Moçambique para a mãe se lembrar como foi

May 26, 2017 | Autor: Manuela Gonzaga | Categoria: Africa, Colonialism, Historia, Moçambique
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MOÇAMBIQUE Para a Mãe Se Lembrar Como Foi

MANUELA GONZAGA

MOÇAMBIQUE Para a Mãe Se Lembrar Como Foi

À mãe, que nos deu África

INTRODUÇÃO

Quando, há uns anos, as névoas se adensaram precipitando a quase totalidade da memória da minha mãe nas praias do esquecimento, percebi que a única coisa que lhe fazia brilhar os olhos era falar-lhe de Moçambique. Dos tempos e dos modos em que ali chegámos e da vida que ali tivemos. Não foi uma vida fácil, mas acabou por se revelar exultante e cheia de histórias. Foi a elas que comecei a recorrer para avivar sorrisos e recordações, percebendo que esta era a ponte, a única ponte, para lhe despertar os sentidos da vida: quando fomos, como fomos e o que nos foi acontecendo entretanto. A mãe lembra-se? Pessoas; cidades, vilas, lugares e lugarejos perdidos no mato; paisagens, casas, rios e praias. A mãe lembra-se? Durante tanto tempo contadas por mim apenas a mim própria, estas memórias despertavam as dela por breves lampejos, num processo que me fez comprovar a poderosa força dos nomes: — A mãe lembra-se do Império? — Mas esse foi o navio que nos levou para África!

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Então, quando ela fez noventa e quatro anos, prometi-lhe que iria fixar estas narrativas que acordavam os seus sentidos espantando-lhe as névoas ou tornando-as mais suportáveis. É por isso que este livro começa por uma viagem. Como fomos para Moçambique e, mais ainda, como é que uma mulher, uma senhora, uma mãe de quatro filhos, conseguiu cumprir esse desígnio? É que, ao arrepio de todas as tradições, foi ela e não o pai quem nos abriu os caminhos do Ultramar. O pai só foi ter connosco um ano depois. O pai ficou no cais, em Lisboa, a dizer adeus. A seguir, voltou para o Porto, de onde escrevia incansavelmente, na expectativa de se ir reunir à mulher e aos filhos na minúscula cidade mais ao norte da então província ultramarina de Moçambique. Uma terra que já nem existe no mapa pelo nome que a conhecemos. Vila Cabral. Lichinga. Quando lhe levei as primeiras páginas da nossa história, que começa um pouco antes do momento em que o paquete Império levantou âncora do Cais da Rocha do Conde de Óbidos, a mãe ficou fascinada. Tinha agora, à mão, o relato da maior aventura da sua vida, que lia, que lê, de todas as vezes como se fosse a primeira. Então perguntou-me, e pergunta-me todas as vezes como se fosse a primeira, o que ia fazer destas histórias escritas para a confortar da sua ausência de recordações. Respondi-lhe que ia deixá-las com ela e que guardaria uma cópia para dar aos meus filhos, a quem nunca falara de África, da mesma forma que nunca falei de África a outras pessoas, por absoluta falta de contexto. Quem se interessaria, ao meu redor, pelos tempos do passado de um país novo, de onde tínhamos vindo embora empurrados pelos ventos da História? Ninguém. — Tens de publicar, e despacha-te. Quero ver o livro pronto antes de morrer — pediu-me a minha mãe, e continua a pedir-me com uma convicção tão profunda, que acabei por mostrar ao meu amigo e editor, Eduardo Boavida, as primeiras cinquenta páginas destas memórias. Estava quase certa de que me aconselharia a conservá-las longe dos olhares públicos. Era pela voz de uma menina de doze anos que o livro tinha começado a ser escrito. Afinal... quem se iria interessar por isto? Só que o veredicto do meu editor foi um decidido imprimatur, assim a história continuasse a ser escrita com a verdade, o sentimento, as emoções que a animavam desde as primeiras páginas,

