MITOLOGIA CLÁSSICA E CRISTÃ: IMAGENS DE UM MANUSCRITO MEDIEVAL DO OVÍDIO MORALIZADO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE ARTES DEPARTAMENTO DE TEORIA DA ARTE E MÚSICA

ELZA HELOISA FILGUEIRAS

MITOLOGIA CLÁSSICA E CRISTÃ: IMAGENS DE UM MANUSCRITO MEDIEVAL DO OVÍDIO MORALIZADO

VITÓRIA 2008 ELZA HELOISA FILGUEIRAS

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MITOLOGIA CLÁSSICA E CRISTÃ: IMAGENS DE UM MANUSCRITO MEDIEVAL DO OVÍDIO MORALIZADO

Trabalho de Conclusão de curso apresentado ao Departamento de Teoria da Arte e Música do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito

Santo,

como

requisito

parcial

para

obtenção do título de Bacharel em Artes Plásticas.

Orientadora: Profª Drª Maria Cristina Correia Leandro Pereira.

VITÓRIA 2008

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ELZA HELOISA FILGUEIRAS

MITOLOGIA CLÁSSICA E CRISTÃ: IMAGENS DE UM MANUSCRITO MEDIEVAL DO OVÍDIO MORALIZADO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Teoria da Arte e Música – DTAM do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Plásticas. Aprovada em 26 de setembro de 2008.

COMISSÃO EXAMINADORA

_______________________________ Profª. Drª. Maria Cristina Correia Leandro Pereira Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora

_______________________________ Profª. Drª Aíssa Afonso Guimarães Universidade Federal do Espírito Santo

________________________________ Profª. Mestre Fabrícia A. T. de Carvalho Universidade Federal do Rio de Janeiro

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A Euso, meu amor. A Dércio e Maria Aparecida, a quem devo a vida. A Maria Cristina Pereira, pela dedicação. Aos que acreditam na poesia e na arte, sem os quais o que seria a vida? A todos também que acreditam na ciência, porque ela constrói reflexão e cultura, essenciais para a vida e a arte e para a independência das pessoas e das nações.

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Agradecimentos

Agradeço a minha orientadora, Maria Cristina, pela generosidade nos ensinamentos e profissionalismo na orientação desta pesquisa; à professora Aíssa, por ter aceito examinar este trabalho; à professora Fabrícia, por também tê-lo feito, apesar da distância geográfica e, além disso, por ter contribuído com ele desde a escolha do seu tema, na ocasião do seminário sobre metodologia científica que ministrou nesta instituição em 2004; ao meu marido, Euso, pelo apoio incalculável em vários momentos; à minha mãe, Maria Aparecida, e meu pai, Dércio, que leram com carinho os textos produzidos; aos meus irmãos Dárcio e Guilherme e às minhas amigas Talita, Adriana e Eliana, pelo incentivo; e à minha avó, Elza Maria, que me deu contribuições com seu conhecimento bíblico.

Também agradeço às instituições que me apoiaram: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação Ceciliano Abel de Almeida (FCAA), a PETROBRÁS e a UFES. Ressalto a importância que teve esse apoio para me possibilitar os primeiros passos na pesquisa científica, tendo gerado dois relatórios consecutivos de pesquisa, que por sua vez deram origem a esta monografia de graduação.

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Todas as imagens, em todo o caso, têm sua razão de ser, exprimem e comunicam sentidos, estão carregadas de valores simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos pedagógicos, litúrgicos e mesmo mágicos. Isso quer dizer que participam plenamente do funcionamento e da reprodução das sociedades presentes e passadas. Jean-Claude Schmitt

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Resumo

Dita o senso comum que os conhecimentos clássicos ficaram esquecidos durante o período medieval, só voltando à luz do pensamento humano no período do “Renascimento”. No entanto, existem publicações que mostram que as concepções clássicas perduraram por toda a Idade Média, apenas as formas artísticas não se assemelhavam aos cânones clássicos, esses sim, retomados depois. Propomos apresentar estudos sobre um manuscrito medieval das Metamorfoses do poeta clássico Ovídio, o OVIDIUS Metamorphoseom libri XV, ou BNF 137, conforme catalogação da Biblioteca Nacional da França. É uma obra anônima que reúne e recria fábulas romanas, cristianizando-as. Trata-se, pois, de uma obra conhecida como "Ovídio Moralizado". Nele, a teologia era prioridade, de forma que, além da função de guardar os dados mitológicos caros aos poetas e escritores, o manuscrito servia como meio para leitura e exegese das Sagradas Escrituras.

A partir da análise de uma série de imagens desse manuscrito, mostramos as questões relativas à apropriação cristã da temática mitológica clássica. Assim, examinamos pontos referentes aos aspectos artísticos, históricos, teológicos e iconográficos dessas imagens. Elas ainda nos fazem atentar de uma forma mais clara à função desse manuscrito como uma obra enaltecedora da Igreja Cristã em seu aspecto institucional mesmo, não apenas filosófico-religioso, dado que as associações contidas nas imagens constantemente fazem seus significados convergir para a salvação pela Igreja e sua doutrina.

Vemos, assim, um exemplo tardio daquilo que o cristianismo já vinha fazendo desde suas origens, ao ampliar seus campos filosóficos e culturais de forma a incorporar as culturas pagãs. E mostramos, aqui, como as imagens foram elementos importantes nesse processo.

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Lista de Imagens Figura 1 – Fólio 1 – Ovídio comparando o universo a um ovo. Criação....................34 Figura 2 – Fólio 3v – Nascimento de Júpiter..............................................................41 Figura 3 – Fólio 4v – Nascimento de Afrodite............................................................46 Figura 4 – Fólio 6v – Deucalião e Pirra sendo salvos do dilúvio................................50 Figura 5 – Fólio 8 – Combate entre Fébus e Píton....................................................55 Figura 6 – Fólio 13 – Fébus e Faeton.......................................................................59 Figura 7 – Fólio 53v – Juno no Inferno......................................................................63 Figura 8 – Fólio 79v – Suplício de Mársias................................................................69 Figura 9 – Fólio 100v – Assassinato de Niso e Cila entregando a cabeça de Niso...73 Figura 10 – Fólio 136 – Pigmalião rogando à Vênus.................................................78 Figura 11 – Fólio 147 – Morte de Orfeu.....................................................................82 Figura 12 – Fólio 235v – Adoração dos Magos..........................................................85

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Sumário

1 – Introdução.............................................................................................................10 2 – Mitologia pagã e cristã..........................................................................................14 3 – As Metamorfoses de Ovídio.................................................................................18 4 – A influência das Metamorfoses na Vulgata e o Ovídio Moralizado......................22 5 – História, cultura e religião: o manuscrito BNF 137 no século XV.........................27 6 – Análise das imagens............................................................................................31 6.1 – Fólio 1 – Ovídio comparando o universo a um ovo. Criação............................34 6.2 – Fólio 3v – Nascimento de Júpiter......................................................................41 6.3 – Fólio 4v – Nascimento de Afrodite.....................................................................46 6.4 – Fólio 6v – Deucalião e Pirra sendo salvos do dilúvio........................................50 6.5 – Fólio 8 – Combate entre Fébus e Píton.............................................................55 6.6 – Fólio 13 – Fébus e Faeton.................................................................................59 6.7 – Fólio 53v – Juno no Inferno...............................................................................63 6.8 – Fólio 79v – Suplício de Mársias.........................................................................69 6.9 – Fólio 100v – Assassinato de Niso e Cila entregando a cabeça de Niso...........73 6.10 – Fólio 136 – Pigmalião rogando à Vênus.........................................................78 6.11 – Fólio 147 – Morte de Orfeu..............................................................................82 6.12 – Fólio 235v – Adoração dos Magos..................................................................85 7 – Conclusões...........................................................................................................87 8 – Bibliografia............................................................................................................91 9 – Anexo: Comunicações que este trabalho gerou..................................................95

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1 – INTRODUÇÃO

O objetivo desta monografia de conclusão de curso foi investigar como o cristianismo medieval se apropriou da cultura clássica, retrabalhando temas pagãos e adaptando-os a seus ideais filosófico-religiosos. Nosso objeto de estudo foi uma versão das Metamorfoses, de Ovídio (c. 43a.C. - c.17d.C.), poeta romano que compilou fábulas mitológicas. É importante frisar que não nos ativemos ao texto, e sim às imagens que acompanham uma cópia traduzida e adaptada desta obra, em um manuscrito flamengo iluminado do século XV1. Embora o texto das Metamorfoses também tenha sido alterado no decorrer da Idade Média a fim de melhor se coadunar às idéias cristãs – o que gerou uma variante que os estudiosos chamam de "Ovídio Moralizado", como é o caso deste manuscrito – também nas imagens podemos perceber tais transformações. Através da análise destas, podemos nos aproximar daquilo que Pierre Francastel chamou de "pensamento plástico"2 dos cristãos do final da Idade Média, e estudar como eles se relacionavam com a herança clássica.

O primeiro passo da pesquisa foi estabelecer nosso corpus iconográfico, uma vez que, dadas as limitações cronológicas da investigação e a dimensão do manuscrito, não poderiam ser estudadas todas as suas 134 imagens. Tendo em vista nossa preocupação inicial, o critério de seleção das imagens nos levou a analisar aquelas nas quais as relações entre os aspectos míticos pagãos e o cristianismo eram visualmente mais evidentes3. São elas: Ovídio comparando o universo a um ovo. Criação, no fólio 1; Nascimento de Júpiter, no fólio 3v; Nascimento de Afrodite, no 1

Trata-se do manuscrito BNF Fr 137. OVIDIUS. Metamorphoseom libri XV. As miniaturas estão digitalizadas e disponíveis no site da Biblioteca Nacional da França: . 2 FRANCASTEL, Pierre. "Introdução". In: ____. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 1-18, p. 4. 3 Foram estudadas ao todo 12 imagens ao longo de dois anos, seis imagens analisadas em cada um deles. Esses estudos estavam inseridos em dois subprojetos de pesquisa intitulados “Mitologia Clássica e Cristianismo: Miniaturas de um manuscrito medieval das Metamorfoses de Ovídio”, de 2005/2006 e “A retomada clássica na Idade Média: Imagens de um manuscrito cristão das Metamorfoses de Ovídio” de 2006/2007, ambos inseridos num projeto mais amplo intitulado “As imagens e a religiosidade Cristã”. Os dois subprojetos foram apoiados pelo programa de bolsas de iniciação científica da UFES e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq.

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fólio 4v, Deucalião e Pirra sendo salvos do dilúvio, no fólio 6v, Combate entre Febus e Píton, no fólio 8; Febus e Faeton, no fólio 13; Juno no inferno, no fólio 53v, Suplício de Mársias, no fólio 79v, Assassinato de Niso e Cila entregando a cabeça de Niso, no fólio 100v, Pigmalião rogando à Vênus, no fólio 136, Morte de Orfeu, no fólio 147 e Adoração dos Magos, no fólio 235v.

É importante observar que os títulos que precedem os fólios correspondem ao tema central da imagem e foram dados pelos conservadores da Biblioteca Nacional da França. Não se trata de "títulos" propriamente ditos, no sentido das obras de arte atuais – o que seria um anacronismo – mas eles servem para identificar mais facilmente as imagens.

Consideramos a relevância desse estudo principalmente por se tratar de um tema pouco explorado no Brasil no campo da História da Arte e da História Medieval. Em geral, mesmo na Europa, costuma-se trabalhar sobre a reinterpretação do paganismo pelo cristianismo sobretudo no início da Idade Média4. Deste modo, há um grande hiato, uma vez que os estudiosos só vão se ocupar da retomada de temas pagãos no Renascimento, como se isso não tivesse acontecido também na Idade Média, ainda que de maneira diferente. Sobre essa questão envolvendo a retomada clássica pelos artistas do Renascimento, a bibliografia é bastante ampla, mas podemos mencionar os estudos fundamentais de Aby Warburg, autor nunca traduzido em português5, além de seu antigo discípulo Erwin Panofsky. Este último autor constitui uma exceção ao que dissemos acima, pois também se dedicou a estudar a retomada da Antiguidade clássica durante a Idade Média (na Baixa Idade Média) e serviu como um inspirador para nossos estudos. Dele podemos citar a obra

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Um exemplo neste sentido é o artigo de Carlo Ginzburg, que não se ocupa apenas das imagens, mas também de textos: GINZBURG, Carlo. "Ecce. Sobre as raízes culturais da imagem de culto cristã". In: ____. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 104-121. 5 Podemos citar dele dois artigos em espanhol: WARBURG, Aby. "Arte del retrato y burguesia florentina. Domenico Ghirlandaio en Santa Trinita. Los retratos de Lorenzo de Medici y de sus familiares". In: BURUCÚA, Emilio (org). Historia de las imágenes e historia de las ideas. La escuela de Aby Warburg. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992, p. 18-57; WARBURG, Aby. "Arte italiana y astrologia internacional en el Palacio Schifanoia de Ferrara". In: BURUCÚA, Emilio (org). Historia de las imágenes e historia de las ideas. La escuela de Aby Warburg. Op. Cit., p. 59-85.

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fundamental para nosso estudo, escrita com Fritz Saxl, A mitologia clássica na arte medieval6. Para tratar do Ovídio Moralizado fundamentamo-nos na pesquisa de Carla Lord7, que analisou três de seus exemplares, e também em Bernard Ribémont8, que o estudou a partir da tradição enciclopédica na Idade Média.

Além desses autores, utilizamo-nos de vários outros, que mencionaremos mais adiante, e que nos auxiliaram a alcançar os objetivos propostos em nosso projeto inicial: estudar o contexto histórico e cultural da Baixa Idade Média, no que diz respeito à retomada da mitologia pagã; estudar as fontes clássicas mitológicas, especialmente As Metamorfoses do poeta Ovídio; e analisar detalhadamente, no que concerne aos aspectos formais, estilísticos e iconográficos, as imagens já citadas do manuscrito BNF Fr 137 das Metamorfoses de Ovídio.

Além do estudo da bibliografia, outro procedimento metodológico foi a análise das imagens, o que fizemos simultaneamente à leitura, de forma a obter melhor aproveitamento das informações obtidas. O primeiro passo foi a descrição das miniaturas, a fim de nos familiarizarmos com elas e nos forçarmos a realmente vêlas, e não só olharmos superficialmente. Em seguida, passamos à análise propriamente dita, na qual nos utilizamos principalmente de comparações textuais e iconográficas, isto é, perscrutamos a mitologia narrada por Ovídio, as idéias cristãs encontradas na bibliografia, e estudamos a tradição iconográfica: outros exemplos anteriores ou contemporâneos de imagens com as mesmas cenas pagãs e, sobretudo, imagens cristãs anteriores ou contemporâneas de temas próximos aos das imagens de nosso corpus.

A fim de melhor apresentarmos os resultados obtidos por nossa pesquisa, estes foram divididos nos seguintes capítulos, além da introdução e conclusão: no capítulo 6

PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. La mythologie classique dans l’Art medieval. Classical mytology in mediaeval art. Saint-Pierre-de-Salerne: Gérard Monfort, 1990. 7 LORD, Carla. "Three manuscripts of the Ovide Moralisé". The Art Bulletin, vol. 57, nº2, (Jun., 1975), pp.161-175. 8 RIBÉMONT, Bernard. "L'Ovide moralisé et la tradition encyclopédique médiévale. Une approche générique comparative". Cahiers de recherches médiévales (XIIIe - XVe siècles) 9, 2002, p. 13-25. Disponível em : < http://perso.orange.fr/bernard.ribemont/OM1.pdf>, acesso em 15/06/2007.

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2 introduzimos algumas idéias relacionadas à mitologia e ao Cristianismo. O capítulo 3 consta de uma apresentação da biografia de Ovídio e de sua obra, notadamente As Metamorfoses. No capítulo 4 foi examinada a versão literária da compilação medieval conhecida como “Ovídio Moralizado”, sendo estudadas a origem desse gênero de literatura, sua função e sua utilização na Idade Média, além de um breve estudo sobre a Vulgata. O capítulo 5 trata de nossa fonte em uma visão mais ampla, contendo informações quanto à conjuntura histórica, cultural e artística do século XV, e atentando também para os aspectos plásticos consonantes encontrados nessa obra. Finalmente, o capítulo 6 apresenta a análise das imagens que compõem nosso corpus, buscando examinar, na complexa rede de formas e temáticas integradas, como era construído por meios visuais um conjunto de idéias moralizadas sobre as lendas pagãs na Idade Média.

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2. Mitologia pagã e cristã

É anacrônico associar a mitologia com “sentimento religioso” tal como o entendemos hoje. O mito tem paralelos com o funcionamento do universo onírico: como nos sonhos, não tem relevância nas estórias sua coerência, possibilidade ou senso comum. Sua significação não se relaciona com a literal. Os mitos são fabricações a partir de símbolos subjetivos e não de modos naturais observados no cotidiano. Porém, os contos míticos estão situados como num grau acima dos sonhos, pois para contá-los é necessário um “fio de lógica”, certa coerência9. Apesar disso – ou por causa disso – quando as fábulas mitológicas da obra As Metamorfoses de Ovídio são retomadas no manuscrito BNF 137, no século XV, o uso que é feito delas, a função que elas exercem, o que elas representam, está mais relacionado com o olhar dos homens desse segundo momento que com o que elas foram na sua concepção original. É necessário, no entanto, situar aqui alguns conceitos sobre os mitos, até para que fiquem demostradas as idéias relacionadas a eles durante os dois momentos importantes para esse estudo, aquele em que é originada uma obra mitológica, abordado no presente capítulo e o outro, ainda mais relevante para nós nesse caso, em que ela é retrabalhada, tratado mais nos capítulos subseqüentes.

Iniciamos, assim, abordando a estrutura do mito, seu conteúdo e funções, em suas aproximações e distanciamentos do Cristianismo.

O mito surge em geral das narrações de nascimento, paixão, derrota pela morte. Seu fim último é a visualização das verdades essenciais da vida e sua moral10. Nesse aspecto, pontuamos um paralelo com o nosso tema principal, o cristianismo: apesar da aparente distância temporal e cultural entre a mitologia antiga e as narrativas cristãs, há que se considerar a similaridade entre seus propósitos. Ao relermos as duas frases que abrem esse parágrafo, bem poderíamos estar falando da religião cristã, em lugar da mitologia. Considera-se também que o cristianismo é herdeiro dessa tradição mítica, mesmo a tendo negado. Pereira situa as histórias 9

LANGER, Susanne K. A filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razão, rito e arte. São Paulo: Perspectiva, 1971. P. 176. 10 Ibidem, p. 180.

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cristãs como mitos mesmo, em seu artigo intitulado “Do mito à História Sagrada: A construção da imagem da Imaculada Conceição”: “[...] E no entanto, o que a Igreja chama de História Sagrada é, também da ordem da mitologia – mas adaptada, revestida de uma roupagem apropriada às suas necessidades”11.

A

religião

pode

construir

mitos,

mas

a

mitologia

inicialmente

não

era

necessariamente religiosa. É difícil fazer essa separação até pela herança cultural legada ao Ocidente. Desde a Idade Média tratava-se dos dois temas de forma misturada, como veremos em nossa fonte, o MS BNF 137. Essa característica é mais que uma simples confusão, e remonta ainda à Antigüidade, quando os deuses gregos foram associados a deuses de outros povos, em um processo que se acentuou no mundo romano.

