Moby Dick - um mergulho na intermidialidade

June 14, 2017 | Autor: Gleyce Cruz | Categoria: Moby-Dick. Herman Melville, Conexões intermidiáticas
Share Embed


Descrição do Produto

JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES Curitiba: UNIANDRADE, 2015. Publicação anual 1. Linguística, Letras e Artes – Anais I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE – Programa de Pós-Graduação em Letras

Capa: Guenia Reichmann Lemos Projeto gráfico e diagramação eletrônica: Brunilda Reichmann ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

2

comissão organizadora Dra. Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE) Coordenadora Geral Dra. Flávia Azevedo (UTFPR) Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR) Vice-Coordenadoras

comissão local Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE) Dra. Brunilda T. Reichmann (UNIANDRADE) Dr. Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE) Dra. Liana de Camargo Leão (UFPR) Dr. Luiz Roberto Zanotti (UNIANDRADE) Dra. Marcia Regina Becker (UTFPR) Dr. Otto Leopoldo Winck (UNIANDRADE) Dr. Paulo Eduardo de Oliveira (UNIANDRADE) Dr. Paulo Henrique Sandrini (UNIANDRADE) Ma. Paulo Roberto Pellissari (FACEL) Dra. Regina Helena Urias Cabreira (UTFPR) Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE) Dra. Verônica Daniel Kobs (UNIANDRADE) Ma. Solange Viaro Padilha (FACULDADES SANTA CRUZ)

comissão da abei Camila Franco Batista (PG-USP/ ABEI) Coordenadora Dra. Munira H. Mutran (Presidente Honorária da ABE) Dra. Laura Zuntini de Izarra (Presidente da ABEI) Dra. Rosalie Haddad (Vice-Presidente da ABEI)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

3

sumário 10 CONSEQUÊNCIA TRÁGICA DO AMOR NÃO CONSUMADO EM “UM CASO TRISTE”, DE JAMES JOYCE Autora: Alessandra Pilati Ribeiro (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

23

ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOCULTURAIS EM DANÇANDO EM LÚNASSA

Autores: Aline Benato Soares Cibele Filus Marchese Danielle Franco Brunismann Saionara de Araújo Weiss Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni Wolkoff

(UTFPR-PB) (UTFPR-PB) (UTFPR-PB) (UTFPR-PB) (UTFPR-PB)

35

INDIVÍDUO E CULTURA NO ROMANCE FINNEGANS WAKE DE JAMES JOYCE

Autora: Ana Caroline Ferreira Costa (UFPR)

52 NUANCES DA VIOLÊNCIA: UMA COMPARAÇÃO ENTRE MARINA CARR E INÊS PEDROSA Autores: Ana Clara de Lena Costa Andrade (FARESC) Alysson William Rodrigues Ribeiro (FARESC) Orientadora: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

64 CRÍTICA À DUPLICIDADE DA MORAL VITORIANA EM A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE Autor: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

73

A DOR COMO DOMINANTE ARTÍSTICO NO CONTO “A MORTE DA VACA”

Autora: Assiria Maria Linhares Masetti (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

4

84 EM NOME DO PAI: A TRANSPOSIÇÃO DE AMONGST WOMEN PARA AS TELAS Autora: Beatriz Cristina Godoy (UEM) Orientadora: Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado (UEM)

101 DIÁSPORA DA ALMA: A ARQUITETURA DO TEXTO E A ARQUEOLOGIA DO SER EM O ENCONTRO, DE ANNE ENRIGHT, E UMA MARGEM DISTANTE, DE CARYL PHILLIPS Autora: Profa. Dra. Brunilda T. Reichmann (UNIANDRADE)

113 ENCADEAMENTO DE CONTOS DE KATHERINE MANSFIELD COMO BILDUNGSROMAN DE SUAS PERSONAGENS FEMININAS Autor: Camilla Damian Mizerkowski (UFPR)

129 A GRANDE FOME, O TIGRE CELTA E O TRAUMA CULTURAL EM STAR OF THE SEA, DE JOSEPH O’CONNOR Autora: Camila Franco Batista (USP) Orientadora: Laura Patricia Zuntini de Izarra (USP)

141 A PALAVRA E A IMAGEM: A EXPANSÃO DO SENTIDO NO LIVRO ONDE VIVEM OS MONSTROS Autora: Caroline A. S. Fernandes (UFPR) Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

157

O AMOR NÃO CONSUMADO NO CONTO “OS MORTOS” E O RPG

Autor: Cristian Abreu de Quevedo (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

166

BERNARD SHAW E O MITO DE PIGMALEÃO ÀS AVESSAS

Autora: Daniele Soares Carneiro (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

5

182 GIACOMO JOYCE E POMES PENYEACH: POSSIBILIDADES DE RECEPÇÃO TEXTUAL E DE DEPREENSÃO DE UMA ESTÉTICA JOYCEANA Autor: Prof. Dr. Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE)

202

INTERFACES DA ESCRITA FICCIONAL DE HILDA HILST

Autora: Eliza Pratavieira (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

220 PREÂMBULO A UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM NO CONTO “ARÁBIA”, DE JAMES JOYCE Autora: Elizane de Oliveira Santos (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

234 SHAKESPEARE NO CINEMA: O FANTASMA NO HAMLET DE SHAKESPEARE E DE ALMEREYDA Autora: Fernanda Korovsky Moura (UFSC) Orientadora: Profa. Dra. Márcia Regina Becker (UTFPR)

245

MOBY DICK – UM MERGULHO NA INTERMIDIALIDADE

Autor: Gleyce Cruz da Silva Gomes (UFPR) Orientador: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

260

IBSEN E A HISTÓRIA: UMA REVOLUÇÃO NA MENTE

Autora: Helena Carnieri Staehler (UFPR) Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

276

A HORA E A VEZ DE “UMA TOLA BORBOLETA”

Autor: José Francisco Coelho (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

285

EDNA O´BRIEN E SUA NARRATIVA A LUZ DA NOITE – NOTAS DE UM DUPLO EXÍLIO, O REAL E O FICCIONAL

Autora: Prof. Larissa Degasperi Bonacin (UNIANDRADE)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

6

296

AMORES (NÃO) CONSUMADOS NO FILME OS VIVOS E OS MORTOS, DE JOHN HUSTON

Autora: Lindamar de Fátima Galiotto (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

307 A DUALIDADE E O EXISTENCIALISMO NO CONTO “OS MORTOS”,DE JAMES JOYCE Autores: Luiz Fernando Warumby (UNIANDRADE) Maria da Consolação Soranço Buzelin (UNIANDRADE) Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira (UNIANDRADE)

321

O DIÁRIO DO AMAZONAS DE ROGER CASEMENT

Autora: Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

336 A PARÓDIA SATÍRICA EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E JAMES JOYCE Autor: Márcio Pereira Ribeiro (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

348 HENRY JAMES E OSCAR WILDE: EXPOENTES DA HISTORIOGRAFIA RETRATADOS POR THE MASTER, DE COLM TÓIBIN Autor: Maria Aparecida Borges Leal (UFPR) Orientador: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

366 O MITO DA AMÉRICA NO CINEMA ITALIANO CONTEMPORÂNEO: GIUSEPPE TORNATORE x EMANUELE CRIALESE Autora: Maria Célia Martirani Bernardi Fantin (UFPR)

380 W. B. YEATS E A IDENTIDADE IRLANDESA NO INÍCIO DO SÉCULO XX Autor: Patricia de Aquino (USP) Orientadora: Profa. Dra. Laura P. Z. Izarra (USP)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

7

392 SUBVERSÃO DA FÓRMULA DO ROMANCE DETETIVESCO EM O CRIME DE LORDE ARTHUR SAVILE Autor: Prof. Paulo Roberto Pellissari (FACEL)

405 FICÇÃO E HISTÓRIA: ENCONTROS, DESENCONTROS E NOVOS CAPÍTULOS PARA NARRAR Autor: Phelipe de Lima Cerdeira (UFPR) Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado (UFPR)

422 O MITO DE TRISTÃO E ISOLDA COMO INTERTEXTO E TEMA DE REFLEXÃO SOBRE O CINEMA, O TEATRO E A TV Autor: Prila Leliza Calado (UNIANDRADE) Orientador: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

441 ASPECTOS CULTURAIS E POLÍTICOS NA TRADUÇÃO INTERMIDIÁTICA BRIDE AND PREJUDICE, DE GURINDER CHADHA Autor: Priscila M. M. G. Kinoshita (UNIANDRADE)

458 AS PRÁTICAS SUBVERSIVAS DE GÊNERO: UMA ANÁLISE QUEER DO FILME BREAKFAST ON PLUTO Autor: Rafael Alves de Almeida (UTFPR) Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni Wolkoff (UTFPR)

470 O RETRATO DE DORIAN GRAY NA MONTAGEM DE MACBETH (2012) POR GABRIEL VILLELA Autora: Rebeca Pinheiro Queluz (UFPR) Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

483

A LUZ DO FAROL: EXPOSIÇÃO DAS FERIDAS FAMILIARES

Autora: Rejane de Souza Ferreira (UFT)

499

O AMOR NÃO CONSUMADO EM “EVELINE”, DE JAMES JOYCE Autora: Selmi Machado (UNIANDRADE) Orientadora: Prof. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

8

510 O ESPAÇO COMO ELEMENTO DOMINANTE NO CONTO “O PRIMEIRO VOO” DE LIAM O’FLAHERTY Autor: Sérgio Luís Borges (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

519

ROGER CASEMENT SOB O OLHAR POLIÉDRICO DE VARGAS LLOSA EM EL SUEÑO DEL CELTA

Autora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

538

FACES DA VIOLÊNCIA NA FICÇÃO IRLANDESA CONTEMPORÂNEA

Autora: Profa. Solange Viaro Padilha (Faculdades Santa Cruz)

557 “A SUMMONS TO ALL MY FOOLISH BLOOD”: THE DEPICTION OF SEX AND SEXUALITY IN DUBLINERS, BY JAMES JOYCE Autor: Thiago Moreira Marques (UTFPR) Orientador: Profa. Dra. Jaqueline Bohn Donada (UTFPR)

568

VAMPIROS E ZUMBIS: O APOCALIPSE DO SÉCULO XXI Autora: Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs (UNIANDRADE e FAE)

581 O MITO DE CU CHULAINN E SUA REPRESENTAÇÃO NA CULTURA JAPONESA Autor: Vinicius Keller Rodrigues (FARESC) Orientador: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

9

CONSEQUÊNCIA TRÁGICA DO AMOR NÃO CONSUMADO EM “UM CASO TRISTE”, DE JAMES JOYCE Autora: Alessandra Pilati Ribeiro (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE) RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar técnicas narrativas utilizadas por James Joyce em “Um caso triste” (1914), e observar as fases do luto apresentadas por Kübler-Ross e Kessler, em 1992, vivenciadas pelo protagonista ao saber da morte da mulher pela qual se interessara no passado. O narrador, extra e heterodiegético, conta a história do Mr. Duffy, um asceta solitário e perfeccionista, que leva uma vida sistemática. Ele se torna aparentemente mais sociável quando conhece Mrs. Sínico, pela qual sente certo encantamento. Porém, diante de uma manifestação efusiva dela, afasta-se, temendo o seu descontrole. Passados alguns anos, lê num jornal que ela, embriagada, teve um triste fim. As emoções pelas quais passa, ao saber do ocorrido, correspondem às fases do luto trabalhadas por Kübler-Ross e Kessler e demonstram que qualquer processo classificatório acaba sendo personalizado pela própria vida ou pela narrativa. PALAVRAS-CHAVE: “Um caso triste”. Fases do luto. Vida sistemática.

Introdução James Joyce é considerado um dos escritores de língua inglesa mais influentes do século XX. Ficou conhecido por sua principal obra, Ulysses, um romance que revolucionou a narrativa ficcional nas primeiras décadas do século passado. Sua primeira publicação, Dublinenses, é uma coletânea de quinze contos sobre a cidade de Dublin e a vida de seus habitantes. Trata-se de um olhar sui generis sobre a sociedade dublinense, que o escritor considerava “paralisada” frente ao desenvolvimento intelectual e social do continente. O conto “Um caso triste”, que será abordado neste trabalho, concluído em maio de 1905, narra a história do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

10

Mr. Duffy, um asceta solitário, perfeccionista, que leva uma vida sistemática. O protagonista torna-se aparentemente mais sociável quando conhece, em um concerto, Mrs. Sínico, pela qual sente certo encantamento. Porém, diante de uma manifestação efusiva dela, afasta-se, temendo o seu descontrole. Passados quatro anos anos, lê num jornal que ela, embriagada, teve um triste fim. A voz narrativa, extra e heterodiegética, utiliza-se de uma onisciência seletiva para adentrar os pensamento e sentimentos do personagem principal. Como vemos em Fieldman (2007), quando o autor utiliza a onisciência: “A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que os fatos e as pessoas deixam nela...”. No início do conto, o minimalismo do cenário relatado já define, de certa forma, características do Mr. Duffy. A casa do protagonista revela suas poucas necessidades além de isolamento e solidão: “Morava numa casa velha e sombria e das janelas avistava o alambique desativado ou mais adiante o rio de pouca profundidade em cujas margens foi construída Dublin” (JOYCE, 2012, p. 100). A casa em si não possui carpete, nem quadros nas paredes; o quarto tem uma cama com cabeceira de ferro na cor preta, colchão com lençóis brancos e uma colcha vermelha e preta no pé da cama, no lado oposto da cama fica a lareira com somente uma lamparina. Características como essas, revelam sobriedade e reclusão; as cores vermelha e preta podem conotar um sentido de amor resguardado e pressupõe que Mr. Duffy possa ter passado por alguma decepção amorosa. A disposição da cor branca dos lençóis em contraste com a cabeceira preta levam imaginar uma falta de perspectiva existencial. Na estante de livros, organizada de baixo para cima de acordo com o tamanho dos livros, estava, no canto mais baixo à esquerda, um exemplar de William Wordsworth, poeta romântico inglês que publicou, juntamente com Samuel Taylor Coleridge,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

11

em 1798, The Lyrical Ballads. No canto oposto da estante, na parte direita de cima, um exemplar de Maynoot Catechism, uma obra religiosa que fala sobre questões da criação, vida e morte. Foi revisada em 1892 por William Walsh, arcebispo de Dublin, mas nunca publicada. Essas duas obras mostram a dimensão cultural do Mr. Duffy, revelando possivelmente um interesse metafísico e romântico ao mesmo tempo, onde questões religiosas provavelmente tenham algum cunho acético. Mais tarde quando rompe o relacionamento platônico com Mrs. Sinico, essa estante comportará mais dois volumes: Assim Falava Zaratustra e A gaia ciência, de Nietzche. Narrador e narrativa O narrador usa a terceira pessoa e mantem-se fora da diegese, é portanto um narrador extra e heterodiegético. Por outro lado, se o narrador fosse um personagem da diegese, seria um narrador homodiegético. O narrador intradiegético e o narrador extradiegético podem contar a própria história ou a história de outrem. O narrador heterodiegético conta a história de outra personagem (não a história dele próprio); o narrador que conta a própria história ou, de algum modo, participa na narrativa é chamado narrador homodiegético. O grau de participação de narradores homodiegéticos (quer extradiegético quer intradiegético) pode variar muito. Ás vezes o narrador tem um papel principal e narra sua própria narrativa (é um narrador autodiegético). (GENETTE, citado em BONNICI e ZOLIN, 2005, p. 118)

Nos três primeiros contos do livro Dublinenses: “As irmãs”, “Um encontro” e “Arábia”, a voz narrativa é infantil, e o narrador é homodiegético e autodiegético. A partir do quarto conto “Eveline”, o narrador passa a ser extradiegético e heterodiegético, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

12

igualmente no conto “Um caso triste” que é o décimo primeiro do volume. Portanto, as características de Mr. Duffy é retratada por um narrador extra e heterodiegático, segundo Genette. A personalidade do protagonista parece ser de uma pessoa que vive a certa distância do corpo, realizando análises furtivas de si mesmo em terceira pessoa e redigindo uma autobiografia concisa. Trabalha de caixa em uma agência bancária, tem os horários cronometrados diariamente. Janta sempre no mesmo local, na George Street, sente-se a salvo da juventude dourada de Dublin. A narrativa mostra como o personagem prefere locais reservados, a fim de evitar mudanças bruscas ou imprevistos. Logo após jantar, possui o costume de sentar-se ao piano ou caminhar pelos arredores da cidade, hábito que leva a mostrar também que Mr. Duffy é um ser solitário, que gosta de observar pessoas e acontecimentos, mantendo certa distância; sente extrema insegurança com o que possa vir a acontecer. Seu único entretenimento é ir a concertos e óperas, gosta de ouvir Mozart. Não possuí amigos, e seus parentes mal entravam em contato, salvo em caso de óbito na família. No conto, o narrador relata que Mr. Duffy “chegava a pensar que em determinadas circunstâncias e desequilíbrio seria capaz de roubar o banco onde trabalhava, mas, como tais circunstâncias nunca se apresentavam, sua vida se desenrolava serenamente” (JOYCE, 2012, p. 102-103). Certo dia, em um concerto quase deserto, uma mulher inicia uma conversa, mencionando como deveria ser desagradável ter poucas pessoas presentes para apreciar a música. Notou que a mulher, Mrs. Sinico, estava acompanhada de uma jovem, possivelmente sua filha, porém a narrativa relata que “enquanto conversavam ele se esforçou no sentido de gravá-la [a mãe] permanentemente na memória” (JOYCE, 2012, p. 103). Porém, rapidamente Mr. Duffy se recompunha a fim de não perder a compostura. A partir desse momento, surge o interesse do protagonista pela mulher que ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

13

estabelece uma conversa com ele, mulher de olhos azuis resolutos, inteligente, rosto oval e traços marcantes. Surgiu um segundo encontro, onde rapidamente, à chegada dela, ele procurou ver se estava acompanhada, demonstrando que necessitava de espaço para adquirir mais intimidade e sentia um crescente interesse por ela. Entre o primeiro encontro e o segundo, Mrs. Sinico deve ter ocupado os pensamentos do Mr. Duffy, pois era algo único em sua vida rotineira. Como diz Piaget: Deve-se observar, em primeiro lugar, que equilíbrio não é característica extrínseca ou acrescentada, mas propriedade intrínseca e constitutiva da vida orgânica e mental. Uma pedra, em relação ao seu ambiente, pode se achar em estados de equilíbrio estável, instável ou indiferente, nada disso alterando sua natureza. (PIAGET, 1980 p. 88)

Mrs. Sinico por sua vez, era uma mulher casada, com uma filha adulta. Seu marido era capitão da marinha e fazia a rota de navegação Dublin – Holanda. Ao analisar a situação, observa-se que é uma relação fadada a complicações: um casamento de 22 anos, e um marido distante que não dá importância nem demonstra afeto pela esposa. Para Mr. Duffy, um homem que não enfrenta muitos desafios, talvez a situação criasse apenas mais um paradoxo. Devido sua personalidade, existem fortes chances que ele não desestabilizaria uma relação existente. Porém, essa nova perspectiva, que bate às portas de Mr. Duffy, faz com que ele seja tomado por novos anseios, a fim de ter o prazer da companhia de Mrs. Sinico. Os dois gostavam de fazer caminhadas noturnas, com a privacidade necessária que estavam procurando, só que essas também lhes traziam perturbações, pois estavam organizando suas caminhadas às escondidas. Assim Mr. Duffy faz com que Mrs.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

14

Sinico o convide para ir a sua casa. O marido, que está na maior parte do tempo viajando, acredita que o Sr, Duffy está interessado na filha e encoraja a presença dele em sua casa. Com o estreitamento da relação entre Mr. Duffy e Mrs. Sinico, ele começa a expor as suas ideias, confiar seus pensamentos e segredos, o que mais tarde lhe causará certo constrangimento. Confia a ela também que participava de reuniões do Partido Comunista Irlandês, que se sentia um homem singular no meio dos operários. Achava que a causa era nobre, porém, que estavam desiludidos politicamente; seus debates eram sempre acalorados em um sótão mal iluminado. Era como se Mr. Duffy começasse a confiar a Mrs. Sinico suas atividades e seus interesses, como se sentisse necessidade de se abrir com ela. Uma relação começa com revelações, e era isso que estavam fazendo. Algum tempo depois, o protagonista, como conta o narrador, teve um despertar desse aparente amor platônico. “As conversas terminaram quando certa noite, demonstrando um ardor fora do comum, Mrs. Sinico tomou-lhe a mão apaixonadamente e apertoua contra o rosto” (JOYCE, 2012, p. 104). Mr. Duffy, se espanta e se afasta de dela. Depois de uma semana, ocorre o rompimento das relações entre os dois, em uma padaria próxima ao portão do parque, onde costumavam se encontrar e passear juntos. Andaram pelo menos umas três horas pelo parque, no frio do outono dublinense, demonstrando certa dificuldade em se afastar um do outro. Porém, Mr. Duffy rompe a amizade, e antes que Mrs. Sinico dissesse algo diante de tanto nervosismo que demonstrava, resolve fugir e evitar uma crise. Dias mais tarde, ele recebe, em sua casa, todas seus pertences que estavam com a ela. Durante os dois primeiros meses que se seguiram ao rompimento, pode-se verificar a percepção de Mr. Duffy em relação à ruptura do vínculo em uma frase que está em meio a suas ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

15

anotações dentro da sua escrivaninha: “O amor entre homem e homem é impossível, porque não há relações sexuais. A amizade entre homem e mulher é impossível, porque pressupõe relações sexuais”. Neste momento, podemos dizer que ele, de certa forma, tem consciência da impossibilidade de consumar seu desejo. Fica claro que existia um vínculo forte entre as duas personagens do conto. O narrador relata como eles se apegaram e como acontece o rompimento dos laços afetivos entre os dois. Na parte restante do conto, o narrador demonstrará as fases pelas quais Mr. Duffy passará com a perda de Mrs. Sinico, quatro anos depois. Neste período que se segue ao rompimento das relações afetivas entre as personagens principais do conto, Mr. Duffy sofre ainda mais devido à perda de seu pai, permanece longe dos recitais; o sócio minoritário do banco se aposenta, e ele próprio não havia mudado significativamente. Continua jantando no mesmo local e depois lê as notícias no jornal local, até que é surpreendido por uma notícia. É a notícia da morte trágica de Mrs. Sinico. Ele perde a fome imediatamente, fica chocado. Pega o jornal e o coloca no bolso, paga a conta e sai caminhando rapidamente, marcando o ritmo acelerado com as batidas da bengala na calçada. Fica ofegante, para em frente ao portão do parque onde costumavam se encontrar. Descansa por um momento e segue para casa onde lê a notícia cuidadosamente. Não consegue ficar por muito tempo sozinho e sai novamente, atônito, em busca de ar. Ficara perplexo com o que havia acontecido, não queria que sua relação com ela se consumasse, porém não queria um final trágico daqueles. Era uma espécie de amor recolhido que jamais pôde ser retirado do peito devido à situação que os envolvia. Na notícia dizia que Mrs. Sinico estava atravessando os trilhos do trem por volta das 22 horas, hábito que era comumente praticado por ela, o que levava a crer também que ela tinha certo conhecimento do que estava fazendo, que acarreta mais hipóteses ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