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acrescentou. Cheia de inseguranças, dei alguns extratos a ler aos meus filhos. Fiquei surpreendida pela forma como acolheram, e quiseram saber mais. E continuei. Mas, entretanto, tive de pedir ajuda. Encontrei-a sempre. É certo que muitas pessoas com quem previsivelmente julgava poder contar não me foram de nenhuma utilidade. Ou porque a sua própria memória se perdera, ou porque o relato biográfico pode interferir de forma perturbante com os conceitos de privacidade de cada um. Por outro lado, algumas das pessoas que poderiam colaborar já tinham morrido. Outras ainda, perdi-lhes completamente o rasto. Tanta viagem, tanto naufrágio, tanta mudança. Tanto recomeçar. Em todo o caso, as ajudas vieram, por vezes até de onde menos as esperava. O facto de escrever há muitos anos, como jornalista, e depois já como escritora, tem-me devolvido o contacto de amigas, amigos, conhecidos. Há muito que recebo postais, cartas, telefonemas, nos jornais e nas revistas onde fui trabalhando, e depois nas editoras onde comecei a publicar. Finalmente, as redes sociais e o correio eletrónico vieram completar, tanto quanto possível, o puzzle da vida de cada um de nós. Para quem viveu sempre num mesmo espaço geográfico, ou nas suas proximidades, pode parecer irrisório ou infantil alimentar ligações que persistem tendo a geografia do passado por suporte. Mas, quando do passado de cada um tudo o que sobra são memórias, a efémera partilha dos nomes em nome dos quais se agendam encontros torna-se um motivo de alegria. Mais do que saudosismos ou nostalgias, estamos perante fenómenos de resistência que dão sentido às fogueiras dos convívios sazonais em redor das quais se come e dança e bebe e se recordam todos os nomes, mesmo dos que já partiram. Uma vez por outra, convivi sob estes signos. E trouxe sempre respostas. A par disto, andei semanas pela Biblioteca Nacional, para mergulhar em antigos jornais da época onde até me encontrei comigo própria, nos tempos em que passei a fazer parte da grande família que

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é o jornalismo. Precisava sobretudo de confrontar as datas com o meu, o nosso, tão errático percurso. Precisava de entender porque é que os anos, os meses e os dias pesavam, nesses tempos, tanto tempo. Finalmente, confrontei o conhecimento que me norteou no passado com o conhecimento que fui adquirindo como quem quer, acima de tudo, entender. O que é que se tinha passado, e porquê? E porque é que tudo aconteceu como aconteceu? Esse trabalho começou agora a ficar concluído, pois à medida que ajudei a levantar as névoas que ocultam o passado aos olhos da minha mãe, pude afastar algumas névoas da minha ignorância. Mas, e acima de tudo, este relato é uma grande história de amor. A nossa, da mãe e minha, e a de todos, ou quase todos, os que por ali tiveram o privilégio de passar. Uma inolvidável história de amor por Moçambique de que não queremos abrir mão, porque ninguém dispensa uma luz que, de tão forte, ainda continua a cobrir-nos de bênçãos.

1 ÁFRICA NOSSA

Em meados de fevereiro de 1963, a minha mãe adoeceu. Um dia, ao chegar a casa, recebi a notícia, subi as escadas a correr, e ali estava ela, às quatro da tarde, em camisa de dormir, encostada a uma pilha de almofadas e rodeada de livros por todo o lado. A nossa inesquecível Maria de Amarante1, braço-direito da mãe nas lides do lar, tinha-lhe levado o lanche ao quarto. Por ela, ficamos a saber que o médico já a fora ver, e que tudo o que a nossa mãe precisava era de repouso. Portanto, e passado o choque da notícia que fomos recebendo à medida que chegávamos do liceu, eu e o Jó, ou da escola primária, o Paulo e a Bé2, acabámos por ficar tranquilos. A mãe estava com muito bom aspeto, sem dores, nem tosse, nem febre. A Maria, como sempre, limpava, arrumava, cozinhava, ia às compras e cuidava de tudo. O pai, que saía cedo, vinha almoçar a casa e voltava ao fim do dia, não parecia nada preocupado. E assim, durante os dois ou três meses que aquilo durou, a vida manteve-se nos eixos de uma inalterada rotina, embora, e pelo menos para mim, parecesse estranho que uma pessoa tão doente que nem podia sair da cama conseguisse passar o dia a ler, e a tomar apontamentos, como se estivesse a estudar. — Porque é que a mãe está a ler tantos livros ao mesmo tempo? — Para me distrair. É muito aborrecido estar doente e não poder sair de casa nem do quarto, aqui sempre deitada. Que doença era aquela, nem o médico que tinha ido vê-la a casa explicara. Não era grave, mas «tirava-lhe as forças». Por isso, não