Antes disso, o surgimento do mito se dá a partir do momento em que o pensamento criativo humano é nutrido por símbolos óbvios e permanentes da natureza, tais como os corpos celestes, as mudanças do dia e da noite, as estações e as marés, antropomorfizados nas narrativas míticas. Surge assim, a figura do “herói cultural”, cujas atitudes se situam no mundo real, tendo seus efeitos conseqüências para todos os humanos12, tal como veremos nas lendas de Fébus, mostradas em duas imagens que estudamos13. Fébus era quem transportava o sol pela abóboda celeste, responsável, assim, por todas as implicações que isso tinha na vida humana. Quando Faetonte guiou seu carro em seu lugar, os humanos também sofreram as conseqüências de toda sorte de destruições, conforme veremos. Também muitas outras estórias contadas em As Metamorfoses falam da origem dos homens e suas vivências, seus sofrimentos, fundamentados nos mitos e seus heróis culturais.

Mas a tradição do pensamento ocidental define o mito pelo que ele não é, em oposição ao real, ou seja, como algo fictício e absurdo. Em grego, mythos designa uma palavra formulada, quer se trate de uma narrativa, de um diálogo ou na enunciação de um projeto. Mythos é da ordem do legein, conforme vemos nos 11

PEREIRA, Maria Cristina C. L. “Do mito à História Sagrada: A construção da imagem da Imaculada Conceição”. Sofia. Volume X, nº 13 e 14, 2006, p. 231-244, p. 232. 12 LANGER, op. cit, p. 183-185, nota 9. 13 Trata-se das Imagens dos fólios 8 e 13, intituladas nessa ordem “Combate entre Fébus e Píton” e “Fébus e Faeton”.

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compostos mythologein e mythologia e não contrasta em princípio com os logoi, que por sua vez se relacionam às diversas formas do que é dito. Quando há teor religioso, o discurso é qualificado de hieroi logoi, discursos sagrados. Até que os mitos se apresentassem com a configuração da Antiguidade Clássica e se delimitassem em relação às outras formas de linguagem, foi necessário um longo percurso entre o oitavo e o quarto séculos antes de Cristo14.

A passagem da tradição oral para a literatura escrita marcou um novo patamar cultural em relação aos mitos. Isso influenciou a elaboração de uma linguagem abstrata nos primeiros pensadores gregos. A formulação dos conceitos também partiu do discurso escrito, que funcionou como uma ferramenta lógica, dando à inteligência verbal mais domínio sobre a realidade. Dentro da literatura e através dela, o logos foi além do conceito inicial de palavra e passou a se contrapor ao mythos desde Tucídides. O mythos foi associado ao discurso oral, com seu ritmo, consonâncias, musicalidade, gestos, emocionalidade. Já o logos foi associado ao discurso escrito, ao verdadeiro e inteligível, à democracia e argumentação política da cidade15.

Platão também contrapôs o mythos ao logos, mas situou o mito como capaz de exprimir o que está além e aquém da linguagem filosófica. Assim, a filosofia se desenvolveu ao mesmo tempo se distanciando da linguagem dos mitos e também fazendo sua continuidade ao separá-la da concepção de pura fábula. Aristóteles viu no mito um elemento de divina verdade, como se reconhecesse que o mito prefigurou a filosofia, tendo sido uma primeira expressão do logos. Assim, ao passo que o mito constituiu um fundo comum à cultura ocidental, um referencial, ele teve uma definição paradoxal. Ao mesmo tempo que integra a linguagem das pessoas cultas, foi também definido como uma não-verdade, um não-sentido, uma nãorazão16.

Deste modo, das reflexões sobre a mitologia antiga, vamos agora voltar a pensar na fé cristã. O que ela retoma da mitologia? Como ela se pensa em relação a esta? 14

VERNANT, Jean P. “Razões do mito”. In:_______. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. 3ed. Tradução Myrian Campello. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. P. 171-172. 15 Ibidem, p. 172-174. 16 Ibidem, p. 187-189.

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Conforme Pereira, mesmo tendo o cristianismo se fundado na tradição judaica, ele sofreu influência dos pensadores gregos, principalmente de Platão e Aristóteles. Desta maneira, o pensamento religioso cristão fundamentou a si mesmo como possuidor de fatos, pensamentos, conceitos da ordem do logos, do verdadeiro, de modo que isso propiciou-lhe delimitar suas diferenças em relação à mitologia pagã, associada à ilusão17.

Vemos também com as reflexões de Pereira: Sem o assumir, a Igreja faz grande uso de mitos – que lhe são próprios, ou herdados/apropriados de outras culturas e “mestiçados” (para usar um termo caro a Serge Gruzinsky) aos primeiros. Ela é criadora e recriadora de mitos, legitimada por essa construção de caráter absolutizante que é a História Sagrada18.

Assim, num espaço recriado entre o mythos e o logos, a Igreja Cristã construiu sua base teórica. Como veremos neste estudo, ao mesmo tempo que ela negou a mitologia pagã, se apropriou dela, fazendo-a de suporte ou alavanca para sua reafirmação, isto é, seus intelectuais construíram todo um pensamento exegético, promovedor de suas verdades, fundamentados nas narrativas antigas, e, inversamente, fundamentaram-nas em prol do Cristianismo.

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PEREIRA, Maria Cristina C. L. “Do mito à História Sagrada: A construção da imagem da Imaculada Conceição”. Art, cit., p. 232. 18 Ibidem, p. 233.

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3. As Metamorfoses de Ovídio

Para ir mais além no exame do tema da mitologia inserido em nossa fonte, nos ocuparemos agora em entender um pouco mais As Metamorfoses de Ovídio no sentido original, isto é, como uma composição literária que é mais que uma simples compilação de fábulas.

É preciso, antes de tudo, situar a obra em questão com relação ao tempo e ao espaço de sua produção, além de sua autoria. Públio Ovídio Nasão (c. 43 a.C.- c.17 d.C.), seu autor, nasceu em Sulmo (atual Sulmona), em Abruzos, Itália. Sua primeira obra, Os Amores, data de 20 a.C. Entre os anos 2 e 8 da era cristã escreveu Os Fastos e As Metamorfoses. Até quando esteve exilado em Tomos - que posteriormente se tornou a localidade de Constança na Romênia, local aonde ele viria a morrer - continuou a escrever, resultando desse período as obras Tristes e Epístolas do Ponto19.

As Metamorfoses são poemas em quinze livros, que compreendem em mais de 12.000 versos a narração de 246 fábulas. A obra tem esse nome porque trata das transformações sofridas desde a criação mítica do universo dos minerais, dos vegetais, dos deuses e dos homens até o destino de Júlio César, numa ordem cronológica. Essas transformações têm caráter etiológico, isto é, estudam a origem dos seres e, além disso, conectam as fábulas mitológicas greco-romanas. Também retratam um pouco da Roma daquele período, em seus aspectos religiosos, morais e políticos20. Ovídio mesmo fala de sua intenção nas linhas que abrem o primeiro livro: “É meu intento contar como os seres assumiram novas formas [...]”21. Então ele pede favorecimento dos deuses, os responsáveis pelas mudanças, para que conduzam seu poema desde a origem do mundo até seu tempo. E assim ele narra o começo do mundo: Antes de haver o mar e as terras, e o céu que cobre tudo, a natureza inteira tinha a mesma aparência, chamada Caos; massa bruta e informe, que não 19

Ovídio. As Metamorfoses. Tradução de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983. P. 9. Ibidem, p. 9. 21 Ibidem, p.11. 20

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passava de um peso inerte, conjunto confuso das sementes das coisas. Nenhum Titã, ainda, oferecia luz ao mundo, nem Febe renovava constantemente seu vulto, nem a Terra se sustentava por seu próprio peso, rodeada pelo ar, nem Anfitrite estendia os braços ao longo da Terra. A terra, o mar e o ar se confundiam, a terra era instável, os mares eram inavegáveis, o ar carecia de luz: coisa alguma ostentava sua própria forma, umas coisas se opunham às outras, eis que, em um só corpo, o frio lutava com o calor, a umidade com a secura, o que era macio com o que era 22 rígido, o que não tinha peso com o pesado .

Então, foi um deus – que Ovídio não determina – quem pôs fim a esse caos e começou a definir a natureza. Depois da Terra ganhar suas formas mais definidas, Prometeu uniu a água à terra e modelou o homem, à imagem dos deuses, para que tudo governassem23. Aqui temos as primeiras semelhanças com as narrativas cristãs, que notaremos também em grande parte das análises de imagens que fizemos. Entre as hipóteses para esse fato, sublinhamos a possibilidade do cristianismo ter uma matriz mitológica comum à mitologia da Antiguidade, isto é, que ele tenha se baseado nas mesmas fontes culturais ou mesmo diretamente nessas fábulas antigas, conforme avançaremos neste trabalho.

Desta maneira, As Metamorfoses constituíram uma coletênea de relatos sobre as transformações de uns objetos ou entes em outros. Há, então, pessoas, aves, árvores, montanhas, serpentes, peixes; água, ar, mares, rios, aldeias e cidades, heróis mitológicos, do reino subterrâneo, etc. É importante como se dá a transformação nos objetos que não se parecem. Por isso, podemos pensá-lo como um poema sobre os objetos e sua organização. Enquanto literatura, seu ponto de interesse não estava nos momentos filosóficos-morais – como o foi para os homens medievais conforme veremos adiante – mas na forma de mostrar todo o universo, como uma “enciclopédia da natureza”24.

Há unidade e parentesco de tudo no mundo, objetos inanimados e seres vivos. O poeta mistura mitos de diferentes ciclos a tudo isso numa unidade e continuidade do universo. Assim, uma ave pode se transformar num homem e vice-versa. Às vezes essa transformação acontece através de uma pequena mudança no nome do objeto.

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Ibidem, p.11. Ibidem, p. 12,13. 24 CHCHEGLÓV, I. K. “Algumas características da estrutura de As Metamorfoses de Ovídio”. In: SCHNAIDERMAN, B. (Org.). Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. P. 140. 23

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Desta forma, a “sistematicidade” é a qualidade que permite ao mundo ovidiano ser variado, multicor e ao mesmo tempo uno25.

Ovídio destaca principalmente as propriedades objetivas dos objetos e via de regra não ocorre metáfora. Ele os nomeia com um epíteto do ponto de vista dos seus traços visíveis, das suas propriedades físicas e espaciais: a curvatura, o vazio, a dureza, a liquidez, a longuidão, etc. Suas descrições são como o estalão do objeto dado, seu conceito e não um objeto específico. Muitos deles são justapostos por afinidades de traços dentro dessa sistematicidade, bem como a desigualdade dentro dos mesmos conceitos pode ser um ponto comunicante por antítese. Epítetos e até verbos unificam os objetos, tal como o verbo mover para o mar ou as asas de uma ave que voa. A sua descrição pode destacar, assim, seu princípio técnico, sua estruturação26.

O epíteto dos objetos, ao mesmo tempo em que destaca sua peculiaridade, sua individualidade, os aproxima ou os distancia dos outros objetos pelas diferenças ou igualdades entre eles. Porém, por ambos os conceitos de distância e proximidade, pode ocorrer a metamorfose de um objeto em outro. Assim, o maravilhoso se apresenta sob a forma de fatos habituais e verossímeis: crescimento, diminuição, endurecimento, amaciamento, encurvar-se, endireitar-se, conjugação, diluição, etc. Em uma narrativa representada em uma das miniaturas de nosso corpus iconográfico, a história de Deucalião de Pirra27, as pedras se transformam em pessoas. A dureza se transforma em maciez, o disforme adquire forma, mas os versos do 407 ao 409 da obra original descrevem como permaneceram as partes duras, traços imutáveis que são comuns às pedras e às pessoas na figura dos seus ossos. É interessante ainda observar quando o autor diz que a veia nem muda de nome, isto é a veia que transporta o sangue humano é homônima aos veios das rochas, o que os aproxima também28.

Com a metamorfose, o objeto se transforma em sua configuração geral, pode passar a “viver” em outro meio, adquirir novos hábitos. Assim, um homem pode ser 25

Ibidem, p. 140, 141. Ibidem, p.141-146. 27 Situada no fólio 6v. 28 Ibidem, p.147-151. 26

21

transformado em um animal pelos deuses por causa do seu gênio rancoroso ou comportamento inadequado. O afastamento dele da norma, do “estalão” humano, pode determinar sua transformação no animal do qual seu comportamento é típico. Às vezes também ele pode se transformar depois de sofrer ou perecer. Ovídio narra como as Helíades foram transformadas em árvores porque se lamentavam muito, derramando lágrimas: Não é menor o sofrimento das Helíades, que oferecem à morte, como presentes inúteis, suas lágrimas; esmurrando o peito, [...]. Uma delas, Faetusa, [...] quando quis se prosternar no chão, queixou-se de sentir os pés entorpecidos. Ao juntar-se a ela, a alva Lampetia foi detida por uma raiz surgida de repente. Uma terceira, quando tentava arrancar os cabelos, ficou com folhas nas mãos. Esta sente as pernas transformadas em troncos, aquela vê os braços se moverem dolorosamente como compridos ramos. E, enquanto todas se surpreendem, a casca lhes envolve as virilhas e, pouco a pouco, cobre o ventre, o peito, os braços e as mãos [...]. Dela correm lágrimas, que caem, gota a gota, e se solidifica no solo o âmbar, que o rio 29 cristalino recolhe e leva às mulheres latinas, para se enfeitarem .

Assim, a metamorfose sempre serve de meio para o restabelecimento do equilíbrio transgredido, ocorrendo no final de cada episódio e configurando uma solução para os problemas, vícios e doenças dos homens e de outros objetos30. Esses aspectos morais das Metamorfoses foram o foco dos cristãos do século XV, assunto do qual falaremos no capítulo seguinte, que trata do Ovídio Moralizado.

29 30

Ovídio, op. Cit, p. 36, nota 19. Ibidem, p. 156.

22

4. A influência das Metamorfoses na Vulgata e o Ovídio Moralizado

Se não temos meios aqui de analisar a influência dos mitos pagãos greco-romanos nos cristãos, podemos, contudo, examinar a possível influência das Metamorfoses na tradução latina das Escrituras, conforme a hipótese de autores como Catherine Brown Tracz. Mas como a obra original de Ovídio teria inluenciado Jerônimo na redação da Vulgata, a versão mais conhecida das Escrituras para o latim no Ocidente medieval? Teria sido esta sua primeira “sobrevivência”, para usar um termo caro a Warburg, na cultura cristã? Em que consistia a moralização no período medieval? O que era o “Ovídio Moralizado”? Essas são algumas das principais questões que regeram este capítulo. Elas são essenciais para que pensemos depois nas funções das imagens do MS BNF 137, que, conforme dissemos, era uma versão do “Ovídio Moralizado”. E como tratamos de imagens, foi importante buscar na história dessa literatura, além dos seus aspectos filosóficos, os artísticos, dos quais trataremos mais especificamente no próximo capítulo. Mas aqui já começamos a delineá-los com a seguintes questões: eram As Metamorfoses de Ovídio originalmente ilustradas? Quando começa essa prática na obra desse autor?

Até o século XV, os letrados da Idade Média conheceram pouco a obra original das Metamorfoses de Ovídio31. O que os intelectuais do final da Idade Média conheceram bem foi sua versão retrabalhada pelos pensadores cristãos, denominada “Ovídio Moralizado”, da qual trataremos mais adiante. No entanto, antes que As Metamorfoses fossem resignificadas em prol do Cristianismo, num sentido inverso, há indicativos de que a obra possa ter influenciado a tradução da Vulgata. Tracz sugere que Jerônimo teria feito uso de uma dicção clássica na tradução de passagens bíblicas que têm um padrão narrativo encontrado também em Ovídio. Um dos vários exemplos citados pela autora é a passagem em que Herodes faz uma promessa a Salomé, na versão da Vulgata do Evangelho de Marcos, que tem claro paralelo com a passagem de As Metamorfoses de Ovídio

31

Uma exceção é Beda, que citou várias vezes a obra. BRUÈRE, Richard Treat. "The manuscript tradition of Ovid's metamorphoses". Harvard Studies in Classical Philology 50, 1939, p. 95-122, p. 100.

23

concernindo à promessa de Apolo a Faeton32. Ademais, foi Jerônimo quem introduziu prefácios completos na Bíblia, e o uso desses prefácios foi emprestado da literatura clássica.

Cabe-nos agora adentrar no estudo de outro momento de sobrevivência das idéias clássicas no pensamento ocidental, aquele em que os cristãos medievais preservaram-nas ao realizar moralizações sobre elas. Por isso, antes é necessário refletir sobre o conceito de “moral” para a Idade Média. Um dos primeiros pensadores que definiram a moralidade foi Sócrates: “é o entendimento de como deveríamos viver e porquê”33. Para o contexto do nosso objeto de estudo, segundo as visões judaica e cristã, o mundo fora criado por Deus para servir de moradia ao homem, feito à Sua imagem e semelhança. Logo, para o homem medieval, necessariamente cristão, as questões de como ele deveria viver e por quê estavam intrinsecamente ligadas ao pensamento religioso.

Assim, Deus, ao dispor aos homens os Dez Mandamentos, tornou-se o legislador por excelência da religião cristã, dentro da sua própria concepção. Viver ou não dentro das leis divinas era o que definia a ética dentro do que era certo e errado, isto é, do que era permitido ou proibido por Deus. À violação desses mandamentos havia a promessa de condenação no Juízo Final. Essa era a base da teoria do mandamento divino, uma das que fundamentaram o pensamento moral do cristianismo34.

Ainda havia outra linha de pensamento que foi até mesmo mais importante dentro da moral cristã, que era a teoria da lei natural, baseada em uma concepção grega do mundo. Segundo seu raciocínio, havia um propósito para tudo no universo. Por volta de 350 a. C., Aristóteles incorporou essa idéia no seu sistema de pensamento. Para ele, era necessário fazer quatro perguntas essenciais a respeito das coisas: “O que

32

TRACZ, Catherine Brown. The creation of the vulgate. In: Vigiliae Christianae, 50/1, 1996, p.42-72, p. 42. 33 RACHELS, James. Os elementos da Filosofia Moral. 4ed. Tradução Roberto Cavallari Filho. Barueri, SP: Manole, 2006. P. 1. 34 Ibidem, p. 51.