16

do que tenha sido um mero um acidente. Tinha 43 anos de idade, 22 anos de casamento e, nas últimas noites, estava saindo sempre para comprar bebida alcoólica. Sua filha tinha tentado levar a mãe para a liga contra o alcoolismo, sem resultado. O relato do jornal irrita o protagonista sobremaneira, como mostra o trecho: a “narrativa da morte da mulher deixou-o revoltado e deixou-o igualmente revoltado o fato de haver revelado a ela coisas que para ele eram sagradas” (JOYCE, 2012, p. 107). Condenava Mrs. Sinico pelos seus vícios e pelo modo de vida que levara, desgraçando-o também. Possivelmente a morte de Mrs. Sinico tenha sido ocasionada pelo desespero e angústia que vivenciara ao ser abandonada. Como escrevem Ligeiro e Barros: A angústia experimentada pela mulher não está referida à perda real do objeto, mas à perda do amor por parte do objeto (Freud, [1926] 1969). Ampliando esta afirmação, Ligeiro e Barros (2008) enfatizam que o medo de ser abandonada pelo parceiro e perder seu amor é uma invariável na vida psíquica feminina. Para as autoras, enquanto o homem está submetido à função fálica, nela encontrando um apoio para atravessar os momentos de angústia, a mulher experimenta uma espécie de dissolução de si, perdendo as fronteiras do seu ser. Diante de um não saber sobre a própria feminilidade, a mulher tentará fazer suplência a essa falta por meio do amor e buscará exclusividade no desejo de um homem. Assim sendo, o amor, sobretudo a perda do amor, é por ela sentida como uma devastação. Ela se perde ao perder o amor do homem. (LEVY e GOMES, 2015)

Mr. Duffy, ao caminhar, tem a impressão que, por um momento, a mão dela tocava a sua, mas logo as lembranças se dispersaram e caminha até um bar. Lá havia seis operários embriagados, cuspindo no chão e passando um pó de serragem para camuflar a sujeira. “Mr. Duffy sentou-se numa banqueta e ficou olhando em direção ao grupo, sem enxergá-los nem ouvi-

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

17

los” (JOYCE, 2015, p. 104). Não estava processando, tomou a primeira dose rapidamente, o garçom parecia dormir debruçado no balcão. Ainda vemos que, “demorou um tempo mais, tomou sua segunda dose enquanto ouvia o barulho estridente do bonde de longe” (JOYCE, 2012, p. 108). As cinco fases do luto As fases do luto, descritas por Kübler-Ross e Kessler (1992), são classificadas como negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. A psicóloga Carine Eleutério sugere, em seu site, como essas fases caracterizam o desenrolar do conto “Um caso triste”: “Ocorre luto em qualquer situação ou fato relevante que chegue a um determinado fim, principalmente quando temos sentimentos intensos arraigados ao fato” (ELEUTÉRIO, 2011). A fase que o personagem encara primeiro é negação e raiva, e posteriormente depressão, negociação e aceitação. Certa noite estava prestes a pôr uma garfada de carne seca e repolho na boca quando deteve a mão. Os olhos fixaram-se em um parágrafo no jornal vespertino apoiado contra a moringa d’água. Devolveu o bocado de comida ao prato e leu o parágrafo com atenção. Ao chegar em casa subiu direto até o quarto e, depois de pegar o jornal do bolso, leu o parágrafo mais uma vez na luz evanescente da janela. (JOYCE, 2012, p. 106-107)

Existe então, um momento de recusa dos fatos e de irritabilidade, onde há uma negação do acontecido, em que o personagem arruma um jeito de não entrar em contato com a realidade que o acomete, buscando também não falar do assunto. Mr. Duffy ergueu os olhos e lançou um olhar para a rua, em direção ao triste panorama do entardecer. Que fim! Toda a narrativa daquela morte o repugnava, e repugnava-o pensar que

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

18

em outra época havia feito revelações sobre tudo o que considerava sagrado para aquela mulher. (JOYCE, 2012, p. 108-109) Dessa forma, o protagonista não sente raiva, mas, culpa e revolta. Como ela poderia ter morrido se ele havia trocado confidências com ela. Enquanto ficava lá sentado, revivendo a vida ao lado dela e evocando alternadamente as duas imagens que agora a concebia, percebeu que ela havia morrido, que havia deixado de existir. Tentou imaginar o que mais poderia ter feito. Não poderia ter levado adiante aquela comédia de engodos. Não poderia ter vivido abertamente com ela. Fez então o que lhe pareceu melhor. Que culpa poderia ter? (JOYCE, 2012, p. 110)

Durante a fase de barganha, devido a sua personalidade forte, Mr. Duffy ainda age com certo rigor, durante um passeio no parque como descreve o narrador. O bar é um refúgio, porém as lembranças sempre voltam ao Mr. Duffy, o que faz com que passe ao quarto estágio, o da depressão. Ele se isola em seu mundo interior, entregue à melancolia, sentindo-se impotente perante a situação que vive. No conto, o narrador relata que Mr. Duffy se dá conta que Mrs. Sinico está morta, e “apenas ficou uma lembrança, logo é acometido pela ideia de que será que se lembrarão de mim após minha morte?”. (JOYCE, 2012, p. 109). Sai do bar, vai diretamente ao parque onde se encontravam, seu pensamento era tão forte em relação a Mrs. Sinico que a ouvia falar aos seus ouvidos e novamente sentia o toque de suas mãos. O narrador relata que o personagem, “pensou por que a mulher negara a vida, porque optou pela morte” (JOYCE, 2012, p. 109). Percebe-se aqui que a hipótese de suicídio da Mrs. Sinico passa pela cabeça do Mr. Duffy, descartando a hipótese de acidente. Estava moralmente despedaçado. Olhava da parte alta da cidade para as luzes convidativas.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

19

Na sequência, observa-se que Mr. Duffy “Olhou pela encosta da colina e, ao pé da ladeira, à sombra do muro do parque, viu figuras humanas deitadas. Aquelas cenas de amor furtivas levaram-no ao desespero” (JOYCE, 2012, p. 109). Mr. Duffy fica transtornado, emoções vêm à tona, reforçando ainda mais a ideia de depreciação de si mesmo. Alguém o tinha amado e ele lhe negou a oportunidade de ser feliz, e além de tudo a tinha condenado a uma vida de ignomínia e a uma morte vergonhosa. Pensou, logicamente, que as pessoas que observava não estavam contentes com sua presença importuna, estava fora da festa da vida como mostra o narrador, que relata como Mr. Duffy observava o trem “como um verme com a cabeça flamejante retorcendo-se na escuridão, obstinado, prosseguindo a duras pernas” (JOYCE, 2012, p. 109). Uma analogia em relação à personalidade e a vida do protagonista. Mr. Duffy fica ali parado, observando o trem enquanto pensa no rumo de sua vida. O trem logo se vai, mas ainda ouvia o nome de Mrs. Sinico em forma de apito que soava distante. Vemos que o protagonista “começou a duvidar do que lhe dizia a memória. Parou embaixo de uma árvore e esperou que o ritmo cessasse” (JOYCE, 2015, p. 109). Não havia mais nada. Silêncio total, Mr. Duffy sentia-se sozinho novamente. Dessa maneira, pode-se ver que o personagem passa pela última fase do luto de Kübler-Ross e Kessler (1992), onde já não há mais tanto negação nem desespero, consegue enxergar no meio da turbulência uma saída, consegue organizar sua realidade, está preparado, de certa forma, para lidar com a perda. Percebese que a personalidade forte e marcante do Mr. Duffy, junto com as características que lhe foram atribuídas, é que dá suporte para que ele supere a perda rapidamente.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

20

Considerações finais Observa-se assim a focalização utilizada James Joyce no conto “Um caso triste”, onde se revela uma onisciência seletiva por parte do narrador heterodiegético, para que o leitor seja capaz de perscrutar o funcionamento da mente do protagonista, fazendo com que o método narrativo exponha as várias nuances da maneira de pensar de Mr. Duffy. São inseridas as fases do luto de Kübler-Ross e Kessler, de modo que o leitor realize a leitura observando as qualidades que a obra tem a oferecer, como por exemplo, a perspectiva do personagem principal e a riqueza de detalhes, enriquecendo as características pessoais de Mr. Duffy no desenrolar do conto. E além disso, o conto serve de base para desenvolver, em tom reflexivo, as subjetividades da vida, as oportunidades que são apresentadas, perdidas e jamais resgatadas. Referências BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. Abordagens históricas e tendências contemporâneas. Teoria Literária, Maringá, 2005. ELEUTÉRIO, C. Os cinco estágios do luto de Kübler-Ross. Disponível em: www.psicologiadostress.com. Acesso em: 15 jun. 2015. FREUD, S. Inibições, sintomas e angústia. V. XX. Rio de Janeiro: Imago, , 1926/1969. JOYCE, J. Dublinenses. Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012. 208 p. KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

21

LEITE, L. C. M. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1995. Série Principios. LEVY, L.; GOMES, I. C. Os desatinos da paixão. Disponível em: http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/ posteres_iv_congresso/mesas_iv_congresso/mr09-lidia-levy-eisabel-cristina-gomes.pdf. Acesso em: 25 mar. 2015.. PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Trad. Maria Alice Magalhães D’Amorim e Paulo Sergio Lima Silva. 24. ed. [S.l.]: Forense Universitária, 1896-1980.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

22

ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOCULTURAIS EM DANÇANDO EM LÚNASSA

Autores: Aline Benato Soares (UTFPR-PB) Cibele Filus Marchese (UTFPR-PB) Danielle Franco Brunismann (UTFPR-PB) Saionara de Araújo Weiss (UTFPR-PB) Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni Wolkoff (UTFPR-PB) RESUMO: O presente trabalho objetiva analisar os aspectos históricos e socioculturais presentes na obra Dançando em Lúnassa, do dramaturgo Brian Friel. A peça representa os efeitos socioculturais da inserção da Modernidade, na Irlanda. A análise do estudo foca na família Mundy, no seu potencial metafórico, pois se trata de uma família que tenta manter as aparências conservadoras apesar de todas as rupturas evidenciadas pelos novos tempos. Assim, esta família desconstrói o modelo familiar, com cinco irmãs solteiras, uma delas com um filho gerado fora do casamento, e um irmão padre católico que se converte ao paganismo. A obra evidencia a ruptura cultural na sociedade irlandesa, dados os avanços modernos no cerne do país. Em contrapartida, a busca por identidade nacional, ao aludir ao Festival de Lúnassa, Friel retoma a cultura celta e destaca a tentativa de preservação do catolicismo em meio à proliferação pagã. PALAVRAS CHAVE: Aspectos históricos; aspectos socioculturais; teatro irlandês.

Brian Patrick O’Friel nasceu em 1929, na Irlanda e a estreia de Dancing at Lughnasa ocorreu em 1990 no Abbey Theatre em Dublin. Posteriormente no ano de 1994 foi lançada a versão para o cinema da peça Dancing at Lughnasa e 2004 estreou a produção brasileira da Cia Ludens, sob direção de Domingos Nunez e em 2014 a peça foi reencenada pela mesma companhia.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

23

Uma das características em evidência nas obras do dramaturgo irlandês Brian Friel é o resgate histórico da Irlanda, realizado através da representação dos mitos e dos rituais, a fim de preservar e perpetuar a história na constituição do país. Na obra Dançando em Lúnassa os mitos estão presentes no Festival ao deus Lugh e em toda a mítica que dele emana e contagia a família Mundy. Os rituais modificados no contexto familiar com a introdução da modernização simbolizam o processo ritualístico vivenciado pela Irlanda. Tendo por fonte de reafirmação do dito tem-se: [...] Friel retrabalha mitos e rituais a fim de refazer e atualizar o drama enquanto um ritual em si mesmo, cuja razão de ser é permitir a significação e reorganização da vida individual e social no mundo moderno industrial, no caso específico, a vida na Irlanda contemporânea. [...] (CAPUCHINHO, 2012, p. 14-15)

Sob esse aspecto, devemos nos ater a duas épocas diferentes, que estão presentes na obra - primeiramente a época em que Michael narra suas memórias, 1960, depois o período em que viveu o que está sendo narrado, 1936. Quando a personagem vive com a mãe e as tias, que sofrem pela chegada da industrialização no país. Em 1960 alguns dos aspectos negativos que os irlandeses vivenciaram, foram as grandes taxas de mortalidade infantil e de adultos por doenças e desnutrição, o que demonstra a fragilidade econômica do país. Embora a Irlanda fosse um estado independente, ainda mantinha conflitos econômicos com a Inglaterra, constatados através dos problemas relatados historicamente, como a pobreza na zona rural e a falta de emprego na zona urbana. Dancing at Lughnasa se passa na mente do narrador em seu momento presente (início dos anos 1960) em um espaço ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

24

desconhecido, entretanto o que vemos é o tempo passado nos arredores da fictícia Ballybeg, em agosto e setembro de 1936. As memórias indicam o clima de desestabilização de proporções mundiais que se insinuava através da música e aparecia até mesmo nas brincadeiras entre as irmãs. Tratava-se do período logo após o fim da segunda guerra ítalo-abissínia, durante o início da guerra civil espanhola e no período entre as guerras mundiais. (CAPUCHINHO, 2012, p. 133)

A Irlanda, na década de 1960, sofre com a busca de identidade. Em sua história, destacam-se fatos sóciohistóricos como a invasão dos povos bárbaros, os quais trouxeram a cultura celta e toda a mítica que envolveu culturalmente a formação do país. Por intermédio de São Patrício ocorreu a inserção do Cristianismo. Além disso, no reinado de Henrique VIII foi instituído como religião oficial da Inglaterra o Anglicismo e a Irlanda, ao sofrer o processo de colonização, recebeu forte influência religiosa. Houve resistência religiosa por parte do povo irlandês, o qual ansiava pela permanência da religião católica. Na obra Dançando em Lúnassa a resistência à mudança religiosa é simbolizada, na obra, através da personagem Kate, que se mantêm firme em suas convicções em relação ao Festival de Lúnassa, ao comportamento de Gerry, e à utilização do rádio e aos efeitos que este causa. A obra apresenta de forma metafórica a evolução da história política e social da Irlanda. Segundo Domingos Nunez, a obra Dançando em Lúnassa organiza-se em três características principais: oralidade, conflito de transição e atuação física. A oralidade é um dos elementos fundamentais da Dramaturgia Irlandesa. Na peça essa característica evidencia-se na presença de um narradortestemunha, Michael o qual é um intermédio entre o passado e o futuro. O conflito da transição está relacionado à disparidade entre o tradicional/rural e o moderno/urbano. Ainda podemos ressaltar que: ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

25

[…] fragmentary reflection of old traditions lost over time. Their contemporaneity breaks down binary dichotomies and shows the interaction between past and present, tradition and modernity, paganism and Christianity, supernaturalism and rationality, etc., though not without conflicts, which to some extent helps restore the Irish folk tradition to modern Irish society. (HE, 2014, p. 98.) [...] reflexão fragmentária de antigas tradições perdidas ao longo do tempo. Sua contemporaneidade quebra dicotomias binárias e mostra a interação entre passado e presente, tradição e modernidade, paganismo e cristianismo, sobrenatural e racionalidade, etc., embora não sem conflitos, que em certa medida ajuda a restaurar a tradição folclórica irlandesa para a sociedade irlandesa moderna. (HE, 2014, p. 98, tradução nossa)

Com a chegada da modernidade na cidade de Ballybeg, o tradicional que se apresenta basicamente na zona rural (local onde a família Mundy vive) tem seu espaço tomado para aquilo que é moderno representado pela zona urbana. Esse conflito é representado na obra através das irmãs Agnes e Rose que exercem como ofício o tricô, entretanto, elas trabalham em casa e isso não lhes dá estabilidade. O trecho: “Tem uma nova fábrica que foi inaugurada na cidade de Donegal. Eles fazem luvas na máquina mais rapidamente lá, e muito barato. As pessoas para quem a Vera fornecia agora compram as luvas diretamente da fábrica”. (FRIEL, 2013, p. 102) refere-se ao momento em que marca a chegada de uma fábrica na cidade, a qual é a responsável por deixar as irmãs sem renda. Por fim, encontra-se a atuação física que na peça Dançando em Lúnassa está diretamente relacionada à movimentação das personagens, que resulta na dança alegre das irmãs demonstrando a vivacidade restante entre elas e ao mesmo tempo as lembranças de uma época passada em que eram jovens e não

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

26

viviam em meio a diversas mudanças. No excerto a seguir identifica-se a presença dessa característica: E quando me recordo de como a cozinha pulsava com o ritmo da música dançante irlandesa que chegava até nós vinda de Athlone e de como minha mãe e suas irmãs, repentinamente, davam-se as mãos e começavam a dançar por toda casa – e como elas riam e gritavam! Pareciam colegiais excitadas. (FRIEL, 2013, p. 27)

Essas características são retratadas pelas personagens que basicamente são as cinco irmãs solteiras, Kate, Meggie, Agnes, Rose e Chris. Somente a mais velha trabalha fora de casa. Além delas, há o padre Jack que foi a África trabalhar como missionário, a fim de converter o povo africano ao Catolicismo, Michael que é o filho de Chris com Gerry, fruto de um relacionamento sem a constituição do casamento. Existem aspectos retratados pelo autor, que se evidenciaram na construção sociohistórica da Irlanda, o conservadorismo apresentado pela personagem da irmã mais velha Kate. Apresentamos uma fala de Kate a qual se queixa a irmã Maggie como forma de expressar a pressão que vive e a ingratidão que sente por parte da família: Você trabalha duro em seu emprego. Tenta manter a família unida. Cumpre suas obrigações o melhor que pode... porque acredita em responsabilidades, deveres e manutenção da ordem. Então de repente, de repente percebe que rachaduras estão surgindo por toda parte; que você está perdendo o controle; que tudo é tão frágil que não consegue mais se sustentar por muito tempo. Tudo está prestes a desmoronar, Maggie. (FRIEL, 2013, p. 75)

Após esse desabafo, Maggie tenta reverter a situação falando a Kate que está enganada, que tudo está sob controle, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

27

mas na verdade as duas sabem da situação pela a qual a família, e toda sociedade irlandesa está passando. Observando outro personagem, deparamo-nos com Michael que conta os fatos na peça de acordo com a sua memória. Ele filtra os acontecimentos, conforme a experiência pessoal. “Quando eu paro para pensar naquele verão de 1936” (FRIEL, 2013, p. 25). Além de ser o narrador da peça, Michael é caracterizado como aquele que iniciou a desconstrução de uma família tradicional, pois seus pais não são casados e o geraram fora de uma relação matrimonial. Michael foi a primeira ruptura da família com uma norma social ao nascer fora do casamento. Acrescentamos que Michael também fora o primeiro elemento masculino que perturbara a coesão familiar e a aceitação da família de cinco mulheres solteiras que valorizava o casamento e os filhos de acordo com a moral cristã. Michael reconhece sua parcela na desestabilização da família. (PINE, 2000 apud CAPUCHINHO, 2012, p. 131)

É nesse sentido que Michael apresenta-se como a figura que tenta retornar ao passado no intuito de reestruturar aquilo que segundo ele foi destruído em parte por sua própria culpa. “[...]O narrador Michael relembra e mostra o conflito e a ruptura vividos em sua infância em uma tentativa de restauração e reconciliação com seu passado”(CAPUCHINHO, 2012, p. 124). Michael procura reconciliar-se consigo mesmo, pois, não aceita sua história, a constituição familiar na qual nasceu e nem os rumos que obtiveram. Compreende-se que julga seu nascimento como fator decisivo a desestrutura em que vive, sendo ele o único com dever e possibilidade de remissão pela família. A família Mundy é a simbolização da Irlanda de 1936. Fato de grande impacto na constituição cultural e econômica irlandesa é a modernização, a qual é retratada na obra com a inserção do ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

28

rádio no cotidiano familiar. Na peça Dançando em Lúnassa, na edição de 2013, versão traduzida por Domingos Nunez, ele considera que: “[...] As irmãs Mundy adquirem seu primeiro aparelho de rádio em 1936. A chegada dele representa uma intromissão de elementos modernos em um universo rural até então desprovido de máquinas” (NUNES, 2013, p.07). Intromissão que causa a desestrutura familiar. Quando o rádio é ligado toda a casa da família Mundy se agita e fazendo com que os personagens percam a compostura tradicional. Quando esse objeto, o rádio, passa a compor o cotidiano das irmãs, elas sofrem com um impacto maior: a inserção das fábricas, o que afeta as atividades econômicas das irmãs Agnes e Rose, como nos mostra o trecho a seguir: Michael – Na noite seguinte Vera McLaughlin veio e explicou a Agnes e Rose que não poderia mais comprar suas luvas feitas à mão. Muitas tricoteiras que trabalhavam em casa para ela já estavam empregadas na nova fábrica e ela aconselhou Agnes e Rose a se candidatarem imediatamente. A Revolução Industrial tinha finalmente chegado a Ballybeg. (FRIEL, 2013, p. 111)

As irmãs foram aconselhadas a se candidatarem às vagas de emprego na fábrica, mas elas não aceitam essa transformação e então se mudam para Londres, na tentativa de reiniciarem suas vidas. Mas, no fim, percebe-se que elas não conseguem estabilidade financeira e acabam morrendo, sem ter a oportunidade de voltar às suas origens. A irmã mais nova, Chris, vai trabalhar na fábrica, mas é descrita a sua infelicidade pelo resto da vida. No prefácio da obra Domingos Nunez ressalta que: [...] Além disso, o rádio contribuiu para introduzir ideias externas e ideais novos em áreas anteriormente isoladas. [...] Kate, a guardiã dos preceitos católicos e da moralidade pública, rejeita essa música incitadora de danças pagãs por enxergar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

29

nos estilos “estrangeiros” uma ameaça ao nacionalismo e à religião irlandeses [...] (FRIEL, 2013, p. 08)

Outra vertente a ser analisada é a figura de padre Jack, o único irmão das irmãs Mundy, e ao ser ordenado sacerdote é enviado para a Uganda, na África, para uma missão de catequização. Contudo, ao conviver com a cultura e com o povo africano, padre Jack acaba por se converter ao paganismo, não sendo mais propício a trabalhar como como colonizador. Deste modo é providenciado o seu retorno à Irlanda. Para padre Jack a cultura irlandesa já não o pertence mais, já havia se apropriado da cultura pagã na qual estava inserido. Assim, sofre com o exílio em ser retirado de sua cultura apropriada, com a qual teve contato na África, e inserido novamente na cultura da qual se desapropriou. Segundo Capuchinho: [...] No entanto, essa “casa” revelou-se um lugar que ele não reconhecia e com o qual não sentia relação de pertencimento, posto que guardasse apenas vaga lembrança dos costumes do lugar, de seus moradores e até mesmo de suas irmãs. Jack sonhava em voltar para Uganda, pois fora arrancado de seu povo de escolha tal qual um criminoso estrangeiro extraditado. (CAPUCHINHO, 2012, p. 156)

Deste modo, padre Jack não consegue retornar à sua cultura de origem, não se recorda do vocabulário, das pessoas, das concepções culturais. Exemplificando com excerto da obra de Friel, “Jack – Se alguém procurar por mim, vou estar lá embaixo, na encosta do rio pelo resto do... (Sua voz enfraquece e ele olha em volta. Então se dá conta de onde está. Ele sorri.) Desculpem-me... minha cabeça estava... É a Kate?” (FRIEL, 2013, p.79). Aproximadamente um ano após o seu retorno, padre Jack vem a falecer, fato que se considera resultado de um desgosto e dificuldade de viver sem estar inserido em sua cultura apropriada,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