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podia dar aulas, no Liceu Carolina Michaëlis, onde lecionava a disciplina de Música e Canto Coral, nem em casa, às suas e seus alunos de piano. Tão-pouco descia as escadas para vir tomar as refeições à sala. Quando chegávamos para almoçar, íamos dar-lhe um beijinho e perguntar se estava melhor. A meio da tarde, e depois do jantar, ficávamos sentados na cama dos pais, a contar-lhe como tinha decorrido o nosso dia, a falar sobre o dela e às vezes até a comentar notícias de jornal, porque lá a casa chegavam dois, logo de manhã: O Primeiro de Janeiro e o Diário de Notícias, evidentemente «visados pela censura», espécie de omnipotente e omnipresente chancela do sistema. Não havia um filme, uma peça de teatro, um espetáculo fosse de que natureza fosse, excetuando claro está as cerimónias religiosas, um livro, ou uma exposição, que não tivessem de ser previamente autorizados e sancionados com esse ferrete, ao qual, de resto, não prestávamos a menor atenção. O inverno desse ano de 1963 foi particularmente longo, roubando lugar à primavera, e de tal forma agreste que só as pessoas mais idosas recordavam frios, chuvas, trombas-d’água, ciclones, inundações, estradas cortadas por mantos de gelo e aluimentos de terras, navios naufragados à vista da barra dos portos e quedas de neve como as que estávamos a sofrer em Portugal e por toda a Europa. E foi por isso que durante algum tempo tivemos muito medo que a mãe tivesse apanhado pneumonia ou qualquer coisa ainda pior, porque era tão friorenta que costumava dizer, quando as primeiras andorinhas da primavera cruzam os céus, que seria feliz se pudesse fazer como elas: ir para África mal começasse o frio, só regressando à Europa quando este se fosse embora. Mas se ela tivesse pneumonia estaria a arder em febre, com dores e temperaturas elevadas, o que não era o caso. De modo que os dias foram passando, e a situação acabou por nos parecer normal. Falando por mim, houve alturas em que muito me apeteceu também ficar no quentinho da cama e da casa, em vez de sair antes das oito da manhã naquele inverno impossível e interminável, para ir às aulas. Andava eu então no segundo ano do liceu (atual sexto ano), a concluir o antigo primeiro ciclo, que funcionava numa secção do Carolina Michaëlis relativamente perto da nossa casa, a três paragens de

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elétrico de distância, linha Avenida da Boavista. O corpo principal do liceu, onde a nossa mãe dava aulas, ficava na Rua Infanta D. Maria, nos terrenos da antiga Quinta do Meio da Ramada Alta. O meu irmão Jorge andava no Liceu D. Manuel II, e os mais novos, o Paulo e a Bé, na escola primária ao pé de casa, num edifício novo e muito alegre que constituía o centro do muito jovem bairro da Vilarinha, onde morávamos numa pequena moradia de dois pisos, com jardim e quintal, que viemos estrear no ano de 1958.

Finalmente, nos primeiros dias de abril, sob um vento malévolo que virava os guarda-chuvas ao contrário e destelhava as casas menos robustas, a mãe foi a Lisboa «ver outros médicos». Voltou duas semanas mais tarde, definitivamente curada, trazendo com ela o sol e o calor de uma primavera que finalmente trocava de lugar com o inverno, já que até então o Porto fora continuamente fustigado por bátegas de água que entupiam as ruas, inundando muitas zonas da cidade. Podia, a partir de agora, descer à sala para tomar as suas refeições, retomar as aulas de piano, e até sair à rua para voltar a lecionar. O sol brilhava ao fim de meses intermináveis de nuvens densas num céu de breu, o calor anunciava os belos dias de verão e a iminência das férias, e uma viagem desenhava-se no meu horizonte. A secção liceal do Carolina Michaëlis estava a organizar uma ida a Paris, para comemorarmos a passagem do primeiro para o segundo ciclo. Será que...? A mãe não disse logo que não, nem disse logo que sim. Ia falar com o pai, e depois logo se saberia. A certa altura, porém, era mesmo preciso confirmar a presença na tal viagem de estudo, e voltei a perguntar. Estava abril a chegar ao fim e a resposta foi «não». Engoli em seco, sem conseguir esconder a minha imensa vontade de chorar. Então, a mãe temperou a «má notícia» com uma «boa notícia», embora muito vaga, sobre a qual eu teria de jurar segredo: — E se em vez de uma viagem «pequenina», como ir do Porto a Paris, nós fôssemos antes fazer uma viagem enorme, num belíssimo navio, até África?

