Mitos e Vodu na Política Fiscal (2005)

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Mitos e Vodu na Política Fiscal Franklin Serrano* Luiz Eduardo Melin**

Diz a sabedoria popular que as más notícias raramente vêm sozinhas; voam em bando, como aves de agouro. Não bastassem as dificuldades do quadro político – e talvez por causa delas – vem ganhando corpo uma perigosa iniciativa que pode dar cabo de qualquer esperança de recuperação futura da capacidade de investir do Estado no Brasil. Perigosa e insidiosa, na medida em que é apresentada al revés como se, pelo contrário, visasse à recuperação do investimento público e à retomada do crescimento. O chavão do "déficit nominal zero" é repetido obsessivamente, como se o próprio encadeamento dessas palavras pudesse produzir a mítica contração fiscal "expansionista", ou seja, um arrocho que gera crescimento, caso determinadas condições rituais estejam presentes. A lógica envolvida é algo assim como "ganhe peso através do jejum". Quais são os elementos dessa teoria econômica vodu? A idéia – proposta pelo deputado Delfim Netto (com algumas variações da FIESP) e acolhida por setores do governo – seria de reduzir permanentemente, como porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto), os gastos correntes do governo em consumo e custeio. Isto levaria a que, nas condições atuais de elevado superávit primário, a razão entre a Dívida Líquida do setor público e o PIB diminuísse com ainda mais intensidade. Os autores dessa proposta acreditam que: a) a queda da razão Dívida/PIB levaria o "mercado" a reduzir, rápida e drasticamente, as taxas de juros; b) que esta grande queda dos juros teria vários efeitos de expansão da capacidade produtiva da economia. De um lado, presumem (sem, a rigor, nenhuma base empírica) que, por si só, a queda dos juros ampliaria direta e significativamente o investimento produtivo privado. De outro, crêem que a redução dos gastos do governo com juros permitiria a ampliação necessária dos investimentos públicos. Supõem, também, que a redução dos juros internos causaria alguma desvalorização do Real, estimulando a expansão do setor exportador. O debate sobre estas propostas tem se concentrado principalmente em como tornar operacional este tipo de plano. O deputado Delfim Netto propõe que o governo trabalhe *

Professor do Instituto de Economia da UFRJ Sócio Sênior da CSDA Consultoria e Ex-Diretor do BNDES

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com metas rígidas de déficit nominal zero, enquanto outros, mais radicais, preferem tetos para os gastos e a obtenção de superávits operacionais positivos. Nesta discussão, porém, está sendo omitido o essencial: a premissa. Suponhamos que, técnica e politicamente, fosse possível obter uma redução permanente da proporção dos gastos correntes do governo no PIB. Será que, com essas medidas, a taxa de juros realmente "desceria pelo elevador" como tem dito o deputado Delfim a todos que o ouvem – inclusive ao mais importante e aparentemente mais crédulo ocupante do Palácio do Planalto? Tudo depende crucialmente da hipótese de que uma queda na razão Dívida/PIB reduz a taxa de juros. Só que não há nenhum bom motivo, nem teórico nem empírico, para isto: a relação causal correta é exatamente a oposta! São os aumentos (reduções) da taxa de juros básica decidida pelo Bacen que determinam os aumentos (reduções) nas demais taxas de juros que, por sua vez, levam às drásticas mudanças na razão Dívida/PIB. No caso do Brasil estas relações empíricas são tão fortes e tão óbvias que os proponentes dessas medidas são incapazes de defendê-las com dados sobre o nosso país. É por isto que o deputado Delfim aponta como evidência a seu favor o caso da Irlanda – e o estudo da FIESP1 adiciona os EUA e a Finlândia como exemplos de contrações fiscais que supostamente teriam reduzido os juros e sido altamente expansionistas. Mas será que no resto do mundo existe esta relação positiva entre o tamanho da razão Dívida/PIB e a taxa de juros? Uma fonte insuspeita para nossa resposta está no apêndice III do próprio estudo da FIESP que defende a tese contracionista. Ali, os técnicos da FIESP mostram dois gráficos: um com as razões Dívida/PIB de uma seleção de países ricos e "emergentes"; e outro com os mesmos países ordenados por tamanho dos gastos com juros da dívida pública sobre o PIB. O Brasil não é, nem de longe, um dos países que tem a maior dívida – mas é com folga o país que tem os maiores gastos com juros. Esses gráficos deixam claro que: a) não há nenhuma relação entre o tamanho da dívida e taxas de juros; e b) o problema do Brasil são os juros altos e não o tamanho da razão