30

configurando-se assim um exílio cultural. Segundo Capuchinho (2012, p.19.) [...] Também Christopher Murray assinala que em Friel o “exílio é sintoma de um deslocamento insuportável; é em si mesmo um estado de espírito” (1999 p. xiii). Constata-se que psicologicamente o padre Jack não consegue superar o deslocamento cultural sofrido e rende-se à liberdade proporcionada pela morte. Na obra Dançando em Lúnassa, presenciamos características da Irlanda pré e pós-influência moderna, as inovações, por meio das músicas do rádio, da nova identidade do padre Jack e dos relatos sobre o Festival de Lúnassa e as consequências vividas após tais eventos. E, de acordo com Chu He (2014), os relatos do Festival de Lúnassa são resgatado da memória da personagem de Michael, e imitado por ele e pelas outras personagens de forma desajeitada, tendo em vista todas as dicotomias que ocorre na peça de Friel, e que, de uma forma ou de outra, as personagens são submetidas. Podemos elencar diversas rupturas que ocorrem na obra, como a geração de um filho fora do matrimônio, cinco irmãs solteiras, o irmão mais velho, o qual foi ordenado padre católico e em uma missão se converte ao paganismo, a introdução da fábrica e por consequência a perda de espaço de comercialização que leva duas irmãs Mundy a fugirem de casa em busca de trabalho em Londres. Essas rupturas representam a história da Irlanda e suas transformações culturais e econômicas. Deste modo, observa-se que: For three, or perhaps four centuries, Irish Literature has lived in the shadow of of political and economic breakdowns of distressing frequency. It has lived between two languages and two cultures, it has competed with antiquarian and historical research, with political theory and clerical polemics in its attempt to identify the existence of a cultural community in which the possibilities of freedom might be won. In the twenties ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

31

century in particular, these experiences, and the habituation of the Irish mind and sensibility to them, have given the literature of the country a prominence never know before. (DEANE, 1994, p. 248) Por três, ou talvez quatro séculos, a literatura irlandesa tem vivido na sombra de falhas políticas e econômicas de frequência angustiante. Viveu entre duas línguas e duas culturas, competiu com a pesquisa histórica, com a teoria política e polêmicas clericais em sua tentativa para identificar a existência de uma comunidade cultural em que a possibilidade de liberdade pode ser conquistada. No século vinte, em especial, estas experiências, bem como a habituação da mente e sensibilidade para eles, ter dado a literatura do país uma proeminência nunca vista antes. (DEANE, 1994, p. 248, tradução nossa)

Ressalta-se a ideia de que Friel volta à atenção para possíveis problemas vindos através do progresso e do desenvolvimento econômico. Além disso, aborda a preservação e propagação da cultura e da identidade irlandesas, destacando elementos fundamentais da identidade cultural, como o paganismo, o catolicismo o qual enfrentou resistência ao anglicismo, imposto durante o período de colonização pela Inglaterra. Além disso, pode-se dizer que Brian Friel utiliza da personagem Michael para demonstrar com maior impacto as rupturas históricas, a introdução da modernidade e as consequências: E embora eu fosse uma criança de apenas sete anos naquela época, eu já tinha, eu sei, esse sentimento de inquietação dentro de mim, já tinha consciência daquele abismo gigantesco que separava o que parecia ser do que realmente era. Já percebia as coisas se modificando muito rapidamente diante

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

32

dos meus olhos, e se transformando no que não deveria ser. (FRIEL, 2013, p. 27)

Através do relato de Michael, podemos observar que mesmo ele, tendo sete anos, consegue perceber as mudanças que estavam ocorrendo na família e na sociedade. Por meio da análise da peça Dançando em Lúnassa encontramos muitos aspectos sóciohistóricos da Irlanda representados na obra. O paganismo, que se toma por rito irlandês, é representado pelo Festival de Lúnassa, realizado em homenagem ao deus céltico Lúgh. A resistência da religião católica, ao sofrer pressão com a colonização da Inglaterra, que tinha por religião oficial o Anglicismo, e demonstrou resistência às mudanças, é identificada por Kate, irmã mais velha das irmãs Mundy, a qual é conservada, mantendo suas convicções religiosas com o intuito de preservar a estrutura de sua família O interesse particular do autor pelo choque cultural da sociedade irlandesa ao se deparar com o mundo industrial e as inovações tecnológicas, evidencia-se nesta obra através do detalhamento da relação das irmãs com o rádio no decorrer da peça. Podemos observar os lamentos e os infortúnios que a modernidade trouxe a esta comunidade, de forma que o autor nos leva a compreender o poder das memórias e do amor, mas em contrapartida é notório que muitos personagens procuram “adaptar-se” a modernidade, mesmo não acreditando que ela seja algo bom. A narrativa de Friel nos mostra a realidade de uma comunidade, que é relatada como foco de análise da transição moderna, e que de certa forma desencadeia a trama com revelações instigantes e esclarecedoras, sua narrativa também traz a contradição de casa e exílio, bem como mudança cultural e a questão da adaptação social. O exílio cultural sofrido por padre Jack retransmite, pela peça, o exílio cultural qual o povo irlandês

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

33

vivenciou a ruptura entre culturas no processo de constituição da história. Por fim, as atitudes do narrador são o que evidencia a transição entre os dois tempos que nos deparamos na peça. Isoladamente podemos analisar o momento de produção em que a obra foi escrita, bem como a forte ligação entre a vida do autor e a vida de Michael, que sinaliza o drama e faz com que a obra ressoe como a história da própria família de Brian Friel. Em contrapartida, o contexto em que a obra foi produzida assinala outra vertente, a de que Friel aponta todas as disparidades sociais enfrentadas pela família Mundy e que sob nossa análise são um espelho da sociedade irlandesa.

Referências CAPUCHINHO, Adriana C. Liminaridade, sacríficio e reciprocidade: uma abordagem do ritual em três peças de Brian Friel. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. DEANE, Seamus. A Short History of Irish Literature. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 1994. FRIEL, Brian. Dançando em Lúnassa. Beatriz Kopschitz Bastos, organização; Domingos Nunez, tradução e apresentação. São Paulo. Hedra, 2003. HE, Chu. Non Modern Culture in Brian Friel’s Plays. Disponível em: < http://www.abei.org.br/images/ABEIJournal16Internet,pdf> Acesso em: 22 mai. 2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

34

INDIVÍDUO E CULTURA NO ROMANCE FINNEGANS WAKE DE JAMES JOYCE Autora: Ana Caroline Ferreira Costa (UFPR) RESUMO: A discussão sobre a construção simbólica no romance Finnegans Wake (1939), de James Joyce, nunca está dissociada da sua noção de construção simbólica social. Então, ao longo dos anos, sempre foi muito importante para seus críticos entender a razão de um livro tão aberto às mediações do leitor trabalhar com tantas repetições de referências e estruturas narrativas a ponto de podermos ligar todos os episódios por inúmeras semelhanças, pois reside aí seu entendimento de identidade – do indivíduo e das culturas. O Wake nos expõe semelhanças inquestionáveis entre narrativas das mais diversas culturas gerando duas correntes de pensamento: a que vê nisso a revelação de características universais da humanidade e a que busca demonstrar que ele está justamente condenando qualquer padronização. Aqui, defendemos que o livro provém certos pontos de apoio porque relativiza a possibilidade de superação de padrões e que, paradoxalmente, é assim que se torna verdadeiramente instável e mutante. PALAVRAS-CHAVE: identidade. Padronização. Instabilidade.

Afirmar qualquer aspecto do Finnegans Wake (1939) é sempre conflituoso. O último trabalho de James Joyce (1882-1941) permite muitas definições paradoxais e é sempre necessário explicar excessivamente de que ponto de vista se toma um adjetivo para ele. O caso é de todo exclusivo e a ausência de parâmetros na história da literatura para o que o autor realizou nesta obra nos força a buscar nela mesma os padrões que nos guiarão por sua leitura. Poder-se-ia dizer que isto se deve ao livro intencionar algo diverso do raciocínio lógico. A obra foi constituída para ser um sonho, ou talvez um conjunto de sonhos. Suas instabilidades

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

35

linguísticas e seu amontoamento de referências pretendem reconstituir a natureza onírica. Como define Joyce, um “estado noturno, lunar. Isto é o que eu quero transmitir: o que acontece num sonho, durante um sonho. Não o que resta depois, na memória. Depois, nada resta” (JOYCE apud BISHOP, 1986, p. 8 [todas as traduções deste trabalho são minhas]). A ordem que o Wake deseja respeitar, portanto, é a do inconsciente, mantendose distante das necessidades de causa e efeito que têm a consciência. O sono produz um mundo livre, onde as informações se recombinam sem descanso, não permitindo que sua realidade se estabeleça em uma forma. O sonho wakeano talvez não seja de apenas um indivíduo, pois a história de toda a humanidade aparece nas inúmeras referências trazidas no decorrer da obra. Como define Seamus Deane, “Este é um sonho comum, um sonho da família humana, com a ‘história do mundo’ como sua memória” (DEANE in JOYCE, 1992, p. XI). O que temos é, então, uma tentativa de se colocar tudo, absolutamente todo o conhecimento sobre a existência, convivendo sem nenhum tipo de hierarquia. A ordenação não segue as lógicas da cronologia ou das localizações, nem sequer a das classificações que distinguem os objetos entre si. A busca wakeana é pela retirada das leis que regem a forma como uma história é contada: as convenções de linguagem, tempo, cenário e roteiro. A obra toma como base o inglês, mas deforma-o. Funde suas palavras entre si, bem como com outras 86 línguas (GALINDO, 2010, p. 42). Os signos convivem de forma sincrônica, comunicando simultaneamente diferentes níveis de narrativa. A obra constrói, assim, um modo de significação dado pelo jogo, pela descoberta por parte do leitor de possibilidades de combinações entre os vocábulos. É preciso que nós construamos as relações entre os signos notando possíveis associações entre eles.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

36

O estudioso wakeano John Bishop (1993) ressalta que é por associação aleatória que se costuma lembrar um sonho: a última parte primeiro, a primeira parte no meio, e assim por diante, fora da sequência. E nos pergunta: quem garante que não é assim que os sonhos são formados? Que esta não é exatamente a ordem na qual as imagens apareceram durante a noite? Que os sonhos não são impressões informuladas, “talvez ocultando uma estrutura secreta a posteriori para fazer com que aquilo tenha um sentido lógico” (BISHOP, 1993, p. 9). Para Bishop, é deste modo que o Wake nos convida a lê-lo. Sua forma é desordenada, porém nos induz a juntar uma parte de um lugar com outra de outro e, por fim, recorrendo a nossa memória, preencher os vãos entre elas (BISHOP, 1993, p. 306). Logo, o sentido wakeano se faz para nós quando o organizamos, ainda que o texto em si não seja expresso assim. Não apenas estamos sempre resgatando o que já foi lido para entender sua relação com o que vem agora, mas o Wake parece não cessar de resgatar este passado por nós. Independente da ordem em que as narrativas são absorvidas, percebem-se referências de elementos de umas nas outras, como também a repetição de algumas estruturas das histórias, de modo que podemos ligar todos os episódios por inúmeras semelhanças. Cada reprodução revela sempre alterações em comparação com as outras, impedindo-nos de compreendê-las como iguais, mas levando os estudiosos a uma reflexão sobre a existência ou ausência de padrões na narrativa da obra. Nessa reflexão, situa-se a grande divergência entre os críticos, pois a discussão sobre a construção simbólica no Finnegans Wake nunca está dissociada da sua noção de construção simbólica social. Acredito que o tema da uniformização apareça na obra através de sua constante e intensa investigação de nossas origens. Ainda que tenhamos histórias únicas que nos formam como indivíduos, muito interessa ao Wake compreender ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

37

um passado que nos é comum, pois ele é determinante para a construção até mesmo do que seja a individualidade. E é em decorrência da busca por este caminho percorrido que nos deparamos com a forte influência dos mitos na formação das sociedades e, consequentemente, do ser. Assim, as reproduções de analogias aparecem no livro também traçando paralelos entre mitologias das mais diversas culturas, como se as narrativas wakeanas repetissem algo delas. Portanto, no confronto entre identidade e modelo, os críticos acabam por discutir também a influência dos mitos na construção da personalidade e da percepção sobre o mundo. Isso porque o próprio Finnegans Wake parece nos colocar no lugar desta reflexão, nos mostrando que ele mesmo se constitui com base nos mitos ao mesmo tempo em que nos é estranho como mitologia, já que fugaz à promoção de crenças e à estratificação de modos de pensar. Este é talvez o tema mais delicado das análises wakeanas, pois sempre traz consigo o perigo de reafirmar pensamentos que as ciências humanas estão, há muito, tentando superar, como a defesa cartesiana do ego íntegro e da capacidade humana de conhecer o mundo e a si mesmo. Por esse ponto de vista, os mitos poderiam representar uma simbologia completa dos impulsos e da experiência individual (como se ela fosse padrão). Mas, de partida, os críticos em geral assumem o projeto wakeano como o da busca pela expansão de nossas noções, então obviamente nenhum deles admite essa visão como sendo a da obra. Todavia, o romance não cessa de nos apresentar associações entre mitologias de épocas e culturas diversas, o que lega a cada estudioso o dever de considerar corajosamente a essencial participação delas na sua construção e de tentar compreender o que isso revela sobre seu pensamento. Então, o tema da uniformização gera duas correntes de pensamento: de um lado, estão os que defendem que o livro nos revela semelhanças inquestionáveis entre narrativas das mais ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

38

diversas culturas nos mostrando, assim, as características universais da espécie humana (um dos títulos que mais disseminaram a ideia é A Skeleton Key to Finnegans Wake (1944) de Joseph Campbell e Henry Morton Robinson); do outro, aqueles que repudiam qualquer ideia de universalidade e buscam demonstrar que o Wake está justamente condenando tais tipos de pensamento ao expô-los. É desta forma que a reflexão sobre padrões se torna, de maneira geral entre os estudiosos wakeanos, uma discussão sobre identidade. O movimento de leitura Para falar sobre minha compreensão sobre a relação wakeana com os mitos e sua visão sobre identidade, gostaria de apresentar primeiro como entendo o movimento de leitura do Finnegans Wake. Isso porque forma e conteúdo estão intimamente ligados na obra e creio que o modo como nos relacionamos com ela foi arquitetado por Joyce para ser análogo a como, tanto como indivíduos quanto como sociedades, relacionamos-nos com o entorno, com tudo que nos chega como informação das mais diversas formas. Nossa percepção é guiada por um jogo contínuo entre a tentativa de estabilizar compreensões, própria da racionalidade, e a aleatoriedade caótica do inconsciente, sempre utilizando vários tipos de lógica para conduzir uma leitura. O principal recurso wakeano para se aproximar de tal instabilidade é a modificação que o livro faz da língua, criando uma linguagem sem regras definidas, que trabalha através da sugestão de sentidos diversos. O movimento de interpretação do Wake se diferencia daquele comum à leitura de outros livros pela impossibilidade de ser ter uma base para a qual retornar. Se, desde o início, nunca partimos de códigos já definidamente compartilhados, regrados pelas línguas, como é comum em outras obras, partimos já de uma interpretação do que está escrito. A falta de limites básicos para a leitura define um processo ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

39

permanentemente ilimitado, pois podemos sempre mudar de opinião sobre o que está sendo dito no texto. A pós-estruturalista Margot Norris (1974) defende que se, ao longo do livro, recebemos muitas versões de narrativas com similaridades inequívocas, é para que qualquer substantivo, objeto ou mesmo ego se torne um grande campo de referências cruzadas, nenhuma delas se estabelecendo como guia para a nossa compreensão ou como qualquer verdade (1974, p. 5). Ela lembra que personagens trocam de função narrativa (1974, p. 120), muita ‘interferência’ é acrescentada ao sentido (1974, p. 126) e nos deparamos com partes desconexas de referências conhecidas (1974, p. 131), de modo que o regramento, ou a fixação de conexões para a formação de códigos, dá lugar ao jogo livre de associação entre semântica e sintaxe (1974, p. 130). Lidamos com recombinações de pedaços, com a junção de fragmentos, prontos a nos deixar incertos de qualquer relação captada. Porém, ainda que a construção seja caótica, conseguimos construir limites para avançarmos na interpretação. Eles são dados pelas repetições, pelo reforço de sugestões ou suposições. O reconhecimento de elementos, através de suas reaparições, vai nos autorizando a fazer construções sobre o mundo wakeano. Vamos acumulando dados sobre ele, ainda que sejam dados de formatos múltiplos (como, por exemplo, o entendimento de que duas ou mais ações estão se desenvolvendo simultaneamente num episódio). Por isso, Finn Fordham (2007), ainda que defenda que o romance é sim preparado para nos desviar de uma interpretação unívoca, tenta demonstrar ao longo de seus estudos que o aprofundamento do texto, a investigação exaustiva de todas as suas referências, possa resultar em um processo conclusivo, no qual é possível delimitar o que diz o texto wakeano. O que pode nos inclinar a concordar com Fordham é que se não existem limitações de interpretação durante toda a obra, existem ao menos, fortes indícios delas. Ao se escolher suas próprias conexões ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

40

ou graus de aproximação, pode-se acabar por perceber o quanto elas estão preparadas pelo livro: quando investigamos, vemos nossas interpretações sendo constantemente reafirmadas de modo que fica difícil acreditar que sejam contestáveis. É por esta razão que o estudioso defende que as leituras wakeanas têm uma liberdade limitada aquilo que a obra está mais obviamente induzindo. Conforme Fordham, não há necessidade de se multiplicar ou inventar mais ambiguidades para evitar o sentido banal (2007, p. 31). O autor cita Joyce: “o pensamento é sempre simples” (JOYCE apud FORDHAM, 2007, p. 32). No entanto, ainda que a formulação de interpretações sempre se coloque em relação com aquilo que já foi compreendido, por isso voltaremos para os lugares pelos quais passamos, acredito que nunca se retorna exatamente para o mesmo local, mas para algo que já se transformou, já evoluiu, pois já foi acrescido de outras variantes. Como numa espiral, retornamos, mas para um ponto que já é outro. Isso porque os signos vão sempre se estabelecendo na sua relação com os outros, semelhantes, porém diferentes. Assim, quando novos aparecem, com novos dados, isso modifica também a compreensão que já havia sido estabilizada de um signo anterior. Continuamente, reconhecemos novas associações baseadas nas antigas, mas também estranhamos as antigas baseadas nas novas. De forma que permaneçamos ligados a tudo que já foi apreendido para que consigamos avançar, mas também, simultaneamente, destruamos algo dessa apreensão, renovando o olhar sob certo estranhamento. Acredito que, não apenas a obra é arquitetada para que nos relacionemos com ela deste modo, como ela mesma apresenta este processo como a maneira como o indivíduo organiza sua apreensão. Na minha visão, Joyce apresenta este mesmo movimento não só como da formação da percepção que cada indivíduo tem sobre si e sobre o entorno, mas também a de cada cultura e o conjunto de mitos que a cerca (sejam eles de caráter ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

41

religioso, linguístico, histórico ou científico). Para constituir um livro com tudo isso, o autor não apenas desenvolveu um mecanismo que mantivesse funcionando a estabilidade e a instabilidade na leitura da imensidão de referências que a obra oferece, como também os transformou em dois personagens centrais do Wake: o feminino e o masculino. Deles, se fragmentam todos os outros em variadas e indefinidas gradações das características destes dois: a instabilidade (o feminino) e a estabilidade (o masculino). A formação da identidade O modo com que as figuras wakeanas se apresentam é bastante complexo, mas para demonstração da ideia sobre identidade aqui defendida, é possível delimitar algumas formas. Por exemplo, a personagem masculina é frequentemente referida pela sigla HCE. Sugere-se ao longo da obra que este homem cometeu algum pecado não muito claro. Já a personagem feminina pode ser identificada pela sigla ALP. Ela é representante da tentadora da queda de HCE, a Eva que o induz a pecar, mas é também símbolo do criador, aquele que conta as histórias e, portanto, que produz novos HCEs (uma analogia com a maternidade). Notemos que, desde o início, é difícil falar das figuras wakeanas sem que se traga imagens míticas para ilustrar seus papéis. Para falar destas duas personagens, apoiar-me-ei em Norris, que faz uma leitura de ambas baseada nos conceitos de formação do mito de Levis-Strauss. Conforme a estudiosa, no Finnegans Wake como um todo, o gênero masculino tem a necessidade de reafirmar a estabilidade de sua identidade. Norris (1974) toma como exemplo um trecho do primeiro capítulo, no qual entramos em um museu e ouvimos uma explicação sobre a Batalha de Waterloo. A autora nos lembra de que, na narrativa, os dois oponentes riem da masculinidade um do outro, um reflexo ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

42

de um desejo muito potente de dominação. O embate pode ser observado como guerra entre irmãos, como disputa entre pai e filho, ou mesmo como um embate do self de um mesmo homem. De qualquer destas formas, a tentativa de se sobrepor ao outro é a de apagar algo em si que é visto como outro, como estranho. Os opostos brigam pelo controle porque, se o ser é formado por contradições, isso significa assumir autocontrole, ter uma identidade coerente na qual um dos polos subjugou o outro e mostrou-se o dominante, o verdadeiro (NORRIS, 1974, p. 49). Por esta razão, para Norris, qualquer oposição masculina no Wake pode tanto representar uma luta entre as contradições da mesma figura, como um embate entre homens diferentes (NORRIS, 1974, p. 51). O que interessa para os participantes é que no fim haja coerência, que o diferente seja eliminado e uma verdade maior seja estabelecida. O homem, quando confrontando com o espelho, com o seu oposto que é ele mesmo, é levado a rejeitar este outro. Norris afirma que a narrativa edipiana demonstra bem essas relações porque atos privados têm consequências públicas, crimes pessoais viram crimes cívicos, o parricídio é também um regicídio e as questões entre cunhados acabam virando uma guerra civil. Ela explica que Freud coloca este mito na teoria de que instintos infantis permanecem no adulto, de que as relações familiares se expressam coletivamente na condução das nações e de que revoluções coloniais podem ser análogas ao desejo de parricídio (NORRIS, 1974, p. 43). Segundo a estudiosa (1974), uma parte da função de ALP, a mulher, é provocar a infração, o pecado. Redimir o homem dele é a outra. Na função de sedutora, ela é o próprio motivo da queda. Porém, como praticante do resgate, seu papel oposto, nunca está neste momento. Ela aparece depois, vem para unir os fragmentos pós-destruição gerados por todas as catástrofes masculinas. Após a batalha de Waterloo, é a primeira vez que esta sua função aparece, ao menos de maneira mais indicativa. A mulher recolhe ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