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Foi assim que o sonho africano inoculou, pela primeira vez, os meus sonhos de acordada, recriando-se numa paisagem onírica feita de imagens recortadas de livros de aventuras, conversas soltas, notícias de jornal e imagens de televisão, onde ao tormentoso imaginário, bem presente, da guerra colonial em Angola, invadido por batalhões de soldados que desfilavam e partiam para missões de soberania no Ultramar português, se sobrepunham leões, elefantes, macacos e gorilas, crocodilos, hipopótamos, hienas, flamingos, gazelas e jiboias de tamanho descomunal, que cruzavam placidamente savanas intermináveis e florestas equatoriais sombrias, onde ecoavam para sempre os gritos de Tarzan, o tam-tam dos tambores na selva, e o caminhar intrépido de Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto. Sem poder falar sobre o assunto com ninguém, a mãe tinha-me pedido segredo, a minha imaginação incendiou-se na iminência de uma extraordinária aventura exótica, cujos contornos nem conseguia abarcar, até por falta de informação. E além disso... o que sabíamos nós, naquela altura, de África? Estudávamos a geografia do descomunal Império Português, com as províncias ultramarinas, as suas capitais e distritos. Aprendíamos os nomes de rios que cruzavam o diminuto território metropolitano bem como os que atravessavam Angola, Moçambique e Timor. Memorizávamos os nomes das ilhas que compunham os arquipélagos da Madeira, Açores, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Aprendíamos o registo dos diversos climas, desde o metropolitano clima temperado às monções asiáticas. Estudávamos a História dos Descobrimentos, de acordo com a visão épica, um rol de feitos inconcebíveis perpetrados por portugueses sobre-humanos, enquadrada pelos Lusíadas que infelizmente éramos compelidos a retalhar para aprender a divisão das orações nas aulas de Português. Também decorávamos, desde a escola primária, o nome dos heróis, dos santos e dos reis e das rainhas do nosso passado glorioso. E aprendíamos a venerar os «nossos legítimos governantes», que ocupavam o lugar nobre nas paredes das salas de aula dos estabelecimentos de ensino. Como o almirante Américo Thomaz, que, com a farda branca de oficial de marinha estofada de medalhas acenava às multidões, cortava fitas e era casado com uma senhora muito feia

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chamada Gertrudes, cuja lendária estupidez inspirava um caudal de anedotas impossível de travar. O maior destaque, em todo o caso, era dado a António de Oliveira Salazar, que não era casado com ninguém, para melhor servir a Pátria. O que nos ensinavam desde os bancos de escola era que os nossos «legítimos superiores» tinham sido colocados por Deus nos seus cargos. Por isso, devíamos incluí-los nas nossas orações. Essa obrigação constava dos Dez Mandamentos do Catecismo da Igreja Católica, que sabíamos de cor e salteado. Depois de nos comprometermos a adorar e amar a Deus sobre todas as coisas, não invocar o Santo Nome de Deus em vão, guardar domingos e dias santos de guarda, prometíamos: Honrar pai e mãe e os outros legítimos superiores. Só depois jurávamos «não matar», ou «causar danos» a si ou aos outros, no corpo e na alma; «não roubar»; «não levantar falsos testemunhos»; «guardar castidade em pensamentos e desejos»; e não desejar «os bens alheios».