24

é isso? Do que é feito? Como passou a existir? Para que serve?” 35. Assim, cada objeto orgânico ou inorgânico tinha um propósito de existência, a chuva para o crescimento das plantas, as plantas que alimentavam os animais, os animais que serviam ao homem. Nessa concepção não havia lugar para a coincidência. E era uma forma de pensar antropocêntrica, porque tudo servia ao homem direta ou indiretamente. Os pensadores cristãos se apropriaram dessas idéias para o seu conjunto teórico e acrescentaram-lhe Deus, que não havia na concepção aristotélica36. Com isso, todos os fenômenos naturais como a chuva e tudo mais que havia na Terra, existiam por vontade divina, e o homem continuou com lugar de destaque, pois fora criado para dominar os outros seres terrestres. A Igreja Cristã era a principal detentora dos “veículos” culturais durante um grande período da Idade Média até o século XIII, quando surgiram as primeiras universidades, havendo daí um movimento muito lento de laicização dos saberes, que nem por isso deixaram de ser cristãos. É óbvio, então, que a filosofia medieval e seu entendimento moral eram fundados nos preceitos religiosos. Logo, moralizar no que se referia à literatura da Idade Média, exclusivamente produzida por uma elite intelectual que era necessariamente cristã, significava, grosso modo, ensinar, teorizar, enaltecer ou condenar segundo as leis divinas, ensinadas por sua Igreja. Essas leis “divinas” que deveriam ser obedecidas estavam fundamentadas no conjunto de ensinamentos morais construído ao longo de séculos pelos Pais da Igreja e seus continuadores, pensadores que direcionavam o conjunto complexo, múltiplo de crenças cristãs, definido muitas vezes oficialmente por meio dos Concílios. Foi nesse contexto que surgiu o “Ovídio Moralizado”, uma versão originalmente anônima da obra latina “As Metamorfoses” em que suas idéias pagãs eram relidas à luz da doutrina cristã, tendo sido elaborada por eruditos cristãos entre o final do século XIII e início do XIV – segundo De Boer, mais precisamente entre 1316 e

35 36

Ibidem, p. 54. Ibidem, p. 55.

25

1328, baseando-se na hipótese de que o trabalho poderia ter sido comissionado por Jeanne de Bourgogne, esposa de Philippe V, o Longo37.

As Metamorfoses de Ovídio eram a principal, ainda que não exclusiva, fonte das mitologias, e os quinze livros foram retrabalhados para “recontar” os mitos, com infindáveis interpolações dos versos alegóricos. O Ovídio Moralizado se tornou a sua variante mais famosa dentre suas “traduções” para o vernáculo, se transformando daí num gênero literário com várias versões38.

Concebido como uma prefiguração mitológica do Novo Testamento, o Ovídio Moralizado foi também influenciado pelas Bíblias moralizadas, tendo mesmo tomado empréstimos destas39. Assim, as fábulas mitológicas foram contadas e mostradas pelos cristãos como se as verdades da sua doutrina tivessem existido desde sempre nessas narrativas antigas, mas de uma forma ainda velada, até serem desveladas no advento da vinda de Cristo.

O manuscrito mais antigo de que se tem notícia é datado do século XIV, conservado na Biblioteca Municipal de Rouen com o número 0.440. Mas depois dele, há uma quantidade importante de manuscritos da obra, até o século XVI.

Diferentemente de obras como a Eneida, não há registros de nenhum exemplar das Metamorfoses ilustrado datando da Antiguidade. A obra original e sem moralizações foi raramente iluminada na Idade Média ou até mesmo na Renascença. Não se sabe se Arnulfo de Orleans, John de Garland ou qualquer dos comentadores do Ovídio dos séculos XII e XIII teve seu trabalho iluminado41.

Quanto às ilustrações do Ovídio Moralizado, estas poderiam ser diretamente relacionadas com o texto ou apenas ligadas de forma indireta às suas versões de moralizações. No século XIV, o Ovídio Moralizado já havia sido abundantemente 37

DE BOER, C., "Ovide moralisé, poème du commencement du quatorzième siècle, publié d'après tous les manuscrits connus", 1915-1938. Apud LORD, Carla. "Three manuscripts of the Ovide Moralisé". Art. cit, p. 162. 38 Ibidem, p. 161, 162. 39 LORD, C. "Three manuscripts of the Ovide Moralisé". Art. cit, p. 161, 162. 40 Ibidem, p. 162-163. 41 Ibidem, p. 161.

26

ilustrado em várias cópias. Houve dois tipos principais de iluminação: o mais antigo consistia em imagens narrativas dependentes do texto do Ovídio Moralizado em verso42 e o mais recente, em imagens de divindades sem relação com o texto, mas inspiradas em uma moralização feita por Pierre Bersuire, em 134043.

Segundo Bernard Ribémont, textos como o "Ovídio Moralizado" faziam parte da tradição enciclopédica medieval e tinham como função preservar a memória, além de, como nesse caso, promover a edificação moral dos leitores, mostrando aspectos bons e proveitosos das fábulas. Eles atendiam a um crescente reforço das tendências didáticas dos escritores a partir desse período e faziam parte de um conjunto de obras compiladas, traduzidas ou vulgarizadas. Eram direcionados a um público mais largo que os monges, e visavam, além de educá-lo, distraí-lo. Porém, os comentários com notas nas margens das páginas, muitas vezes em latim, indicam uma recepção particular no meio clerical. Neste ambiente, como dissemos, a teologia era prioridade, de forma que obras como essa também serviam para a leitura e exegese das Sagradas Escrituras44. Assim, como na imagem, de Orobóros45, uma cobra que morde sua própria cauda, insinuando a idéia de que o fim representa um novo começo, as obras clássicas teriam influenciado as Sagradas Escrituras, que influenciaram os pensadores medievais, que se apropriaram da obra clássica novamente, numa reversibilidade cultural complexa e interminável.

42

Como parece ser o caso de nosso manuscrito – ainda que precisaríamos de uma análise comparativa mais elaborada para afirmarmos isso com mais segurança. 43 Ibidem, p. 162. 44 RIBÉMONT, Bernard. "L'Ovide moralisé et la tradition encyclopédique médiévale. Une approche générique comparative". Art. Cit. 45 Um símbolo de origem egípcia que apresenta uma serpente em forma um círculo perfeito. (Ela não foi inserida por Ovídio nas Metamorfoses, apesar de ser conhecida pelos gregos). Ver, a esse respeito, , acesso em 17/09/2008.

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5. História, cultura e religião: o manuscrito BNF 137 no século XV

É necessário delinear, mesmo que resumidamente, as conjunturas históricas, religiosas, culturais e artísticas flamengas da produção do manuscrito em estudo, para que ampliemos nossa reflexão a respeito da sua manufatura de livros ilustrados, especificamente deste do qual tratamos.

Essa obra foi produzida no século XV em Flandres, que era então um condado, numa faixa territorial hoje pertencente à Bélgica, incorporada aos Países Baixos.

Numa visão mais ampla, a Europa do século XV era herdeira de problemas recentes ocorridos em grande parte do seu território, ao mesmo tempo em que era um período de reflorescimento cultural. Foi no século XIV, no ano de 1348, que houve um grande surto de Peste Negra, caracterizando nas palavras de Chaunu, uma “conjuntura de morte”. Foram necessários séculos e a ida do ouro americano à Europa no século XVI para que fossem sanadas as perdas econômicas daquele momento. A Peste adveio ainda quando a moeda já estava enfraquecida e o solo arroteado e ocupado. Ela não consistiu no fator principal da crise que o continente europeu atravessou no século XIV, mas foi uma das causas e um dos elementos que a revelaram. Além disso, também no século XIV houve fenômenos naturais de aumento do frio e da umidade, causando fome por causa da diminuição das colheitas. Com isso a metade da população européia pereceu46.

Porém, apesar dos problemas por que passava a maior parte dos europeus, supomos que uma pequena parcela de favorecidos tenha sido menos afetada, por terem tido condições melhores de sobrevivência às adversidades. Assim, segundo nossa hipótese, pelo fato dos saberes, das artes, dos objetos culturais terem sido produzidos por uma elite, portanto mais “protegida”, as catástrofes que marcaram o século XIV não impediram toda a prosperidade cultural que se seguiu.

46

CHAUNU, Pierre. Expansão européia do século XIII ao XV. São Paulo: Pioneira, 1978. P. 47, 77, 78.

28

O alargamento da erudição desde o século XIII progrediu em setores como a pintura das miniaturas. Desde então, essa prática já não se restringia mais aos monges reclusos em mosteiros, mas estendeu-se aos leigos.

No caso do manuscrito que estudamos, se tratava de um trabalho anônimo, o que não é incomum na época, até porque as idéias de autoria e de arte como conhecemos hoje eram diferentes naquele tempo. Mesmo que sua produção não tenha acontecido em um ateliê monástico, informação da qual não se dispõe, deu-se em um ambiente cristão, e era pensado por e para um público culto, restrito e cristão, de forma que suas imagens eram repletas de associações de significados e simbolismos complexos.

Naquele período, então, havia trocas de conhecimentos entre artistas italianos e franceses. Esses artistas trabalhavam em Roma ao mesmo tempo que Alberti e seus alunos. Concomitante a isso, as obras Italianas chegavam à França, onde emergia um reflexo das obras clássicas. Os artistas franceses as conheceram por intermédio das obras italianas ou diretamente das próprias obras antigas. Assim, era um período de efervecência cultural, dentro do qual a França tinha um caráter cosmopolita, era um local de intercâmbios importante.

Sobre a classificação artística das pinturas do período, dada posteriormente, alguns historiadores denominam a pintura flamenga sobre madeira como sendo dos "Primitivos Flamengos", e citamos o caso dos irmãos Van Eyck (c. 1395-1441) e Robert Campin (1377/1378-1444).

É importante lembrar que durante o século XV, na Itália, já florescia o Renascimento, mas no norte da Europa, nosso foco de estudo, esse termo ainda não se aplica completamente. Percebemos sim, nas imagens estudadas, que elas fazem parte de um período de transição entre os modos de representar medieval e renascentista. Especialmente no caso dos manuscritos, pode-se ainda falar em arte gótica, embora também se possam perceber as influências das novas formas de representação, como um maior realismo e um detalhamento maior dos objetos representados. Além disso, há um direcionamento para a perspectiva linear, nem sempre total, mas muitas vezes parcial.

29

Porém, é válido observar que as mudanças na forma de representar não ocorreram de forma repentina, e muito podemos identificar nessas imagens da carga simbólica que a mentalidade medieval evidenciava e também de suas atitudes formais. Podemos citar como exemplo a simultaneidade figurativa, que envolve a representação de temáticas diferentes (inclusive cristãs e pagãs ao mesmo tempo) ou até momentos distintos da narrativa das lendas mostradas em uma única imagem, às vezes se utilizando de repetição de elementos ou personagens para mostrar seu movimento. Ainda há um distanciamento das proporções naturalistas, favorecendo mais uma disposição das personagens em decorrência da sua importância na figuração.

Especificamente no caso do manuscrito em estudo, a influência francesa é bastante forte, e podemos classificá-lo como sendo uma obra do gótico internacional, estilo que marcou grande parte da Europa entre os anos de 1370 e 1430, aproximadamente. O nome desse estilo deriva de seu caráter "cosmopolita", desenvolvido em ambientes aristocráticos, com marcado gosto pelo luxo, pelo refinamento. Esse estilo estava ainda em voga nos círculos flamengos do século XV e podemos percebê-lo nas imagens, entre outros fatores, pelas cores e pela presença de flores e de nuvens47.

Mas grande parte dessas imagens (73 de 119) também se relaciona com outra moda parisiense recente, introduzida por Jean Pucelle no século XIV, a grisaille. Trata-se de imagens predominantemente monocromáticas, e que neste manuscrito contrastam com as demais não só pela cor como também pelo tamanho, sendo menores e ocupando o corpo de letras iniciais.

A grisaille desde o período medieval até mesmo no Renascimento, era um recurso que os artistas usavam como base preparatória para a pintura policromada, além de ser um meio para determinados efeitos na pintura vitral48. Para a pintura de cavalete era uma espécie de esboço tonal, sobre o qual eram aplicadas as cores com valores 47

LOBRICHON, Guy. "Aurora e crepúsculo de uma arte internacional (1320-1420)". In: DUBY, Georges (org). A Idade Média. História artística da Europa. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 367. 48 Há publicações que mostram a grisalha na pintura vitral como por exemplo: COTHREN, Michael W.; BOUNIORT, Jeanne. "Restaurateurs et créateurs de vitraux à la cathédrale de Beauvais dans les années 1340". Revue de l'Art 111, 1996, p.1-24.

30

aproximados. Isso implica um recurso secundário, um meio para o objetivo principal que era a pintura em policromia. A grisaille usada como fim em si teve pouca abrangência ou mesmo herança para os artistas de períodos posteriores. Cabe-nos pensar sobre sua temática dentro do MS BNF 137 – ela seria diferente de acordo com a técnica utilizada, grisaille ou policromia?

A seguir, no próximo capítulo, analisaremos 12 imagens do exemplar anônimo do Ovídio Moralizado. Buscaremos pensar sobre as questões referentes à sua plasticidade em relação à sua temática híbrida, conforme dito, de mitologias clássicas e cristãs: uma herança humanista da Idade Média, contextualizada até aqui nos capítulos precedentes e neste.

31

6. Análise das imagens

Antes de iniciarmos as análises propriamente, é importante relacionar alguns traços comuns a todas as imagens de nosso corpus, a fim de evitarmos repetições.

Dentro das características plásticas das imagens, como dissemos, há miniaturas policromadas e em grisaille. As primeiras são: Ovídio comparando o universo a um ovo - Criação, no fólio 1; Nascimento de Júpiter, no fólio 3v; Combate entre Febus e Píton, no fólio 8; Febus e Faeton, no fólio 13; Juno no inferno, no fólio 53v; Assassinato de Niso e Cila entregando a cabeça de Niso, no fólio 100v; Pigmalião rogando à Vênus, no fólio 136, Morte de Orfeu, no fólio 147. E as feitas em grisaille são: Nascimento de Afrodite, no fólio 4v, Deucalião e Pirra sendo salvos do dilúvio, no fólio 6v; Suplício de Mársias, no fólio 79v e Adoração dos Magos, no fólio 235v.

Essa divisão não irá definir a sequência de nosso estudo, porque optamos por seguir a ordem dos fólios, que era imbuída de significações, conforme as análises mostram.

As miniaturas policromadas ocupam grande parte dos fólios, geralmente sua porção superior.

São

margeadas

por

desenhos

que

imitam

molduras

reais,

se

assemelhando às formas e texturas da madeira ou mesmo às construções arquitetônicas, que abundam também. Seus entornos são bastante ornamentados com motivos florais, fitomórficos. Por terem essas decorações com vegetais, há uso acentuado da cor verde nelas. Porém no interior dessas imagens coabitam muitas cores: vermelhos, azuis, amarelos, lilazes, acinzentados, dentre outras.

Analisamos também os ornamentos das imagens, alguns em cor de ouro. Eles sugerem uma valorização do tema representado em suas cenas. Os aspectos formais não podem ser separados dos funcionais dentro das imagens medievais e a

32

ornamentação serve para honrar a imagem. Tudo aquilo que orna, honra – já que decoração vem do latim decus, honra, dignidade49.

As representações em grisaille foram feitas dentro de letras capitais. Seu matiz principal era um acinzentado escuro, usado em várias graduações tonais. Porém, muitas vezes havia uma única outra cor decorando a letra do seu entorno ou até mesmo inserida diretamente na imagem.

Ainda sobre os recursos pictóricos, também destacamos o uso da perspectiva aérea em algumas dessas imagens, como pode ser notado na representação das montanhas mais distantes, que foram feitas em tons mais claros e contornos menos nítidos. Essa técnica era assim definida por Leonardo da Vinci: “Há uma perspectiva que se denomina aérea (nome derivado da quantidade de ar que se interpõe entre o olho e o objeto visto) e que, por degradação dos matizes no ar, torna sensível a distância dos objetos (...)”50. Através desse recurso pictórico, cujos primórdios já notamos nas imagens que estudamos, objetos distantes ganham tonalidades diferenciadas, muitas vezes azuladas (sua utilização mais evidente está no fólio 147r, adiante).

Quanto ao conjunto conceitual das imagens, isto é, o que há nelas que ultrapassa os aspectos plásticos, da ordem dos significados, ressaltamos a simultaneidade figurativa, que introduzimos no capítulo precedente. Esta forma de representação era caracterizada por ambivalências. Assim, as imagens associam vários sentidos, o que comparamos à atitude dos próprios intelectuais da época, que prezavam a combinação de muitos conhecimentos. Mesmo dentro das temáticas específicas existem agregações de idéias que são até mesmo opostas, “convivendo” juntas. Maria Cristina Pereira comenta sobre essa possibilidade de ambivalência que as imagens medievais podem trazer, como veremos mais adiante na imagem do fólio 100v.

49

BONNE, Jean Claude. Les ornements de l'histoire (à propos de l'ivoire carolingien de saint Remi). Annales HSS, année 51, n. 1, jan/fév. 1996, p. 37-70, p. 45. 50 VINCI, Leonardo da. Apud PEDROSA, Israel. O universo da cor. Rio de Janeiro: Senac, 2004, p. 73.

33

Desta forma, a simbologia medieval é polissêmica e ambivalente: personagens, animais e cores têm múltiplos significados, conforme Pastoureau nos mostra: “[...] Na Idade Média, o verde pode muito bem ser, ao mesmo tempo, a cor da esperança e do desespero; o azul, a cor da ciência e da tolice; o amarelo, a cor da verdade e da mentira; o preto, a cor da temperança e do pecado. [...]”51.

Ademais, há uma atualização nos temas que é típica da arte medieval: a maioria dos objetos e personagens, incluindo seus cenários e trajes, foi contemporaneizada. Não importava se eles eram oriundos da mitologia antiga, ou se povoaram as lendas cristãs que também teriam acontecido, segundo sua crença, em épocas inenarráveis. Assim, as representações foram feitas tendo como “modelo” os objetos e costumes correntes na Idade Média, especialmente no período Gótico.

51

PASTOUREAU, Michel. "Símbolo". In: LE GOFF, Jacques et SCHMITT, Jean-Claude (org). Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, 2 v., v. 2, p. 495-510, p. 505.

34

6.1. Fólio 1 - Ovídio comparando o universo a um ovo. Criação. (Figura 1)

Figura 1 Essa primeira imagem do manuscrito é uma das poucas subdivididas. No lado esquerdo da imagem há uma construção vista ao mesmo tempo em seu interior e seu exterior, dentro daquela idéia de simultaneidade de que já falamos. O exterior é o "telhado" da construção, com o que parecem ser placas de ardósia na parte superior, uma pequena janela e uma espécie de friso bastante ornamentado, com características góticas.

35

Na parte interior há um homem, identificado pela BNF como Ovídio, em um púlpito, diante de um livro aberto, com um ovo na mão e falando a um grupo de outros homens. Se partirmos da interpretação avançada pelos conservadores da BNF, de que a imagem trataria da comparação do Universo a um ovo por Ovídio, encontraremos um primeiro problema: nas traduções das Metamorfoses – pelo menos as mais conhecidas, em português52 e em francês53 – não há menção alguma a um ovo. Trata-se, provavelmente, de uma analogia medieval, que poderia ser imputada ao Ovídio Moralizado.

Uma explicação para esta comparação baseia-se em sua forma: sabemos que uma associação do universo a uma forma arredondada seria possível na época, já que desde Pitágoras (c. 572 - 497 a.C.) conhecia-se a “esfericidade” da Terra. Na Idade Média, segundo Carlos Fontes, alguns pensadores, baseados em passagens bíblicas, a contestavam, mas a idéia acabou aceita, mesmo com restrições, sobretudo à época em que o manuscrito foi feito54.

