Mitologia e Simbolismo Índios (Marcel Mauss 1903) - Tradução de Márcio da Cunha Vilar

May 31, 2017 | Autor: Márcio Vilar | Categoria: Symbolic Anthropology (Anthropology), Etnologia Indígena
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[Mitologia e Simbolismo Índios]* Marcel Mauss (1903)

O interesse nestas publicações dificilmente poderia ser exagerado. Prossegue, neste momento, na América e na Austrália, toda uma série de trabalhos etnográficos cujos resultados devem ser cuidadosamente registrados, visto ser um bom número dentre eles de um valor sociológico de primeira ordem, a ponto de, em breve, qualquer ensaio feito sem referência a eles permanecer com alcance particularmente limitado. Das memórias que publicou o Museu Americano de História Natural, logo após à expedição organizada por ele, às custas de M. Jesup, retemos aqui apenas a série que tratou da mitologia 1. Outras, que nós deveríamos ter assinalado em sua ocasião, se referem à organização social 2; outras trataram da estética das sociedades ribeirinhas do Pacífico Norte3. No entanto, a razão que nos guiou à tal escolha, em meio a uma massa de trabalhos, é que nós acreditamos que o domínio sociológico onde a atividade dos etnógrafos americanos se exerceu com mais êxito é, ainda, o da mitologia. Sua contribuição é das mais importantes. Os dois trabalhos de Boas são consagrados a estudos mitológicos. Um consiste num estudo sistemático da mitologia da tribo dos Bella Coola (Columbia Britânica); o outro na edição e tradução dos textos mitológicos recolhidos da boca dos Kwakiutls, tribo vizinha dos Bella Coola, e da qual Boas já descreveu a organização social, as sociedades religiosas e seus ritos4.

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Publicado originalmente na revista Année sociologique (n. 6, págs. 247 à 253, 1903), a presente tradução se baseiou em sua reprodução em Oeuvres. Vol. 3 - Cohésion sociale et division de la sociologie (págs. 62 a 68. Collection: Le sens commun. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969). Uma versão online da mesma foi disponibilizada pelo Prof. Jean-Marie Tremblay, da Universidade do Québec, no seguinte endereço: http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/oeuvres_3/oeuvres_3_02b/mythologie_symbolisme.html. Foi também utilizado como texto de apoio uma versão espanhola feita por Juan Antonio Matesanz, em Mauss, M. Sociedad y Ciencias Sociales. Obras III. (Barcelona: Barral Ed. SA, 1972). [Nota do tradutor] 1 Memoirs of the American Museum of Natural History. - Anthropology. Jesup North Pacific Expedition. Vol. II, Part. 11; F. Boas, The Mythology of the Bella Coola Indians. Nov. 1898, pl. VII-XII, in-4°. - Vol. V, Part. 1: F. Boas e G. Hunt, Kwakiutl Texts. 1902. - Vol. III. Part. I: Carl Lumholtz. The Symbolism of the Huichol Indians. 1900. 2 J. Teit, The Thompson Indians of British Columbia (ib. ib. 1906, p. 136-392). 3 Tais são as memórias de M. Boas sobre as pinturas da face (1989) e as de M. B. Laufer, The Decorative Art of the Amur Tribes (na qual trata de sociedades norte-asiáticas), ib. ib. 1901, vol. XII, I, pp. 1-79. 4 Ver Année sociologique n. 3, p. 336.