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Cf."Gastos Públicos: Cortar Para Crescer", disponível em www.fiesp.org.br

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Dívida/PIB. Se a Indonésia tem uma razão Dívida/PIB de mais de 70% e tem juros, crescimento e outros indicadores bem melhores do que o Brasil, por que será que é essencial para o Brasil reduzir a razão Dívida/PIB para 30%, como defende Delfim Netto? Quanto à Finlândia a explicação é simples: os juros reais começam a cair de 11,2% em 1992 para 7,4% quando o governo abandona a política insustentável de manter o câmbio nominal fixo do marka com o ECU.2 A verdadeira lição da Finlândia, para quem ainda não sabe, é que a sobrevalorização cambial é insustentável e tem um custo fiscal elevado. Na Irlanda, são as reduções na taxa de juros realizadas, ao longo de anos, para permitir o ingresso do país na moeda única européia que faz cair drasticamente a razão Dívida/PIB. Além disso, as barreiras protecionistas européias atraem grandes investimentos americanos no setor de informática que buscam fazer da Irlanda sua plataforma de exportação para os grandes mercados europeus. O governo irlandês, que perseguia sem sucesso esse resultado desde os anos 70, usou os fundos estruturais e os fundos de coesão da União Européia para criar a infra-estrutura adequada a essa indústria.3 O pequeno detalhe esquecido pelos que se valem do exemplo irlandês é que o Brasil, por enquanto, não faz parte da União Européia. Mas o caso mais famoso é mesmo o dos EUA. Há anos que se vem difundindo pelo mundo o mito de que o ajuste fiscal promovido pelo governo Clinton teria sido um caso exemplar de contração fiscal "expansionista". No entanto, como mostra um trabalho recente4, a expansão americana "se dá através do forte, embora variável, efeito de reduções dos juros [de curto prazo] sobre o crescimento do investimento residencial e do consumo autônomo (especialmente de duráveis), que é financiado por crédito" e que compensa os efeitos da contração fiscal. Ou seja, o crescimento da economia americana nos anos 90 ocorre por causa de uma política monetária expansionista e a despeito do arrocho fiscal – não por causa dele. Isto sem mencionar que a taxa de juros de longo prazo acompanhou a trajetória de queda da taxa de juros de curto prazo desde o início de 1991. Como o presidente Clinton só foi 2

A cesta de moedas que virou o Euro. Cf. Medeiros, C. “A economia política da internacionalização sob a liderança dos EUA: Alemanha, Japão e China” in J. Fiori (org.) “O Poder Americano” p.164 nota 38. 4 Cf. Braga, J. & Serrano F., “O Mito da Contração Fiscal Expansionista nos EUA Durante o Governo Clinton”, Anais do Encontro Nacional da Soc. Bras. de Economia Política, Campinas, 24-27 de maio de 2005. 3