Para o pensamento medieval era muito frequente que uma coisa aparente se relacionasse a outra oculta, no além – ou seja, havia a correspondência de Coisas com Idéias55. Em algumas culturas pagãs, como afirma Heinz-Mohr, “o ovo era símbolo do mundo das plantas e dos animais que renascem para a vida” 56. Esse sentido de renascimento aproxima-se da noção de ressurreição que adquiriu posteriormente nas festas da Páscoa, segundo o mesmo autor, por causa da semelhança de Cristo irrompendo o sepulcro à maneira como nascem os pintinhos57. Além disso, se pensarmos no formato arredondado do ovo, que até mesmo nesta pintura foi representado como uma esfera, há que se lembrar que esta era uma forma considerada perfeita – assim como o universo criado por Deus, uma comparação possível para Ovídio estar fazendo na imagem.

52

OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit. OVIDE. Les métamorphoses. Traduction de G.T. Villenave. Édition du groupe “Ebooks libres et gratuits”, 1806. Disponível em Acessado em 16/09/2005. 54 FONTES, Carlos. Síntese da ciência medieval e renascentista. Disponível em: , acessado em 30/07/2006. 55 PASTOUREAU, Michel. "Símbolos". Art. cit., p. 497. 56 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, p. 269. 57 Ibidem. 53

36

Randall confirma alguns desses significados e nos acrescenta outros: A extensão dos significados atribuídos ao ovo através dos tempos provê um verdadeiro Paraíso ao iconologista. Como a imagem do começo e do fim de tudo qualificam o ovo para tornar-se um símbolo da Concepção de Cristo e do Amor Divino. O conceito de vida rompendo a casca foi comparado à Ressurreição, enquanto a associação do ovo com os raios de sol foi interpretado como a imagem da Fé Divina já em São João Batista 58 [...][Tradução nossa] .

Ademais, há que se pensar que essa iluminura é a primeira do manuscrito, e que as outras que a ela são associadas na mesma miniatura fazem referência à Criação. Para além das hipóteses levantadas, e que se baseiam no titulus dado pela BNF, buscando justificá-lo, há aqui claramente expressa em imagem a idéia de surgimento, de nascimento – e mesmo de abertura – que o ovo traz.

Outro aspecto que confirma o título dado à imagem é o posicionamento de Ovídio, lateral, quase de costas aos seus espectadores dentro da pintura; de maneira que sua mão direita aponta ao mesmo tempo para o ovo em sua outra mão e para a segunda parte dessa miniatura, da qual falaremos mais adiante, onde há a representação de uma cena da Criação – o que reforça essa idéia de comparação entre o ovo e o universo. Ovídio pode estar descrevendo a criação do mundo, ao lado, ou esta pode estar inspirando-o também, inversamente. Ou, de uma forma mais apropriada para a Idade Média, as duas coisas estariam acontecendo juntas. Notamos ainda que seu corpo é visto frontalmente pelo observador da imagem, como se ele também falasse para o leitor do manuscrito.

Além disso, Ovídio tem diante de si um livro aberto, o que pode também ter várias significações – que não necessariamente teriam que ser excludentes: ao contrário, esses vários sentidos podem ser acumulados. Assim, além de contribur a designar a personagem central como um intelectual, esse livro poderia funcionar como metarepresentações: ele seria, ao mesmo tempo, o texto em latim das Metamorfoses, pois a personagem que lê o livro é ele, o autor; poderia ser a própria obra, o Ovídio Moralizado, por meio do qual sua obra pagã foi retomada naquele contexto, como um gesto de apresentação. E, ainda, ele poderia ser a própria narrativa do Gênesis. 58

RANDALL, Lilian. "A medieval slander". The Art Bulletin 42/1, 1960, p. 25-38, p .25.

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Essas hipóteses se baseiam no fato de que as Escrituras, enquanto livro, eram comumente representadas em manuscritos iluminados da Bíblia ou de partes dela na Idade Média: há uma profusão de representações de santos lendo-a ou escrevendo-a59. Também pensamos que esse livro das Escrituras possa estar, num sentido inverso, inspirando Ovídio. Esta última hipótese é possível mesmo sendo Ovídio anterior às Sagradas Escrituras, pois a “lógica” que segue estas imagens não é linear como se tornou a noção de tempo histórico posteriormente. Deste modo, todos estes significados podem estar juntos e funcionando interligados, sem que um necessariamente descarte o outro.

A segunda metade da miniatura, do lado direito, está dividida em quatro partes: a) um céu cheio de estrelas e pássaros; b) um pássaro sobre um semicírculo em chamas; c) água com peixes; e por fim, d) terra firme, feita com certa perspectiva, com árvores, animais e um homem nu e barbado, ajoelhado em oração. Ele está com as mãos postas e voltado para a figura com auréola cruciforme representada no centro desta segunda parte da imagem, sobreposta às suas quatro cenas, como num “folhado”60. Sugerimos tratar-se de Deus, representado como Cristo, como era comum nas representações do Gênesis. As duas partes principais dessa miniatura são divididas por uma estrutura cinza que sugere relevo, e que tem prosseguimento na parte esquerda, separando o lado externo do lado interno da construção, formando um "T" deitado. Rente a essa estrutura, do lado direito da imagem, há uma coluna estreita, com a base e o capitel azulados e o fuste amarronzados, que sustenta uma estátua-coluna na cor branca, com um baldaquino acima dela na mesma cor. Esse detalhe, somado à cor cinza da forma em "T", sugerem que o lado externo da construção na qual se encontra Ovídio seria o espaço onde está representada a Criação do mundo.

A estátua-coluna mostra uma pessoa posicionada de três quartos, voltada para a cena da Criação, com túnica, auréola, um bastão na mão esquerda e uma esfera 59

Um exemplo é a representação de São Jerônimo escrevendo em uma Bíblia de meados do século XIII (BM Alençon ms. 0054, fólio 3). Reproduzida em: , acesso em 31/08/2008. 60 Termo utilizado por SCHMITT, Jean-Claude. "Imagens". In: ______; LE GOFF, Jacques (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Tomo I. Bauru, SP: Edusc, 2006. p. 594.

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com uma cruz na outra mão. Essa esfera “ecoa” com o ovo na mão de Ovídio e remete ao globo do mundo, sob o domínio divino e cristão. Não se consegue visualizar outros detalhes dessa personagem, por seu tamanho reduzido, mas os atributos mencionados sugerem tratar-se de Deus-pai. O problema, no entanto, é que ele raramente era representado como estátua-coluna em uma catedral gótica. Estamos, portanto, face a uma representação que não é exatamente mimética.

Quanto aos quadrados que compõem essa parte direita da miniatura, acreditamos se tratar de uma referência aos quatro elementos: ar, fogo, água e terra. Estes, ao se combinarem, constituíam a natureza de tudo que existia no universo, na concepção clássica, conforme podemos inferir das palavras de Ovídio: [...] Eis que, quando combinam, a umidade e o calor geram vida, e tudo se deriva da união dos dois; assim, da luta do fogo com a água, o úmido vapor criou todas as coisas e a concórdia dos elementos discordantes leva à geração. Desde, portanto, que a terra, coberta de lama pelo recente dilúvio, se aqueceu com os raios solares e o propício calor, produziu inúmeras 61 espécies [...].

Mas a forma como esses elementos estão representados não evoca essas uniões e transformações de Ovídio, rementendo-se mais às imagens cristãs, que mostram cada etapa da Criação em separado – geralmente, em medalhões, ou mesmo em um círculo subdividido, como é o caso de uma Bíblia Historiada de Petrus Comestor, do primeiro quarto do século XIV (BM Troyes mss 59, fol. 3)62, que mostra Deus segurando um círculo subdividido nos elementos do universo: água, ar, terra e fogo.

Chamamos a atenção para o fato de que tanto na Bíblia, como em As Metamorfoses, o homem ter sido feito à imagem da sua divindade. No caso dos cristãos, isto é baseado na narrativa de Gn 1, 26: “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança [...]”. Para a obra pagã a criação humana foi similar: Faltava ainda um ser mais nobre, dotado de mente superior, capaz de dominar os outros. Nasceu o homem: seja que o tivesse feito de semente 61

OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p. 21. Reproduzido em: , acesso em 01/09/2008. 62

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divina o artífice das coisas, criador de um mundo melhor, seja que a recente terra, desprendida havia pouco do elevado éter, conservasse alguma semente do seu irmão céu, quando o filho de Jápeto [Prometeu] a misturou com a água da chuva, e a modelou à imagem dos deuses [grifo nosso], 63 que tudo governam [...] .

Notamos também que a maneira e a matéria usada nessa criação se repete nas duas versões: modelado a partir do barro por um deus.

Esta, dentre outras passagens, mostra muitos paralelismos entre o Gênesis (Gn, 1 e 2) e As Metamorfoses. Em ambas, havia um caos que é organizado por um ser superior – que na imagem acreditamos ser o personagem com auréola nessa imagem. São separadas as águas da terra e criados os astros, em seguida os animais e, por último, o homem que deve dominá-los.

Na tradição iconográfica cristã, Adão é frequentemente representado ajoelhado, com as mãos postas, após sua criação – e ainda só. Em geral, há uma proximidade entre ele e seu criador, o que não ocorre aqui: embora este esteja voltado para o homem, está acima e "à frente" dele. Pensamos que, assim, colocado sobre as quatro seções ao mesmo tempo, mostra-se como Ele criou todos aqueles elementos que estão em um conjunto subdividido. E essas subdivisões reforçam a idéia de que a Criação ocorreu em momentos distintos.

Mas a imagem, ambivalentemente, também se refere ao primeiro homem da obra ovidiana, pois ele foi representado junto aos animais, uma vez que nas mitologias pagã e cristã o homem foi criado para dominá-los. O que reforça esse paralelo entre os dois primogênitos é a ausência da Eva na imagem, porque na narrativa pagã não há uma mulher, tendo sido a criação do homem tratada de uma forma genérica, se referindo à de toda a humanidade, independentemente do sexo.

É digno de nota o fato de que a primeira imagem de um manuscrito de um texto em princípio pagão traga a representação não só de imagens que lembrem o Gênesis cristão, mas que a própria personagem central, posta em evidência e no primeiro plano da imagem seja a de Deus, em sua única aparição por todo o MS BNF 137.

63

OVÍDIO. As Metamorfoses. op. Cit., p. 12, 13.

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Isto mostra bem a moralização que nomeia a versão de nossa fonte e que justifica este trabalho.

Além disso, Deus foi representado na miniatura como o Cristo, que na teologia medieval era um “novo” Adão, porém divino. Era um segundo “enviado” de Deus que veio resgatar a humanidade condenada pelo pecado que o primeiro cometeu. E na própria imagem há muitas semelhanças físicas entre os dois homens figurados: o feitio dos olhos, a presença da barba, dos cabelos e a coloração do conjunto. Na imagem, no entanto, Adão ainda não pecou – pois está nu e relacionado a outras figurações com sentido de criação, além da iconografia referente a esse tema ser análoga, conforme mostramos – o

que também contribui para o significado de

começo, abertura para esta imagem.

A miniatura mostra Deus ainda de outra forma, na representação da estátua-coluna à qual já nos referimos. Essa figuração forma uma linha imaginária em diagonal com o Deus-Cristo e Adão, e próximo a eles chama a atenção o pássaro em chamas. O pássaro era o que faltava para completar a presença de toda a Trindade na imagem, o que nos leva a atribuir a significação de Deus Pai à estátua. O pássaro se parece com uma pomba, símbolo do Espírito Santo, e está envolto em chamas, como era comum encontrar na iconografia. E a imagem ainda tem paralelismos pagãos, pois na Antigüidade, o pássaro em chamas era a Fênix, que renascia das cinzas. Portanto, já neste fólio – e fundamentalmente nele, por abrir o manuscrito – há várias idéias moralizantes. Ovídio é aqui representado mostrando a criação do mundo do ponto de vista cristão. Os deuses que ele evocou para melhor narrar esse episódio são aqui substituídos pela Trindade. A história cristã da criação foi, portanto, “sobreposta” à anterior, resignificando-a.

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6.2 – Fólio 3v, O Nascimento de Júpiter (Figura 2)

Figura 2 A cena principal ocupa a metade esquerda desta imagem. Uma mulher é figurada deitada em uma cama sob um dossel com parte do corpo aparente, os seios nus, indicando que deu a luz. Sobre sua cabeça há a inscrição "Cy Belle". Na base da cama há outra mulher com asas na cabeça que segura em sua mão, em um gesto

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de apresentação, um bebê nu e de pé. Ela é a única pessoa da cena que não recebeu identificação na imagem, ao passo que ao lado da criança está a inscrição "Jupiter", localizada sobre o tecido branco da cama.

No lado direito da imagem, há uma grande abertura no que seria a parede da habitação, em perspectiva não científica, mostrando no exterior, ao ar livre, Saturno. O deus, identificado por uma inscrição colocada no sentido vertical ao seu lado, é representado com trajes típicos do século XV, e está em oração, de joelhos com as mãos postas sobre um altar que tem um ídolo dourado. O cenário é um prado verde com pequenas plantas, com uma arquitetura ao longe recortada contra um fundo cinza-azulado.

Segundo a mitologia, Júpiter era o pai dos deuses e dos homens. Também era filho de Saturno e Cibele, deusa tomada como a própria Terra, que são representados nesta imagem como o pai que ora e a mãe que dá a luz. Quanto à mulher que aparece de vestido verde apresentando o bebê, deduzimos que ela pode evocar Juno, quem preside aos partos na mitologia antiga, recebendo nesta modalidade o epíteto de Lucina64 – apesar de que no mito do nascimento de Júpiter não haja menção a uma parteira.

Assim, pois, esta é uma das imagens que mostram bem a reelaboração cristã dos temas mitológicos pagãos. Ela não representa uma cena mitológica conhecida, mas recria uma. Isto é, o nascimento de Júpiter é contado na mitologia de maneira bem diferente do que é mostrado nesta imagem. Segundo o mito, Saturno, seu pai, fora advertido por um oráculo que seria destronado por um dos filhos, então ele devora todos os que nascem. Para defender seu filho Júpiter, Cibele, ao dar a luz, se esconde e entrega uma pedra envolta em tecidos como um bebê, tentando enganar Saturno, que a devora e assim o destino de Júpiter pôde se cumprir. Mas neste fólio o que vemos é uma adaptação do tema cristão da natividade de Jesus.

Ou seja, temos aqui uma idéia cristã sobreposta ao mito, por meio de personagens 64

Segundo vários autores: SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário da mitologia latina. São Paulo: Cultrix/MEC, 1972, p. 78; GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 260-261 e BULFINCH, Thomas. Livro de ouro da Mitologia. Histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 16.

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da cultura pagã que podem ser substituídos pelos cristãos de estatuto similar: Júpiter, o deus supremo dos romanos, que acabou de nascer, é figurado como o do Cristo, divindade cristã participante da sagrada trindade que caracteriza a unidade monoteísta suprema. Assim, na maneira como foram associados os dois deuses, há uma reconfiguração do mito pagão pela ótica cristã, idéia presente na maior parte do manuscrito BNF 137. Outro elemento que reforça esse paralelismo é o gesto que faz a criança com a mão direita, que se assemelha a uma bênção, muito comum nas representações do Cristo. No entanto, essa aproximação é sutil e deve ser vista com cuidado. Não há, por exemplo, a auréola cruciforme, que faria de Júpiter o Cristo. Trata-se de estabelecer paralelos, de tornar o mito compreensível, inserindo-o em um universo figurativo conhecido, passível de reconhecimento pelo espectador cristão. Mas não há uma simples equivalência entre um deus pagão e o Cristo.

Há também uma característica nesta imagem que nos chama a atenção: a cena da natividade não ocorre num local rústico, como a manjedoura narrada na história cristã65. Na imagem que analisamos a cena dá-se em um recinto marcado por certo luxo, com mobiliário gótico. Isso mostra a atualização comum na arte medieval que nos referimos na abertura deste capítulo, como pode ser visto também no manuscrito do Breviário de uso de Saint-Quetin (BM Saint-Quentin 3)66. Não se buscava, pois, a fidedignidade da reconstituição histórica, como é característico de nosso tempo, mas era-se guiado por outras lógicas de raciocínio. O luxo, demonstrado através dos adornos e da utilização do ouro, servia para ressaltar a importância dos personagens representados, conforme podemos comparar à nossa interpretação do frontão no fólio 1, que analisamos anteriormente.

Voltemos à imagem, sobre alguns de seus personagens: Juno Lucina, conforme nossa identificação, foi representada como algumas personagens mitológicas que tinham asas na cabeça, como Mercúrio, ou Hércules67. Nas histórias cristãs as vemos principalmente nos anjos, mesmo que não estejam em suas cabeças. Dessa 65

Que foi algumas vezes representada no período medieval, mesmo que em contraposição à modéstia do local, os personagens dessas imagens estivessem ricamente vestidos. Podemos ver exemplos em alguns manuscritos de Bíblias dos séculos XIII e XIV (BM Troyes MS 3503, fragmento sem fólio definido; BM Besançon MS 0069, fólio 192; e BM Clermont-Ferrand MS 1978, fólio 026). Todos disponíveis em , acesso em 22/06/2008. 66 Idem. 67 Podemos citar como exemplo a gravura de Dürer intitulada “Hércules e a encruzilhada”, de 1498, 32,3 x 22,3 cm, disponível em , capturada em 26/07/2006.

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forma, as asas na cabeça de Juno, ao mesmo tempo em que demonstram seu caráter mitológico – em sua representação como a parteira da natividade de Cristo, aproximam sua imagem a de uma mensageira, como os anjos o eram.

De outro ponto de vista, na passagem das Sagradas Escrituras que narra a cena de Jesus nascendo na manjedoura (Lucas, capítulo 2) não há maiores detalhes sobre a existência de parteiras, mas segundo a compilação de Bartolomeu no “Livro da infância do Salvador”

68

, José, seguindo a tradição da época, convidou duas para

esse nascimento. Uma delas, Zebel, verificou que Maria dera a luz, mas ainda continuava virgem, de maneira que foi portadora ou mensageira de um princípio importante para o Cristianismo, a idéia da mãe virgem. Ainda segundo essa narração, a segunda parteira de nome Salomé não teria acreditado em Zebel, então sua mão secou, mas foi curada ao tocar a criança recém-nascida. Nessa imagem, é possível fazer uma associação de Lucina com a mensageira da virgindade de Maria, Zebel, por suas asas na cabeça; mas ao mesmo tempo essa mulher que segura a criança pode ter carga simbólica de Salomé, por causa desse toque físico, que, além disso, gesticula mostrando o bebê ao observador da imagem, ressaltando sua importância. São possibilidades de interpretação, dada a complexidade do pensamento figurativo medieval.

Seguimos com a posição em que se encontra o pai da criança, Saturno. Pela mitologia, trata-se do pai de Júpiter. Por analogia, considerando o pano de fundo cristão, ele evoca José, pai adotivo de Cristo. Não há nenhuma passagem nas Sagradas Escrituras que afirme que José estava no local do nascimento. Mas nas imagens, sobretudo a partir do gótico, José começa a ser representado na cena, geralmente deslocado do eixo central, em uma posição mais marginal. A miniatura de que ora nos ocupamos não se afasta dessa tradição iconográfica: Saturno, o pai, assim como José, ainda que esteja representado na mesma imagem, encontra-se fora do quarto em que se dá o nascimento.