Comecemos por este último trabalho onde se dá um espaço mínimo a qualquer tipo de teoria. Os textos todos são tradições de aldeias e sociedades. Eles relatam questões de origem, de ascendência, de revelação dos ritos, de conquistas, de poderes e de máscaras, de direitos de representar tal ou qual papel durante a “dança de inverno” - esse tecido estranhamente complicado de cerimônias divididas ao excesso entre as confrarias e no interior dessas confrarias. Toda essa mitologia é, por assim dizer, tão somente um comentário infinito da organização religiosa e social desta importante tribo. O caráter etiológico dessa mitologia é mesmo demasiado restrito. O essencial são as aventuras maravilhosas de heróis, aventuras das quais fazem parte, à simples título de episódios, temas relativos a criações (sol, etc.), dilúvios. Nós dissemos mitos de heróis, porque, propriamente falando, esses ancestrais, ainda que dotados de poderes sobrenaturais (este é mesmo um de seus títulos), não são deuses, e mesmo porque a vida da maior parte deles está positivamente referida a uma época recente (a partir da parte III, os mitos narram tão somente acontecimentos passados após a idade mítica). A mitologia dos Bella Coola é, em comparação àquela dos Kwakiutls, um sistema mais elaborado e mais completo. Em primeiro lugar, ela compreende um panteão propriamente dito, uma “casa de ou dos mitos”, cujo chefe é o sol, e estes deuses em número quase inderteminado, em funções bastante definidas, são todos objeto de cerimônias, ou mesmo são considerados seus agentes; tal como a cerimônia do Kusiut que faz a lua durante um eclipse. Os traços principais dessa mitologia são de uma relativa banalidade, sobretudo se a comparamos às outras mitologias da costa do Pacífico Norte. As lendas de nascimento miraculoso do filho do sol, mitos diluvianos (com canoa, montanha, etc.) não têm nada de extraordinário. Em segundo lugar, esse sistema mitológico está diretamente ligado às cerimônias das confrarias que, tanto entre os Bella Coola como entre os Kwakiutls, absorvem o culto público. Danças de inverno e sociedades canibais recebem suas ilustrações míticas, e os mitos se encontram representados nas máscaras das quais já possuímos descrições. Mas eis aqui um fato ainda mais notável. A crer em Boas, um bom número dessas tradições está ligado à certos ritos que são propriedades de certos clãs (de descendência simultaneamente uterina e masculina, como entre os Kwakiutls). As unidades sociais coincidiriam com as unidades mitológicas. Mesmo essas últimas seriam, por um curioso retorno, as causas de uma organização toda especial dos Bella Coola. Para assegurar a transmissão exclusiva desses ritos, desses mitos, desses poderes, nas linhagens de parentes, os clãs locais teriam se tornado estritamente endogâmicos, salvo os chefes, que, acrescentando, às suas mulheres, familiares de mulheres de outros clãs, poderiam acrescentar, à sua fortuna, as máscaras e as riquezas

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mágicas de outras famílias e de outros clãs. O fato seria interessante se fosse seguro, porém, as informações de Boas têm todo o caráter de uma hipótese. O trabalho de Lumholtz sobre o simbolismo dos índios Huichols nos transporta para todo um outro mundo de fatos e nos traz, por um lado, ao tema da memória que nós apresentamos mais acima. Os Huichols são índios Pueblos do centro mexicano. Sua civilização e sua mitologia estão a meio caminho entre a civilização dos Zuñis e aquela dos antigos Astecas. Seu simbolismo muito particular e sua mitologia são (o que rapidamente se tornou unânime na ciência) um assunto dos mais interessantes. Seu estudo esclarece de um jeito inteiramente novo tanto a mitologia em geral, como a mitologia comparada das religiões do sul da América do Norte. Por outro lado, as informações que nos transmite Lumholtz sobre esses diferentes pontos são de uma autoridade e de uma exaustividade das quais, em nossa opinião, nada se aproxima, nem dentre os trabalhos concernentes à antiguidade clássica, nem mesmo dentre aqueles que os etnógrafos produziram nos últimos tempos. O sistema de crenças e de figurações é estudado completamente, segundo objetos fabricados e identificados no próprio lugar, descritos e explicados pelos próprios crentes. De um certo ponto de vista, quase diríamos que o melhor documento de iconografia religiosa, atualmente conhecido, é este trabalho sobre os Huichols. Nós trataremos aqui de observar tão somente dois pontos, que são, aliás, aqueles a respeito dos quais Lumholtz consagrou sua conclusão. O primeiro é a relação da prece com os símbolos míticos. O exemplo dos Huichols é tanto mais importante quanto ele exprime, de uma maneira típica, uma multidão de fatos norte-americanos5 e, talvez, ilustre um número incalculável de fatos emprestados de todas as civilizações. A representação figurada, escrita, por assim dizer, dos mitos tem, entre os Huichols e entre muitos outros, um valor precatório; ela mesma é uma prece. E, inversamente, um dos modos mais importantes de travar relações precatórias com as potências religiosas, um dos meios de lhes fazer prece, é representá-las, figurá-las. Assim, nós chegamos ao fato importante de que o mito se materializa em geral na ocasião da prece, e que, inversamente, um dos meios mais freqüentes de rezar, é o de materializar, por meio de uma figuração relativamente permanente, o ente religioso ao qual alguém se endereça. Por este lado, o rito oral, o mito e a representação do mito coincidem realmente. Há mesmo na imaginação religiosa uma espécie de linguagem interior, e isso faz com que a mera objetivação das imagens possa ter uma virtude eficaz. Erguer uma estátua, é fazer um ex-voto, uma  uma 5