43

o que sobrou entre os corpos e coloca tudo em seu saco. Aqui ela é reconciliadora. Até o fim do primeiro livro, já saberemos que ALP distribui à população presentes tirados de seu saco para que, agradando a todos, reconquiste a boa imagem que já não fazem de seu marido decaído, pecador. Atos contrários caracterizam a redenção que ela realiza: ela encontra e doa; junta e dispersa (NORRIS, 1974, p. 64). Ao contrário do homem, ela está em harmonia com sua composição de oposições. Norris afirma que se ALP junta o material que é resto das batalhas – das contradições e combates dos homens – e os redistribui a todos é porque há uma interdependência entre criação e destruição (NORRIS, 1974, p. 67). O que é muito importante ressaltar para a reflexão que aqui desenvolvo é que, conforme Norris, este tipo de construção é próprio da formação dos mitos em todas as sociedades, algo que Lévi-Strauss nomeia bricolage. A estudiosa explica que se trata de usar pedaços de materiais heterogêneos sem dar atenção a suas funções específicas ou originais. As referências são aplicadas ao texto sem que suas individualidades sejam importantes (NORRIS, 1974, p. 130). Joyce libera materiais de seus antigos contextos para justapô-los livremente e permite que eles assumam novas e inesperadas combinações uns com os outros. Como ALP nos escombros da guerra, o autor faz uso dos restos mortos, fossilizados, de nossas ficções para reconstruir, de forma aleatória, novas narrativas. Cito a autora: A distribuição de ALP é um ato de comunicação e troca, em vez de um ato de reconstrução ou de projetar. Ela seleciona pedaços de entulho aleatoriamente; a natureza de seus presentes é arbitrária, e seu modo de distribuição, indiscriminado. Sua generosidade não respeita hierarquias, posições sociais, ordens ou distinções. (NORRIS, 1974, p. 68)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

44

O Finnegans Wake, portanto, inspira-se nos modos de construção dos mitos, mas não trata de construir novas propostas de mitos, novos conceitos de humanidade, e sim de reunir nossas imagens estáticas e reformular, aleatoriamente (o que quer dizer ‘sem hierarquias’), novas combinações delas, novas formulações da realidade. Este é o processo da obra e também o processo que rege a criação dos mitos pelas sociedades: eles se transformam e se renovam. Podemos acrescentar que a diferença é que na versão joyceana desta reconstrução, não há uma forma definida para a nova versão, uma imagem total dela. Há insinuações de recombinações de nossas referências de modo a legar ao leitor a decisão do quê e do quanto se passa em cada parte do texto. Isso porque o Wake é um livro feminino. Depois de apresentada esta ideia de Norris, é preciso dizer que a própria autora, antes de comunicá-la, afirma que o texto wakeano é um auto-conhecimento labiríntico para desmantelar os mitos. Para a estudiosa, é pelas ambiguidades narrativas ou pelos atos falhos que as personagens do Wake expõem a mentira que essas identidades míticas são, e revelam assim o que elas têm de autêntico: pura culpa, resultado de um sentimento do indivíduo de falta correspondência ao modelo (1974, p. 80). Percebamos que, neste momento, a autora fala do aspecto masculino da mitologia, aquele mais presente em nossas concepções do que seja o mito. Isso nos leva de volta à questão que de início coloquei sobre a presença dos mitos no Wake gerar uma desconfiança. Quando são acusados de uniformizar a humanidade, há sempre por trás um entendimento de que eles são algo estático. Norris demonstra bem que HCE representa o lado autoritário de uma coletividade que precisa garantir a estabilidade das identidades formadas, que não quer deixar que elas se destruam para dar lugar a outras; que não aceita que, como os sonhos, elas são efêmeras. Ele é a sociedade patriarcal, responsável pela nossa visão de que mitos são sagrados e, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

45

portanto, devem ser conservados. Já ALP é aquela que não sente necessidade de dominar e nem de poupar ou guardar. Símbolo da formação natural das mitologias e da evolução inevitável das línguas e das sociedades, ela doa, vende e troca. Ela aceita a mudança e, assim, constrói o presente com lixo do passado, com aquilo que já não tem mais serventia; utiliza-se de fragmentos sem se atentar a suas funções originais, já que essas envelheceram e morreram. Portanto, acredito que a grande acusação wakeana, a denúncia que o livro faz, não é contra os mitos, mas contra a sociedade patriarcal e sua necessidade de controle, que gera o pensamento de que é preciso dominar a maneira como as pessoas percebem o mundo. Norris (1974) destaca que a queda, no Wake, é a falta de autenticidade, a prisão a um modelo. A redenção não vem do perdão, mas da reconstituição de uma integridade, que está na transformação. Assim, a personagem feminina realiza um salvamento, e não a salvação (NORRIS, 1974, p. 65). Trata-se de uma aceitação da naturalidade da mudança, ou seja, da naturalidade da queda, seja ela de modelos sociais inteiros, ou de constituições de um mesmo indivíduo. Fordham compartilha com Norris a visão de que o Finnegans Wake ataca os mitos. Defende que o excesso dos detalhes e alusões wakeanos são uma forma de “disputa filosófica sobre a natureza da identidade no mundo”, na qual Joyce busca mostrar como as identidades são forçosamente naturalizadas, minimizando suas individualidades através do hábito social de universalização, proveniente dos mitos (2007, p. 36). O responsável pelo mito da universalidade humana, conforme Fordham, é o humanismo (2007, p. 224). Semelhante a Norris, o autor defende que a queda de HCE acontece porque o personagem quer ser um ‘todo o mundo’, porque crê que pode ser tudo para todos os homens, totalizado, um provedor do conhecimento do mundo e de si mesmo – “sonho que o humanismo adota em busca de apresentar um ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

46

reflexo de si para si como humanidade, e, então, operar cientificamente neste homem ‘coletivo’” (FORDHAM, 2007, p. 242). O Finnegans Wake quer desmantelar a ideia de que precisamos de heróis (o que quer dizer “modelos”) e expressa um mundo anárquico, do anti-fundamentalismo e anti-essencialismo. Através de sua intensa sobreposição de analogias, então, a obra pode realizar o ideal de colocar o efêmero sobre o universal, o múltiplo sobre o uno (FORDHAM, 2007, p. 225). Mas, como citamos anteriormente, Fordham considera que se pode conhecer tudo sobre o Finnegans Wake. Como então poderia dizer que a obra quer justo acabar com a crença de que se pode conhecer a tudo? Ainda que a favor de uma pluralidade, não seria Fordham um ‘totalizador’ do livro? O motivo pelo qual trago o autor para esta discussão é justamente para exemplificar algo que o romance parece provocar em todos os críticos: uma tendência à contradição. O mesmo pode ser visto em Norris, que fala em desmantelar identidades míticas, mas apresenta características bem claras de quem é HCE e de quem é ALP. O masculino e o feminino estão presentes de forma bastante estáveis em seu discurso, mesmo que ela procure demonstrar também o quanto eles se multiplicam em identidades cruzadas e pouco delimitáveis. Isso nos demonstra o quanto o livro, apesar de caótico, está sempre nos mostrando certas estabilidades, alguns tipos de ponto de apoio para avançarmos na leitura, o que faz com que os críticos não possam evitar notar ou mesmo buscar o que podemos chamar de ‘aspectos masculinos’ da obra. Da mesma forma, mesmo os estudiosos que defendem a universalidade da expressões wakeanas, também falam de seus aspectos ‘femininos’. É o que podemos perceber em Campbell, por exemplo, que ao lado de Robinson no livro A Skeleton Key to Finnegans Wake, foi um dos grandes responsáveis por disseminar a visão de que o Wake reproduz padrões míticos porque eles

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

47

correspondem a padrões da própria humanidade. Nesse livro, é dito: Nessas produções anônimas do espírito humano, formadas por muitas mãos e mentes, há de se encontrar um surpreendente padrão-base de personagens e temas arquetípicos. Estes são os personagens e os temas do Finnegans Wake. Eles são as forças da alma humana. Falam por si mesmos com a autoridade de uma presença atemporal e destemida, que sobreviveu a todo tipo de desilusão e vida mortificada, abarca cada variedade dos vícios e virtudes humanos e fez parte de toda cruzada – aliás, de ambos os lados de toda cruzada. (CAMPBELL e ROBINSON, 2005, p. 359-60)

Mas no livro Mythic Worlds, Modern Words, publicado apenas por Campbell, o autor nos diz que o Wake todo é baseado em um processo: quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas (2004, p. 198). A própria mudança contínua é reconhecida como aquilo que há de mais essencial à humanidade. Portanto, podemos perceber que autores diversos, com diferentes aproximações da obra, acabam percebendo no Wake a mudança naquilo que permanece, bem como a permanência naquilo que muda. Isto porque o romance coloca isto em questão, e o faz tanto em suas narrativas quanto formalmente. A ilustração do movimento de eterna mudança pelas próprias histórias wakeanas mostra que a obra pode abarcar simbologias, aos moldes dos (e, por vezes, inspiradas nos) mitos antigos – inclusive fazendo uso de suas imagens. Podemos chamar este tipo de representação de estável. No entanto, também de forma mítica, as narrativas do livro falam de sua própria desestabilização, de sua reserva de estranho. Conforme esclarece Norris (1974), elas são autoreflexivas, tratam de uma experiência que promovem pela forma. O que pretendo chamar a atenção aqui é que, através de dois símbolos estáveis, o feminino e o masculino, o Finnegans Wake ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

48

nos lembra que se constitui de incertezas, mas também da continua delimitação de fronteiras para a sua leitura, sem o qual não é possível avançar. Desta relação de retroalimentação, vem a dificuldade de delimitar o quanto é possível apreender da obra, o que, por sua vez, espelha nosso processo de apreensão do próprio mundo. Conclusões A base que o Wake nos tira com sua língua sem códigos definidos nunca nos dá clareza plena do que estamos conseguindo estabilizar, nunca nos permite ‘confirmar’ certos acúmulos de compreensão sobre ela. Ainda assim, quanto mais estudamos a obra, mais sabemos (saberes esses sempre prontos a se alterarem). De modo que nunca temos uma noção de totalidade – não apenas da obra, mas do que nós mesmos conhecemos dela. Num livro sobre a humanidade e tudo que a envolve, essa estrutura é uma analogia ao quanto sabemos de nós e de onde viemos. Nós somos, como indivíduos e como sociedades, um grande borrão para nós mesmos – repleto de informações, cheio de conclusões possíveis, mas ainda assim um grande borrão. O que quero ressaltar aqui é que é preciso que notemos, neste projeto artístico, a multiplicação de possibilidades de leitura da obra não vem apenas do excesso de estranhamento, mas também da abundância de reconhecimento, e que é isso que desestrutura qualquer localização da origem do sentido. A pura desestabilização poderia ser bem mais identificável, mas o Wake não é só feminino, ele se dá num jogo com a masculinidade. Creio que Joyce atordoa-nos com a duplicidade de estados que criou porque era essencial que o fizesse. Do modo contrário, permaneceríamos na lógica da verdade, do absoluto, da afirmação de uma ideia que pode ser provada como a verdadeira. Deste, ele acaba por ser verdadeira instável e não-identificável.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

49

Portanto, se muitos críticos notam o Finnegans Wake revelando semelhanças inquestionáveis entre narrativas das mais diversas culturas, é porque ele também o faz, mostrando assim que, no meio do caos da existência, são primeiramente as semelhanças, os padrões, que nos permitem ler, identificar, reconhecer, produzir sentido. Tanto como indivíduos, tanto como sociedades, a tentativa de erigir algo sólido faz parte de nossos processos, como fará que isso se desintegre depois. Nossa caminhada pelo Wake é semelhante a uma busca por auto-conhecimento: vamos caminhando sem estar certos sobre o quanto estamos conseguindo mudar nossas percepção em relação aos nossos ancestrais, já que não podemos estar certos se o que tomamos como passado não é apenas uma percepção presente sobre ele; vamos caminhando sem saber o quanto a mais sabemos sobre nós mesmos hoje, já que em vez de um acúmulo podemos estar apenas observado outra possibilidade, um resultado da tão natural mudança; e vamos caminhando com algumas mudanças que para nós são claras, mas que na verdade podem apenas ser ilusões de mudança, já que não sabemos mesmo. No entanto, vamos caminhando, vamos conhecendo, vamos produzindo sentido e saberes e formulando identidades. Como ALP, trocamos: não cessamos nunca de apreender o entorno e devolver a ele alguma organização, obscura e fragmentada que seja; algum sentido, ainda que provisório.

Referências BISHOP, John. Joyce’s Book of The Dark: Finnegans Wake. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. CAMPBELL, Joseph & ROBINSON, Henry Morton. A Skeleton Key to Finnegans Wake. Novato: New World Library, 2005. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

50

CAMPBELL, Joseph. Mythic Worlds, Modern Words: On the art of James Joyce. Novato: New World Library, 2004. FORDHAM, Finn. Lots of Fun at Finnegans Wake. Oxford: Oxford University Press, 2007. GALINDO, Caetano. Sobre a possibilidade de que o Finnegans Wake, de James Joyce, represente uma espécie de síntese literária em moldes bakhtinianos. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 4, p. 38-49, 2010. DEANE, Seamus. Introduction. In: JOYCE, James. Finnegans Wake. Londres: Penguin, 1992.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

51

NUANCES DA VIOLÊNCIA: UMA COMPARAÇÃO ENTRE MARINA CARR E INÊS PEDROSA

Autores: Ana Clara de Lena Costa Andrade (FARESC) Alysson William Rodrigues Ribeiro (FARESC) Orientadora: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

RESUMO: Tomando como base as inter-relações entre autores, gêneros e textos, o artigo tem por escopo traçar as similitudes e diferenças que perpassam os contos “Crie uma sereia só para você”, da escritora irlandesa Marina Carr, e o conto “A cabeleireira”, de autoria da portuguesa Inês Pedrosa. Partindo das teorias postuladas por Tzvetan Todorov, Mikahil Bakhtin, Walter Benjamin e outros expoentes da teoria literária e da aproximação entre os textos, os principais temas abordados serão as múltiplas vozes e gêneros que permeiam o discurso e o diálogo com seus pares, assim como a violência em suas múltiplas facetas, o lugar social das mulheres e crianças e seus reflexos na literatura, e consequentemente as ponderações e críticas de ambas as produções acerca dos valores prezados pela sociedade e sobre a natureza humana. PALAVRAS-CHAVE: Violência. Literatura Inglesa. Literatura Portuguesa. Análise Comparativa.

A literatura contemporânea está permeada de obras que abordam o desvelamento da violência. Os estudos literários, cada vez mais, voltam-se para a necessidade de dar voz e representação aos inúmeros grupos até então socialmente oprimidos ou ignorados. Dessa forma, este trabalho tem por finalidade analisar, traçando paralelos entre as obras, de que forma a violência é abordada nos textos Crie uma sereia só para você, de autoria de Marina Carr, e A cabeleireira, de Inês Pedrosa.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

52

Da questão da violência Sempre tomada como tema polêmico e de difícil discussão, violência é um termo que nos remete a situações de agressividade e conflito, fatos que geram desconforto ao leitor pacífico quando da leitura de obras aqui analisadas. Para que a análise prossiga em suas facetas mais particulares, é importante aclararmos o conceito de violência. De acordo com a definição dada pelo dicionário Aurélio, ela é o “ato violento e constrangimento físico ou moral; uso da força; coação” (HOLANDA, 2004, p. 2065). Valmir de Souza, por sua vez, na obra Os sentidos da violência na literatura, a define como uma ação que simplesmente não considera a outra pessoa, ou melhor, a considera como uma coisa, numa relação em que o outro não fala e se torna um objeto. Ela não precisa ser necessariamente de ordem física, também se manifesta em seu aspecto psicológico, ou simbólico, em suas formas sutis e quase imperceptíveis. (SOUZA, 2007, p. 47)

Intrinsecamente ligada à história da humanidade desde os seus primórdios, a violência é, em síntese, a ação que almeja aniquilar o outro, desconsiderando-o. Mais comumente notada em seu aspecto físico, a violência também se dá nos âmbitos psicológico e simbólico. Muitos escritores têm demonstrado, atualmente, o fascínio que o tema instaura no imaginário popular. Nas obras analisadas, os mais diversos conflitos presentes nas relações humanas são abordados de maneira concisa, direta e feroz, mesmo que recobertos de lirismo e simplicidade, especialmente no conto de Marina Carr. Para a compreensão da recorrência do assunto na literatura contemporânea, não podemos nos dissociar da noção de que a violência se apresenta em múltiplas facetas, cada uma

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

53

delas originada em um contexto ou situação particular. Sendo um conceito extremamente abrangente, é contraditória sua banalização na psique coletiva, uma vez que em certos aspectos culturais a violência é permitida e até mesmo justificada, sendo tratada veladamente para a manutenção dos limites e convenções sociais. Não tendo, pois, um significado único e estanque, é fundamental aclarar que a violência deve ser entendida em suas multifacetadas nuances históricas e sociais. Nas palavras de Wievorka (1997), ela “não é a mesma de um período ao outro”. Se tratarmos do assunto por meio de um viés analítico, devemos citar Yves-Alain Michaud quando postula que “uma ação direta ou indireta, concentrada ou distribuída, destinada a prejudicar uma pessoa ou a destruí-la, seja em sua integridade física ou psíquica, seja em suas posses, seja em suas participações simbólicas”. (MICHAUD, tradução de L. Garcia, 1973, p.5). A partir da noção de que, à luz de uma análise imediatista, a violência é uma ação que implica a dicotomia agressor/vítima, é nessa relação que são mensurados os danos físicos, morais e psicológicos impostos ao agredido. Velho e Alvito postulam que este é “o modo mais agudo de revelar o total desrespeito e desconsideração pelo outro, implicando não só o uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la” (1996, p.10). Por isso, é imprescindível o entendimento de que toda prática que envolve violência está permeada pela subjetividade que motiva tais ações. Ressalte-se que a violência é um fenômeno complexo, podendo ser gerada por medo, insegurança, raiva ou até mesmo angústia. Ela possui uma gama de aspectos que podem gerar conflitos das mais diversas ordens e profundidades. Para Faleiros, A não aceitação do conflito e dos mecanismos para enfrentá-lo provoca a violência, pois o conflito assume uma feição direta sem mediação e passa a ter como solução a força física, a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

54

necessidade de eliminar o outro na expectativa da eliminação do conflito; sendo assim, ocorre a violência como a substituição da mediação do conflito, pela negação do outro. (1998 apud FERNANDES et all, 2006, p. 228)

Outro viés afirma que a violência é intrínseca à natureza humana, fazendo parte da constituição sociocultural da humanidade. Entretanto, analisar esse fenômeno por meio dessa ótica traz consigo o perigo de banalizar e tornar naturais suas manifestações concretas e cotidianas. As dimensões das relações humanas trazem consigo contextualizações de poder e dominação que, historicamente, sempre foram impostas pelo uso violência. Partindo, portanto, do pressuposto de que a Literatura é a área do conhecimento humano que permite a expressão das mais diversas vozes e discursos, passemos à análise dos contos e de como a violência se apresenta em cada um deles. “Crie uma sereia só para você” Marina Carr narra a história de uma família irlandesa pertencente ao clã dos Connemaras. As relações entre os membros dessa família são conturbadas e todos se tratam com bastante frieza. Os problemas familiares iniciam-se com o avô, que abandonou a avó Blaize há trinta anos e nunca mais voltou. Esse pode ser o motivo que explica a demência que a senhora apresenta em sua idade avançada. Os pais da criança, por sua vez, são ausentes e realizam com incompetência seus papéis como pais. O pai está sempre fora de casa, por causa de suas viagens, e a mãe trata seus filhos com frieza na maior parte das ocasiões mostradas no conto. A violência física é recorrente no contato da mãe com as crianças. Até mesmo quando demonstra carinho, é de uma forma agressiva. Isso pode ser visto na ocasião em que a mãe dorme abraçada com

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

55

a criança com tanta força que quase sufoca a mesma, como exposto no trecho: Algumas noites a mãe da criança apertava-a tanto junto a si que não podia respirar. A criança ficava quente e pegajosa quando sua mãe sussurrava embaixo do acolchoado sobre “aquele filho da mãe” e “depois de tudo que eu fiz por ele” e “é assim que ele me paga”. A criança tentava colocar a mão fora das cobertas para pegar um pouco de ar fresco e a mãe da criança a agarrava e a puxava de volta ao escorregadio calor da cama. “Meu amorzinho”, murmurava a mãe da criança enquanto a criança jazia lá banhada em suor, com a face úmida da mãe em seu pescoço. A criança abafava um grito. (CARR, 2006, p. 2)

O pai é quem demonstra ter mais amor pelos filhos, pois ele dá atenção e até brinca com eles. Porém isso sempre dura pouco, pois quando o pai sai, a mãe desconta nos filhos a carência e ódio por ter sido deixada. Ironicamente, a demonstração de violência da mãe expõe sua covardia e fraqueza, pois ela não consegue aceitar o fracasso de seu casamento e externaliza sua raiva nas crianças indefesas, como pode ser acompanhado no parágrafo a seguir: O pai da criança foi embora de novo, no meio da noite, desta vez. A mãe da criança quebrou a porta de vidro com a cabeça do irmão da criança. A criança contou sua respiração, aguda e superficial. O irmão olhava para ela enquanto a mãe da criança o segurava para o médico limpar o ferimento. (CARR, 2006, p. 4)

As punições sofridas pela criança a levam a conjecturar sobre possibilidades que a livrassem de sua realidade, podendo ser encaradas como seu desejo de libertação. A partir do anúncio de um jornal que prometia a possibilidade da criação de “sereias de estimação”, a criança almeja tal objeto como fonte de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

56

emancipação, como uma catarse que expurgasse dela todas as agressões sofridas. Para a criança, a sereia e todo o mundo de fantasias a ela relacionado representam a felicidade que não está ao seu alcance. Seu desejo pode ser expresso no trecho abaixo: A criança comia os doces que eram do irmão doente, e a mãe a mandava para a sala preta e vermelha. A criança esperava. Depois do que parecia ser uma eternidade, a mãe da criança aparecia na porta com um cabide de madeira. (...) Depois, deitada no sofá com vergões tão grandes como cenouras nas suas pernas, a criança dormia e sonhava com um homem com um forcado que vivia no fundo do mar. – Quanto tempo? – sussurrava a criança. (CARR, 2006, p. 3)

Abandonada pelo marido e desiludida com o futuro, a mãe comete suicídio, afogando-se no “lago dos palácios”. Após esse episódio, as relações entre o pai e os filhos distanciam-se ainda mais, e dá-se a entender que a “criança” protagonista do conto passa por um período de aceitação e conformidade, quando mencionado que “a criança dorme por vinte anos” (CARR, 2006, p.6). No entanto, quando lemos que ela usou por todo esse tempo a aliança de casamento de sua mãe, depreende-se que ela nunca se libertou completamente das amarras psicológicas que também a levaram ao suicídio inferido no fim do conto. Nesse ponto pode ser feita a leitura de que a sereia é o “guia” da passagem da vida para a morte, a partir da leitura do último parágrafo do conto: A criança está numa piscina. Parece que ela nunca vai alcançar o fundo, então o alcança. Uma porta de forte se abre com um rangido, um reluzir de barbatanas douradas, a sereia aparece. – Até que enfim, você veio finalmente – diz a criança. A sereia sorri, aquele sorriso de anos atrás na mesa de fórmica azul. A criança se prepara para a descida nas águas. O rabo da sereia ilumina o caminho. (CARR, 2006 p. 6)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