2 H E R Ó I S D O M A R , N OB RE P OV O

Quando procuro a criança e a menina que fui nas memórias que me restam, encontro, entre muitos outros referenciais, o registo fiel do amor à Pátria, obviamente inculcado desde o berço e adubado generosamente através da educação, pública ou privada. Sem refutar a minha e a nossa história de vida, que honro em toda a sua pluralidade, consistência e erro, tenho de admitir que as minhas ideias, alimentadas que foram, entretanto, por muitas outras formas de abordar o que designamos por «realidade», mudaram substancialmente desde então, embora o amor ao coletivo a que chamamos «Pátria» ou «Nação» se mantenha vivo na sua intraduzível essência. Na infância e no começo da adolescência, com doze anos, tudo era mais nítido. Até os pavores. Por exemplo, o pavor da Guerra Fria e do que aconteceria ao nosso planeta se a Rússia conquistasse mais povos, o que, com a ajuda e a intercessão de Nossa Senhora, jamais aconteceria. Mas o nosso maior pesadelo, pelo menos nas minhas memórias, era a bomba atómica, que vários países ensaiavam um pouco por todo o Terceiro Mundo. Até a França, no início da década de 60, fizera rebentar no deserto do Sara os primeiros modelos. Primeiro à superfície, depois no interior da terra, de forma mais discreta e escondida. Pelos jornais, seguíamos a notícia do deflagrar destes horrores, e do orgulho que a nação francesa manifestava na eficácia e na posse deste aparato bélico, sob o coro de protestos do reino de Marrocos.

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Ora, se os cogumelos de Hiroxima e Nagasáqui, que tinham apavorado o mundo, ainda não éramos nascidos, já anunciavam o Armagedão, como podiam as nações competir entre si para verem quem estaria mais equipado para provocar o Apocalipse previsto para o final do milénio? Mas esse era um medo, por assim dizer, latente, pois raramente pensávamos no que se passava para lá da vastidão incomensurável das nossas fronteiras, o imenso império colonial de que tanto nos orgulhávamos. Pela televisão, muito recentemente implantada no território metropolitano (em África não o seria nos nossos tempos), pela rádio e pelos jornais, estávamos a par das recentes idas e vindas dos militares portugueses, que iam defender os territórios de além-mar, sobretudo em Angola, porque a RTP difundia as lancinantes partidas dos navios que levantavam ferro da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos ao som do «Angola É Nossa!», um hino guerreiro produzido em consequência dos horrores de 1961 que assombraram durante muito tempo os nossos plácidos quotidianos com imagens visionadas às escondidas, porque não era admissível que crianças como nós vissem aquilo. Corpos de mulheres e de homens e de bebés, pretos e brancos, retalhados de forma obscena, nas fazendas do Norte e do Leste de Angola. O contraponto destas notícias, e a explicação de como tínhamos chegado a este estado de violência, ninguém referia. A ignorância era um propósito superiormente tutelado. E isto começava por um dogma. A «África nossa» era mesmo nossa, aí se incluindo as colónias, mais tarde províncias ultramarinas de Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. Goa, Damão e Diu, as praças do Estado Português da Índia, também eram Portugal. O desgosto que assinalou a perda destes territórios, quando a União Indiana os invadiu em dezembro de 1961, foi sentido e chorado de norte a sul, e até nas colónias, como por exemplo em Moçambique, onde nalgumas cidades, como a Beira, pequenas multidões desfilaram com dísticos fervorosos a dizer «Goa é nossa», porque era como se estivessem a arrancar um braço ou uma perna à própria pátria1. Eu tinha dez anos quando isso aconteceu, e lembro-me perfeitamente de que chorei.