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eleito em novembro de 1992 é evidentemente impossível que a trajetória de queda da taxa de juros de longo prazo tenha qualquer coisa a ver com sua política fiscal de 1993. Fica claro então que o tamanho da dívida pública é basicamente um problema de taxa de juros – um problema de política monetária e não de política fiscal. Se a discussão econômica fosse séria, devíamos estar questionando a administração de nosso sistema de metas inflacionárias, nossa política cambial e de administração das contas externas. Diante do caráter pífio dos argumentos econômicos apresentados, por que tanta algazarra em torno dessa proposta, inclusive da parte de economistas que deviam saber da falta de embasamento e seriedade técnica que a caracterizam? É preciso deixar claro os dois reais objetivos da manobra em questão. Em primeiro lugar, trata-se de garantir a continuidade da destinação de recursos fiscais para o pagamento de juros ao sistema financeiro, num montante compatível com os níveis atuais (em torno de 7% do PIB) sem necessidade de aumentar a razão Dívida/PIB. Essa garantia não seria dada apenas através de políticas governamentais, como vem acontecendo com o famigerado superávit primário: viria de preceitos jurídicos a serem enxertados na lei e mesmo na Constituição. A "vantagem" é que esse objetivo seria alcançado sem o risco, sempre presente na política atual, de um aumento na relação Dívida/PIB – cuja execração tem sido tão útil aos interesses rentistas de desmontagem do Estado, mas que por isso mesmo pode vir a ser usada, de forma contundente, contra a própria política de juros altos. O segundo objetivo por trás desta proposta, menos aparente mas igualmente deletério, é o de promover uma concentração ainda maior de poder político na Fazenda (especificamente na Secretaria do Tesouro) que, diante do aumento das restrições fiscais, ganha ainda mais discricionariedade para decidir quais gastos públicos de fato ocorrem – dado o caráter autorizativo de nosso Orçamento, que faculta o contingenciamento, a não execução etc.5 – passando por cima do Congresso, dos governadores, dos prefeitos. Noutras palavras, a proposta do déficit nominal zero pretende instituir uma espécie de seguro para garantir que o sistema financeiro continuará sempre a receber a parte do leão 5

A nossa, aliás, é a única Constituição de que temos notícia que dá natureza jurídica excepcional ao serviço da dívida pública, proibindo os parlamentares de apresentarem emendas ao Orçamento que indiquem reduzam a parcela de recursos destinada ao pagamento dos juros (CF Art. 166, §3, II, alínea b).

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(sem trocadilho) do orçamento público, caso as circunstâncias políticas, ou um novo governo, por exemplo, peçam a mudança da consagrada política econômica do rentismo paulista – um seguro contra a imprevisibilidade da democracia. Como escreveu o ex-Ministro Bresser-Pereira – distinguido economista, cujo currículo é insuspeito de máculas esquerdistas: "Para os rentistas, é atrativa a política de déficit público nominal zero sem outra condicionante a não ser a da redução da despesa pública corrente, porque torna mais seguros seus créditos no Estado. Por isso a proposta está sendo discutida."

Como seria operada essa contração permanente das despesas correntes do setor público? Segundo as variantes da proposta veiculadas até o momento, a lei estabeleceria metas pétreas que, a contragosto, o secretário do Tesouro seria forçado a fazer cumprir mediante: a) novos cortes de programas do governo; b) congelamento por dois anos de gastos de custeio; e, ponto crucial, c) pela desvinculação de receitas orçamentárias (DRU) em patamares inauditos – dos atuais 20% para 40% (admitindo-se inclusive a revisão das vinculações de receitas para educação e saúde previstas na Emenda Constitucional nº 29). Não há erro de redação: é isso mesmo que os Srs. leram, por incrível que seja. Não fosse a gravidade do momento, seria cômico assistir prepostos dos bancos tentando convencer deputados que precisam reeleger-se em 2006 de que a solução para o crescimento do Brasil está em dar ao Secretário do Tesouro a faculdade de destinar menos verbas para saúde e educação do que hoje é obrigado a fazer. É transparente que essa proposta – neste momento e na forma em que está colocada – pouco mais é do que uma tentativa de aproveitar-se das tribulações da conjuntura política para cometer uma violência contra a ordem econômica e social do país. Mas apesar do cinismo da proposta, a ameaça é real e presente, pois o governo vem dando sinais claros de estar disposto a pactuar com quaisquer setores ou partidos que o ajudem a preservar o status quo na economia como modo de compensar sua fraqueza política. E, lamentavelmente, quase todos dos poucos economistas que se manifestam contra essa manobra rentista continuam acatando, mesmo que parcialmente, a abstrusa tese ortodoxa de que a relação Dívida Interna/PIB é relevante na determinação da taxa de juros real da economia.