57

No final do conto, é possível chegar à conclusão de que a sereia, que esporadicamente é mencionada, era como um porto seguro o qual a criança almejava alcançar. Essa sereia simbolizaria uma amiga e traria o afeto e a companhia de que a criança sempre careceu. A cabeleireira Construído em primeira pessoa, o que acrescenta grande carga de verossimilhança ao conto, A cabeleireira apresenta a narrativa das memórias de uma mulher que teve uma vida de repressão sexual e moral por parte de sua família durante a infância, e pelo marido, na idade adulta. Ela conta sua história para a companheira de cela enquanto corta seus cabelos. No fim do conto, depreendemos que a protagonista está presa por ter assassinado seu marido. Tendo sido criada em um lar tradicional, a protagonista sofre nas mãos de um pai machista, uma mãe que a reprimia por sua condição submissa de mulher e também de um tio, que desde cedo abusa sexualmente dela, obrigando-a ao silêncio. Depois de adulta, casa-se com um homem poderoso e influente, ícone da televisão portuguesa e símbolo de integridade e honestidade. Entretanto, a vida matrimonial era permeada pela humilhação, pelas traições e pela violência psicológica que o marido infligia a ela. Como uma tentativa desesperada de encontrar consolo, a protagonista almeja se tornar mãe. Tal desejo fica expresso no trecho em que ela diz: (...) decidi ter uma criança. Não foi para o prender. Foi para não ter medo de o perder. Para fazer nascer um amor absoluto, imune a traições. Comecei a sonhar com o sorriso do meu bebê, com os seus abraços. Seríamos tudo um para o outro. (...) Mas de repente parecia-me que o poder de gerar um novo ser era uma força feminina que devia ser exercida. (PEDROSA, 2007, p. 47) ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

58

Até mesmo esse desejo lhe foi negado. Desde que descobriu sobre a gravidez da esposa, o marido insistiu para que a gestação fosse interrompida. Por fim, em um momento de raiva, ele agride fisicamente a mulher. A violência sofrida é de tal forma brutal que faz com que a protagonista sofra um aborto. A cena é descrita de forma crua e feroz, como podemos ler abaixo: Aos cinco meses de gravidez tornara-se tão visível que ele não aguentou. Atirou-me ao chão e desatou aos pontapés nessa barriga que o afrontava. Tentei proteger o meu filho, mas não fui capaz. Desmaiei. É só isso que até hoje não me perdoo: não ter sido capaz de me fechar em concha sobre o meu bebê, não ter sido capaz de evitar a sua morte. Deixei-o ir. (PEDROSA, 2007, p. 49)

O conto termina com a narrativa do assassinato do marido pela protagonista, em uma última tentativa de se libertar da violência e do sofrimento que a oprimiram durante toda a vida. Podemos analisar tal fato ao lermos o seguinte trecho: Uma vez disseram-me que numa existência anterior eu fui queimada como bruxa pela inquisição, e que é daí que me vem este mal-estar com o mundo e a minha incapacidade de reação. É como se nada valesse realmente a pena, como se as labaredas da morte rodeassem a minha vida inteira. Naquela noite, de repente e por uma única vez, eu achei que tinha de lutar contra essas labaredas. O meu sentido de justiça ergueu-se e foi mais forte do que a aceitação da dor, a delicadeza a que eu estava habituada. Foi uma raiva que me deu. (...) Lembro-me de sentir o sangue todo do meu corpo a correr furiosamente para o meu cérebro, e uma coragem estranha, uma vontade de ação imperiosa a tomar conta de mim. (...) Eu nunca fui pessoa de fazer as coisas com intenção ou maldade. Nem nunca menti, nem tentei fugir, nada disso. Nunca fui uma pessoa revoltada, sempre me ensinaram que a ira não leva a lado nenhum. (PEDROSA, 2007, p.5) ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

59

Tratando essencialmente do sentimento de vingança, um tema comum e cotidiano, o conto seria bastante comum não fosse pela engenhosidade de sua escrita. Se analisarmos os elementos recorrentes e indicadores do rumo que o conto tomará em sua conclusão, podemos citar a técnica conhecida como foreshadowing, que é empregada por artistas para prenunciar padrões de desenlace e que Inês Pedrosa utiliza com maestria. No âmbito psicológico, a protagonista é uma personagem extremamente complexa. Ao analisarmos a psique da protagonista, vemos o quão paradoxal é o fato de que a mesma pessoa que teve uma vida permeada por tantos momentos de sofrimento consiga narrá-los com tanta calma e frieza. Das relações entre as obras Uma comparação entre as duas obras mostra pontos semelhantes entre as realidades das personagens de cada texto. A violência é recorrente na vida das duas protagonistas. Ao passo que a narradora de A cabeleireira é atormentada pela violência verbal, que a oprime, representada na infância pela autoridade do pai machista e do tio que abusa sexualmente dela, e na idade adulta pelo marido que a humilha, a criança do conto de Carr sofre por causa do caos do ethos em que está inserida. Nela são presentes marcas emocionais oriundas de uma criação desestruturada e de castigos físicos. É interessante destacar a construção das personagens que protagonizam as narrativas. Ambos os contos possuem personagens principais que não são em nenhum momento nomeadas ou lhe são atribuídas outras marcas que as distingam como seres com individualidade e particularidades. Possivelmente tenha sido proposital a escolha das autoras para mostrar o distanciamento e o desprezo das famílias e da sociedade em geral, já que aqui tratamos de duas classes de indivíduos sempre subestimadas: as mulheres e as crianças. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

60

Outro ponto em que as histórias convergem é o simbolismo dado ao tratamento da morte. Nas duas narrativas há a recorrência da água, mais especificamente dos lagos, como elementos representativos da morte. No conto de Marina Carr, a mãe das crianças comete suicídio afogando-se deliberadamente em um lago nos arredores de onde moravam. No conto de Inês Pedrosa, a protagonista sonha com “um lago azul escuro no meio das montanhas (...) em que meu pai nadava, afastando-se de mim” (PEDROSA, 2007, p.3). Logo após o episódio, ela recebe a notícia do falecimento de seu pai. Destaquemos também o modo como cada narrativa é concluída. A protagonista de A cabeleireira mata seu marido usando a tesoura que usava para embrulhar os presentes de Natal. Para ela, esse foi um ato catártico, libertador, que a tirou do “estupor” em que tinha vivido até então. Por sua vez, o conto de Marina Carr sugere que a criança tenha cometido suicídio ao chegar à idade adulta, indicando, ao contrário da narradora do conto de Pedrosa, que as marcas psicológicas deixadas pela infância não foram superadas. Por fim, citemos que ambas as histórias tratam de questões e sentimentos extremamente complexos e cheios de simbolismo. Entretanto, a leitura das obras é de fácil entendimento e de rápida assimilação por parte do leitor, já que a problemática de ambas é externada por meio de uma linguagem fluida e simples. Considerações finais O distanciamento e a desumanização sofrida pelas protagonistas das obras analisadas nos mostram que para compreender como se origina a violência é necessário considerar as relações familiares, as dimensões culturais, as relações de poder e todas as nuances das interações humanas. Consideremos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

61

também que a interpretação do fenômeno é deveras complexa, pois nunca podemos identificar uma única origem ou somente um ângulo para abordar tal questão. Independentemente dos recursos estéticos empregados pelas autoras, do contexto cultural no qual se inserem e da forma pela qual o assunto é abordado, ambas as produções citam e problematizam a intolerância humana. Os contos são formas de investigar e tratar a natureza do ser humano, em especial os limites do caráter, da moral e da ética que regem a consciência da humanidade. Quando a violência é denunciada pelo discurso e pelo lugar social do sujeito vítima da brutalidade, as possibilidades de impactar o leitor são ainda maiores. Sendo a Literatura o espaço ficcional em que é permitida a expressão de todas as questões que não são admitidas na realidade social, fica clara a importância da leitura de textos como os analisados no presente artigo para a sensibilização e a conscientização das problemáticas por eles abordadas, e que, por sua vez, são uma representação verossímil da realidade. Nas palavras de Mitry, “a literatura nos faz sentir o mundo de modo abstrato, por meio de palavras e figuras do discurso” (2002, apud CURADO, 2007, p. 4-5). Entretanto, esse sentimento abstrato é fruto de elementos objetivos e palpáveis. Conclui-se, portanto, que ambos os textos foram elaborados para retratar pessoas que vivem sob a sombra da humilhação, do descaso e do desengano em relação à vida e ao futuro. Tais indivíduos, muitas vezes, como representado nos contos, tentam apartar-se das realidades que os oprimem, mas sem sucesso. Marx afirma que “os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas” (apud Hall, 2006, p. 34). Sendo assim, vemos que a existência em tais condições gera várias consequências na consciência humana, e que a mais destrutiva delas é, sem dúvida, a violência.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

62

Referências CARR, Marina. Crie uma sereia só para você. In: MUTRAN, Munira Hamud (Org.) O mundo e suas criaturas: uma antologia do Conto Irlandês. São Paulo: Humanitas, 2006. p. 29-39. CURADO, Maria Eugênia. Literatura e cinema: adaptação, tradução, diálogo, correspondência ou transformação?, Goiás, v. 1, nº 9, Jan/ Dez 2007. FERNANDES, S.; NITSCHKE, R.; ARARUNA R. Violência na cultura contemporânea: o quotidiano familial. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte: v.10, p. 226-232, jul/set 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.MICHAUD, Yves-Alain. La violence. Tradução de L. Garcia, Paris: PUF, 1973. PEDROSA, Inês. Fica comigo essa noite. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. SOUZA, Valmir de. Violência e resistência na literatura brasileira. In: ____. Os sentidos da violência na literatura. São Paulo: LCTE, 2007. VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos. Cidadania e violência. Rio de Janeiro: FGV, 1996. WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. In: Tempo social. São Paulo: USP, 1997.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

63

CRÍTICA À DUPLICIDADE DA MORAL VITORIANA EM A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE Autor: Anna Stegh Camati (UNIANDRADE) RESUMO: Em seus escritos, ao parodiar as convenções literárias formulaicas associadas aos gêneros românticos, tais como a literatura sentimental de massa, o romance epistolar e o melodrama, Oscar Wilde (1854-1900) ataca e expõe ao ridículo a duplicidade da moral vitoriana. O grande apelo popular do melodrama levou o dramaturgo a incorporar, com o intuito de subverter, as fórmulas do gênero em A importância de ser Prudente (1895). No presente trabalho, pretende-se analisar a subversão de dois recursos básicos do melodrama – o jogo das identidades e as coincidências providenciais – à luz de considerações críticas de Linda Hutcheon sobre a utilização da paródia com fins satíricos. Objetiva-se mostrar como Wilde vira os estereótipos de cabeça para baixo, decompõe o maniqueísmo e representa os clichês com distanciamento crítico. PALAVRAS-CHAVE: Oscar Wilde. A importância de ser Prudente. Subversão do melodrama. Paródia. Sátira.

Introdução Na segunda metade do século XIX, a estética do drama romântico, que havia se consolidado em uma fórmula dramática amplamente difundida sob o rótulo de peça bem-feita (pièce bienfaite, em francês; e well-made play, em inglês), aperfeiçoada no início do século por Eugène Scribe, Victorien Sardou e Alexander Dumas Père e Fils, exauriu-se. O drama burguês e o melodrama, que haviam abraçado os parâmetros dessa fórmula de sucesso, repleta de exagêros e sentimentalismos, também entraram em um processo de estagnação e degeneração. Hoje, entende-se por melodrama uma modalidade de teatro comercial de fórmulas gastas e exauridas, reduzidas a clichês,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

64

com motivos mercadológicos bem claros, uma vez que o público médio sente-se confortável ao ver peças que têm um ideário familiar e referências de fácil identificação. Apesar de ser alvo de ataques da crítica especializada, o melodrama sobrevive em diversos segmentos midiáticos, revelando-se um gênero resistente e indestrutível. Perspectivas teóricas sobre o melodrama e a subversão do gênero Os melodramas da segunda metade do século XIX eram estritamente convencionais, seguindo uma série de artifícios que objetivavam divertir e dar prazer, servindo de válvula de escape para a plateia, e não exigindo nenhum esforço de reflexão por parte do espectador. Em Aventura, mistério e romance, John Cawelti (1976, p. 08-20) argumenta que todas as fórmulas literárias (melodrama, romance sentimental de massa, romance western, estórias de detetive ou thrillers) são sempre orientadas para algum tipo de escapismo e previsíveis em seu final, na maioria das vezes apresentando o que se convencionou chamar de justiça poética ou fantasia moral, isto é, os bons são recompensados e os maus recebem seu justo castigo. Assim, o enredo do melodrama geralmente seguia um padrão maniqueísta, ou seja, o embate entre o bem e o mal era representado por meio das figuras do herói e do vilão, com o triunfo final da virtude e a punição do vício. Após uma série de obstáculos e tribulações, o vilão era derrotado e os amantes ficavam juntos em um final feliz. Apesar de que quase sempre a trajetória do herói parecia fadada ao fracasso, vítima dos ardis do vilão, após uma série de reviravoltas, ele superava todas as dificuldades e triunfava. Para tornar estes reveses plausíveis, o enredo era construído em torno de um segredo, que era revelado em um momento crítico chamado scène à faire ou cena do reconhecimento, em que todos os mistérios eram revelados e ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

65

todos os fios condutores da ação eram desembaraçados, geralmente à maneira deus-ex-machina, com direito a arroubos catárticos, punições exemplares e desfecho redentor para lavar a alma do espectador. Recursos dramáticos, tais como falsas identidades, coincidências providenciais, falsas mortes, ressurreições, falsos testemunhos ou testamentos, cartas incriminadoras, falsas ou anônimas, salvamentos miraculosos, mal entendidos, documentos perdidos e encontrados, falsos rumores e equívocos de toda espécie forneciam a evidência necessária para o desembaraço da complicação e para a resolução da questão das identidades. Um dos passatempos favoritos da plateia era adivinhar quem é quem. A fórmula de sucesso do melodrama foi apropriada no século XX por dramaturgos de diversos países, e o gênero continua a prosperar na cultura de massa até os nossos dias. A consciência do grande apelo dessa fórmula motivou Oscar Wilde, Henrik Ibsen e Bernard Shaw, dentre outros, a fazerem uso dela para, em seguida, subvertê-la. Oscar Wilde (1854-1900), por exemplo, entendeu que para alcançar sucesso de público e crítica, ele teria de incorporar a fórmula que pretendia demolir. Através do recurso da paródia, ele zomba das convenções dramáticas exauridas, virando os estereótipos de cabeça para baixo. Ele decompõe o maniqueísmo do gênero, representando os clichês do melodrama com distanciamento crítico. Ao mesmo tempo, ataca e expõe ao ridículo os valores obsoletos da sociedade burguesa de seu tempo, utilizando a paródia com fins satíricos. Assim como Shakespeare, Bernard Shaw e Tom Stoppard, Wilde é um mestre da língua inglesa, utilizando uma diversidade de recursos estilísticos como: understatement (humor subentendido), wit, ironia, sátira, paródia, travestimento, paradoxo e linguagem epigramática (inversão de clichês). Antes de ser envolvido num dos maiores escândalos da Inglaterra vitoriana, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

66

era um dos artistas mais aplaudidos e polêmicos de seu tempo. A burguesia ia ao teatro para assistir a suas peças e ria de sua própria estrutura de valores que, apesar de ultrapassada, continuava a ser cultuada. A paródia satírica em A importância de ser Prudente (1895), de Oscar Wilde Em A importância de ser Prudente (1895), Oscar Wilde parodia diversos discursos, estilos e convenções de gêneros formulaicos, tais como o romance sentimental de massa, o romance epistolar e, principalmente, o melodrama para satirizar a moral hipócrita vitoriana. Linda Hutcheon (1989) vê a representação paródica como uma síntese bi-textual em que os elementos apropriados adquirem uma nova função. O distanciamento crítico, que se instala nesse processo, atua como um mecanismo de tomada de consciência, impedindo a aceitação de pontos de vista estreitos (p. 131). A crítica canadense considera a paródia uma arte sofisticada “nas exigências que faz aos seus praticantes e intérpretes. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo” (HUTCHEON, 1989, p. 50). O conceito moderno de paródia de Linda Hutcheon revestese de grande importância para a análise da obra de Wilde. Por ser uma modalidade de jogo que permite ao dramaturgo brincar com o acervo literário, a paródia constitui-se em um dos recursos de construtividade preferidos de Wilde que vira formas e estilos dramáticos convencionais de cabeça para baixo para chamar atenção à problemática da inadequação dessas convenções para representar a realidade. O autor visa, ainda empregar a paródia como instrumento para atingir fins satíricos, objetivando ridicularizar os vícios e hipocrisias da sociedade vitoriana.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

67

O enredo da peça A importância de ser Prudente (1895) é estruturado a partir de dois recursos básicos do melodrama – o jogo das identidades e as coincidências providenciais – que são responsáveis pelo acionamento da tradicional fórmula da peça bem-feita, aperfeiçoada por Scribe e seus seguidores. Através de recursos paródicos, Wilde ataca o conservadorismo e as ideias ultrapassadas que esse tipo de drama veicula. Como já foi dito anteriormente, no cerne da fórmula da peça bem-feita há uma espécie de enredo mecânico, caracterizado por situações plausíveis, porém improváveis, e por uma série de artifícios que sempre seguem o mesmo padrão. O enredo geralmente é articulado em torno de um segredo, que é conhecido (ou não) pelos espectadores, porém é sempre ignorado pelo herói ou pela heroína até o momento em que o mesmo é convenientemente revelado em um momento crítico na famosa cena do reconhecimento ou scène à faire, cujo objetivo é fazer convergir todos os fios narrativos em direção ao final feliz. Nesse sentido, as chamadas coincidências providenciais são indispensáveis para promover a evidência necessária que conduz ao esclarecimento das identidades. Em A importância de ser Prudente, o motivo da criança abandonada acrescenta complexidade ao enredo do jogo das identidades. João, que mora no campo e havia sido abandonado (ou melhor, esquecido dentro de uma mala na Victoria Station), foi adotado pelo senhor Worthing e, depois de adulto, ficou encarregado de cuidar de uma jovem chamada Cecily que está sob sua tutela. Ele inventa um irmão devasso chamado Prudente (que desperta o interesse de Cecily) para justificar suas escapadas a Londres, onde ele assume o nome de Prudente e corteja Gwendolen, prima de seu amigo Algenon Moncrieff. Da mesma maneira, Algernon cria uma personagem inválida chamada Bunbury para poder fugir do tédio dos compromissos sociais da cidade e passar alguns dias no campo. Quando a farsa de João é ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

68

descoberta por Algernon, o primeiro encena a farsa da morte de seu irmão para evitar complicações, ao mesmo tempo em que Algernon decide assumir a identidade e o nome de Prudente para conhecer Cecily e eles se apaixonam. Nesse sentido, Wilde brinca com as convenções do romance sentimental de massa: as declarações de amor das heroínas seguem modelos da literatura sentimental da época: ambas sonham encontrar um homem chamado Prudente. Ambas se apaixonam perdidamente por seus amados, mesmo antes de conhecê-los. Gwendolen diz que seu ideal foi sempre amar alguém que se chamasse Prudente, e Cecília chega ao extremo de forjar um romance com Prudente, o suposto irmão de João, do qual ela fica noiva e desmancha o noivado bem antes de conhecê-lo, como comprovam as anotações em seu diário. Percebe-se que o intuito de Wilde é ridicularizar o motivo das barreiras insuperáveis que constituem impedimentos à realização dos sonhos das heroínas. O problema maior vai girar em torno das identidades confusas, visto que ambas, Gwendolen e Cecily, são fascinadas pelo nome Prudente. Por meio da paródia do romance epistolar, Wilde também introduz em sua peça uma critica à moral castradora vitoriana: o diário é transformado em instrumento de auto-ilusão consciente – as jovens heroínas derivam para a ficção para se libertarem do conflito proveniente das limitações que sofrem por parte do real. A impostação de sentimentos derivados da arte é uma fantasia compensatória de uma realidade frustrante, sem graça e sem emoções. Os modelos de conduta amorosa que percebem em sua volta são extremamente frustrantes. Lady Bracknell, a mãe de Gwendolen e tia de Algernon, não aprova o namoro de sua filha com o Sr. Worthing por ele ser adotado e por ter identidade duvidosa (visto que, como já foi dito, foi encontrado dentro de uma mala). Após o famoso interrogatório, ela deixa claro a sua posição em relação ao jovem quando diz: ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

69

“Então o senhor pensa que eu e Lord Bracknell vamos consentir que nossa única filha – uma menina educada com todo carinho e cuidado – acabe casando-se com uma peça de bagagem numa estação ferroviária?” (WILDE, 1998, p. 40). A paródia das coincidências providenciais funciona como um elemento deus-ex-machina para resolver a questão das identidades na peça. As falsas identidades são desmascaradas quando Gwendolen e Cecily descobrem a farsa de João e Algernon que haviam assumido nome e identidade fictícias para seduzilas. E a identidade duvidosa de João/Prudente é esclarecida após a confissão de Miss Prism na scène à faire ou cena do reconhecimento. Nesta cena, Lady Bracknell reconhece Miss Prism (no passado a babá do bebê de sua irmã e agora preceptora de Cecily) que desaparecera com seu sobrinho há muito tempo atrás. Pressionada em um interrogatório, Miss Prism confessa que esqueceu o bebê numa mala de mão na Victoria Station: O caso passou-se da seguinte maneira: na manhã daquele dia, dia que ficou para sempre gravado em minha memória, prepareime como de costume para levar o menino a passeio no carrinho. Eu levava também comigo uma mala de mão, bastante velha e espaçosa, na qual tencionava guardar os originais manuscritos de uma obra de ficção que eu tinha escrito nas horas vagas. Num momento de imperdoável distração, troquei os conteúdos: pus o manuscrito no carro e o bebê na mala. (WILDE, 1998, p. 90)

O bebê na mala em questão é João, cujo verdadeiro nome coincidentemente é Prudente e, pasmem os incrédulos, ele é irmão legítimo de Algernon, o que para Lady Bracknell é um motivo mais do que suficiente para torná-lo elegível para sua filha Gwendolen. Assim, no final da peça, todas as barreiras insuperáveis são vencidas e os pares românticos têm permissão para se casar. Através da incongruência e do exagêro, Wilde ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

70

ironiza o tradicional recurso deus-ex-machina que possibilitava a convergência de todos os elementos e propiciava o encaminhamento de um final feliz. Os detalhes do enredo da peça e os recursos literários empregados imediatamente nos remetem à paródia dos gêneros românticos exauridos. A ironia de Wilde se dobra sobre o sentimentalismo exagerado desse tipo de literatura e às ideias ultrapassadas que veicula. É importante salientar, no entanto, que Wilde subverte os elementos tradicionais das formulas literárias e vira os estereótipos de cabeça para baixo com o intuito de estabelecer uma completa inversão de valores. Em detrimento à tese dos elementos parodiados ele propõe uma antítese cômica que torna ridícula as situações e as personagens, lançando, assim, uma luz extremamente esclarecedora sobre a sociedade de seu tempo, denunciando as ideologias e os costumes vigentes. Considerações finais Em A importância de ser Prudente, a paródia e a sátira interagem de uma maneira complexa e extremamente eficiente. Ao utilizar a paródia com fins satíricos, o dramaturgo denuncia a moral dupla da era vitoriana que, sob a máscara da respeitabilidade, escondia sua face hipócrita. Ao flagrar a podridão que jazia por trás da fachada polida da estrutura social, Wilde expõe ao ridículo o sistema fechado de classes sociais na Inglaterra, os ócios da nobreza e a falsidade da sociedade em geral, que estava sempre preocupada em manter as aparências Uma outra função da paródia na peça de Wilde é mostrar o estado decadente em que se encontrava o teatro inglês à época. Após o período áureo do teatro elisabetano-jaimesco, e um breve florescimento do teatro na época da restauração, seguiu-se a franca decadência das formas dramáticas até a metade do século XIX. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