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A inevitável rendição das forças portuguesas2, uns escassos milhares de homens mal armados com material obsoleto ou totalmente inutilizável, perante um exército de 45 mil soldados, que atacaram por terra, por ar e por mar, saldou-se na vitória da União Indiana, que aprisionou 3250 militares portugueses, enviando-os para campos de concentração. A acreditarmos nos jornais da época, tinham morrido mais de mil portugueses. Durante muitos meses, as próprias famílias ignoraram o destino dos seus entes queridos, julgando que nunca mais os voltariam a ver. Na realidade, os números foram muito mais modestos. O total, quer de um lado quer de outro, mal ultrapassou quatro dezenas de mortos em combate, para grande desgosto de Salazar e de alguns dos seus caudilhos, que não se reviam na rendição das forças pátrias que deveriam ter regado de sangue luso os bastiões portugueses naquelas paragens. Como resposta, o governador-geral de Moçambique, almirante Sarmento Rodrigues, seguindo as instruções do Governo central, decretou que fossem conduzidos a campos de internamento todos os súbditos da União Indiana que ali viviam, muitos desde há longa data, para os «proteger» da ira dos cidadãos portugueses de Moçambique, «indignados com a invasão do Estado da Índia» — segundo a versão oficial. De acordo com a polícia política, haveria uns doze mil cidadãos em condições de internamento. Salazar pretendia usá-los nas negociações com o Governo indiano, pressionando com o confisco de bens e esse seu internamento. Na hora da verdade, o número revelou-se muito inferior, pois os indianos detentores das grandes fortunas e das grandes influências, ou eram súbditos ingleses devidamente registados como tal, ou tinham passaporte paquistanês ou eram cidadãos portugueses. Sobravam umas tristíssimas 2354 pessoas, sem fortuna nenhuma que vieram a ser devidamente espoliadas dos seus modestos bens. Com os estabelecimentos fechados e o respetivo recheio confiscado, seguiram depois para um campo de detenção, cercado de arame farpado, em condições lastimáveis. Visitá-los, em preguiçoso «passeio dos tristes», passou a integrar a rotina domingueira dos beirenses. A situação encontrou o seu desfecho diplomático em maio de 1962, e a troca de detidos de parte a parte começou então. Por um

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lado, as famílias de moçambicanos da Índia voltaram à península indostânica de mãos vazias, num cenário de enorme dramatismo. Fernando Amado Couto recorda a história da mulher de um modesto ourives que morreu de ataque cardíaco no momento do embarque, integrada num dos contingentes de «expulsos». Com o marido, viúvo, seguiram os cinco filhos de tenra idade, todos nascidos em Moçambique3. Por outro lado, o regresso dos contingentes militares da Índia a Portugal foi discretíssimo, como se, em vez de trazerem vivos, os navios viessem carregados de caixões. Lembro-me de comentários obscuros sobre as ignomínias que, nos campos de concentração indianos, alguns portugueses, sobretudo os oficiais, teriam sofrido. E da ignomínia ainda maior que foi a forma como foram tratados quando regressaram à pátria. Os nossos pais tinham amigos naquelas fileiras que mais tarde contaram que os navios ficaram ao largo, para os desembarques se fazerem de noite ou de madrugada. Sem ninguém no cais a aguardá-los, foram desembarcados em segredo, metidos em comboios e encaminhados para os respetivos aquartelamentos, de onde só regressaram a suas casas meses depois. Este drama foi assim tratado como uma doença vergonhosa, uma espécie de lepra que conspurcara a pele imaculada da Pátria, que tinha de ser expurgada, para não alastrar a todo o corpo da Nação — o que se veio a configurar em prisões, afastamento compulsivo da carreira militar e outras penas. No total, foram demitidos dez oficiais do Exército, cinco foram reformados compulsivamente e nove suspensos por seis meses. A notícia circulou em notícias de meia dúzia de linhas, nas páginas interiores dos jornais. Mas, e sob tantos ataques, a Pátria galvanizara-se e estava mais unida do que nunca contra o inimigo estrangeiro que cobiçava os nossos tesouros ultramarinos. Contra os terroristas a soldo das grandes nações invejosas — União Soviética, China e Estados Unidos. E contra os traidores que deslustravam o seu país, como aqueles portugueses e espanhóis que tinham sequestrado o paquete Santa Maria, a 21 de janeiro de 1961 — o primeiro sequestro político de um transatlântico da História contemporânea —, transformando-se em bandoleiros para afrontarem os «pais» das respetivas pátrias, Salazar e Franco, sob o comando de Henrique Galvão, um renegado.