Cf. p. 89, a opinião de Cushing faz uma aproximação entre as flechas-preces dos Huichols e as flechas cerimoniais de outros Pueblos.

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prece, como dizem as escrituras gregas; é um contato, em parte oral, estabelecido com o deus. O fato dos Huichols é singularmente demonstrativo; que se julgue. Os templos dos Huichols estão literalmente abarrotados de objetos simbólicos que são preces (apêndice onde todos os fatos são cuidadosamente reunidos segundo o objeto das preces simbolizadas). Alguns desses objetos são aqueles depositados e fabricados pelos sacerdotes (Lumholtz os chama indevidamente de xamãs) em nome da tribo, durante festas, e simbolizam as preces públicas; os outros simbolizam preces individuais. Mas, uns e outros são do mesmo gênero, da mesma forma, e as decorações, que são os símbolos dos deuses, seguem os mesmos princípios. As diferenças de dimensão, de cor, de disposição se explicam todas segundo princípios rituais fixos ou por acidentes técnicos naturais. Alguns, aqueles que competem antes ao culto público, são os discos posicionados sob os ídolos, e os próprios ídolos dos deuses. Os outros são escudos para rezar, flechas para rezar, garrafas votivas, olhos de deuses. Aliás, todos os objetos do culto têm, entre os Pueblos, um valor representativo e precatório ao mesmo tempo. É dessa maneira que as plumas do xamã, os bolos de oferenda, as pinturas rituais da face por ocasião das festas são meios de consagração, preces, e também, de alguma forma, a transcrição de diversos mitos. O segundo ponto que nós queremos estudar, é a relação que existe entre o mito e sua figuração. Devido a esta necessidade na qual se encontra o mito de se exprimir em ideogramas rituais, cria-se um certo número de símbolos que são verdadeiras escritas convencionais designando os deuses. Nós alcançamos, portanto, aqui, um momento da evolução mitológica onde, contrariamente ao que se encontra em outras sociedades, o signo é relativamente independente da coisa significada; ele é apenas um meio de evocação; ele não é mais o deus, a força religiosa. Quando, no decorrer de um de seus ritos totêmicos, o Arunta representa a espécie totêmica - a ema, por exemplo6, por via de desenhos feitos com o sangue de pessoas do totem da ema -, é a espécie inteira que é, dessa forma, imediatamente tornada presente. Mas, uma mitologia mais refinada, um ritual mais complexo, necessitou entre os Huichols do estabelecimento de todo um sistema de signos. Estes signos, desde então, são espécies de escrita em vias de formação; eles simbolizam e não mais reproduzem. Eles se tornaram, em certa medida, convencionais, artificiais; eles têm uma vida por eles mesmos. Alguns são destinados a anotar idéias abstratas, que são os deuses (por ex., Avó Crescente). Outros, idéias concretas. Contudo, eles têm apenas relações indiretas com o mito: qualquer que seja, a exatidão com a qual eles terminam por materializá-lo.