Analisemos, agora, a representação de Cibele. Trata-se de uma personagem ambivalente: ao mesmo tempo em que sua condição de mãe e a forma como a 68

Bartolomeu é um autor de livro apócrifo e assim como o “livro da infância do Salvador”, citado em VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea. Vidas de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 95.

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imagem é organizada fazem referência a Maria, o fato de ter os seios nus também evoca Eva. Isso pode ser explicado pela dualidade profundamente antagônica que existe entre essas duas mulheres-chave do cristianismo: a que comete o pecado original e a que permite o resgate desse pecado, ao dar a luz ao Cristo. Mais uma vez, a imagem traz sobreposições de significados, nesse caso explicitando conceitos inversos, porém correspondentes.

Há ainda na imagem um jogo de palavras no que concerne Cibele, formando um duplo sentido. Cybelle, na grafia francesa medieval, foi escrito separando-se a primeira sílaba, de forma que foi feito Cy Belle. Belle significa bela, enquanto Cy pode ser entendido como "aqui". Teríamos então algo como "aqui [está] a bela". Isso reforça a identificação de Cibele com Eva, já que a beleza era associada ao pecado da vaidade, tema que aprofundamos na próxima análise, a do fólio 4v, que trata da lenda da Vênus em seu paralelo com Eva.

Finalmente, agora voltando a pensar nesta imagem em sua configuração geral, vemos que a história mitológica mostrada, não sendo como a original pagã, foi de certo modo “refeita”, para melhor se adaptar à sustentação da crença cristã. Assim, de uma maneira mais abrangente, os cristãos medievais não negaram as lendas pagãs de forma repentina e estanque, mas foram sutilmente incorporando-as às suas.

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6.3 – Fólio 4v, “Nascimento de Afrodite” (Figura 3)

Figura3 Nessa imagem em grisaille, há três personagens: Afrodite (conforme identificação da BNF), Urano e Cronos, estes distingüidos de acordo com a comparação da miniatura com a mitologia clássica. Eles estão em uma paisagem, com linhas do solo arredondadas e arbustos, totalizando três planos principais.

No primeiro plano, à esquerda, temos Urano parcialmente deitado, recostado numa pedra. Ele tem os olhos cerrados, usa barba e porta um chapéu e túnica longa com panejamento detalhado. Seus braços estão postos sobre o abdome e as pernas

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estão levemente flexionadas. Próxima a ele está a personagem localizada mais ao centro da figura, Cronos, alado e de costas para o espectador da imagem, vestindo um saiote e uma blusa de mangas compridas da qual apenas vemos os braços cobertos. Na mão esquerda ele segura um instrumento cortante composto por uma lâmina e um cabo, e na direita, um par de testículos. Posicionada mais à direita está Afrodite, nua e acenando com a mão direita para o alto, enquanto o braço esquerdo repousa. Ela está de frente para o observador da imagem, de modo que seus dois seios são visíveis, embora seu ventre proeminente recubra seu sexo. Próximo a cada um de seus pés, há novamente a representação dos testículos que Cronos segura.

Segundo os conservadores da BNF, a imagem faz referência ao nascimento de Afrodite (ou Vênus, para os romanos). Existem duas versões para sua origem. Em uma, ela nasceu de Júpiter e Dionéia, filha de Netuno69. Porém em outra, a que a imagem faz referência, ela é filha de Urano, que teve os órgãos sexuais cortados por Cronos e atirados ao mar, tendo formado uma espuma, em grego aphros, de onde se origina a deusa e seu nome70.

Porém, Cronos, nesta imagem, foi representado à maneira dos anjos cristãos, que abundavam na iconografia medieval, conforme temos um exemplo num manuscrito denominado “O livro das Propriedades das coisas” de Bartholomaeus Anglicus (BM Amiens ms 0399, fólio 13), datado de 144771.

Numa representação de simultaneidade figurativa, vemos nesta imagem dois momentos distintos, mostrados através da repetição de elementos: os testículos de Urano estão nas mãos de Cronos, mostrando o instante que eles são retirados, e também nos pés da Vênus, representando o do seu nascimento, também indicando e frisando a origem dela.

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COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Tradução de Thomaz Lopes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d., p.61. 70 Sobre a origem de Afrodite ver GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Op. cit., p. 10. Sobre a origem do seu nome há referência em HAMILTON, Edith. A mitologia. Lisboa: Dom Quixote, 1942, p.40. 71 Disponível em: , acesso em 18/09/2008.

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Propomos uma reflexão tomando duas questões essenciais, a primeira é o significado de Vênus no contexto cristão medieval72 e a segunda é a origem dessa personagem. Segundo Muela, no contexto da apropriação cristã da mitologia clássica, Vênus, assim como Cibele na imagem precedente, também fazia correspondência com Eva, pelos aspectos da indução ao pecado, luxúria, vício e sexualidade73.

Ademais, temos certa confirmação dessa associação quando fazemos um paralelo das origens dessas duas mulheres. Vênus se origina dos próprios genitais de Urano, não de seu sêmem ou de uma relação sexual; enquanto Eva nasce de uma costela de Adão. Há uma aproximação das duas personagens no fato de ambas terem nascido de parte do corpo de um homem. Além disso, se compararmos Urano com Adão, os dois se vinculam ao divino – sendo Urano a personificação do próprio céu na mitologia, ressignificado como local do paraíso e da morada do Deus cristão, e Adão, a primeira criatura feita por Deus.

Os personagens correspondentes Eva/Vênus e Adão/Urano adquirem, portanto, uma interpretação sobreposta, tomados em seus pontos comunicantes, mas retrabalhados segundo a exegese cristã, que se apropriou do mito.

Ressaltamos nessa análise uma reflexão acerca do significado cristão do nascimento. A maneira como nascem os personagens cristãos terá estreita relação com os significados que lhe serão atribuidos. Temos o exemplo do Cristo, que desde sua Natividade na mangedoura carrega os símbolos espirituais da humildade e seu distanciamento dos poderes dos reinados temporais. Além disso, sua mãe, a Virgem Maria, é fruto de uma concepção pura, isenta do pecado. Eles já eram predestinados, o que fica claro na forma como nasceram.

Christiane Klapisch-Zuber, ao analisar as concepções medievais de masculino e feminino, nos mostra como o olhar cristão medieval se fundamentou, pelo doutrinamento dos Pais da Igreja, na subordinação feminina, tomando como base

72

Optamos por seu epíteto romano, já que o manuscrito é baseado em uma obra romana. MUELA, Juan Carmona. Iconografía clásica. Guía básica para estudiantes. Madrid: Istmo, 2005, p.206. 73

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justamente a passagem de Gn 2, 21-24, pela qual Deus faz Eva da costela de Adão, ignorando outra anterior, Gn 1, 26-27, segundo a qual homem e mulher teriam sido criados à imagem de Deus. Ela cita ainda Santo Agostinho, que, baseando-se em outro texto das Escrituras, uma epístola paulina, (1 Coríntios 11,7) afirmar que a mulher foi feita à imagem do homem, e não diretamente de Deus. Já São Tomás de Aquino coloca a criação em apenas um ato, mas será também um continuador da idéia da subordinação “natural” da mulher. A construção teórica medieval via, pois, no masculino a expressão da completude, mas não discorria muito sobre ele, senão teorizando sobre as diferenças que tinha de seu complementar negativo, o feminino, que ao contrário era largamente comentado nos aspectos negados, ou seja, suas “imperfeições” em relação ao homem74.

Supomos que essa imagem, ao presentificar o nascimento da Vênus, associando-a a Eva, coloca em funcionamento todo esse imaginário mostrado por Kaplisch-Zuber. Desse modo, ela teria papel moralizador no sentido de remeter ao pecado em sua origem feminina, pois Eva era associada ao Pecado Original, a origem dos sofrimentos humanos. Mais que isso, a imagem ainda mostraria, na figura de Urano/Pai que segura o abdome, a dor do próprio homem em seu aspecto masculino.

Há outra questão importante no paralelo entre Eva e Vênus: Vênus é a deusa da beleza, portanto da vaidade, um pecado medieval. E foi através de Eva que o pecado entrou no mundo segundo os medievais. Segundo Casagrande e Vecchio: “(...) o ato de desobediência a Deus de Adão e Eva assinala a passagem de um estado original de perfeição para uma condição dominada pela presença do pecado”.75

74

KLAPISCH-ZUBER, Christiane. "Masculino/feminino". In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, JeanClaude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Op. cit., vol. 2, p. 137-149. 75 CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. "Pecado". In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, JeanClaude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Op. cit., vol. 2, p. 337-351, p. 337.

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6.4 – Fólio 6v – Deucalião e Pirra salvos do dilúvio (Figura 4)

Figura 4

Na inicial Q historiada há uma imagem em grisaille em seu interior que mostra uma barca sobre águas, com uma cabine de duas janelas. Dentro dela estão representadas duas pessoas, Deucalião e Pirra, de acordo com a identificação da BNF. Há também um personagem alado acima da embarcação representado de três quartos.

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Diferentemente da anterior, essa imagem não produz ilusão de tridimensionalidade. O fundo, com suas manchas escuras, nos causa uma dúbia impressão de céu com nuvens ou montanhas. É interessante observar que foram utilizados pigmentos coloridos também nessa inicial: amarelo no interior da letra, na representação de céu, e vermelho no contorno da letra.

Segundo o mito, Deucalião era marido de Pirra e filho de Prometeu. Foi sob o seu reinado na Tessália que desabou um dilúvio, que pode ser visto, como nessa imagem, como um predecessor da narração análoga dos cristãos de Gn, 6-976. As justificativas para o acontecido são semelhantes: Júpiter resolveu afogar os humanos para dar fim à sua malícia. Na mitologia também esse casal, cujo homem era o mais justo e a mulher, a mais virtuosa entre todos, sobreviveu à grande inundação em uma barca. Após o dilúvio, consultaram a deusa Temis, que repondeu: “Saí do templo, velai o rosto, desprendei os vossos cintos, e atirai para trás os ossos da vossa avó”. No princípio não compreenderam o significado disso, mas foi Deucalião quem refletiu e associou a avó à mãe e à terra, concluindo que seus ossos eram pedras77. Ao atirarem-nas, as dele se transformaram em homens e as de Pirra em mulheres, repovoando o mundo. A lenda ainda conta que a Idade de Ferro78 continuou com o gênero humano, “cuja dureza de coração e sofrimento no trabalho lembram essa segunda origem”79.

Na versão cristã, Deus também aniquila a humanidade pecadora, que só ressurge através do salvamento de um casal justo pela arca, que de modo semelhante ao mito pagão, repovoa o mundo. E, de maneira parecida, a nova geração após Noé 76

Esse mito é narrado por Ovídio no primeiro livro das Metamorfoses: “[...] Ali, onde aportaram, Deucalião e sua esposa, em um frágil barco, pois a água recobria o resto do mundo, dirigem suas preces às ninfas coricianas e às divindades da montanha, assim como a Têmis, intérprete do destino, então possuidora do oráculo. Jamais houve varão melhor e mais amante da eqüidade que ele, jamais houve mulher mais temente dos deuses que ela. [...]”. OVÍDIO. As Metamorfoses, op. Cit, p.18. 77 Nessa passagem mitológica os cristãos poderiam ainda encontrar mais um argumento para a superioridade “natural” masculina, conforme a análise que fizemos da imagem anterior. 78 Período mitológico no qual surgiram todas as injustiças e todos os crimes. Commelim assim o descreve: “Os homens e os povos se armaram, uns contra os outros; a maldade, a mentira, a perfídia, a traição, a libertinagem, a violência, triunfaram impunemente; vendo-se repelidos e desconhecidos na terra, o santo Pudor, a inviolável Justiça, a Boa Fé, remontaram ao céu. Então começou para o homem a vida de sofrimentos e de misérias. Para arrancar os alimentos à terra, foi preciso cultivá-la e regá-la com suor; a natureza, guardou para si, as riquezas e os seus tesouros, e só à custa de longas vigílias, de cálculos, de esforços e de paciência, o homem conseguiu arrancá-los”. COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Op. cit., nota 8, p.181. 79 Ibidem, nota 8, p. 182.

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continua sofrendo e vivendo em pecado. Como podemos notar, existe um paralelo com o mito antigo, que foi tomado para conduzir a moralização cristã.

Segundo Réau, a representação de Noé é relativamente estável, figurada geralmente como um velho barbado – tipicamente um Patriarca. Na arte paleocristã e pré-româmica, a Arca de Noé é sempre figurada por uma grande caixa. Mais tarde, ela se transforma em uma espécie de casa flutuante e durante a Idade Média até o Renascimento ela se torna definitivamente uma embarcação, como é o caso deste manuscrito80.

A grande diferença entre a imagem do manuscrito e a iconografia tradicional da Arca de Noé é a ausência de animais, que ajudam a caracterizar esta última. A presença do casal, ao contrário, é um ponto comum entre elas. No entanto, também encontramos representações da Arca de Noé sem animais, mas várias com casais 81. Por outro lado, um detalhe na imagem nos remete novamente à Arca: trata-se de um elemento sobre o telhado, de dificil visualização. Certamente, este objeto não estaria ali gratuitamente. Na narrativa da Gênesis, Deus ordena a colocação de uma clarabóia no alto da arca82. Esse poderia ser o elemento em questão.

O fato de haver duas narrativas de dilúvio poderia servir como uma confirmação da narrativa cristã, por ser-lhe anterior. Mas a interpretação pagã era “corrigida”, pois para o cristão medieval a visão dos pagãos quanto ao dilúvio não era a correta, mostrando assim como os pagãos não souberam interpretar corretamente as ações divinas.

Ademais, analisamos outro aspecto dessa representação. Tomemos outras explicações de Réau sobre a iconografia do dilúvio cristão: ele dura quarenta dias e quarenta noites. Noé envia sucessivamente o corvo, depois a pomba para verificar 80

REAU, Louis. Iconographie de l’art chrétien. Tome III, Iconographie des saints I. Paris: Presses Universitaires de France, 1958. 81 Um exemplo similar a essa imagem é a representação da Arca de Noé em um “Romance de Deus e seu mar” de autoria de Herman de Valenciennes, datado do primeiro quarto do século XV (BM Besançon ms. 0550, fólio 5), reproduzido em: , acesso em 30/06/2008. 82 Em Gn, 6, 16, Deus dá instruções a Noé para construir a arca: “No alto da arca, faça uma clarabóia de meio metro como arremate (...)”.

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se a terra é habitável novamente. O corvo prefere satisfazer-se de carniças e não retorna à arca; a pomba volta trazendo em seu bico um ramo de oliveira. A arte medieval multiplica as cenas que opõem a conduta própria desses dois pássaros antinômicos saindo da arca83. Vemos nessa imagem uma figuração muito similar, porém, em lugar de um pássaro, temos um personagem antropomórfico alado que paira sobre a embarcação, que notadamente não faz parte da lenda da Arca de Noé. Ele remete, sim, à descrição de outra arca das Sagradas Escrituras, na qual também há seres alados: a arca da aliança, sobre a qual há dois querubins esculpidos. Ela é descrita em Ex 25, 10-22. Essa arca, assim como a arca de Noé, também está associada à salvação dos pecadores, funcionando como uma prefiguração da Igreja Cristã. Ela foi feita84 para ser colocada no santuário que Deus ordenou que Moisés fizesse, especificamente para guardar o documento que Ele entregou a Moisés 85, selador da Sua aliança com o povo de Israel, isto é, os Dez mandamentos86. A passagem da arca da aliança se finaliza junto com o livro de Êxodo 87, narrando justamente como a glória de Deus cobriu o santuário feito por Moisés. Concluímos, assim, especialmente baseados na interpretação desta imagem, que no contexto cristão medieval o dilúvio alude à mortalidade inevitável da humanidade pecadora: somente a Igreja, representada nas figuras sobrepostas das arcas, é a portadora da salvação, de forma que ela vem substituir os cultos pagãos. Assim, de uma maneira mais ampla, ao mesmo tempo em que as fábulas mitológicas de Ovídio são guardadas nesse livro cristão, isso é feito com cautela, sem deixar de usá-las para reafirmar a sua fé.

Além disso, pensando na justaposição dos significados das duas arcas e, principalmente, dos dois dilúvios (pagão e cristão) a que essa imagem remete, refletimos sobre o que denominamos “simultaneidade figurativa”. Já vimos que os iluminadores usavam a repetição de elementos para mostrar dois momentos

83

REAU, op. cit. Sua execução é descrita em Ex, 37, 1-9. 85 Essa informação aparece na descrição da execução da ordem de Deus por Moisés, quanto à Arca da Aliança, em Ex, 40, 20-21. 86 Descritos em Ex, 20, 3-17. 87 Ex, 40, 34-38 84

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diferentes88. Outra forma de simultaneidade que percebemos desde as análises anteriores é a de significados, às vezes ambivalentes, para a mesma representação, conforme discutimos anteriormente.

88

Isto foi mostrado na imagem do fólio 4v, tratando da lenda de Vênus. Nela foi repetida a representação dos testículos de Urano para mostrar o momento em que são retirados dele e o instante seguinte em que deles surge a Vênus.

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6. 5 – Fólio 8 – Combate entre Fébus e Píton (Figura 5)

Figura 5 A cena principal desta imagem mostra um homem alado com um arco na mão esquerda, identificado por uma inscrição logo acima da sua cabeça como Phibus, Fébus. A posição de seu braço direito indica ter acabado de desferir uma flecha, que se encontra atravessada entre o pescoço e a cabeça do outro personagem: uma serpente alada identificada com a inscrição Phiton. A posição de Píton, horizontal,

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contrasta com a de Fébus, vertical e central (se levarmos em consideração seu arco), indicando quem é a personagem principal.

Ao redor dos protagonistas, formando uma espécie de moldura, existem nuvens escuras, com pequenos fragmentos soltos. Abaixo da cena do combate há uma brecha, na qual está o sol antropomorfizado, com um rosto humano reluzente de onde saem raios dourados, contra um fundo branco.

A passagem mitológica correspondente nas fábulas de Ovídio conta que Píton, enorme serpente, nasceu do limo deixado pelas cheias do Nilo aquecido pelo calor do sol. Então Fébus, o deus que transportava o sol pela abóboda celeste, quase esvazia sua aljava, atirando mil flechas no monstro, que antes só haviam sido usadas contra animais mais frágeis, como veados e cabras fugazes e mesmo assim, consegue matá-lo. Para que o feito não fosse esquecido, Fébus instituiu os jogos Pítios, cujos vencedores eram coroados com folhas de carvalho, já que ainda não existia o loureiro89.

Nesta imagem, entendemos a presença do sol como um reforço para a identificação do personagem Fébus, por sua função de guiá-lo pelos céus. Além disso, sua disposição sob a cena principal também enfatiza a informação de que o combate aconteceu na esfera celeste, situando o combatente nos ares.

A serpente é um animal que facilmente nos remete também ao cristianismo. Ela aparece muitas vezes nas Escrituras como símbolo de Satã, derrotado pelo Cristo. Também na mitologia pagã ela é vencida pelo deus solar, Fébus, o Apolo grego, que na apropriação cristã dos mitos pagãos aparece muitas vezes associado ao próprio Cristo90.

Mas as possibilidades de associação do personagem de Fébus nessa imagem são mais precisas. Podemos comparar a cena com uma passagem do Apocalipse, que diz: Aconteceu então uma batalha no céu: Miguel e seus anjos guerrearam 89 90

OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p. 20; 21. MUELA, Juan Carmona. Iconografía clásica. Op. cit., p.206.

