerca de um discurso de Getúlio Vargas: O Estado não conhece direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os direitos pertencem à coletividade. O Estado, sobrepondo-se à luta de interesses, garante só os direitos da coletividade e faz cumprir os deveres para com ela. O Estado não quer, não reconhece luta de classe. As leis trabalhistas são leis de harmonia social. (VIANNA, 2001, p.129)

Ao Estado, nesta concepção, caberia expurgar os conflitos que a luta de classes traria. Ele deveria servir, de certo modo, como um guardião da coletividade – nacional. Para isto não bastaria somente ações no sentido da tradução material de união ou igualdade coletiva, através das políticas públicas, por exemplo. Seria necessário o apelo à propaganda política, traduzida na personificação do regime na pessoa de Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que se traduziam os anseios particulares de um grupo político hegemônico como o anseio geral da nação. É justamente neste sentido que se fortalece o trabalho de construção de Getúlio Vargas como o "pai da nação" (Oliveira, 2001) ou da "família brasileira", por um lado, e por outro a solidificação da Ditadura do Estado Novo como um regime de exceção que se justificaria pelo atraso econômico do país. A Ditadura do Estado Novo se sobressai pela intensa articulação entre política e propaganda. O Golpe de 1937 veio com o intuito, segundo os pressupostos estado-novistas, de assegurar o processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Para, além disso, os propositores estado-novistas julgavam o regime enquanto o capitaneador das elevações morais da população. O trabalho, neste sentido, serviria como uma ação redentora. Se por um lado seria o responsável pela elevação da riqueza material da nação, por outro seria o responsável por inculcar uma ética de valores em comum, que se desenvolveriam de acordo com os interesses da coletividade. Ao mesmo tempo é que se constrói e aqui principalmente pelas ações do já referido Departamento de Imprensa e Propaganda, o mito de Getúlio Vargas como o saneador dos problemas nacionais. Este viria para estabelecer a paz entre as classes, a harmonia dos lares, o desenvolvimento do país. Como bem denota Mônica Pimenta Velloso ao se referir da construção do mito Vargas: O mito Vargas constrói-se à base de um múltiplo jogo de imagens que o mostram ora como homem comum, identificado com o povo, ora como político eficiente, realizador de inúmeras reformas na ordem social, ora como verdadeiro líder, investido de dotes especiais. Como homem é "cordato", "ponderado", "sensível",

"pacificador" (...) como político é o "pai dos pobres", o "reformador", por excelência no campo do direito protegendo a família, "doando" a legislação trabalhista (...). Como líder, é "o estadista que prevê o futuro", o "homem providencial" que exerce efeito terapêutico sobre as massas. O chefe Vargas ainda é visto como exemplo a ser seguido pela nova geração. (VELLOSO, p. 85:86, 1982).

A partir deste fragmento podemos perceber o trabalho de construção da mitologia política ao redor de Getúlio Vargas. Algo a denotar é que o Estado Novo detinha seus pressupostos políticos ligados fortemente ao presente. Seria preciso o desenvolvimento imediato das forças produtivas. Não se faz ao acaso o apelo a ideais de união, de organicidade, de coesão. Principalmente através daquilo que estamos defendendo nesta elaboração, que é através da família. O recurso retórico de aliar a família entre uma ideia pública e privada funcionava como um fio de ligação para uma ideia maior, qual seja a de nação ou unidade nacional. Porém, ao mesmo tempo em que há essa formulação ligada ao presente, há também o pensamento no futuro, pois se a busca pelo desenvolvimento material e espiritual se dava no presente, seria preciso o estabelecimento de sua continuidade no futuro. E isto se daria pela solidificação de uma memória construída a partir do presente. A qual possibilitaria a criação de um nexo entre um presente e um futuro almejado. Para, além disso, que justificasse as ações do presente no presente, mas também no futuro. Deste modo Velloso discorre: Reafirma- se, assim, o caráter "atemporal" do mito, sua transcendência em relação ao presente, que é apenas momento, parte, contingência. E neste esforço para transcender o tempo, a matéria, o concreto, a espiritualidade ganha novas dimensões. Neste sentido, importa mais que o nome do líder fique na memória afetiva do que nos retratos, importa mais que fique no s lábios do povo do que no nome das ruas. Busca-se, portanto, espiritualizar e/ou imortalizar sua memória, resgatando-a da materialidade "indigna" dos fatos. (VELLOSO, p. 97, 1982).