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Cf. Spencer e Gillen, The Native Tribes of Central Australia, da p. 170 em diante.

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O método que seguiu o espírito coletivo na criação desses sistemas pode ser facilmente seguido, e ele ilustra bastante o que nós havíamos dito mais acima. Um pequeno número de objetos, mas de importância considerável do ponto de vista religioso, fornece os quase-ideogramas que servem de chaves para os demais. Desse jeito, a noção da serpente desempenha um papel considerável na mitologia; a serpente torna-se, então, o princípio de uma multidão de representações; os deuses são, em sua maior parte, serpentes; todas as deusas são; e assim, do mesmo modo, o curso da água, do vento, do relâmpago, dos rios, da chuva, dos raios do sol, das línguas do fogo, de todos os fenômenos naturais. Mas as coisas humanas são também serpentes; é o caso da flecha, do arco, do cabelo, do cinto, da espiga de milho, das trilhas. Há, vê-se, um processo de identificação forçada; uma noção é dada, revestida de uma força considerável, atrai os outros para si, e, assim, lhes serve de símbolo. Mas, todavia, nós permanecemos ainda em um estado primitivo do simbolismo. Em primeiro lugar, a significação de tal ou qual traço, de tal ou qual cor, não é única; ela varia segundo os outros signos associados. Desse modo, linhas longitudinais significam um leito, um risco, a chuva, plumas de águia, a águia; as mesmas linhas, porém mais curtas, representam um pé de milho, etc; dispostas como raios dentro de um círculo, são outras plantas; escapando de uma circunferência, são raios de sol. Os valores dos signos são, portanto, múltiplos. Da mesma forma, isto ocorre nos simbolismos mais primitivos conhecidos como, por exemplo, entre os Aruntas. Em segundo lugar, e isto é um corolário do precedente, a relação das diversas representações é iminentemente sintética. O que é representado é o todo; o sentido das partes do desenho simbólico não é fixado senão por referência ao conjunto do acontecimento mítico representado. Pois um deus está sempre acompanhado de seus animais associados, de seus poderes, de seu olho, de suas flechas, das coisas que ele produz e que a figuração tem por objeto convidá-lo a reproduzir; seu mito é inteiramente reconstituído sobre os grandes discos. Pode até acontecer, em particular, no que concerne à barca do dilúvio, que um número considerável de coisas e personagens míticos se encontrem representados (Essa barca serve como meio último para provocar a chuva). Poderia-se muito bem deduzir, por meio dos signos, quais representações os Huichols fazem da natureza dos deuses e das relações que reconectam suas diversas noções míticas. Encontram-se aí as mesmas características: predominância de classificações analógicas, existência de todos sintéticos e de origem sentimental. Mas, para concluir esse ponto, nós devemos esperar pelas informações que Lumholtz deverá nos fazer chegar sobre a mitologia,

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as festas e os ritos dos Huichols. Este trabalho não é tão utilizável quanto parece, precisamente porque ele é totalmente parcial. Nós lamentamos particularmente não estarmos melhor informados sobre a organização social; as relações desta com o culto, do culto com os mitos, dos mitos com seus símbolos. Sem nenhuma dúvida, os fatos que nos serão fornecidos ulteriormente serão capitais para a ciência. No ínterim, a teoria completa dessa mitologia permanece ainda suspensa. Mas é certo, desde já, que ainda não podemos aceitar as expressões de Lumholtz, segundo as quais “todas as coisas sagradas são símbolos para o homem primitivo”, nem admitir que a religião seja, para os Huichols, uma questão individual.

Tradução livre de Márcio Vilar Revisão técnica de Emerson Giumbelli Agosto de 2006

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