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contra o Dragão. O Dragão batalhou juntamente com os seus Anjos, mas foi derrotado, e no céu não houve mais lugar para eles. Esse grande Dragão é a antiga Serpente, é o chamado Diabo ou Satanás. É aquele que seduz todos os habitantes da terra. O Dragão foi expulso para a terra, e os Anjos 91 do Dragão foram expulsos com ele .

As imagens que mostram a batalha de São Miguel com o Dragão até o século XV não são tão freqüentes, dado que sua devoção se desenvolveu mais depois do século XIV, quando os reis franceses lhe fizeram chefe da Igreja no contexto da Contra-Reforma nas lutas contra o protestantismo. Miguel é, pois, antes de tudo um santo militar92. Mesmo assim, há registros de seu culto a partir dos séculos V e VI na Itália e na França, depois na Alemanha, tendo se estendido mais tarde a toda cristandade.

Na iconografia referente à passagem do Apocalipse citada, encontramos em geral um soldado ou cavaleiro empunhando uma lança combatendo o dragão – que é muitas vezes uma serpente alada. Miguel é representado de pé ou nos ares – o que nos permite distingui-lo de São Jorge, que mais freqüentemente é representado a cavalo. Outra grande diferença é que o arcanjo sempre é alado, enquanto são Jorge não o é93. A similaridade de Fébus representado nesta imagem com São Miguel contribui para a associação dos dois, imbuída de todos os significados de que são portadores. O Arcanjo Miguel, cujo nome significa “quem como Deus”, possui grande importância nas Escrituras: é ele quem conduz as almas dos santos ao paraíso, quem carrega o estandarte de Cristo nas batalhas angélicas, quem cumprirá as ordens de Deus para fulminar o Anticristo no fim dos tempos e dará a ordem para que os mortos ressuscitem94. Ele é também o chefe da milícia celeste e o defensor da Igreja, conforme dissemos. Conduz os mortos e pesará as almas no Juízo Final. Os

91

Ap. 12: 7-9 DUCHET-SUCHAUX, Gaston; PASTOUREAU, Michel. La bible et les saints. Guide iconographique. Paris: Flammarion, 1994, p. 246. 93 Temos exemplos na representação de São Miguel combatendo o Dragão no “Livro das propriedades das coisas” de 1447 (BM Amiens ms 0399, fólio 12) em um “Epistolário” de 1548 (BM Avignon ms 29, fólio 78v), reproduzidas em: , acesso em 30/06/08. 94 VARAZZE, J. Legenda Áurea. Op. cit, p. 813. 92

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eruditos associaram seu culto a muitos deuses da Antiguidade: Anúbis, Hermes e Mercúrio são alguns deles95.

Ainda sobre esta representação, atentamos para a simbologia do dragão. O cristianismo lhe atribuiu os significados da “antiga Serpente”, do poder do mal, do demônio, do inimigo de Deus, da morte e das trevas, da heresia (como mostramos alguns exemplos) e – também – do paganismo96. Assim, podemos levantar a hipótese de que a miniatura em estudo seria uma moralização do próprio combate ao paganismo, simbolizado por Píton, levado a cabo por São Miguel, aqui personificado como um personagem mitológico cristianizado, Fébus. Dessa forma, nessa “sobreposição” cristã, podemos concluir que a imagem mostra principalmente a própria vitória do bem na luta contra o mal, tendo associadas na figura de Fébus as significações de Cristo e de quem o representa no combate, o arcanjo Miguel. E na figura do dragão, símbolo mesmo do paganismo, está figurado o próprio Satã: anjo caído, ele ocupa na hierarquia infernal um lugar simétrico àquele do Arcanjo Miguel na hierarquia celeste.

95

DUCHET-SUCHAUX, G.; PASTOUREAU, M. La bible et les saints. Guide iconographique.Op. cit., p 246. 96 COOPER, J. C. Diccionário de símbolos. 2 ed. México: G. Gili, 2002, p. 69-70.

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6.6 – Fólio 13 – Fébus e Faeton (Figura 6)

Figura 6 Nesta miniatura policromada vemos um trono gótico dourado, com baldaquino, sobre o qual está sentado Fébus, de cabelos e barbas brancas. Ao seu lado direito, no interior desse espaço do trono, está Faeton, ajoelhado. Ambos são identificados por

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inscrições em cor branca sobre suas vestes. Do trono saem raios amarelos que contrastam com as nuvens cinzentas que circundam essa cena. Ainda no espaço rodeado por estas nuvens há uma carruagem dourada, atada por uma corda a uma das mãos de Faeton e sendo puxada por quatro cavalos de cores diferentes, todos com nomes inscritos nos corpos97.

Abaixo dessa cena há três cidades representadas em perspectiva. Nelas estão casas de até três andares com pináculos no alto, uma montanha à direita, árvores mais detalhadas num primeiro plano. Ao fundo, as casas e as árvores ganham um tom azulado numa representação utilizando a perspectiva aérea.

Ovídio dá a Faeton grande importância, em vista do espaço maior que ocupa no seu livro em comparação com a maioria das outras personagens mitológicas. Ele começa descrevendo o Palácio do Sol, presidido por Fébus. Faeton, seu filho, vai até esse lugar e pede ao pai um sinal que confirme sua paternidade. O pai concedelhe fazer um pedido, que será atendido. Faeton, então, pede-lhe seu carro solar. Fébus tenta convencer o filho de que desista desse pedido, pois sua preocupação com ele é a prova da sua paternidade. Fala dos perigos celestes de guiar seu carro e diz ser esse o único pedido que ele lhe negaria se não lhe tivesse jurado conceder um desejo, diante do perigo que isto representa. Faeton não se convence e insiste em sua idéia. Ele parte, mas os cavalos, sem o devido lastro do peso de Fébus, saem de sua rota e, desgovernados, causam estragos por toda parte, lugares ardem em chamas. Faeton morre, é acolhido pelo Erídano (o pó) e Ovídio ainda faz uma moralização, afirmando que ele morreu por ter muito ousado98.

Essa moralização do autor clássico foi justamente o aspecto fundamental àquela cristã, numa nova configuração, conforme se segue.

A referida passagem mítica antiga mostra um conceito caro ao cristianismo: a obediência. Para esta religião, é a atitude contrária, a desobediência, que condena toda a raça humana a sofrimentos e à morte, quando Adão e Eva comem do fruto

97

Os nomes desses cavalos não estão legíveis, e até o momento não há referências deles. OVÍDIO. As Metamorfoses, op. Cit. P. 27-35.

98

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proibido, cometendo assim o Pecado Original99.

Há outro aspecto na narração clássica: a desobediência de Faeton acarreta muitas destruições na terra. A destruição da humanidade por meios divinos permeia as histórias cristãs em alguns momentos: no Dilúvio 100, na narração da destruição de Sodoma e Gomorra101, na queda de Babilônia102 no porvir, mas já narrado Juízo Final. Em todas essas lendas, a humanidade é castigada por cometer pecados, isto é, desobedecer às leis de Deus. Mas nesses casos, são os homens os pecadores, e na lenda, eles sofrem sem terem errado. É certo, porém, que aquele que errou, Faeton, também será punido.

No que concerne ainda à tradição cristã, há outra desobediência memorável: a de Lúcifer, anjo de alta hierarquia que se rebela e é lançado à terra, perdendo o direito de acesso às vias celestes, narrado em Isaías 14, 12-17: Como é que você caiu do céu, estrela da manhã, filho da aurora? Como é que você foi jogado por terra, agressor das nações? Você pensava: “Vou subir até o céu, vou colocar meu trono acima das estrelas de Deus; vou sentar-me na montanha da Assembléia, no cume da montanha celeste. Subirei até as alturas das nuvens e me tornarei igual ao Altíssimo”. E agora aí está você precipitado na mansão dos mortos, nas profundezas do abismo (...).

E segundo Muela, é mesmo Lúcifer a quem os cristãos se referem ao se reapropriarem desse mito, substituindo Faeton. Ele cita dois principais aspectos: a queda dos céus e o castigo divino devido à soberba103. Desta maneira, como Faeton, Lúcifer também quis estar no lugar do pai, nos céus.

Porém, a imagem que analisamos mostra a cena inicial do mito, o momento em que Faeton faz o pedido a Fébus. Ele está ajoelhado diante do pai em seu trono, lembrando algumas representações do Deus-Pai em majestade, não só pelo cenário mas também por sua atitude. O carro solar e as cidades em baixo, tudo está em perfeita ordem. Entendemos essa escolha como uma maneira de mostrar ao observador a atitude correta. Ela sublinha a idéia de que antes da desobediência 99

Gênesis, 3. Gênesis, 6-9. 101 Gênesis, 18-19. 102 Apocalipse, 18, 1-3. 103 MUELA, Juan Carmona. Iconografía clásica. Op. cit., p. 206,207. 100

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havia paz.

Um outro elemento dessa imagem que possui uma equivalência cristã são os cavalos, em número de quatro, como os do Apocalipse. Cada um tem uma cor diferente, e que remetem a estes últimos: branco, vermelho, amarelo e preto 104. No livro do Apocalipse, os cavaleiros aparecem separadamente depois da abertura dos quatro primeiros selos. Na Idade Média, a maioria dos comentadores viram no primeiro Cavaleiro a imagem do Cristo, seu cavalo branco simbolizando a Igreja. O segundo simbolizaria a Guerra, o terceiro a Fome e o quarto a Peste. Além disso, no Apocalipse é narrada a destruição da terra no Juízo Final, da qual os cavaleiros participam. Essa idéia de destruição encontraria, assim, um eco na fábula mitológica. E as nuvens escuras funcionariam como uma espécie de presságio da queda e da destruição que adviriam105.

Portanto, nesta imagem, a substituição do mito antigo pelo cristão, feita pelos eruditos medievais, foi através de elementos, personagens, histórias e até a moralização, que eram semelhantes. Por um lado, nossa questão recai na pergunta que já fizemos, sobre o quanto as obras clássicas teriam influenciado as Sagradas Escrituras, diante de mitos de tal modo análogos. Por outro lado, refletimos sobre as maneiras de apropriação cultural usadas neste manuscrito: algumas substituições temáticas do Paganismo pelo Cristianismo eram feitas como esta, mais diretamente, por meio de narrativas similares; e outras indiretamente, recontando os mitos clássicos de forma a modificá-los essencialmente, como na imagem do fólio 3.

104 105

Narrados em Apocalipse, 6. REAU, Louis. Iconographie de l’art chrétien. op. Cit. P.//

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6.7 – Fólio 53v – Juno no Inferno (Figura 7)

Figura 7 Na metade esquerda dessa miniatura policromada há uma mulher que, segundo os conservadores da BNF, é Juno106, embora não haja inscrição na imagem nomeandoa. Seu vestido apresenta um panejamento movimentado, formando uma cauda, indicando que ela caminharia para a direita. Os outros dois personagens 106

Conforme título atribuído à imagem de número 45, do fólio 53v, do arquivo disponível em: Acesso em 18/09/2005

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representados são outra mulher no interior da boca de um monstro, na extrema direita, e um ser híbrido com três cabeças humanas e corpo animalesco, peludo, com cauda e sexo à mostra, segurando na mão um bastão com uma chave na ponta.

Começamos nosso estudo pela personagem que ao mesmo tempo nos dá a referência espacial da representação. Trata-se de Cérbero, o cão de três cabeças que guarda a entrada do Hades107 - embora aqui tenha uma forma mais antropomórfica que canina. Ele cumpre sua função de guardião, posicionado-se ante a mulher que se aproxima, com uma grande chave na mão. Tem as três bocas abertas e acena com a outra mão, apontado para o interior do lugar que guarda, o que indica uma atitude de comunicação, de diálogo. E isso faz ressaltar também, de certa forma, seu lado humano em lugar do feroz animal mitológico.

Identificado o espaço, olhemos mais detalhadamente para o entorno da cena principal. Há uma montanha e uma faixa azulada à qual Juno se sobrepõe, que parece se tratar de um rio. Ambos podem então ser comparados com a descrição da paisagem do Shéol108 dada por Jacques Le Goff, representação que muito influenciou o imaginário do inferno e do purgatório cristãos. Enfoquemos a figuração da montanha e do rio e continuemos a buscar suas bases pagãs relacionadas com as idéias cristãs. Essas características geográficas nos remetem, além da paisagem do Shéol, ao rio Cócito, da mitologia pagã, pelo qual o barqueiro Caronte transportava os recém chegados no Hades. O Hades era vinculado ao vulcão Vesúvio109, enquanto no contexto cristão também aparece associada aos vulcões, como o Etna, por causa do seu aspecto geográfico com crateras e por conter o elemento fogo (na forma de de lavas vulcânicas), de caráter essencial, conforme avançaremos nesta análise. Acrescenta-se que o imaginário cristão referente a essa descrição geográfica foi respaldado em parte, segundo Le Goff, pelas Escrituras

107

Hades era o nome dado ao mundo dos mortos na mitologia greco-romana, mas o termo continuou sendo aplicado a esse espaço, mesmo que com outros sentidos, de modo que o encontramos ainda hoje em algumas versões da bíblia. 108 A morada dos mortos judaica. A montanha e o rio são dois de seus elementos fundamentais que encontramos em: LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993, que utilizamos como nossa principal referência bibliográfica para a análise desta imagem, por se tratar do trabalho mais representativo que trata do tema do inferno na concepção medieval publicado no Brasil. 109 BULFINCH, Thomas. Livro de ouro da Mitologia. Histórias de deuses e heróis. Op. cit., p. 316.

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Sagradas110. A montanha é citada no livro de Salmos 42, 7111; e o rio, no de Jó 33, 18112 e Jó 36, 12113.

O fogo é evocado, então, por duas vezes na imagem: explicitamente na montanha, conforme foi dito, e enquanto vapores e fumaças que se elevam cinzentos ao lado dela. Esse aspecto do inferno é também herdeiro da concepção clássica 114. Outro aspecto debitário da tradição antiga e da mitologia é o caráter de elemento transformador, propiciador de mudanças do fogo115, presente em muitos rituais de iniciação. E isso aparece no cristianismo medieval com muita clareza quando, por volta do século XII, começa a ser gerada a idéia de Purgatório. Ainda segundo Le Goff, o fogo evoca a mitologia da fênix, que renasce das cinzas, pensamento esse que o cristianismo medieval retoma desde Tertuliano116. Relacionado a isso está claramente a idéia da ressurreição cristã. Encontramos ainda no texto bíblico de 1 Coríntios 3, 13: “A obra de cada um ficará em evidência. No dia do julgamento, a obra ficará conhecida, pois o julgamento vai ser através do fogo, e o fogo provará o que vale a obra de cada um”.

Nesse ponto é válido ressaltar que, apesar dos vários indícios de que o local representado na imagem seja o inferno, não devemos buscar uma interpretação linear ou óbvia demais. Esse local pode significar concomitantemente o Purgatório, conforme avançaremos nesta análise.

Passemos agora ao que são as figuras de importância capital na imagem. Dentro da boca de um monstro que identificamos como o mitológico Leviatã, que é a própria garganta do inferno, há uma mulher. Conforme encontramos nas Metamorfoses de 110

LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Op. Cit, p. // “Minha alma se curva dentro de mim, e por isso eu me lembro de ti, desde a terra do Jordão e do Hermon, de ti, ó pequena montanha”. Interpretações desse texto se referem à “montanha dos tormentos”, segundo LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Op. cit., p. 45. 112 “Assim ele preserva a sua alma do fosso, e a sua vida da passagem pelo Canal”. 113 “Se não, eles passam pelo Canal e morrem como loucos”. 114 Segundo Virgílio, é uma “região toda cortada de fendas, das quais se levantam chamas sulfúreas, enquanto o solo é sacudido pelo desprendimento de vapores, e ruídos misteriosos saem das entranhas da terra”. BULFINCH, Thomas. Livro de ouro da Mitologia. Histórias de deuses e heróis. Op. cit, p 316. 115 Ainda na concepção de Virgílio, a alma humana era composta dos quatro elementos, o fogo, o ar, a terra, e a água, que, quando unidos se transformavam na parte mais excelente, o fogo. Quando ganhavam o corpo, havia a mistura com a terra, que o tornava impuro. Uma das maneiras de se purgar essa impureza , depois da morte, era através do fogo. (Ibidem. p.323) 116 LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Op. cit., p. 22. 111

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Ovídio, há um episódio em que uma deusa virgem é raptada por Plutão, deus do Hades. Trata-se de Prosérpina. Ela se torna então a rainha dos infernos. Mas sua mãe, a deusa da colheita, Ceres, vai à sua procura e conquista o direito, por intermédio de Júpiter, de tê-la consigo durante a metade do ano. Esse episódio é uma alegoria das estações do outono, quando a vegetação míngua, e da primavera, quando a natureza refloresce117.

Mais uma vez, nesse ciclo de morte e renascimento, temos a idéia de ressurreição, que é tão cara ao cristianismo. Além disso, Prosérpina está em oração, com as mãos postas – gesto que não é característico da Antiguidade pagã, tendo sido desenvolvido na Idade Média, por influência dos rituais da cavalaria. Acreditava-se na Idade Média que o indivíduo teria dois julgamentos pelos merecimentos da sua vida: o primeiro na hora da morte e o segundo no dia do Juízo Final. Durante o período entre o primeiro julgamento e o final, a pessoa poderia obter a remissão dos pecados, o que era ajudado por meio das orações dos vivos. Inversamente, os mortos poderiam também rezar pelos vivos. Daí pensarmos nesse espaço também como evocando o Purgatório, já que temos reunidos na imagem elementos como ressurreição e reversibilidade, componentes que não dialogam com a idéia de sofrimentos eternos contida no Inferno. Ou seja, a imagem se nos mostra muito mais complexa do que simplesmente a evocação do inferno – do Hades – pagão.

Relacionada a essa mulher em oração está uma outra, que seria Juno. Ela não aparece no episódio do rapto de Prosérpina narrado por Ovídio, mas afirmamos isso baseando-nos em Bulfinch: “Os romanos acreditavam que cada homem tinha seu Gênio e cada mulher, sua Juno, isto é, um espírito que lhes dera a vida e que era considerado como seu protetor, durante toda a vida”.118 Dessa forma, nesse contexto cristão de retomada clássica, Juno bem poderia estar vinculada à imagem de Maria, já que na cultura cristã do período ela é a intercessora dos humanos junto ao reino celestial. Um dos fundamentos desse pensamento está na passagem das Escrituras das “Bodas de Caná”, na qual Maria intercede em favor dos discípulos de Jesus, em João 2, 3-4: “Faltou vinho e a mãe de Jesus lhe disse: 'Eles não têm mais vinho!' Jesus respondeu: 'Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não 117 118

OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit. p. 103. BULFINCH, Thomas. Livro de ouro da Mitologia. Histórias de deuses e heróis. Op. cit., p 18.

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chegou'”. Podemos entendê-la melhor se a tomarmos em seu caráter alegórico, entendendo o vinho como um símbolo do sangue de Jesus, isto é, da própria vida (como no caso da nossa imagem), a vida eterna liberta dos pecados que será dada a alguém que está em resgate do Purgatório.