71

Referências CAWELTI, John G. Adventure, Mystery and Romance. Chicago: The University of Chicago Press, 1976. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989. WILDE, Oscar. A importância de ser Prudente. Trad. Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

72

A DOR COMO DOMINANTE ARTÍSTICO NO CONTO “A MORTE DA VACA” Autora: Assiria Maria Linhares Masetti (Uniandrade) Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (Uniandrade) RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar o conto “A morte da vaca”, de Liam O’Flaherty, publicado na coletânea O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês, organizada por Munira H. Mutran. Procurar-se-á demonstrar, com base no conceito de Dominante, como a dor – tanto física quanto psicológica – é o elemento que se sobressai e organiza os demais componentes da narrativa. Assim, serão investigados, igualmente, aspectos da construção da personagem e da motivação utilizada para caracterizá-la, tais como a humanização da vaca – em contraposição ao comportamento dos seres humanos –, a perda do filhote e a obstinação na busca por ele, mostrados durante o trajeto que percorre, até se precipitar “rochedo abaixo”. Para tanto, lançaremos mão de conceitos teóricos de Roman Jakobson e Boris Tomachevski. PALAVRAS-CHAVE: Dor. Narrativa. Dominante. Humanização. Oh, pedaço de mim Oh, metade afastada de mim (...) Oh, pedaço de mim Oh, metade exilada de mim (...) Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim (...) Oh, pedaço de mim Oh, metade amputada de mim (...) Oh, pedaço de mim Oh, metade adorada de mim (...) (Chico Buarque)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

73

Introdução Desde sempre, o homem viveu muito perto dos animais, tanto dos que domesticava quanto dos que caçava – ou dos que o caçavam. Assim, parece natural que os animais estivessem representados de forma marcante nas histórias contadas pelo homem – desde as fábulas, presentes em diversas culturas da Antiguidade, até histórias contemporâneas. Inúmeros foram os autores que deles se utilizaram para desenvolver temas os mais variados nos mais diferentes gêneros, como as já citadas fábulas, contos maravilhosos, peças de teatro, poemas e outros. Não foram poucos os autores irlandeses que escreveram a respeito das relações entre o homem e os bichos, uma vez que “a formação e a situação geográfica da Irlanda favoreceram um contato intenso entre as pessoas, a natureza e os animais, resultando dessa aproximação diversas manifestações artísticas e literárias” (MUTRAN, 2006, p. 284). Liam O’Flaherty, autor do conto a ser analisado, por sua vez, nasceu em Inishmore, uma das Ilhas de Aran, um arquipélago situado a oeste da Irlanda, na Baía de Galway, onde se vivia de pesca, plantação e criação de animais. Tendo crescido e vivido seus primeiros anos de juventude nesse meio, em contato direto com a natureza, O’Flaherty se serviu dessa experiência como matéria-prima para a construção de muitos de seus trabalhos, em que as relações entre homens e animais são retratadas: em alguns, com um olhar favorável, “mas, na maior parte deles, sua visão do ser humano em relação aos animais é pessimista” (MUTRAN, 2006, p.288), pois aquele é mostrado como insensível e até cruel, enquanto estes são humanizados. A fábula Fábula é o conjunto de acontecimentos, fatos ou episódios ligados entre si que nos são narrados no decorrer de uma obra. Segundo Boris Tomachevski, “a fábula aparece como o conjunto ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

74

dos motivos em sua sucessão cronológica e de causa e efeito” (TOMACHEVSHI, 1976, p. 174). No conto “A morte da vaca”, cujo título já antecipa o destino da personagem, temos a seguinte sucessão de acontecimentos: Uma vaca dá à luz um bezerro morto. Estão presentes um camponês, sua esposa e alguns homens. A vaca geme de dor e lambe o bezerro. Em seguida, afasta-se, resfolegando ruidosamente. Os homens, então, se encarregam de retirar o bezerro do local e o arrastam ao longo do campo, cruzando cercas, até chegarem à beira de um penhasco, de onde o atiram em direção ao mar. Em seguida, voltam e, após obrigarem a vaca a ingerir uma bebida quente, todos se retiram do local, com exceção do camponês, que fica à espera de que a placenta caia, para enterrá-la. Logo mais, ele também se vai, deixando a vaca com sua dor. Esta, ao perceber que o bezerro não se encontra mais a seu lado, passa a procurá-lo, farejando o chão, tropeçando e mugindo, para chamá-lo. Começa, então, a seguir a trilha por onde o haviam arrastado, derrubando todos os obstáculos que encontra, até que chega à beira do precipício. De lá ela o vê, estendido sobre as rochas. Depois de diversas tentativas para descer pela encosta, sem sucesso, precipita-se rochedo abaixo ao ver o corpo do filho ser arrebatado por uma onda do mar. A trama Diferente da fábula, “a trama é um conceito que corresponde ao modo como a história narrada é organizada sob a forma de texto, ou seja, ela é a própria construção do texto narrativo” (FRANCO JUNIOR, 2005, p.36). Em “A morte da vaca”, essa organização – a arquitetura – é construída de forma linear, com os acontecimentos encadeados em ordem cronológica: o bezerro nasce morto, é jogado no abismo, a vaca dá por sua falta, percorre um trajeto com obstáculos até encontrá-lo e, finalmente, joga-se no penhasco para se reunir a ele. Para situar esses acontecimentos, o autor escolheu uma pequena propriedade rural, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

75

circunscrita por cercas de pedra, em local limitado por rochedos, próximo ao mar. No início do conto, um narrador onisciente nos informa que uma vaca dá à luz um bezerro morto: “O bezerro nasceu morto. Veio de ré, primeiro a cauda. Quando o corpo vermelho caiu no capim, estava morto” (p. 103). Em seguida, ele nos dá conta do grande sofrimento da vaca, em razão do parto difícil que acabara de enfrentar: “A vaca gemia, enlouquecida pela dor do parto” (p. 103). Logo depois, mostra-nos uma personagem com características humanas, ao narrar que a mãe lambe “ternamente” o corpo do bezerro. Para o desenvolvimento das ações necessárias à construção da trama, concorrem, além da vaca – a protagonista – , personagens como o camponês – dono da vaca –, sua esposa e, ainda, alguns homens, cujo número não é determinado e que são definidos apenas pelos verbos na terceira pessoa do plural: “os homens sacudiam a cabeça, em silêncio”; “levaram” a vaca para longe”. (p. 103). Neste texto, como em outros de O’Flaherty, constata-se a inversão de papéis entre homens e animais. Enquanto a vaca é caracterizada como mãe amorosa a qual luta para recuperar o filho que lhe tiram, os seres humanos agem de forma rude, grosseira e impiedosa: “Agarraram o bezerro e o arrastaram pelas patas (...)”. “De lá o atiraram em direção ao mar”, como que descartando algo inútil, que não tem mais serventia. Com o intuito de dar à vaca uma bebida para que se recuperasse do parto, agarraram-na “rudemente” e “derramaramlhe a bebida garganta abaixo (...)” (p. 104). Além disso, percebe-se que a vaca é tratada como mera propriedade, enquanto o bezerro é visto como uma expectativa de ganho frustrada, não como seres dignos de cuidados e atenção. Os cuidados são aqueles meramente suficientes para manter os animais em condições de produzir. Isso pode ser constatado no comportamento do camponês, quando, após todos voltarem para casa, fica esperando a placenta cair, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

76

enterra-a e, em seguida, apanha “um punhado de terra escura” e faz “o sinal da cruz no lombo da vaca” (p. 104). Temos aí dois signos: “A terra é um símbolo de fecundidade e regeneração” (CHEVALIER, 2015, p. 879) e o sinal da cruz é um gesto cristão. Ao juntar os dois, como num ritual supersticioso, o camponês parece estar realizando uma simpatia para afastar o azar e permitir que a vaca volte a dar cria e produza filhotes vivos. A esposa do camponês é a única personagem humana que tem uma fala e é também a única que demonstra compaixão e solidariedade com o sofrimento da vaca. Ao constatar a morte do bezerro, ela diz: “– É a vontade de Deus”, mostrando sua resignação e impotência diante do fato consumado. E afaga a cabeça da vaca, com uma lágrima nos olhos, “pois também era mãe” (p. 103). A partir do quinto parágrafo, podemos dizer que começa a segunda parte do conto. Nessa parte, ocorre o que Tomachevski chama de nó. “Para colocar em ação a fábula, introduzimos motivos dinâmicos que destroem o equilíbrio da situação inicial” (TOMACHEVSKI, 1976, p. 178). O nó – ou complicação – se dá com a constatação da ausência do bezerro, a sensação da perda do filhote pela vaca. A ansiedade provocada pela percepção de que seu bezerro não está ali é que desencadeia as ações que a levam a percorrer o trajeto que a conduzirá à beira do precipício de onde foi jogado o filhote. Se, na primeira parte, após o parto dolorido, ela “gemia”, “resfolegava ruidosamente” e “ficou encostada na cerca até diminuir a dor”, ou seja, tinha atitudes de certa passividade, à espera de que a dor e o cansaço resultante do esforço durante o parto passassem, nesse momento ela começa a tomar iniciativas: De repente, virou-se e abaixou e sacudiu a cabeça. Deu uma corrida curta, os músculos das pernas rangendo como botas novas. Parou de novo, nada vendo a seu redor no campo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

77

Começou, então, a mover-se desnorteada, passando a cabeça por cima da cerca aqui e acolá, mugindo. Seu chamado não obteve resposta. Sua fúria aumentava cada vez mais à medida que o sentimento de perda se impunha à sua consciência. Os olhos tornaram-se rubros nas órbitas e ferozes como os de um touro. Começou a farejar o chão, meio correndo, meio caminhando, tropeçando desajeitada entre os tufos de grama. (p. 104)

A partir desse momento, a personagem passa a se mostrar em toda a sua grandeza: um ser que não se curva diante das dificuldades que se lhe opõem, que luta obstinadamente, que supera obstáculos, que age impulsionada pela vontade de atingir um fim. “Caracterizar um personagem é um procedimento que o faz reconhecível. (...) Encontramos, por vezes, uma caracterização indireta: o caráter parte dos atos, da conduta do herói” (TOMACHEVSKI, 1976, p. 193). No conto, essa caracterização é construída, em grande medida, pelos adjetivos e advérbios utilizados pelo autor, os quais enfatizam o sentido dos verbos que descrevem as ações da heroína na busca de seu objetivo: “pressionou o corpanzil contra a cerca”/ “pressionou com mais força”/ “moveu-se ainda mais rápido”/ “levantando a cabeça a cada passo”/ “mugindo – um mugido longo e plangente que terminava num crescendo feroz”/ Subiu numa corrida”/ Estremeceu e desviou-se num solavanco ao ver o mar”/” Avançou, então, vagarosa e trêmula”/ “mugindo desvairada”. (Ênfase acrescentada.) Após atravessar os dois campos, derrubando duas cercas de pedra que impediam sua passagem, ela chega ao alto do cume. Ali, a trilha do bezerro termina. Não havia mais o que farejar nem trajeto para percorrer, apenas “a garrulice lúgubre das aves marinhas”. Ela tenta, ainda, farejar o ar, “incerta”, mas só consegue sentir o cheiro do mar. Retrocede e torna a subir. Então, olha para baixo e vê o corpo do filho sobre as rochas lá embaixo. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

78

Solta um grito de alegria! Esse grito, mais um traço da humanização da vaca, é o momento crucial para ela, pois encontrara seu filhote. Procura um jeito de descer para reunirse a ele. Porém, embora tente de várias maneiras, não há como descer, “apenas uma queda abrupta de trinta metros de rochedo e seu bezerro nas rochas lá embaixo” (p. 106). Nesse ponto, a narração está atingindo o clímax, prestes a chegar ao desenlace, pois “a tensão chega a seu ponto culminante antes do desfecho” (TOMACHEVSKI, 1976, p. 178). A vaca fita o bezerro parecendo pensar em como resolver o impasse. Muge, chamando-o. Não obtém resposta. Vê a água subindo com a maré, aproximando-se dele. Muge novamente. As ondas avançam, mais e mais. Ela muge mais uma vez, em desespero. “E então uma onda enorme elevou-se a grande altura e, arrebatando o bezerro na crista, arrancou-o das rochas. E a vaca, soltando um bramido, precipitou-se abruptamente rochedo abaixo” (p. 106). Nessa última frase, ao utilizar bramido, que significa “rugido de fera” ou “grito colérico” (HOUAISS, 2001, p. 503) e abruptamente, que tem o sentido de “de modo inesperado e repentino” (Idem, p. 29), o narrador nos dá conta de que a mãe, para defender seu filhote da onda que o arrebata, age como uma fera, quer dizer, animal que não se intimida diante de perigos, e de forma inesperada, repentina, sem medir as consequências nem avaliar o risco que estaria correndo. Quanto ao atirar-se no abismo, indo fatalmente ao encontro da morte, podemos refletir a respeito do simbolismo de morte, como “o aspecto perecível e destrutível da existência” e, ainda, algo que “tem um valor psicológico: ela liberta das forças negativas e regressivas (...)” (CHEVALIER, 2015, p. 621), isto é, a morte teria o sentido de uma libertação, ainda que de forma extrema. Se aliarmos essa simbologia à de abismo, entendido como “a integração suprema na união mística” (Idem, p. 5), podemos concluir que, ao pôr termo a seu trajeto cheio de provações e obstáculos, além de libertar-se ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

79

de seu sofrimento, ela finalmente completa sua busca pela benesse suprema, que é o encontro, a comunhão com o filho. A dor como dominante artístico Há, em toda narração, um tema que organiza, que enfeixa os motivos em um todo integrado. Segundo Roman Jakobson, o dominante é “o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele regula, determina e transforma os outros componentes. O dominante garante a integridade da estrutura” (JAKOBSON,1983, p. 485). Em “A morte da vaca”, esse elemento que organiza e subordina todos os demais – o dominante – é a dor da protagonista. No princípio, a dor física; em seguida, durante todo o trajeto, até a morte da personagem, a dor psicológica. No início da narração, somos informados de que um bezerro nasceu morto. Mas ele não apenas nasceu morto. O narrador nos diz que “veio de ré”. Essa expressão, utilizada já na primeira linha do texto, sugere que o parto não ocorreu naturalmente, teve que ser ajudado pelos humanos, dado que a cria não se encontrava na posição correta. Esse fator foi determinante para que a vaca gemesse, “enlouquecida pela dor”. É por estar “dominada pela dor” que ela se afasta do bezerro e permanece de cabeça baixa, “resfolegando ruidosamente”. Esse afastar-se é que permite que os humanos o levem dali, arrastando-o pelos campos até atirá-lo em direção ao mar. Para que ela se recupere, oferecem-lhe uma mistura de aveia, que ela recusa, mas acaba sendo obrigada a engolir. Sua dor física continua enquanto ela espera a expulsão da placenta. Em seguida, o camponês faz o sinal da cruz com terra em seu lombo e se retira. Após a saída do camponês, ela, “durante muito tempo”, fica encostada na cerca, “até diminuir a dor”. De repente, ela se dá conta da ausência do bezerro. Muge, para chamá-lo, mas não obtém resposta. Então, à medida que o sentimento de perda se impõe à sua consciência, ela se enfurece, ficando com os olhos rubros nas órbitas, como os de um touro; ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

80

começa a farejar o chão; volta ao lugar onde havia dado à luz; fareja o lugar onde o bezerro estivera e começa a seguir a trilha por onde o haviam arrastado. É a dor psicológica que a impulsiona, que a faz agir. A angústia provocada pela perda de seu filhote faz com que ela esqueça completamente a dor do parto e todas as dores provocadas pela derrubada das cercas, que a machucam, cortam seu corpo e fazem-na sangrar: Encostou o focinho no chão e começou a seguir a trilha por onde haviam arrastado o bezerro até a cerca. (...) E então, numa reação obtusa, pressionou o corpanzil contra a cerca. As pedras cortavam-lhe o peito, mas ela pressionou com mais força e a cerca caiu diante dela. Passou aos tropeções pela abertura onde cortou a coxa esquerda, próximo ao úbere. Sem ligar para a dor, continuou em frente, farejando a trilha e bufando. (...) Na segunda cerca parou novamente. De novo pressionou o corpo contra a cerca, que, de novo, caiu diante dela. Ao atravessar a abertura, ficou entalada e, na luta para se libertar, cortou os dois lados ao longo dos flancos. O sangue escorreu em linhas tortas, descolorindo a mancha branca no flanco esquerdo. (p. 105)

A procura pelo filhote continua, apesar dos sofrimentos já mencionados, até que ela chegue ao final do trajeto: a beira do abismo. Lá, ela avança, “vagarosa e trêmula, palmo a palmo” (p. 105). A dor física não é mais mencionada, mas sua ansiedade persiste. Continua farejando o ar, geme, estica o pescoço e, então, vê o filho. Mas não há como alcançá-lo. Entre eles, novo obstáculo: trinta metros de rochedo. Em seu desespero, fita o bezerro “durante longo tempo, aparvalhada, sem mover um músculo sequer” (p. 106). Então muge, chamando-o, mas ele não se move. A maré está subindo, então ela muge novamente, para avisá-lo. Quando as ondas avançam, formando um torvelinho ao redor do corpo, ela, desesperada, muge ainda uma vez, inutilmente. Até que –

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

81

dor suprema – uma onda arrebata o corpo de seu filho, vai leválo, separá-lo para sempre dela. Não pode haver sofrimento maior. Ela, então, não hesita: atira-se no abismo para unir-se a ele. Conclusão A presente análise procurou mostrar, com base em alguns pressupostos de Boris Tomachevski, como foi construída a trama no conto “A morte da vaca”, dando destaque à humanização do animal, protagonista do conto, em contraposição à arquitetura das personagens humanas, as quais são desumanizadas. Foram abordados aspectos da caracterização da personagem, como sua obstinação, capacidade de tomar iniciativas e decidir, com a finalidade de atingir seus objetivos. Além disso, examinou-se como e em que medida a dor da personagem foi utilizada como o elemento que se destacou em relação aos demais componentes da trama, atuando como o dominante artístico, um conceito de Roman Jakobson. Ficou demonstrado, ainda, que, ao completar a jornada que a conduziu ao objeto amado, a personagem finalmente se libertou do sofrimento e se completou na união com sua “metade adorada”.

Referências CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 27. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 2015. FRANCO JUNIOR, A. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, T. & ZOLIN, L. O. (Org.) Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá, Eduem, 2005. p. 33-56

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

82

HOLLANDA, C. B. de. Pedaço de mim. In: Chico Buarque de Hollanda. São Paulo, 2010/abril. 48 p.: il.; 14 cm + CD – (Coleção Chico Buarque; v. 1, Faixa 6). HOUAISS, A. & VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001. JAKOBSON, Roman. O dominante. In: LIMA, L C. (Org.) Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983. p.485-491. . MUTRAN, M. H. Nota sobre O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês. In: _____. (Org.) O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês. São Paulo, Humanitas, 2006. O’FLAHERTY, L. A morte da vaca. Tradução de Mail M. de Azevedo In: MUTRAN, M. H. (Org.) O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês. São Paulo, Humanitas, 2006. TOMACHEVSKI, B. Temática. In: Teoria da literatura: formalistas russos. EIKHENBAUM, B. et al. Porto Alegre, Globo, 1976.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

83

EM NOME DO PAI: A TRANSPOSIÇÃO DE AMONGST WOMEN PARA AS TELAS Autor: Beatriz Cristina Godoy (UEM) Orientador: Márcio Roberto do Prado (UEM) RESUMO: O objetivo do presente trabalho é analisar a minissérie televisiva Amongst Women (1998), produzida pela BBC Northern Ireland e RTÉ, que se baseia no romance homônimo do autor irlândes John McGahern (1990). Para auxiliar a pesquisa da transposição da obra romanesca para o meio televisivo em formato de minissérie foram utilizados os estudos sobre adaptação de Linda Hutcheon (2011) e os escritos sobre narrativa televisiva de Kristin Thompson (2003) e Ben Brady (1994). O principal objetivo ao se analisar esta adaptação é verificar de que maneira a transmutação de mídias acarreta uma acomodação de conteúdos que vai além de uma simples cópia e como a reescritura reflete o momento social que a Irlanda atravessa à época de sua realização, momento social esse tão distinto daquele no qual o romance foi escrito. PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Romance. Televisão. Minissérie

As adaptações não são uma atividade nova no meio cultural. Shakespeare já adaptava suas peças para o palco no século XVI, assim como os antigos gregos encenavam seus mitos e contos de fada eram coreografados em produções de dança. Entretanto, o surgimento de novas mídias fez com que a palavra adaptação se tornasse multifacetada e, conseguintemente, de difícil definição. Linda Hutcheon (2011) esclarece que o termo pode ser usado atualmente para se referir a três aspectos bastante distintos: um produto formal, um processo de criação e um processo de recepção. A análise de uma obra adaptada enquanto um produto exige que levemos em consideração os modos de engajamento, contar, mostrar e interagir, e ainda, a nova forma (mídia) escolhida para a reescritura do texto fonte. Como um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

84

termo globalizante, a adaptação engolfa inúmeras possibilidades de transposição, o modo de engajamento pode ser mantido - de uma poesia para um romance - ou modificado - de um romance para um filme - acarretando também uma mudança de mídia. Entretanto, nos engajamos de diferentes modos com diferentes mídias, assim também “cada modo [...] tem sua própria especificidade, se não sua própria essência” (HUTCHEON, 2011, p. 49). O presente artigo se propõe a analisar de que maneira a transmutação midiática do romance Amongst Women para o formato de minissérie televisiva acarretou uma acomodação de conteúdos. Em virtude do romance Amongst Women e de outros livros referenciais não terem sido traduzidos para o português, as traduções de trechos citados dessas obras são de responsabilidade da autora desse artigo. Adaptando romances para a televisão A maior e mais óbvia diferença entre um romance e um programa de televisão é que enquanto um romance conta uma história, a televisão mostra. O romance permite que o leitor imagine sem pressa os cenários e os personagens e as vozes que emanam através desses personagens. É uma suposição inegável que cada leitor, ao ler um livro, escreve sua própria história; entretanto, todos os espectadores assistem à mesma narrativa audiovisual. É possível que cada espectador assista uma versão própria do programa, prestando maior atenção a diferentes características, mas as imagens são as mesmas e previamente arranjadas e enquadradas de acordo com a vontade do diretor. Uma narrativa audiovisual “vai além da imaginação do telespectador: a não faz de conta, ela se presume real” (BRADY, 1994, p.7). De um livro espera-se que desperte a imaginação enquanto o leitor alterna períodos de imersão no romance e de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

85

volta à realidade, uma narrativa audiovisual deve parecer real, como espiar pela janela o desenrolar das vidas dos personagens durante duas ou três horas. O telespectador precisa acreditar, ao menos enquanto durar o programa, que aquelas pessoas são reais, têm vidas e problemas reais, do contrário, a ilusão não funciona. De acordo com Brady (1994) essa suspensão da incredulidade atrair o espectador em dois níveis: o cognitivo (pensamento) e inconsciente (sentimento) de forma que ao mesmo tem em que sei que estou sendo enganado, aceito a luta dos personagens como minha. Hutcheon (2011) explica que o contar exige do público um trabalho conceitual; o mostrar solicita suas habilidades decodificadoras perceptivas. No primeiro, imaginamos e visualizamos um mundo a partir das marcas pretas nas páginas brancas enquanto lemos; no segundo; nossa imaginação é apropriada enquanto percebemos, e então damos significado a um mundo de imagens, sons e palavras vistas e ouvidas no palco ou na tela. (HUTCHEON, 2011, p. 178)