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Em todo o caso, o nosso espaço de sonho era muito vasto, e África dava essa dimensão mesmo aos que nunca lá tinham ido nem pensavam lá ir. Lembro-me de alguns livros que configuravam a romântica visão ultramarina dos jovens portugueses metropolitanos, evidentemente os que tinham acesso à leitura e interesse pelo assunto. Em nossa casa, havia Mariazinha em África4, romance infantil de Fernanda de Castro; Através do Continente Misterioso, de Adolfo Simões Müller, com ilustrações de Fernando Bento, sobre as viagens de Serpa Pinto e outros exploradores; Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, que, antes de ser rei da selva, fora um bebé órfão recolhido e criado com todo o amor por gorilas, na mais densa floresta tropical; As Minas de Salomão, de Rider Haggard, tradução de Eça de Queirós. As obras de Emilio Salgari, sobretudo viradas para o misterioso Oriente, também não excluíram o tema, como Os Dramas da Escravatura5, centrado num navio negreiro chamado Guadiana. Por aquelas páginas, desfilava o destemido mas cruel comandante, o português Alves, uma belíssima escrava mulata por quem ele se tomava de amores, um belíssimo escravo que era rei, e o medonho tráfico de carne humana, a que a abolição da escravatura conferira um carácter clandestino. Finalmente, recordo ainda o fascínio que sobre nós exercia A Caça no Império Português, dois volumes, com magníficos desenhos, reproduções de quadros e pinturas da mais diversa fauna bravia, especialmente feitas para esta obra, algumas assinadas pelo pintor angolano Neves e Sousa6. Um dia, muitos anos depois, o meu pai ofereceu-me os dois livros que, desde então, andam comigo. Mas, voltando à irresolúvel questão, o que sabíamos nós, em Portugal continental, da África nossa? Havia um bloco noticioso, superiormente entediante, produzido pelo SNI (Secretariado Nacional de Informação), que divulgava o que se passava no País com enfoque particular sobre as conquistas civilizacionais ultramarinas. Em todas as sessões de cinema, este bloco precedia a projeção dos filmes principais7. Por aí sabíamos que, nas colónias portuguesas, todos — brancos, pretos, mulatos, indianos — viviam em paz e progresso uns com os outros, como se podia confirmar pela «grande percentagem»8 de funcionários públicos de

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todas as raças e pelas grandiosas realizações materiais, alcançadas sobretudo nos últimos anos. O noticiário enfatizava também a inauguração de estradas, linhas de caminhos de ferro, barragens, escolas, ampliação ou criação de portos, elevação de vilas a cidades sobretudo por Angola e Moçambique. Evidentemente, nem todos pensavam da mesma maneira. Em 1962, de março a junho, Portugal vivera quatro meses de crise estudantil, assinalados por plenários, manifestações de rua, greves aos exames e «luto académico», contagiando outras universidades. Esta crise fora anunciada no jantar das comemorações do 25 de novembro de 1961, que reuniu em Coimbra estudantes de todo o País. Foi a primeira gota de água de uma caudalosa contestação que se prolongaria pelo ano seguinte. Tudo começou com mais de duzentas pessoas e um lema «Queremos Paz!», num coro de protesto contra a Guerra Colonial que inspirou um cortejo animado pela cidade de Coimbra, a que as forças policiais responderam como as mandaram responder, com espancamentos e prisões, que não conseguiram impedir uma vaga de apoio que os secundou à escala nacional. A tensão aumentou num crescendo que viria a eclodir em 1962 na cidade de Coimbra e em Lisboa. Para a História ficou o registo da repressão brutal exercida pela polícia de choque, que espancou manifestantes nas duas cidades, prendeu muitos e expulsou muitos outros. A «Crise Académica de 1962», como ficou consignada na História, foi o primeiro caso grave de agitação estudantil sob o Estado Novo, e a primeira das grandes lutas de estudantes dos anos 60 em toda a Europa9. Só nós, a maior parte de nós, não sabíamos nada disto, porque os jornais transmitiam a conta-gotas as notícias do que se passara, desvalorizando o número dos envolvidos e enquadrando os seus objetivos na generalizada designação de «arruaças» instigadas por «provocadores» mal-intencionados e inimigos da Nação. Mas, e uma vez mais... o que sabíamos nós, portugueses da Metrópole, da África então portuguesa? Nada. Ou muito pouco. Uma coleção de estereótipos a legendar belas imagens mal coladas umas às outras, de onde se evolava o perfume da lonjura e da liberdade dos grandes espaços indómitos.

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