Ou seja, a construção de um mito se desenvolve de um modo em que as ações do presente se tornem atemporais. Como sabemos a atemporalidade trás consigo a característica de homogeneizar diversas questões que ao seu tempo poderiam apresentar pertinência. Deste modo, a construção do mito se refere, supomos, à tentativa de apaziguar as tormentas do passado ou também justificar ações do presente para a posteridade. A Ditadura do Estado Novo, neste sentido, trabalhou intensamente para a promoção e justificativa de suas ações. Lembremos que Getúlio Vargas em 1930 e 1937 alçou-se ao poder através de dois golpes armados. Seus discursos políticos estavam afinados com a ideia que todas as ações pretendidas e desenvolvidas autoritariamente se justificariam pelo atraso histórico do país e a necessidade que se impunha de intervenções radicais. Utilizou-se, diuturnamente,

daquilo

que

Pierre

Nora

(p.

12,

1993)

denomina

de

"vigilância

comemorativa".

Concordamos

com

Nora

quando

este

afirma

que

"sem vigilância

comemorativa, a história depressa os varreria (...) mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los". Resta-nos perceber quais são os elementos ou as particularidades que poderiam estar ameaçadas dentro daquilo que o Estado Novo postulava. Não há como apagar os elementos autoritários e ditatoriais (após 1937), que permearam as primeiras décadas de poder deste grupo político. Torturas, assassinatos, prisões, censuras, fizeram parte do cotidiano do poder principalmente após 1937. É curioso como a questão do autoritarismo é franca e aberta durante o governo de Getúlio Vargas. Ao mesmo tempo é intrigante como parcelas significativas da formação social parecem consentir com isso. Esta é uma afirmação delicada, mas que deve ser postulada se quisermos compreender como um governo autoritário e após ditatorial se mantém por tantos anos. Ao mesmo tempo, dentro daquilo que Nora denomina de "vigilância comemorativa", podemos perceber a intensa preocupação em demonstrar os feitos e os avanços nas áreas sociais e econômicas. Estaria aí um instrumento de "compensação" diante das práticas autoritárias? Sabemos que o recurso retórico do "bem maior" a ser buscado é uma constante em regimes autoritários. No Estado Novo não se fez diferente. O que intriga é esta memória que se consolidou em torno de Getúlio Vargas como um grande estadista apagando, muitas vezes, seus governos autoritários e ditatoriais. É diante disso que a preocupação de Jeanne Marie Gagnebin (2006) surge como um questionamento latente. A tríade verdade, memória e passado se articula proveitosamente nos sentido de nos inculcar algumas perguntas relevantes. Como um regime ditatorial consegue transferir-se à posteridade de modo inegavelmente atenuado? Ao mesmo tempo, a busca por qual verdade tornou possível a consolidação desta memória? A Ditadura do Estado Novo, no Brasil, foi estabelecida com a auto-proclamada missão de sanear os problemas sociais e econômicos do país. Para isso, vislumbrou a criação de uma nova ética nacional, ancorada no desenvolvimento das forças produtivas. Lançou mão, abertamente, de dispositivos autoritários e ditatoriais para o alcance de suas pretensões. Por outro lado, a construção da mitologia de Getúlio, "o pais dos pobres", parece ter alcançado seu propósito. Diante disso nos resta a hesitação, de acordo com Gagnebin (p.41, 2006), em afirmar se a resposta de nossa questão pode ser buscada pela via do esquecimento ou da denegação da memória histórica.

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