Quando os adaptadores escolhem uma obra para adaptar devem levar em consideração que a audiência precisa têm algum tipo de ligação com a história. É preciso que haja personagens viáveis, enfrentando conflitos com os quais a maioria das pessoas possa de identificar, para que o público então aceite participar dessa jornada ao lado dessas pessoas até que resolvam seus conflitos, com sucesso ou não, e estejam prontos para seguir em frente. Para Brady (1994) “o grau de sucesso de uma encenação dependerá amplamente da riqueza desse significado” (BRADY, 1994, p.10). Além do mais, o autor postula que quanto mais próximo da realidade o problema do personagem estiver, mais os telespectadores estarão dispostos a se reder e aceitar a narrativa. Para que a transição de um romance para uma narrativa audiovisual seja eficaz, existem diversos aspectos que devem ser ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

86

considerados, sendo o tema central um dos mais relevantes e o qual “deve sempre contribuir para a progressão da história” (HUTCHEON, 2011, p.11). A definição do tema central permite que muitos dos temas periféricos, aqueles que não são vitais para a compreensão da trama central, sejam eliminados e uma consistência possa ser estabelecida através da narrativa. São os adaptadores quem fazem a escolha de qual tema deve sobressairse aos demais, é somente preciso ser cauteloso para não se desviar muito dos temas contidos no romance. É aceitável que o tema se foque no aspecto romântico de uma história de guerra desde que esse aspecto realmente faça parte da história fonte; entretanto, é desaconselhável adicionar um tema a uma história no qual ele não exista previamente. Outro aspecto que deve ser considerado pelos adaptadores é resistir à tentação de encaixar todas as nuances de um romance em uma narrativa audiovisual, resultando em um desfile de personagens e situações de nenhuma ou pouca importância para a trama central sendo contada. A alternativa de se trabalhar com menos informações, ainda que possa ser considerada, uma perda de conteúdo, “é simplesmente uma redução no escopo: modificase a extensão, eliminando detalhes e alguns comentários” (PEARY e SHATZKIN apud HUTCHEON, 2011, p.66). A máxima ‘menos é mais’ funciona perfeitamente para o enriquecimento das narrativas visuais. Ainda outro aspecto que pode influenciar negativamente a trama é a resolução precipitada do conflito principal. Uma vez que o conflito principal é resolvido há pouco mais com o que se trabalhar em termos de narrativa, o que significa que mesmo as narrativas audiovisuais podem se apoiar em enredos periféricos. A história deve apresentar um enredo principal e outros periféricos que serão resolvidos um após o outro, culminando na resolução do conflito principal criando assim uma cadeia de eventos que “gira em torno das decisões que o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

87

protagonista é forçado a tomar para que lide com as alternativas que lhes são apresentadas” (BRADY, 1994, p.25). A escolha de quais personagens manter também representa um elemento essencial para uma adaptação bem sucedida. É com eles que o telespectador precisa se identificar - se não diretamente ao menos ao ponto no nível de empatia - ou seja, mesmo que seja impossível para alguém se colocar no lugar de um personagem ele precisa se envolver o suficiente na história para se importar com o destino do protagonista. Quanto mais complexo o personagem, mais possivelmente o público o aceitará e “é o personagem do protagonista – a singularidade de seus valores – que determina a direção do enredo” (BRADY, 1994, p.37). Aspectos gerais da obra e momento histórico Amongst Women é uma minissérie em quatro episódios produzida em conjunto pela BBC Northern Ireland e pela Radio Telefís Éireann (RTÉ) - o principal canal de televisão e uma empresa semi-estatal da República da Irlanda. Adaptada do romance homônimo de John McGahern, a obra foi escrita por Adrian Hodges - escritor e produtor indicado ao Oscar por trabalhos anteriores - e dirigida por Tom Cairns. A minissérie, levada ao ar em 1998, recebeu diversos prêmios, entre eles o BAFTA de Melhor Série Dramática. O personagem principal, Michael Moran, foi interpretado pelo ator Tony Doyle, um artista de renome e conhecido do público por vários trabalhos prévios em seriados populares de TV, e sua participação na minissérie lhe rendeu o prêmio da Academia Irlandesa de Filme e Televisão (IFTA – Irish Film and Television Academy). A decisão de se adaptar a obra para a televisão pode ser vista a partir de dois pontos de vistas distintos, mas complementares. Primeiro, levando-se em consideração o fato de John McGahern ser um dos principais autores modernos da literatura irlandesa e Amongst Women - apesar do pouco tempo entre o lançamento e a ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

88

adaptação - ter rapidamente se tornado a obra mais conhecida do autor. Segundo, o fato do romance fazer parte da lista de possíveis obras recomendadas para o Leaving Certificate Examination, a prova realizada para a conclusão do ensino médio nas escolas irlandesas. Consequentemente, a adaptação do romance permitiu não somente levar a obra mais relevante do autor a um público, mas para um público cujo interesse extrapolava o mero entretenimento. Entretanto, engana-se quem acredita que a minissérie substitui a leitura do romance. No processo de adaptação muitas das escolhas dos criadores, ao destacar e diluir diferentes elementos da obra fonte, acabaram por criar uma nova obra. Apesar de apenas oito anos separarem o lançamento do romance e a realização da minissérie, as obras foram produzidas em realidades sociais bastante distintas. O livro foi lançado em 1990, o ano que marcava o final da década de 1980, aquela que havia sido um dos piores períodos do século XX para a sociedade irlandesa, “a extrema pobreza do passado, da qual a Irlanda parecia ter escapado nas décadas de 1960 e 70, é algo que pode ter rapidamente voltado no final dos anos 1980” (BROWN, 2004, p. 353). O passado de pobreza e fome parecia mais uma vez assombrar o povo que durante as últimas duas décadas havia experimentado uma situação mais segura. Segundo Brown (2004) escândalos sexuais na igreja católica e a corrupção no governo marcaram a década de 1980 como um período difícil para os irlandeses. Foi nesse cenário negativo que McGahern escreveu e lançou seu romance. Carregado de conteúdo político e religioso, a história de Moran, apesar de particular, pode ser vista como um questionamento da história irlandesa do século XX, de como as decisões e ações dos indivíduos os trouxeram até o momento presente. Diante de um presente incerto, o autor volta seu olhar para o passado.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

89

Contudo, em 1998, a época da realização da minissérie, a realidade na Irlanda havia se transformado sensivelmente e o Tigre Celta era agora um país em crescimento, mergulhado em otimismo e com seu olhar fixo no futuro. Em meados da década de 1990, o país passou de um dos mais pobres para um dos mais ricos da Europa e “uma sensação de sucesso, nacional e internacionalmente, deu ao país uma confiança de que seus problemas podiam ser superados. Um fatalismo inveterado sobre o papel da nação no mundo foi substituído por um espírito de empreendedorismo e expectativa” (BROWN, 2004, p.386). Brown (2004) acredita que, pela primeira vez na História, os irlandeses se permitiram um distanciamento de seu passado de fome e luta para se concentrarem em um futuro de riquezas e estabilidade. O cenário nacional de euforia e esperança em que o romance Amongst Women foi adaptado para a televisão acarretou a mudança do tema central, estabelecendo assim a diferença mais significativa entre o romance e a minissérie. No romance o tema central repousa dobre o passado de luta da personagem principal e como esse período influenciou diretamente a maneira com que o pai se relaciona com os filhos, transferindo a opressão sofrida pelos irlandeses a época do colonialismo para sua relação com a própria família. Ainda outro tema vital para a trama do romance é a maneira com que a com que o pai ocupa um lugar central na vida dos filhos. Essa centralização se faz presente inclusive na estrutura da narrativa na maneira com que o narrador altera a focalização da história em cada personagem consecutivamente de maneira que diferentes partes são contadas através da relação do pai com a esposa ou um dos filhos. Contudo, os conflitos armados e seus desdobramentos, que sempre foram temas centrais para a cultura irlandesa, não foram definidos como os temas centrais da adaptação televisiva. Em uma palestra intitulada “Desenvolvimentos, debates e discórdias na Crítica Literária Irlandesa”, o professor Shaun Richards (2011) ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

90

proferiu a necessidade dos estudiosos irlandeses superarem os debates sobre o passado e trazerem as discussões acadêmicas para assuntos mais atuais como a questão da imigração e a dinâmica entre as famílias disfuncionais. Esse panorama apresentado pelo palestrante torna possível compreender porque os realizadores da minissérie elegeram as relações familiares, e não os conflitos ou o posicionamento político de Moran, como tema central. Focalizou-se especialmente o distanciamento do filho mais velho do pai autoritário e as relações entre irmãos. Ainda assim, a participação do pai nos conflitos armados continua presente na trama do seriado como um simples pano de fundo e não carregam nenhum significado essencial, ao contrário do que acontece no romance. Ademais, uma maior ênfase é dada às personagens dos filhos em oposição à do pai. Tema central e enredos paralelos Uma das principais consequências acarretada pela mudança do tema central foi o reposicionamento das personagens, principalmente a eliminação de James McQuaid. Ao retirar o peso do passado de Moran, o personagem de McQuaid perde sua relevância para a história. No romance, a visita de James McQuaid e o diálogo subsequente servem para revelar o passado de Moran como soldado do IRA e, no conflito entre as personagens, estabelecer como as consequências desse passado formaram o caráter de Moran. Na versão televisiva o personagem desaparece por completo e o passado de Moran como soldado é mencionado apenas em alguns momentos, como, por exemplo, no segundo episódio, quando Moran e Rose em viagem até a praia passam por um descampado que havia sido cenário de uma batalha da qual Moran participou e ele, ao se lembrar, compartilha a memória com Rose. Ela escuta atentamente e sugere “você devia aceitar a pensão do IRA, você fez por merecer” (HODGES, 1998, ep.2, 18’51). Sabe-se então que Rose tem conhecimento do passado de Moran ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

91

apesar do assunto nunca ter sido abordado diretamente na tela até então, o que faz com que o tema da descolonização, enquanto processo histórico, fique somente subentendido. Na contramão, o personagem do filho mais velho, Luke, está presente na adaptação desde a primeira cena. No romance, a ausência de Luke é tão impactante que o torna, na realidade, o mais presente dos personagens. Já na minissérie, o personagem é uma presença tão constante quanto qualquer um dos seus irmãos. O destaque reservado a Luke é mais uma das consequências diretas da mudança do tema central, uma vez que a relação entre Luke e o pai é a mais conflituosa e influencia diretamente a relação do pai com os demais filhos. Com a substituição de McQuaid por Luke, todas as questões abordadas na minissérie ganham um espectro mais pessoal. No romance, Luke está sempre presente nos pensamentos dos personagens, mas é um assunto que deve ser evitado porque traz à tona a ira do pai. Na minissérie, ele precisa se fazer presente porque é através de suas ações que será estabelecido seu caráter, “em outras palavras, os valores de um personagem são [...] compatíveis com as ações que demonstram seu ponto de vista, temperamento e disposição” (BRADY, 1994, p.36). A presença de Luke também é essencial para estabelecer um embate entre a personalidade contida e generosa dele e a crueldade velada do pai. Esse contraste já é estabelecido desde a segunda cena do primeiro episódio quando Moran bate em Luke com um pedaço de couro porque ele fala um palavrão. Enquanto no romance o narrador se vale das introspecções dos personagens para retificar a personalidade violenta e egoísta de Moran, na adaptação é a forma violenta com que o pai trata Luke e seus irmãos, suas ações, que funciona como reafirmação. Dá-se aqui uma inversão de focalização, se no romance a maioria das interações se dava entre pai/filhos, na minissérie elas são mescladas com um número equivalente de interações ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

92

entre irmãos. O resultado mais evidente dessa mudança é que uma maior exposição dessas personagens faz com as diferenças entre elas se tornem visíveis e inquestionáveis, possibilitando enxergar essas personagens através de um novo olhar. Aproximadamente oitenta por cento do romance se passa em Great Meadow, a fazenda dos Moran. As exceções são acontecimentos que se dão em Dublin, Londres e na praia. Contudo, somente o primeiro capítulo da minissérie é majoritariamente ambientado na fazenda, os demais capítulos, ao terem os personagens dos filhos como centrais, dividem os espaços entre a fazenda, a praia, Dublin e Londres mais proporcionalmente. Ainda assim, a fazenda se sustenta como o centro para o qual todos, com exceção de Luke, convergem. Visualmente a ideia da fazenda como o centro é apoiada pela edição de maneira que as cenas, sempre intercalam um acontecimento que se deu na fazenda com algo filmado em outra localidade, criando assim um movimento de constante retorno. Toma-se o episódio três como exemplo desse movimento, alternando as seguintes cenas: fazenda > cinema > fazenda > Dublin > fazenda > ferry > fazenda > Londres > fazenda > Londres > fazenda. Um dos argumentos utilizados pelos críticos das adaptações é que na maioria dos casos a transposição de um romance para a mídia televisiva resulta em uma simplificação do enredo (BRADY, 1994). No caso de Amongst Women, os adaptadores optaram pelo contrário ao mostrar paralelamente pontos de vista diferentes e recriar cenas que no romance são apenas recontadas. A maioria da informação sobre Luke no romance vem das menções feitas nas cartas que os outros irmãos mandam ao pai, ou ainda das histórias recontadas durantes as visitas na Great Meadow. Na minissérie muitas dessas histórias “contadas” foram recriadas. A escolha não apresenta um desafio particular para os telespectadores já que “os filmes [...] e a televisão aumentaram ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

93

exponencialmente a exposição das pessoas às narrativas encenadas [...] e muitos estão aptos a acompanhar histórias relativamente complexas contadas com imagens em movimento” (THOMPSON, 2003, p.79). O romance apresenta um enredo central - a vida de Michael Moran - no qual os enredos paralelos - a vida de sua esposa e filhos - se sustentam e se desenvolvem consecutivamente; entretanto, ao transpor os enredos para a televisão, os criadores optaram por contar as histórias paralelamente. Outro efeito perceptível dessa escolha é o ritmo acelerado que a minissérie adota, tão contrastante com o ritmo do romance, e é esse ritmo acelerado tão característico da televisão que garante que a narrativa televisiva seja mais atraente para o público mais jovem. Elementos da narrativa televisiva Vários elementos característicos da mídia televisiva estão presentes na obra adaptada, entre eles os cortes comerciais, as recapitulações no início dos episódios e as dangling clauses. Hutcheon (2011) problematiza que uma minissérie televisiva tem à disposição mais tempo do que um filme, porém o tempo disponível em cada episódio é exatamente calculado. Isso significa que, se por um lado os adaptadores televisivos dispõem de um tempo maior para contar sua história, a forma com que contam deve se encaixar em blocos (slots) menores de tempo criando a necessidade de que cada episódio seja individualmente elaborado. A maneira com que cada episódio é explorado faz dos seriados produtos únicos. Um episódio não pode ser somente uma ponte entre conflitos pré-existentes e sua resolução, cada capítulo deve trazer em si conteúdo suficiente para justificar sua produção. A ausência dos comerciais poderia ser considerada uma vantagem para alguns telespectadores, ainda que sua presença se anuncie nos fade outs, pois permite que a história continue ao menos até o final de cada episódio. Entretanto, para Elsaesser ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

94

(1994) essas interrupções características da TV “não somente ajudam a manter o nível de atenção, mas [...] somente tempo descontínuo e segmentado é um tempo que incide no significado, criando esses efeitos de progressão chamada ‘casualidade’” (ELSAESSER, 1994, p.144). As interrupções na narrativa se assemelham às interrupções no dia-a-dia dos indivíduos e permitem que a história sendo narrada também se aproxime mais da realidade do espectador. As recapitulações são um bom exemplo de uma das características mais relevantes da narrativa mostrada em contraste com a narrativa contada: a possibilidade de se absorver um maior número de informação em um menor intervalo de tempo. Por exemplo, em uma conversa entre várias pessoas, quando narrada, precisa incluir além do diálogo em si, a descrição das diferentes entonações de vozes e as possíveis reações de cada personagem. Por mais que se ofereça a informação logo em seguida, ela é sempre consecutiva, nunca concomitante. Um exemplo é a cena em que as três filhas estão indo embora depois de visitar o pai e perceber sua má condição de saúde. A câmera enquadra as três meninas no carro e quando Mona sugere que elas devem voltar mais vezes, Maggie tem uma reação de cansaço enquanto Sheila reage com braveza. Seriam necessários três movimentos diferentes para se narrar um momento que a câmera consegue capturar simultaneamente. O modo mostrar também permite a transmissão de sentido através de imagens simbólicas. Quando Michael foge de casa porque não quer mais ir para a escola, ao invés de deixar os livros para trás, ele os leva junto somente pra atirá-los no rio para que sejam carregados pela correnteza, deixando claro sua intenção de não retornar aos estudos. O modo mostrar também consegue causar impacto quando o som ajuda a complementar uma cena. Nas cenas de violência do pai contra os filhos o fato de que é possível se ouvir os choros e ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

95

os gritos faz com que a cena tenha um efeito imediato maior aos engajar simultaneamente a visão e a audição. Essa união visual e auditiva na busca de um “outro” sentido, ou de um sentido total – aquele que só pode ser compreendido casando os dois modos de expressão – faz da TV uma um meio de expressão multimodal. Para Kress, o significado comunicado por um meio multimodal vai além da soma de significados dos dois meios, não é apenas uma adição de sentidos, mas sim um entrelaçamento, onde ambos devem se fundir em um sentido maior porque “os sentidos vem até nós juntos” (KRESS, 2003, p.211). O mesmo acontece com as cenas em que Moran ataca seus familiares verbalmente, o tom de voz elevado e o rosto enfurecido transmite uma mensagem mais forte do que a descrição da cena, por mais detalhada que seja. Ao mesmo tempo em que uma história mostrada se apoia na junção de som e imagem para tornar uma história mais expressiva, ela também limita a participação do telespectador na composição dessa história ao oferecer os cenários e os personagens prontos a partir da visão dos adaptadores. Aqui novamente fica claro que diferentes mídias funcionam de diferentes maneiras e atingem o público também de modos distintos, enfraquecendo o argumento de que uma boa adaptação é a mais próxima do texto fonte. Muito da criação da história que ficaria por conta dos leitores no romance, é pré-escolhido para os telespectadores pelos adaptadores, “no processo de adaptação, o que fica indeterminado no imaginário mental do leitor é preenchido na tradução para a imagem da tela” (COOK, 1994, p.131) Não só o som, mas a inserção de caracteres também pode contribuir para a compreensão da narrativa. Na minissérie a ambos os recursos são essenciais para estabelecer o período em que a história se passa. O romance não apresenta datas específicas, a única maneira de se datar a história é levando em conta a participação de Moran na Guerra da Independência e ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

96

posteriormente na Guerra Civil e calcular imprecisamente as datas dos acontecimentos. Porém, os criadores optaram por estipular anos específicos no início da história, no caso outubro de 1953, e quando uma passagem de tempo maior ocorre. O principal motivo para a necessidade de se estabelecer uma data específica parece residir no fato de que, para que a transposição de modo seja bem sucedida, a encenação deve se aproximar o máximo possível da realidade. Para tanto é necessária a escolha das roupas, penteados, cenários, etc. que correspondam àquele período histórico, de maneira que o conjunto apresente um “retrato” da realidade. A aparência dos personagens e os objetos que compõe o cenário não servem somente para estabelecer uma data precisa, mas também para marcar a passagem do tempo. Na minissérie os penteados das mulheres, especialmente das três filhas, e suas roupas ajudam a marcar a passagem do tempo. Por mais que a seja improvável que os telespectadores mais jovens relacionem um penteado ou item de vestuário à qualquer data específica, o fato de que ambos, cabelos e roupas, adotam tons mais sérios com no decorrer da história, auxilia na marcação temporal. Outro recurso utilizado para marcar a passagem temporal foi a substituição do ator que interpreta o papel do filho mais novo, Michael. No primeiro episódio ele é interpretado por uma criança de aproximadamente 12 anos que, a partir do segundo episódio, é substituído por um jovem de aparentemente 16 anos que se manterá até o final da história. O figurino serve ainda para estabelecer a situação financeira das personagens, assim como objetos como carros e móveis ajudam a compor as características dos personagens. O figurino de Moran é um exemplo de como uma simples peça de roupa pode adicionar significado à uma história. Durante toda a história todas as vezes que precisa se vestir formalmente, Moran usa o mesmo terno marrom de risca de giz. Ele usa o terno ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

97

para ir à missa, ao baile, a seu próprio casamento e anos mais tarde ao casamento da filha. A repetição do terno o torna um motivo visual que pode simbolizar tanto a relutância do personagem em se adaptar às mudanças quanto seu descaso pelas situações sociais em geral. A deterioração do personagem também se dá visualmente, com sua aparência se tornando cada vez mais cansada, os cabelos grisalhos e o andar cada vez mais dependente da bengala. Já no final da história, Moran parece ter desistido de viver uma vida plena e se rendido a depressão, Rose e as filhas comentam constantemente entre si sobre a situações que culmina na cena em que ele sai de casa de pijamas e casaco, andando sem rumo e com uma feição desamparada. A imagem do homem, outrora tão poderoso, mancando de pijamas com o olhar perdido indica a estado mental dilapidado em que o personagem se encontra. Não há diálogo na cena, mas a deterioração da saúde física e mental do chefe da casa fica clara. A utilização de voice over, apesar de ser um recurso comum no meio televisivo, em Amonst Women, se restringe a dois momentos específicos, ainda que por razões distintas. Nas recapitulações, a utilização de voice over permite que uma maior quantidade de informação seja apresentada dentro de um menor tempo. Entretanto, a escolha dessa técnica para compor as algumas cenas em que as personagens escrevem e leem cartas parece ter sido uma escolha estética. Devido ao período retratado pela história as cartas são parte constante da narrativa e seu conteúdo revelado através do diálogo entre as personagens, uma vez que, “a principal função dos bons diálogos é transmitir clara e sucintamente as informações que a audiência deve saber para estar continuamente interessada na história” (BRADY, 1994, p.56). Então, quando os adaptadores fazem a escolha consciente de usar o voice over para comunicar o que está contido em uma carta é sempre em momentos em que o ato de escrever vai além do conteúdo. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

98

São duas as situações na minissérie em que essa construção se faz presente. Primeiro quando Michael, depois de fugir de casa, escreve para Nell que acaba de voltar para a América. Mais do que contar como está Michael, os fatos estão em segundo plano, ele expressa na carta suas ambições e seus sonhos, em um diálogo que talvez seja mais com ele mesmo do que com Nell. Michael não está lendo ou compondo a carta em voz alta, mas sim permitindo o acesso a seus pensamentos mais íntimos. Mais adiante na trama o mesmo recurso é utilizado quando Moran escreve uma carta para Luke e a imagem que começa com ele escrevendo é substituída pela de Luke lendo a carta. É como se, de certa maneira as palavras viajassem no espaço e no tempo, criando uma sensação poética, permitindo que a entonação aproxime o telespectador dos pensamentos dos personagens, e os personagens uns dos outros. Na última carta que escreve à Luke, Moran escreve: “Da minha parte, perdoou tudo que fez. Se escrever isso para ele, ao menos terei a impressão de que a falta não será minha” (MCGAHERN, 1990, p.176). Os últimos relatos que ficaram da relação de Moran e Luke foram essas cartas, que se lidas fora de contexto, falam de uma relação que nunca realmente existiu.