Essa imagem apresenta-se também quase como que uma versão feminina da Anastasis, a representação iconográfica da descida de Cristo ao inferno, baseada no Evangelho apócrifo de Nicodemo. A passagem narra que Cristo foi ao mundo dos mortos e lá resgatou os justos que estavam enclausurados, principalmente por não terem sido batizados, porque viveram e morreram antes da Sua vinda. Esse texto, o Evangelho de Nicodemo, era bastante conhecido na Idade Média, tendo sido empregado nas práticas litúrgicas tais como fórmulas de exorcismo, hinos, laudes, tropos e jogos dramáticos119. Dentre os aspectos variados que o trecho suscita, destacamos o fato de ter aberto precedentes para a crença na suavização das penas dos pecadores mortos. Vale lembrar que o tema da descida aos infernos já era corrente na Antiguidade Greco-romana: Orfeu, Pólux, Teseu e Héracles foram à morada dos mortos120.

É válido recordar também que as imagens cristãs funcionam em geral por acumulação de sentidos. Ou seja, uma mesma imagem pode carregar consigo múltiplos significados que se inter-relacionam formando uma complexa rede de entendimentos. De certo modo, se é que podemos concluir sem sermos simplistas sobre esta representação, tomando-se as personagens principais, temos Juno figurando, assim como Maria, como intercessora dos homens. Essa figura feminina vem, na imagem, ao resgate de Prosérpina, que também pode ser compreendida como a humanidade no Inferno/Purgatório, que por sua vez pode almejar a Ressurreição - da qual o mito da filha de Ceres também é portador. Ou seja, um mito pagão é representado figurativamente com muitos paralelos com o Cristianismo. Isso mostra não só o processo de "tradução" visual de uma religião à outra, mas também mostra como o cristianismo se apropria dessa tradição mitológica pagã dando-lhe novos sentidos. A intercessão de Juno é "moralizada" como a intercessão de Maria e como a ida de Cristo ao Inferno. Essa interpretação cristã de certa forma 119 120

LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Op. Cit, p. 63. Ibidem, p.38.

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"corrige" o mito pagão, cristianizando-o.

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6.8 – Fólio 79v – Suplício de Mársias (Figura 8)

Figura 8 A inicial historiada A, de Ainsi, mostra um personagem mitológico, Mársias, assim identificado pela BNF, deitado, amarrado, enquanto dois homens ajoelhados esfolam sua perna e seu braço. No braço ficam visíveis as partes descarnadas, delineadas e pintadas em tons mais escuros. Ele está nu, enquanto seus algozes vestem túnicas e portam chapéus. Na parte inferior, ao centro, há uma lira, e à esquerda, uma aljava

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com flechas. O solo em que se dispõem esses personagens é diferenciado do céu por ter pigmentação mais escura, mas a parte onde se encontram os instrumentos musicais é novamente diferente, sem degradé, com um cinza uniforme, parecendo mesmo ter sido repintada. Há também utilização de pigmento azul na decoração da letra capital, mas no interior da letra prevalece a técnica da grisaille.

Mársias, na mitologia, era um músico de grande habilidade, que inventou a flauta e a harmonia frígia. Dedicado à Cibele, acompanhou-a em suas viagens que os levaram a Nisa, onde encontraram Apolo. Foi aí que, orgulhoso com suas novas descobertas, Mársias ousou propor ao deus um desafio. Apolo o venceu e como castigo mandou que o esfolassem vivo. Mais tarde Apolo, arrependido da barbaridade, quebrou as cordas da guitarra ou da lira, e depôs esse intrumento, juntamente com as flautas de Mársias, em uma furna de Baco, a quem os consagrou121. Na Antiguidade foi tomado como símbolo da liberdade por causa de sua relação com o deus cognominado Líber122. Eis a narração poética de Ovídio, que detalha seu suplício minunciosamente: Depois de um desconhecido ter contado o fim dos homens da Lícia, um outro lembra o do sátiro, vencido com sua flauta, vinda de Tritônia, e que, vencedor, o filho de Latona castigou. “Por que me arrancas de mim mesmo?”, pergunta. “Ah! Tenho remorso. Ah!” gritava “Uma flauta não vale tanto!”. Enquanto gritava, sua pele era arrancada em todo o corpo; ele não era mais que uma só ferida. O sangue escorre por toda a parte, os nervos estão expostos; latejam as veias trepidantes que pele alguma cobre; poderse-iam contar as palpitações das víceras e das fibras transparentes do 123 peito. [...] .

Porém, na Antigüidade não era tanto o seu suplício que era representado. Há, por exemplo, uma escultura de Mirón que o mostra ileso, próximo a um tronco124. A representação feita na miniatura em estudo é mais parecida com a iconografia de um santo cristão, São Bartolomeu. Em algumas imagens este aparece segurando

121

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Op. cit, p.135-136. Idem. 123 OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p.112. 124 Disponível em < http://www.gobiernodecanarias.org/educacion/fundoro/es_confprieto.htm >, acesso em 18/09/2008. 122

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uma faca, instrumento do seu suplício, e um livro; em outras é mostrado mesmo seu esfolamento, como nesta imagem125.

A imagem aproxima, pois, o mitológico Mársias ao santo cristão. É importante relembrar a hagiografia de São Bartolomeu: este é associado a Natanael, que o Evangelho de João situa como um dos doze apóstolos, citado em João 1, 45. Não desempenha nenhum papel nem nos Evangelhos nem nos Atos dos Apóstolos, mas ele teria evangelizado, depois da morte do Cristo, a Arábia, a Mesopotâmia e a Armênia, onde, segundo a martirologia romana, ele foi esfolado vivo sob ordens do rei Astyage, furioso por suas conversões ao cristianismo. Como analisa Louis Réau: “Já haveria muitos decapitados e crucificados entre os apóstolos, tendo por esse motivo as hagiografias optado por um martírio menos banal, fazendo de São Bartolomeu um Mársias cristão”126.

Ressaltamos a justaposição, na imagem, de uma idéia cristã, do martírio por propagar a fé sagrada, e de uma idéia pagã, que se convencionou desde a Antiguidade associar à liberdade. Juntas, ganham impulso especial em favor do Cristianismo, pois, de um lado, há idéia de resistência às tentativas de contenção da propagação da sua fé, como se essa oposição fosse uma força limitadora, contrária ao ato “libertador” do Cristo e sua doutrina. Temos exemplos dessa coibição em Nero no primeiro século e Diocleciano no século III, que foram imortalizados como perseguidores do Cristianismo, tendo, o primeiro, imposto suplícios aos seus seguidores.

Ademais, um texto cristão que coloca os próprios ensinamentos como libertadores está no Evangelho de João 8, 32: “Conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês”. Acima de todas as tribulações que os cristãos sofrem por professarem e 125

Temos um exemplo da sua representação recorrente na Idade Média segurando uma faca e um livro em uma pintura de Simone Martini, feita entre 1315 e 1344, disponível em: , acesso em 21/09/2008. Também uma imagem importante para comparação nesse estudo, já que é uma representação em uma miniatura medieval de São Bartolomeu sendo esfolado de forma semelhante à da imagem que analisamos, é a do Breviário de John de Fearless, que se encontra no acervo da Biblioteca Britânica: < http://www.imagesonline.bl.uk/results.asp?image=025712&imagex=5&searchnum=2 > , acesso em 21/09/2008. 126 REAU, Louis. Iconographie de l’art chrétien. Op. cit., vol. 3/1, p.181.

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difundirem o Cristianismo, mostrado no esfolamento do santo, ainda assim, e também por isso, enaltecem sua fé.

Portanto, além das questões referentes à moralização cristã que esta imagem compartilha com as outras análises que expusemos, esta, em particular, poderia mostrar bem o processo de encadeamento de influências de uma cultura sobre a outra. Depois da associação do santo medieval à Mársias, feita na Idade Média, até mesmo este personagem mitológico passou a ser representado no seu martírio, no Renascimento127. Isto é, a mitologia teria fornecido elementos para o pensamento cristão, que depois também teria produzido efeitos na nova representação das narrativas antigas. Porém, esse é um pensamento que demandaria maior aprofundamento, pois lembramos que já na Antigüidade, havia a narrativa do esfolamento. Além disso, muitas obras da Antigüidade foram perdidas. Também pode ser por isso que não há imagens desse suplício naquele período – conservadas até hoje.

127

Há uma pintura de Tiziano intilutada “Esfolamento de Mársias”, exemplar do Renascimento herdeiro da associação medieval do personagem mitológico ao santo cristão, na representação em óleo sobre tela do seu suplício, que está no State Museum de Kromeriz, reproduzida em < http://www.artehistoria.jcyl.es/genios/cuadros/12592.htm >, acesso em 21/09/2008.

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6.9 – Fólio 100v – Assassinato de Niso. Cila entregando a cabeça de Niso (Figura 9)

Figura 9

Nessa imagem policromada há um acampamento militar, onde existem tendas brancas com ornamentos azuis e dourados. Atrás das elevações do solo estão soldados com armaduras e armas, enfileirados.

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No exterior da tenda maior, em primeiro plano, há duas mulheres com vestidos nobres, que se dirigem a ela. Uma das mulheres, vestida de verde, seria Cila, de acordo com a BNF, segurando a cabeça decapitada de Niso, segundo a lenda. Na abertura desse alojamento há três homens com trajes militares. Um deles, com uniforme mais nobre, tem as duas mãos voltadas para a cabeça que Cila segura. Ao fundo, há um castelo, com pináculos e com uma janela que ocupa grande parte da sua parede. Através dela podemos perceber uma mulher de verde frente a um personagem na cama. Seria então Cila decapitando Niso, segurando-o com a mão esquerda.

Segundo a lenda clássica, Niso, irmão de Egeu, reinava em Nisa, cidade vizinha de Atenas, que foi assediada por Minos na guerra de Ática. A sorte de Niso dependia de um cabelo de púrpura que ele tinha. Mas Cila, sua filha, apaixonada por Minos, que ela vira do alto dos baluartes, cortou esse cabelo fatal a seu pai, durante o sono, e o ofereceu ao príncipe amado. Minos, horrorizado com uma ação tão indigna, aproveitou da traição, mas expulsou de sua presença a pérfida princesa. Desesperada, ela quis atirar-se ao mar, mas os deuses a metamorfosearam em uma espécie de ave marinha. Desde então, Niso, seu pai, mudado em águia, não cessa de persegui-la pelos ares, e a estraçalha a bicadas128. Ovídio narra essa passagem mitológica no livro 8, no qual descreve a gerra entre Minos e Niso, logo em seguida, o pensamento de Cila sobre como faria para obter o amor de Niso, suas conjecturas sobre o seu parricídio e as suas conseqüências sobre o futuro político da cidade, quando finalmente opta por trair o pai: [...] Chegou a noite, que alimenta os maus pensamentos. Com as trevas, sua audácia aumentou. [...] Em silêncio, ela entra no quarto do pai – crime abominável! – a filha arranca do pai o fio de cabelo que sela seu destino. De posse da nefanda presa, carrega, apressada, os despojos do crime e, transposta as paredes da cidade, através dos acampamentos inimigos – tão grande é a sua confiança na recompensa! – chega junto do rei, e diz-lhe estas palavras, que ele ouve horrorizado: “O amor persuadiu-me ao crime. Eu, Cila, filha do Rei Niso, trago-te os deuses da minha pátria e os meus penates. Não te peço outro prêmio a não ser tu mesmo. Toma, como penhor desse amor, o fio de púrpura, e fica certo de que não é um fio de 129 cabelo que te trago, mas a cabeça de meu pai .

128 129

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Op. cit, p. 215. OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p. 144.

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Depois ele conta como Minos lhe nega a oferta, expulsando-a, tendo ele ido embora de navio. Ela então nada pelas águas perseguindo-o, quando seu pai é metamorfoseado em águia, e ela em ciris, cuja grafia se parecia com a grega do verbo “cortar”130.

Mesmo que a imagem faça referência a essa lenda clássica, ela tem paralelos com duas narrações cristãs que, como mostraremos, podem constituir a carga simbólica dessa mitologia antiga no Ovídio Moralizado. Uma está no texto apócrifo de Judite 13, 6-8, muito conhecido e citado na Idade Média. Judite, para salvar seu povo do domínio do rei Nabucodonosor, degolou Holofernes, o comandante do exército sírio: Então Judite se aproximou da coluna da cama, que ficava junto à cabeça de Holofernes, e pegou a espada dele. Depois chegou perto da cama, agarrou a cabeleira dele e pediu: “Dá-me força agora, Senhor Deus de Israel”. E com toda a força, deu dois golpes no pescoço de Holofernes e lhe cortou a . cabeça

Também no Evangelho de Marcos, 6, 14-29 há outra decapitação memorável, a de São João Batista por Herodes, a pedido de Salomé, sendo esta mulher no contexto cristão, portadora de sentidos menos notáveis que a outra considerada virtuosa. Maria Cristina Pereira critica uma característica da História da Arte de analisar as obras em busca de encaixe de sentidos por apenas uma lógica, de modo a não admitir outras concepções de pensamento, produção e mesmo ordenação das imagens. Ela comenta sobre a possibilidade de ambivalência das imagens medievais citando justamente um conhecido estudo de caso de Panofsky que trata dessas personagens: Panofsky não leva nem mesmo em consideração a hipótese de que o artista tenha desejado criar uma imagem ambivalente, uma Salomé-Judite. Afinal, não necessariamente tem-se que tomar partido por uma delas. A imagem 131 não deixa de "significar bem" por não "representar bem" .

Cremos na decapitadora de Niso como a presentificação da Salomé também, até pela sua relevância simbólica no contexto medieval, dada a importância de São João 130

Ibidem, p. 146; 161. Maria Cristina Pereira se baseou para o estudo da ambivalência de Judite e Salomé, em pesquisas dos autores Jean Wirth e Didi-Huberman. PEREIRA, Maria Cristina C. L. "Uma arqueologia da história das imagens". In: GOLINO, William (org). A importância da teoria para a produção artística e cultural. Vitória, 2006. Disponível em: . 131

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Batista, que foi um precursor do próprio Cristo na antiga teologia cristã e considerado o primeiro “mártir” cristão132. Ademais, a lenda mitológica a que ela se sobrepõe é a de uma mulher sem moral, comparável aos valores atribuídos à Salomé.

Além disso, há aproximações entre as duas (Judite e Salomé): em ambas as histórias cristãs, uma figura masculina é seduzida pelas aparências femininas, a beleza principalmente, e em seguida um homem é levado à morte.

No caso de Judite, ela mesma seduz Holoferne, o embebeda, e notamos que o livro faz questão de frisar que ela se mantém pura mesmo assim, o matando enquanto dorme. Na história de Salomé, Herodes é seduzido pela dança dessa bela mulher e lhe dá a cabeça de João Batista como presente.

Comparando a atitude do Rei Minos na imagem, que faz gesto de recebimento da cabeça decapitada, isso contraria a lenda pagã, também reforçando o paralelo com a narrativa cristã de Salomé, cujo benefício da decapitação a torna “receptiva” como o gesto citado. Na imagem há, além da “Judite-Salomé”, outra mulher vestida ricamente, podendo ser uma dama de companhia, como era comum na nobreza nessa época – atualizando assim a narrativa bíblica.

Deduzimos algumas moralizações possíveis da imagem: de um lado, uma referência aos perigos que a mulher pode trazer ao homem, através do pecado da luxúria, de modo que isso o levaria a perder sua razão, o que é mostrado na figura do decapitado, já que podemos comparar essas histórias também ao texto de KaplischZuber que mostra que no período medieval, o homem, enquanto portador da razão era comparado à cabeça, enquanto a mulher era associada ao corpo133. Ao mesmo 132

HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. Op. cit., p. 190. Christine Kaplisch-Zuber explica a associação medieval da mulher com o corpo segundo a teoria de Santo Agostinho: “(…) A mulher que será objeto de tantas críticas (essência separada da totalidade humana), e o natural feminino que será alvo de tantas gozações, resultam destas assimilações da parte superior do humano – o espírito, a razão – com o masculino, e de sua parte inferior – os sentidos, e portanto o corpo, a carne que a razão deveria controlar – com o feminino”. KAPLISCH-ZUBER, Christine. "Masculino/feminino". Art, cit., p. 141. 133

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tempo, poderia aludir à Igreja/cabeça e aos fiéis/corpo, também uma analogia comum do período. Além disso – e o mais importante – a imagem conteria, ao mesmo tempo, as representações da mulher que salva seu povo, Judite, e da traidora da passagem de Marcos, Salomé, numa representação com significados antagônicos. Esta ambivalência poderia ser possível de outro ponto de vista da moralização, isto é, a atitude ruim de Cila/Salomé em antítese com a boa de Judite.

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6. 10 – Fólio 136 – Pigmalião rogando a Vênus (Figura 10)

Figura 10 Quase no eixo central dessa imagem policromada, vemos um homem vestido à moda do século XV, com um chapéu pendurado às costas, ajoelhado aos pés de um altar, com as mãos postas em uma atitude de oração frente a um ídolo alado. A lateral do altar, que é representado em perspectiva não científica, é ornamentada com desenhos arquitetônicos. Atrás do homem, fora do tablado ou tapete sobre o qual ele e o altar se encontram, há uma mulher nua. A mão direita esconde seu sexo, enquanto a esquerda está levantada em direção ao homem. Deitada ao lado

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do homem há outra mulher desnuda que também tapa o sexo com a mão direita. A diferenciá-las estão a estatura – a segunda é menor – e a cor – a segunda é mais amarelada, dando menos idéia de vida.

Essa imagem faz referência, na narrativa de Ovídio, ao mito de Pigmalião: ele esculpe uma estátua feminina muito bela e apaixona-se por ela, principalmente porque ela não portava os vícios e imperfeições das mulheres de carne e osso. Ele corteja sua escultura e dá-lhe presentes. No dia da festa de Vênus, roga a essa deusa por uma esposa. Vênus, então, atende à sua súplica e transforma a escultura, denominada Galatéia, em uma mulher de verdade134.

Há uma simultaneidade na miniatura: Galatéia é representada duas vezes nesta imagem, correspondendo a dois momentos distintos. A que está deitada é a escultura, enquanto a que está de pé, um pouco mais realista, é ela transformada em mulher. Sua posição, atrás de Pigmalião e com o braço esquerdo levantado, reforça a idéia de que teria acabado de chegar à cena. Ou seja, teríamos um antes (Galatéa-inanimada e Pigmalião rogando ao ídolo) e um depois (Galatéa-animada).

No contexto cristão em que a imagem é elaborada, há algumas questões que ressaltamos. Em primeiro lugar, a semelhança da figura da Galatéia às representações da Eva. Ambas estão nuas, escondendo o sexo. Essa atitude, em meios cristãos, mostra que ela já cometeu o Pecado Original, pois segundo o livro de Gênesis, no capítulo 3 que narra a desobediência do primeiro casal, a primeira percepção que Adão e Eva têm ao “abrir os olhos”, tendo ganhado conhecimento do bem e do mal, é de que estão nus. Mas também pode ser um gesto de modéstia, como se se escondesse.