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Se ante essa débil resistência forjar-se um "consenso" de fim de festa em prol da proposta do déficit nominal zero, as perspectivas serão as piores. Pois somente os muito ingênuos ou os desavisados de plantão desconheceriam que, desvinculadas as receitas orçamentárias nos níveis propostos para que se possam cumprir as sugeridas metas constitucionais de gastos públicos, não haverá força nos céus e na terra que possam levar a que a fatia de recursos públicos paga ao setor financeiro pelo serviço da dívida diminua, em termos relativos ou absolutos. Hoje, os defensores da preponderância dada ao capital financeiro no Brasil sentem-se a cada dia mais confortáveis em pôr sobre a mesa propostas como a do déficit nominal zero, adornadas com "choques de gestão" e "agendas mínimas". Chegam mesmo à desfaçatez de assumir abertamente sua intenção de neutralizar os efeitos indesejados da democracia e da ordem institucional do país, advogando uma "blindagem da política econômica". No mesmo movimento, rotulam previamente (pois dão por desnecessário discutir) qualquer real alternativa ao estagnacionismo que nos aprisiona há duas décadas como sendo "aventureira", "irresponsável" ou "mágica". Neste sentido, estão corretos os economistas que recentemente afirmaram que "nosso principal inimigo é aquele que afirma a idéia de que não existem alternativas."6 Os que desejam ver o término desse lamentável ciclo do rentismo na história recente de nosso país e, muito particularmente, aqueles que estão em posição de agir concretamente neste sentido, devem estar preparados para expor o blefe do suposto consenso acerca do "sólido embasamento técnico" do receituário de recessão permanente que nos têm impingido e para a conseqüente avalanche de acusações de heresia por parte dos portavozes do Partido do Juro Alto. Sobretudo, não devem deixar-se enganar pelas meias-medidas e manobras Lampedusianas que doravante tenderão a multiplicar-se, no sentido de proporem-se mudanças adjetivas ou meramente nominais para garantir que tudo permaneça como está. 6

Manifesto dos Economistas por uma Nova Política Econômica in "Primeira Leitura", Edição 1513, 25 de julho de 2005. O argumento é velho conhecido dos brasileiros, pelo menos desde 1979 quando o presidente Figueiredo, para justificar a atuação de Delfim Netto em substituição a Mario H. Simonsen declarou publicamente que em economia "só há uma teoria". Tem sido de uso corrente na defesa de posições neoliberais, desde Thatcher ("There is no alternative") até Juppé ("Où sont les alternatives?", pouco antes de ser deposto em fins de 1995), escusada a menção das muitas variantes e repetições do período Malan, geralmente contendo referências a "economistas de boa formação", no Brasil.

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Não há nenhuma razão para esperar-se do atual governo qualquer ação neste sentido. O antigo PT que, em junho de 2001, afirmava que "os mercados financeiros não podem regular a sociedade, com o quê se impõe a desarticulação da lógica financeira e especulativa que caracteriza o atual modelo econômico. […] As dívidas financeiras não são as únicas dívidas do Estado, sendo a dívida social a parte essencial desta equação, que precisa ser resgatada por meio de 7 uma política fiscal de caráter redistributivo e indutora do crescimento"

foi arquivado em junho de 2002 com a "Carta ao Povo Brasileiro", à qual se tem mantido fiel, em discurso e prática, desde então. A tarefa de recuperar um projeto de país pela via do desenvolvimento com inclusão social caberá, agora, a futuras lideranças que saibam responder às expectativas de crescimento e prosperidade, tantas vezes frustradas, da sociedade brasileira, sem deixar-se intimidar pelas pressões e invectivas do Partido do Juro Alto que, para salvaguardar suas vantagens e privilégios, por tanto tempo impediram o progresso do Brasil.

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Cf. "Um Outro Brasil é Possível", Instituto de Cidadania, 18-06-2001. O Instituto era então presidido por Luís Inácio Lula da Silva.

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