Esse fato é relevante nesta imagem, pois mesmo com o mito fazendo referência às virtudes da Galatéia, pela ótica cristã, ela ainda é negativa, pois além de ser pagã, se reporta ao pecado da vaidade, na figura de sua beleza, várias vezes associado à Eva neste manuscrito. A história da criação de uma companheira para um homem solitário é retrabalhada, sobrepondo os significados cristãos aos pagãos.

134

OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p. 189.

80

Depois temos Pigmalião em oração, de joelhos, numa postura cristã. Desta forma, a imagem propõe mostrá-lo adorando um ídolo, e para fazer isso, ele é representado da maneira como se entendia a adoração, ou a atitude frente às imagens de santos, da Virgem ou do Cristo: com as mãos postas.

O ídolo é identificado pela presença de asas, de roupas, de turbante e pela vara que aponta na direção de Pigmalião. Apesar das asas serem encontradas em anjos, estes não têm o mesmo tipo de roupa que essa personagem e, sobretudo, de turbante. Além disso, nesse manuscrito percebemos a presença de asas em muitos dos deuses, talvez por associação com os diabos, anjos caídos para o cristianismo, representados freqüentemente com asas na iconografia medieval. Muela conta como o Cristianismo degradou os antigos deuses à condição de diabos, condenando seus ritos, cultos e festividades135. Ele cita ainda I Coríntios, capítulo 10:19-22, texto que destacamos: E o que quero eu dizer com isso? Que a carne sacrificada aos ídolos seja alguma coisa? Ou que os próprios ídolos sejam alguma coisa? Não! O que digo é o seguinte: aquilo que os pagãos sacrificam, eles o sacrificam aos demônios e não a Deus. Ora, eu não quero que vocês entrem em comunhão com os demônios. Não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. Ou queremos provocar o ciúme do Senhor? Seríamos nós mais fortes do que ele?.

Muela continua: no século III, Minúcio Félix afirma que os demônios, errantes desde a expulsão dos céus, haviam se refugiado nas imagens pagãs. Quando Constantino se converteu, houve grande destruição e saque dos antigos templos e estátuas dos antigos deuses. O ouro e o bronze dessas imagens foram para o fisco e o mármore alimentou os fornos de cal136.

Mas é a gestualidade do ídolo sobre o altar que serve como elemento identificador por essência: o gesto da vara que tem na mão, voltado para baixo, para Pigmalião, dá a entender que a ação mágica estava sendo realizada naquele momento, que era bem a escultura que estava agindo e não um santo. Isso reforça o caráter de idolatria, que para os cristãos era o que mais caracterizava o paganismo.

135 136

MUELA. Juan Carmona. Iconografía clásica. Op. cit., p. // Idem.

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Assim, podemos dizer que de certa forma a imagem condena Pigmalião a se casar com aquela que cometeu o maior pecado de todos, pelo qual toda humanidade pagaria: Eva - e isso apesar de que no mito ele anseia por uma mulher sem os vícios humanos.

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6.11 – Fólio 147 – Morte de Orfeu. A cabeça de Orfeu lançada no Hebro (Figura 11)

Figura 11

Nessa imagem policromada, há uma lapidação: quatro mulheres, em sua porção esquerda, atacam Orfeu. Ele segura uma harpa com a mão esquerda. Sua mão direita tem gesto de defesa, levantada na direção das mulheres. Ele está sentado, recostado numa pequena montanha formada por rochas menores ovais, marrons e esverdeadas, indicando a presença de vegetação e pequenas árvores. Há uma flecha voando em sua direção, próxima do pescoço. A paisagem ao fundo é construída em perspectiva aérea, e além deoutra montanha, há um rio, o Hebro. Próximo dele, uma mulher segura a cabeça decapitada de Orfeu.

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Orfeu era um músico virtuoso, cujas melodias amansavam mesmo os animais ferozes, mudavam os cursos dos rios e toda a natureza. Chorava sem parar por sua falha no resgate de Eurídice no Hades e também por isso havia se mudado para a Trácia. As mulheres de lá tentavam consolá-lo, mas sempre em vão por causa de sua fidelidade à Eurídice. Foi então que, desdenhosas, elas o despedaçaram e jogaram sua cabeça no rio Hebro. Ovídio acrescentou que sua cabeça, levada pelo rio ao mar, parou perto da ilha de Lesbos, onde continuou a murmurar canções tristes. Uma serpente quis mordê-la, mas Apolo a mudou em rocha, congelando sua atitude, com a boca aberta. O crime das mulheres de Trácia, tendo permanecido impune, trouxe dos céus uma peste. Consultado o oráculo, era necessário encontrar a cabeça de Orfeu e lhe prestar as honras fúnebres, para que cessasse aquele mal. Um pescador a encontrou no rio Meles, na Iônia, sem alteração, ainda bela. Mais tarde foi construído um templo onde Orfeu era venerado como um deus, mas no qual a entrada das mulheres era proibida137. Commelin diz que Orfeu foi o inventor do verso hexâmero, utilizado por Ovídio nas Metamorfoses. E acrescenta que ele era representado com freqüência na Antiguidade com uma lira e os animais ferozes apaziguados por sua música, ao seu redor138.

No livro 10 das Metamorfoses, Ovídio narra o resagate malogrado de Eurídice, finalizando com estas palavras: [...] Esgotadas as suas queixas contra os cruéis deuses do Érebo, retirou-se para o alto Ródope e para o Hemo, batido pelos aquilões. [...] E Orfeu se afastara de todo do amor das mulheres, seja porque o amor lhe fora nefasto, seja porque fizera um voto. Muitas mulheres, no entanto, ansiavam para se unirem ao vate, muitas sofriam sendo repelidas. Foi ele quem ensinou aos povos da Trácia a transferirem o amor para os adolescentes, e 139 colherem, antes da juventude, as flores de uma breve primavera .

Segundo Muela, Orfeu era associado ao próprio Cristo como alegoria da sua Descida ao Inferno, a Anastasis. O canto de Orfeu era a predicação do próprio Cristo, que atrai as almas à nova doutrina140. Nesse aspecto, podemos pensar na força do encantamento de Orfeu como uma prefiguração do poder do Cristo e da

137

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Op. cit, p.240- 241. Idem. 139 OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p.185. 140 MUELA, Juan Carmona. Iconografía clásica. Op. cit., p. 206. 138

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sua Igreja. Mas surge um questionamento: por que ele está representado numa cena de lapidação? O primeiro santo que sofreu tal martírio na Igreja Cristã foi Santo Estevão (Atos dos Apóstolos, 7, 55-59): Repleto pelo Espírito Santo, Estevão olhou para o céu e viu a glória de Deus, e Jesus, de pé, à direita de Deus. Então disse: “Estou vendo o céu aberto e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus.” Então eles deram fortes gritos, taparam os ouvidos e avançaram todos juntos contra Estevão. Arrastaram-no para fora da cidade e começaram a apedrejá-lo. As testemunhas deixaram seus mantos aos pés de um jovem chamado Saulo. Atiraram pedras em Estevão, que repetia esta invocação: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito.

Para o cristianismo, ele foi perseguido e morto pelos judeus por difundir a doutrina do Cristo.

Podemos pensar que, nessa imagem, se sobrepõem a figura de Cristo, da sua Igreja como doutrina, além de Santo Estêvão ao mito pagão de Orfeu. Aqueles que atentam contra as verdades cristãs são mostrados nas figuras femininas que o atacam. Como podemos notar, é uma série de idéias inseridas em apenas uma imagem, que ainda e mais uma vez têm função na “reforço” da piedade cristã.

Lembramos, ainda, que em análise anterior, na imagem do mesmo manuscrito que fazia referência à Anastasis, no fólio 53v, que tem como tema Juno no Inferno, também percebemos analogias de Eurídice, ou Prosérpina, seu epíteto romano, com a humanidade salva pelo Cristianismo. Dessa forma, compreendemos que não apenas cada iluminura encerrava vários sentidos separadamente, mas as imagens do manuscrito como um todo tinham correspondências entre si, cada uma delas podia remeter-se a outras, isto é, assim como dentro de cada imagem acumulavamse sentidos. O conjunto das miniaturas também tinha uma função inter-relacional e cumulativa de significados.

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6.12 – Fólio 235v – Adoração dos Magos (Figura 12)

Figura 12 A inicial D da imagem em grisaille mostra em seu interior, sentada próxima à haste esquerda da letra, a Virgem, com o Menino Jesus em seu braço esquerdo. Sua outra mão segura uma espécie de cálice com uma esfera na parte superior. À sua frente há três homens, os reis magos. Um está ajoelhado, com as mãos postas em oração, olhando a Virgem e o Menino. Os outros dois estão de pé e se entreolham. Os três possuem barbas e vestem trajes mais ricamente ornados que a maioria dos encontrados nas imagens do manuscrito. O fundo é subdividido em um interior

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arquitetural e sua área externa mais imediata, feito sem muito detalhamento, sugerindo um portal, com a Virgem na entrada – já que pisa o chão com revestimento e está sob a cobertura. Os reis magos pisam o exterior desse lugar e estão sob céu aberto. Encontram-se pigmentos azuis nas representações do céu e do solo onde pisam os reis. O vermelho está presente na decoração da letra capital que abriga a imagem.

Esta imagem, à exceção das outras, é de fato cristã, o que implica em uma mudança importante de temática. Seu posicionamento, quase na conclusão dessa obra pagã, supomos ser uma evidência bastante explícita da apropriação cristã de Ovídio.

Buscamos os significados dos reis magos e encontramos em Isaías, 60, 1-6, uma previsão da vinda deles: Levante-se Jerusalém! Brilhe, pois chegou a sua luz, a glória de Javé brilha sobre você. (...) Então, bastará ver, e seu rosto se iluminará (...) porque estão trazendo para você os tesouros de além-mar, estarão chegando a você as riquezas das nações. (...) ouro e incenso é o que eles trazem, e vêm anunciando os louvores de Javé.

Essa passagem foi associada à narração do Evangelho de Mateus, 2, 1-12, que conta como os reis magos chegaram e presentearam o rei dos judeus com ouro, incenso e mirra.

É bastante relevante o fato de que os reis magos eram pagãos e se curvaram ao Cristo, reconheceram seu poder – assim como os cristãos medievais acreditavam necessário que os pagãos fizessem. De certa forma, foi o que foi feito com o texto de Ovídio ao ser compilado pelos cristãos: ele foi “curvado”, foi convencido da verdade do Cristo, de seu poder. Ressaltamos mais uma vez que isso foi feito justamente na última imagem do manuscrito, caracterizando um fechamento de todas as moralizações feitas às Metamorfoses de Ovídio. É como se um ciclo se fechasse sobre a imagem do fólio 1, aquela que abre o manuscrito e cuja representação também é cristã, como vimos.

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Conclusões

Ao longo das análises feitas, pudemos refletir principalmente sobre as funções das doze imagens estudadas do manuscrito do Ovídio Moralizado BNF Fr 137, as suas características e o contexto cultural de sua produção. Tentaremos reunir agora, nesta breve conclusão, os pontos mais importantes, as principais questões que nossos estudos abordaram, relativas à maneira como a mitologia clássica foi retrabalhada pelo Cristianismo tardo-medieval. Mais precisamente, buscamos perceber, com essa dissertação, o "funcionamento" das interpretações medievais de uma obra clássica feitas por e em imagens.

Assim, uma das características que destacamos, ao longo de nossas análises, foi a simultaneidade. Conforme mostramos, eram representados frequentemente dois momentos em uma mesma figuração justapostos. Essa operação não é exclusiva a esse manuscrito, sendo observada comumente nas imagens medievais. De uma certa maneira, foi esse pensamento associativo, característico da exegese cristã, que permitiu a sobrevivência de idéias pagãs, justapostas a cristãs, mas ao mesmo tempo transformadas, manipuladas.

Essa simultaneidade não era só "temporal", mas também de conteúdo: idéias, conceitos, moralizações, referências temáticas diversas que se correspondem e se completam dentro de cada uma das imagens. Isso gerou complexidade para nossas análises e requereu aprofundamento histórico e teórico, além do conhecimento das narrativas mitológicas e cristãs, estas dentro das Sagradas Escrituras. Tendo em vista essa complexidade e a dimensão do manuscrito BNF 137, não pretendemos aqui esgotar as possibilidades de interpretação de cada miniatura, mas apenas lançar questionamentos, mais que respostas.

Quanto aos temas representados nas imagens do MS BNF 137, mais do que associações de personagens cristãs às pagãs, tratava-se de sobreposições ou, no termo usado por Juan Carmona Muela, de apropriações141. Para os cristãos, não se tratava de equipará-las numa escala de valores similar, e tratá-las como inferiores, 141

MUELA, Juan Carmona. Iconografía clásica. Op. cit., p. 196.

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mas de substitui-las, isto é, a exegese cristã era feita para se “corrigir” as fábulas mitológicas. Além disso, vimos que uma das maneiras de “apropriação” da mitologia antiga pelos cristãos era representar as lendas clássicas segundo a iconografia medieval. Isso sustentou algumas de nossas comparações. Mas não há nenhum tipo de “padrão”, não há uma forma única e automática de apropriação. Quase cada imagem tem seu próprio modo, que é adequado ao tema (ou aos temas) tratado.

Outro exemplo dessa "adequação" cristã está na própria estrutura da obra, que se inicia com a gênese do Universo, como na obra original das Metamorfoses, mas se conclui com uma imagem puramente cristã, a Adoração dos Magos – que, como dissemos, faz a herança clássica, pagã se rebaixar e reconhecer a "novidade" cristã. À maneira das passagens veterotestamentárias das Bíblias Moralizadas, o conteúdo pagão das Metamorfoses é moralizado. Assim, a introdução e a conclusão interligam o conteúdo da obra, ressignificando-a em um sentido cristão.

Por trás desse mecanismo do pensamento medieval está a interpretação de elementos históricos baseada na idéia medieval de “figura”: uma forma de interpretar os fatos de modo que, como diz Eric Auerbach, “o primeiro significava não apenas a si mesmo, mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro”142. Trata-se, como mencioanamos antes, da idéia de que certos acontecimentos ou personagens prefiguravam outros que lhes sucediam, que lhes preenchiam e ao mesmo tempo apontavam para uma promessa no futuro, assim como o Antigo Testamento prefigura o Novo Testamento, que o explica e substitui, apontando, ao mesmo tempo, para a vida futura na salvação, numa relação de eternidade e atemporalidade simultâneas143. Percebemos isso especialmente em duas imagens: a do fólio 4v, que mostra o mito da Vênus e a do fólio 6v, que trata de

142

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997, p. 46 “Esse tipo de interpretação tinha como objetivo mostrar que todas as pessoas e acontecimentos do Velho Testamento eram prefigurações do Novo Testamento e de sua história de redenção” Ibidem, p.28. Também em outro trecho do seu texto há: “(...) O confronto entre os dois pólos, o da figura e o do preenchimento, é às vezes substituído por um desenvolvimento em três estágios: a Lei ou a história dos Judeus como uma figura profética do surgimento de Cristo; a encarnação como preenchimento desta figura e ao mesmo tempo como uma nova promessa do fim do mundo e do Juízo Final; e por último, a ocorrência futura destes acontecimentos como o preenchimento derradeiro” Ibidem, p. 36. 143

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Deucalião e Pirra, ambas possuidoras de temáticas exemplificadas por Auerbach 144. Desta forma, portanto, não apenas o Antigo Testamento prefigurava o Novo, mas a mitologia antiga, segundo nossa hipótese, também prefigurava o Cristianismo, para os cristãos.

Nesse processo de apropriação, não é de causar estranhamento a ausência de preocupação com a fidedignidade histórica na representação das cenas – como, aliás, era de costume na iconografia medieval. Esse é o caso, por exemplo, das figuras mitológicas femininas representadas como legítimas damas do século XV.

Do ponto de vista plástico, destacamos ainda as distintas maneiras dos artistas “pensarem” essas imagens. Por momentos, elas são trabalhadas como um folhado, nos termos de Schimitt, que exemplificamos na figura de Deus na imagem do fólio 1: ele parece flutuar acima do espaço pictórico, como se pudesse sair da imagem, sendo essa uma herança medieval. Em outros momentos, há a tendência inversa, a de se aprofundar no espaço da imagem, com os novos estudos da perspectiva. Isso fica claro nas representações da perspectiva aérea, com as paisagens azuladas ao fundo.

Quanto às imagens em grisaille, havíamos questionado se seu conteúdo temático se diferenciava do encontrado nas imagens em policromia. Por ocuparem menos espaço, por serem usados menos planos, menos elementos – além de uma paleta de cores reduzida, pensamos se isso indicaria menor importância que as outras. Notamos, comparando imagens que usavam a mesma temática nas duas técnicas diferentes145, que em vários aspectos quantitativos e qualitativos as imagens em grisaille tinham menor complexidade. Porém, apesar disso, conforme vimos nas análises de nosso corpus, mesmo sendo mais simples, sua temática não era menos essencial dentro do conjunto de moralizações cristãs, isto é, as diferenças formais não implicavam menor importância conceitual. Ademais, percebemos que essa discussão sobre escala de valores não interfere no objetivo final de nossa análise,

144

Ibidem, p. 28; 34. Algumas temáticas se repetem nas duas técnicas referidas ao longo do manuscrito, tais como as representações de nascimentos, mortes e metamorfoses de personagens mitológicas. Mas uma repetição temática é bem específica nos fólios 13 r policromado e 14 v, em grisalha, ambas imagens têm como tema principal Fébus e Faeton e receberam o mesmo título pela BNF. 145

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posto que todas as imagems, em grisaille ou não, tinham o mesmo tipo de funcionamento, com a "apropriação" cristã de temas pagãos.

Podemos concluir, assim, que todas as doze imagens estudadas auxiliariam na tarefa de moralizar e nutrir o imaginário dos leitores do manuscrito, integrantes da elite intelectual. Ressaltamos que esses intelectuais eram cristãos, embora não necessariamente todos eclesiásticos: então, não temos aqui propriamente um instrumento de conversão religiosa, mas de construção contínua de um discurso religioso, cristão.

Vemos, portanto, um exemplo tardio daquilo que o cristianismo já vinha fazendo desde suas origens, ao ampliar seus campos filosóficos e culturais de forma a incorporar as culturas pagãs, anexando para si, os valores dessas tradições mais antigas. E as imagens foram um elemento importante nesse processo, conforme mostramos, sobretudo considerando a importância que elas tiveram na cultura clássica.

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ANEXO - Comunicações que este trabalho gerou

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“Juno no Inferno: mitologia clássica e cristianismo em uma miniatura gótica do Ovídio Moralizado”, apresentada no “VI Encontro Regional da ANPUHES, Territórios e fronteiras, limites e deslocamentos”, UFES, 2006.

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“Permanências clássicas na Idade Média em um manuscrito de Ovídio Moralizado”, no “V Congresso do CEIB – Centro de Estudos da Imaginária Brasileira”, realizado de 24 a 27 de outubro de 2007, na UFES, tendo, sido selecionado para publicação na revista Imagem, estando no prelo.

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“Miniaturas medievais das Metamorfoses de Ovídio e a reapropriação cristã da mitologia pagã”, no “I Congresso Internacional UFES/ Université de ParisEst (Marne-la-Vallée” em conjunto com o “I Simpósio de Históra da UFES – Impérios, religiosidades e etnias” – realizados de 9 a 22 de novembro de 2007, na UFES, tendo sido publicada em cd-rom.

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