Referências AMONGST WOMEN. Direção: Tom Cairns, Roteiro: Adrian Hodges. Parallel Films, 1998. 2 DVDs (219 min). BRADY, B. Principles of adaptation for film and television. Austin: University of Texas Press, 1994. BROWN, T. Ireland: a social and cultural history 1922-2002. London: Harper Perennial, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

99

COOK, J. Television and Literature. In: ELSAESSER, T.; SIMONS, J.; BRONK, L. (Ed) Writing for the medium: television in translation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1994. p.131-136. ELSAESSER, T. Literature after television: author, authority, authenticity. In: ELSAESSER, T.; SIMONS, J.; BRONK, L. (Ed) Writing for the medium: television in translation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1994. p.137-148. HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2011. KRESS, G. Literacy in the new media age. Oxon: Routledge, 2003. MCGAHERN, J. Amongst Women. London: Faber and Faber, 1990. THOMPSON, K. Storytelling in film and television. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

100

DIÁSPORA DA ALMA: A ARQUITETURA DO TEXTO E A ARQUEOLOGIA DO SER EM O ENCONTRO, DE ANNE ENRIGHT, E UMA MARGEM DISTANTE, DE CARYL PHILLIPS Autora: Profa. Dra. Brunilda T. Reichmann (UNIANDRADE) RESUMO: Este trabalho justapõe dois romances contemporâneos: O encontro, da escritora irlandesa, Anne Enright, e Uma margem distante, do escritor britânico afro-caribenho, Caryl Phillips. A justaposição das duas obras pode ser bastante instigante, ao compararmos a complexidade das personagens e os universos ficcionais anacrônicos, caóticos e violentos. Os dois romances têm início in ultima res, a lembrança do passado é nebulosa e nem sempre o leitor pode precisar o momento da narrativa. O espaço em O encontro limita-se a Dublin e Londres; Uma Margem distante, à uma pequena cidade da Inglaterra, a África e à fuga deste país até a Inglaterra. A jornada interior, não menos importante, é também a mais longa e complexa de todas. O desejo de manter ou “criar” uma identidade centrada, voltar ao “lar paterno” ou encontrar um lar, estabelecer-se num espaço/país acolhedor, tornase, na maioria das vezes, um grande e desastroso equívoco, uma jornada para a nulidade ou para a morte. PALAVRAS-CHAVE: (des)construção da narrativa. Dispersão do ser.

Considerações iniciais Caryl Phillips, escritor britânico afro-caribenho, publica, em 2003, o romance Uma margem distante [A Distant Shore], e Anne Enright, escritora irlandesa, publica, em 2007, o romance O encontro [The Gathering]. Enright, ganhadora de vários prêmios, mora na Irlanda, seu país natal. Phillips mora na Inglaterra desde os quatro meses de idade, mas nasceu no Caribe e é afrodescendente. Portanto, apesar da distância entre a origem dos dois escritores, Enright e Phillips “convivem” em espaços relativamente próximos. A mobilidade internacional de Phillips, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

101

no entanto, é o traço mais marcante de sua existência e de seus escritos. A diáspora é uma realidade na sua vida e na sua obra, considerando seus antecedentes africanos e seu nascimento no Caribe. Em Enright, a diáspora ou a dispersão geográfica de um povo não é o foco de seu romance, mas a protagonista de O encontro vive na pele as consequências da não aceitação trágica de personagens que abandonam seu país para encontrar abrigo na “pátria-mãe”. Aliás, os dois romancistas criam personagens que sofrem do mal pós-moderno do ser descentrado, fragmentado, estrangeiro em sua própria terra, quando não sofrem as consequências da fuga para sobrevivência. Essa característica do ser pós-moderno, que definirei como o ser diaspórico ou que sofre dispersão da alma, acaba por marcar profundamente a escritura de ambos romancistas. Além disso, os dois romancistas traduzem para a técnica narrativa essa dispersão, este descentramento inevitável, esta condição humana do século XXI. Há, porém, uma genuína oportunidade emancipadora na pósmodernidade, a oportunidade de depor as armas, suspender as escaramuças de fronteira para manter o estranho afastado [...]. Essa oportunidade não se acha na celebração da etnicidade nascida de novo e na genuína ou inventada tradição tribal, mas em levar à conclusão a obra do “desencaixe” da modernidade, mediante a concentração no direito de escolher a identidade de alguém como a única universalidade do cidadão e ser humano. (BAUMAN, 1998, p. 46)

Objetivamos, portanto, neste trabalho, nos debruçar sobre a diáspora anímica, por meio da técnica narrativa “dispersa” dos dois romances, dispersão esta que intensifica a riqueza dos romances, a participação do leitor e a construção do significado. Os dois livros têm início em ultima res, mas há, em ambos, um sequel assim que o assunto tratado no início é, de certa forma, recobrado. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

102

Uma margem distante Uma margem distante é dividido em cinco partes: as quatro primeiras são narrativas intercaladas, com uma movimentação intensa no tempo, e a última continua a narrativa da primeira parte. No primeiro livro, Dorothy, em primeira pessoa, narra sua própria história. Ela é uma professora de música, aposentada prematuramente, por assédio moral. O início da sua narrativa começa assim: “A Inglaterra mudou. Hoje é difícil dizer quem é daqui e quem não é. Quem faz parte e quem é um estranho. É perturbador, Não parece certo. Três meses atrás, no começo de junho, mudei para cá, para este novo empreendimento imobiliário de Stoneleigh” (PHYLLIPS, 2006, p. 7). Essa primeira parte tem início com a mudança de Dorothy para um local próximo à casa paterna, apesar de seus pais estarem mortos, e termina com o assassinato de Solomon, amigo dela, africano que trabalhava como guardião e motorista do empreendimento. Ela é atraída a ele pela educação, polidez, limpeza, respeito pelos outros, qualidades de Solomon que ela preza sobremaneira nos outros. Fica evidente, durante esta parte, a culpa que Dorothy carrega por não ter dado ouvidos à irmã que lhe conta dos abusos sexuais do pai e pelo assassinato de Solomon por seus conterrâneos – um homem que se importava apenas com sua vida e servir aos outros. Ainda nesta parte, a protagonista tem consciência que possivelmente a demência será sua condição futura, diante de tantos fatos insustentáveis em sua vida. Na última parte, é no sanatório que vamos encontrar novamente Dorothy em sua narrativa em primeira pessoa, num sequel desta primeira parte. Na segunda parte, a narrativa em terceira pessoa conta a história de Gabriel, africano que entrou ilegalmente na Inglaterra, membro da milícia africana, que foge de seu país, pois sua família foi assassinada pelos próprios companheiros da milícia. No início, Gabriel, personagem não mencionado na primeira parte, está preso na Inglaterra acusado de estupro. Nesta ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

103

parte há um intenso ir e vir no tempo, entre a cadeia na Inglaterra e sua vida na África, e relatos sobre a violência do próprio personagem que mata seu ex-patrão para roubar o dinheiro que necessita para fugir para a Inglaterra, sua “pátria-mãe”. Assim como há violência e destempero no personagem, há momentos de delicadeza e de cuidado com pessoas que o cercam ou que se destacam do grupo de refugiados, como seu desvelo pela jovem mãe e seu bebê que fazem parte do grupo que foge da África. Essas atitudes são as sementes do Solomon que já encontramos na primeira parte: homem cortês, educado, respeitador, responsável, pois Gabriel diz ao motorista de caminhão que lhe dá carona, no final desta parte, que seu nome é Solomon. Considerando as muitas facetas da personalidade de Gabriel/Solomon, sua maleabilidade identitária parece ser uma vantagem, se não soubéssemos que no final de sua fuga da África, seu corpo será encontrado numa vala da Inglaterra. Afirma Bauman: “[...] ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a interoscilações, tê-la ‘pela vida’ revela ser mais uma desvantagem do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente as circunstâncias de seu itinerário de vida” (BAUMAN, 1998, p. 38). Essa afirmação pode ser aplicada à Dorothy também, pois enquanto Gabriel/Solomon tem uma identidade oscilante e maleável, Dorothy tem uma personalidade bem fundamentada e resistente a oscilações e mudanças. Assim pode o leitor interpretar Dorothy e Solomon até o final desta segunda parte do romance – diferentes, mas com qualidades valorizadas pelo outro. Na terceira parte, o narrador anônimo relata, em terceira pessoa, a história de Dorothy e seu longo casamento com Brian, a separação (ele separa-se dela depois de 25 anos de casamento, para casar-se com uma mulher mais jovem), relacionamentos instáveis com outros homens: um amigo de seu ex-marido, um comerciante indiano, um professor que começa a lecionar na ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

104

mesma escola onde ela trabalha e um relacionamento fraternal, mas com possibilidades de transformar-se em um relacionamento amoroso, com Solomon. Facetas inusitadas de Dorothy começam a vir à tona, pois, nesta parte 3, ela é a personagem focalizada, não a que narra sua história. Ela não suporta o rápido e crescente descaso de seus companheiros, a mudança na maneira de se vestir quando vão visitá-la; quer domesticá-los, fazer com que a tratem com o mesmo desvelo com que a tratavam no início do relacionamento; tenta fazer do comerciante um leitor e apreciador de música clássica, vai até a banca de revistas que ele possui e leva uma boneca de presente para sua filha recémnascida, encontra-se com a esposa que o proíbe de atendê-la na banca; entra em contato com a esposa do jovem professor substituto para interferir na relação deles, escreve inúmeras cartas de amor e de frustração e as deixa no escaninho da escola. Finalmente, Dorothy é “convidada” a se aposentar por “assédio moral”. A inflexibilidade de sua personalidade não a ajuda a se ajustar a nada que fuja de seus ideais de um relacionamento com um “homem perfeito”, segundo seus padrões: educado, amoroso, inteligente, bom leitor, asseado, atento, com boa conversa, etc. Ao observar Solomon, ela vislumbra um possível relacionamento com chances de perdurar. Mas, sabe que seus pais desaprovariam sua escolha, caso estivessem vivos. Sua conversa imaginária com eles no cemitério mostra claramente como a lembrança das convicções materna e paterna está presente em sua vida. Eles certamente não aceitariam Solomon como um homem digno de ser companheiro de sua filha mais velha, por ser negro. “Eu não sou ingênua”, digo para mim mesma. Sussurro sob minha respiração. Já fui pega nessa discussão no passado. Para começar, minha mãe e meu pai, pois ambos não gostavam de gente de cor. Papai considerava as pessoas de cor um desafio

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

105

à nossa identidade inglesa. [...] para ele, ser inglês era mais importante do que ser britânico, significava não ser de cor. (PHYLLIPS, 2006, p. 50)

O quarto livro, em primeira pessoa, resgata a história sofrida de Gabriel/Solomon e de sua chegada à Inglaterra, depois de ser inocentado da acusação de abuso sexual: o encontro com Mike, que lhe dá carona, com os Andersons, que o acolhem. A inesperada morte de Mike, e a ida dos Andersons para a Escócia (não antes de terem encontrado um lugar onde Solomon pudesse trabalhar, o condomínio de Stoneleigh), são fatos relatados pelo personagem em primeira pessoa. A vida de Solomon muda completamente na Inglaterra, mas a morte de Mike é o gatilho para que o passado venha à tona novamente. Ele revela: Recordava minha mãe jogada no chão de meu distante país, com o sangue brotando de seus ferimentos. Recordava meu pai e minha mãe recebendo tiros como animais. Meus sonhos continham minha história. Noite e dia eu tentava não pensar mais nessas coisas. Tentava não pensar mais nessas pessoas. Eu queria deixar essas pessoas livres para que pudessem se transformar na história de outro homem. Querida parar de sonhar com elas à noite, ou pensar nelas durante o dia, mas depois da morte de Mike, fiquei muito perturbado e não conseguia escapar nem de mim, nem do meu país, nem da minha família. (PHYLLIPS, 2006, p. 329)

Ficamos sabendo também do interesse de Solomon por Dorothy, como uma mulher “que se dá respeito”, elegante, educada e solitária. Ele deseja “resgatar” aquela mulher. Mas isso não será possível, os skinheads do local se encarregam de abreviar a existência de Solomon e impossibilitar qualquer tentativa de aproximação entre os dois seres solitários.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

106

O quinto livro, o mais curto, como mencionamos anteriormente, é um sequel da narrativa e da narração. Dorothy, agora internada num hospício, relata, novamente em primeira pessoa, o que segue depois da morte de Solomon, assunto do primeiro livro. A forma com que o romance é apresentado, com uma linha temporal quase caótica, com enredo nebuloso e colocações instáveis, nos remete para a realidade de nossos dias, na qual tudo parece “diluir-se no ar”. O próprio jorrar da narrativa, ora para um lado, ora para outro, a busca do significado, revela, mais uma vez, que a realidade/identidade do ser humano contemporâneo é fluida, móvel, incerta, inesperada. Por outro lado, é essa nebulosidade, incerteza, mobilidade, fluidez que talvez impeça o desgaste da produção artística. Como afirma Bauman: O significado da obra de arte pós-moderna, pode-se dizer, é estimular o processo de elaboração do significado e defendê-lo contra o perigo de, algum dia, se desgastar até uma parada; alertar para a inerente polifonia do significado e para a complexidade de toda a interpretação. (BAUMAN, 1998, p. 136)

O encontro A estrutura de O encontro, de Anne Enright, segue também esse padrão de desequilíbrio, de incerteza, de fluidez do romance de Phyllips. O romance é dividido em 39 capítulos, tem como gatilho a notícia do suicídio de Liam, irmão da protagonistaescritora Veronica, que narra em primeira pessoa. A narrativa tem início com o “presente” da diegese (1998), mas é intercalada com narrativas conscientemente nebulosas e imaginárias dos anos 1920 e lembranças mais nítidas dos anos 1960. Estaríamos sendo simplistas se disséssemos, como disse uma leitora irlandesa, que o romance é “sobre um típico funeral de uma família irlandesa, apenas isso”, durante um grupo de estudos irlandeses. A narrativa em primeira pessoa, os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

107

sentimentos da protagonista, registrados por ela mesma, a nebulosidade da realidade que se lhe apresenta e que se lhe apresentou no passado, fazem do romance uma caótica jornada interna em busca de significado. Desde o início, Veronica duvida de suas próprias lembranças: Eu gostaria de registrar o que aconteceu na casa de minha avó no verão em que eu tinha oito ou nove anos, mas não tenho certeza se realmente aconteceu. Tenho que testemunhar um acontecimento incerto. Que eu sinto rugir dentro de mim, essa coisa que pode nem ter acontecido, Não sei que nome dar a isso. Acho que se pode chamar de crime da carne, mas a carne há muito se desfez e não sei bem qual mágoa pode restar nos ossos. [...] Há dias que não me lembro da minha mãe. Olho a fotografia dela e ela me escapa. [...] E de todos os filhos, eu sou a que mais pareço com a mãe dela, minha avó, Ada. Deve ser confuso. [...] Se ela [a mãe] ao menos ficasse visível, penso. Então eu poderia entrar em contato com ela e impor-lhe a verdade da situação, a gravidade do que ela fez. Mas ela permanece nebulosa, inatingível... (ENRIGHT, 2007, p. 7, 9, 11)

O suicídio de Liam na Inglaterra, o translado do corpo, as viagens de Veronica, a incumbência de dar a notícia da morte do irmão para a mãe doente, o casamento tribulado, o passado atormentador, aquele passado no qual Liam foi abusado sexualmente por um amigo da avó, são fatos e “lembranças” que se alternam no início e se emaranham depois dos capítulos iniciais do romance. Por exemplo, o capítulos 1, 3, 5 tem o presente (1998) como foco, os capítulos 2 e 4 viajam no tempo para 1925; já no capítulo 27, Veronica relata acontecimentos e sentimentos que são vivenciados um mês depois da morte do irmão, mas no capítulo 30, o corpo de Liam está sendo velado na sala da casa da mãe. No capítulo 39, no sequel, a protagonista encontra-se no ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

108

aeroporto Gatwick, segundo maior aeroporto de Londres, preparando-se para voltar para casa. O saguão de entrada [do hotel] abriga o conteúdo humano de um 747 cuja turbina falhou acima do Cazaquistão. É a segunda noite que passam no solo do país errado; estão com as roupas usadas, vão pensar num banho de banheira e aceitar um chuveiro, mas ainda não, porque não tem nada limpo para vestir. Vão examinar o guarda-roupa e o abajur da cabeceira, e depois vão sentar na cama, deitar nela, ou levantar a colcha esticada e se esfriar por debaixo: se bem que depois de algum tempo nós vamos todos rolar, ou nos arrastar, ou despencar até o esquecido frigobar e nos perguntar se vale a pena. A qualquer preço. Isso não é a Inglaterra. (ENRIGHT, 2007, p. 236, ênfase acrescentada)

Parece que estamos ouvindo a voz de Dorothy no início de em Uma margem distante. Neste caso, no entanto, os seres humanos que esperam abrigo no hotel estão sendo observados pela narradora, até que no final do parágrafo ela é um deles, pois a narradora usa, então, a primeira pessoa do plural. Ela faz parte do grupo dos que esperam (ou sofrem), devido à uma falha no avião (ou na vida, incluindo, nesta, falhas de percepção e da memória). O presente da narradora-protagonista oscila entre águas turvas e turbulentas do passado e é matizado por intimations do futuro Durante a narrativa de O encontro, durante a espera para resgatar o corpo do irmão e enterrá-lo, não há linearidade, não há ordem, não há organicidade como nas narrativas ficcionais que antecedem a ficção na qual os conflitos interiores se impõem à uma realidade empírica, também criada pelo autor/narrador. A memória, constantemente evocada por Veronica, e pelos personagens de Phyllips nas narrativas em primeira pessoa, pode brotar, segundo Samuel Beckett, em seu ensaio Proust (2003), de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

109

forma voluntária ou involuntária. A memória voluntária é “a memória que não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo” (BECKETT, 2003, p. 31) e a memória involuntária que “é explosiva, ‘uma deflagração total, imediata e deliciosa’ [r]estaura não somente o objeto passado, mas também o Lázaro fascinado ou torturado por ele [...] e em seu fulgor revela o que a falsa realidade da experiência não pôde e jamais poderia revelar – o real” (BECKETT, 2003, p. 33). Em O encontro, a construção da narrativa está vinculada a esses dois tipos de memória apresentados por Beckett, a involuntária, que é acionada pela notícia do suicídio de Liam, e a voluntária, na busca consciente de Veronica ao folhear o álbum de família imaginário e tentar resgatar o momento que causou o grande trauma na vida do irmão. Ao tentar reconstituir o nebuloso passado, realidade que a experiência não revelara, mas que agora explode claro em sua mente, Veronica sente-se compelida a gritar a verdade para sua mãe, mas, reconhecendo que talvez a própria mãe tenha sido vítima do agressor do irmão, cala-se novamente, como faziam todos os irmãos na casa paterna. Como parte do processo de se lembrar voluntariamente, Veronica passa noites em claro escrevendo outra narrativa sobre a juventude de sua avó Ada, em especial sobre os acontecimentos do longínquo ano de 1925, em que tenta (re)criar a situação na qual Ada conhece Lambert Nugent e Charlie Spillane, casandose com este último: “Ela não se casou com Nugent, você [leitor] vai ficar aliviado de saber. Casou com o amigo dele, Charlie Spillane. [...] Mas ele nunca a deixou. Minha avó era o ato mais imaginativo de Lamb Nugent” (ENRIGHT, 2008, p. 24). Esse triângulo abre as portas da casa para Nugent, que passa a ser o “amigo da família que estava lá o tempo todo” (ENRIGHT, 2008, p. 63). O início do romance de Enright parece apontar para uma narrativa onde o suicídio do irmão (presente) reaviva um passado violento e nebuloso, que precisa ser rememorado e registrado, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

110

com a obscuridade que lhe é peculiar, pela protagonista. “É assim que vivo minha vida, desde que Liam morreu. Fico acordada a noite inteira. Escrevo ou não escrevo. Ando pela casa” (ENRIGHT, 2007, p. 37). As citações das páginas 7, 9 e 11, de O encontro, já demonstram essa consciente incapacidade de criar um passado nítido, já que nada, além de três detalhes do suicídio, parece ser nítido na vida dos irmãos Liam e Veronica: Há fatos sobre a maneira como Liam morreu que eu preferiria não ter sabido. Tanta coisa eu esqueci na vida e não consigo esquecer esses pequenos detalhes. Esqueci... mas nunca vou esquecer os três pequenos fatos que a boa gente de Brighton me contou sobre o corpo que içaram do mar. O primeiro foi que Liam estava usando um casaco curto amarelo fluorescente, como aqueles usados por trabalhadores de estrada de ferro e ciclistas. O segundo é que estava com pedras nos bolsos. O terceiro é que estava sem cueca debaixo do jeans, e sem meias dentro dos sapatos de couro. [...] Eu sei, ao escrever essas três coisas: o casaco, as pedras e a nudez do meu irmão por baixo da roupa, que elas exigem que eu lide com fatos. É hora de pôr um fim nas histórias cambiantes e a divagações. É hora de pôr um fim no romance e contar apenas o que aconteceu na casa de Ada no ano em que eu tinha oito e Liam quase nove anos. (ENRIGHT, 2007, p. 132,133)

Considerações finais É uma determinação de pouca duração, pois, mesmo ao relatar o que aconteceu na casa de Ada quando ela tinha oito e Liam quase nove anos, a lembrança surge de uma percepção totalmente irreal. Podemos acrescentar, portanto, que ela própria convence o leitor da impossibilidade de tomá-la como uma narradora confiável. Assim como nos narradores em primeira pessoa de Phyllips, o que vemos é a impossibilidade de criar uma ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

111

narrativa com seres humanos centrados, sobre uma realidade palpável, com roteiros definidos, alertando o leitor para a “inerente polifonia do significado e para a complexidade de toda a interpretação” da intrigante e instigante produção literária contemporânea (BAUMAN, 1998, p. 136).

Referências BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. ENRIGHT, Anne. O encontro. Trad. José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. PHYLLIPS, CARYL. Uma margem distante. Trad. Maria José Silveira. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

112

ENCADEAMENTO DE CONTOS DE KATHERINE MANSFIELD COMO BILDUNGSROMAN DE SUAS PERSONAGENS FEMININAS Autor: Camilla Damian Mizerkowski (UFPR) RESUMO: O presente trabalho sugere o desenvolvimento de um Bildungsroman das protagonistas femininas de Katherine Mansfield nos contos A casa de bonecas, Uma festa no jardim e Seu primeiro baile, em que se observa evidente gradação na passagem da infância para a adolescência, e daí para uma relativa maturidade. Há evidências de pontos de contato entre as protagonistas, como a aguçada sensibilidade em relação ao mundo circundante, que as leva a uma maior consciência de si, reforçando a hipótese de uma história continuada do processo de iniciação da mulher. Restrinjo minha análise àqueles contos pois são exemplos da New Zealand fiction de Mansfield, que têm como cenário sua terra natal e como pano de fundo um sistema familiar muito semelhante ao da própria autora. PALAVRAS-CHAVE: Bildungsroman. Katherine Mansfield. Ficção curta.

Katherine Mansfield é possivelmente o nome mais relevante na área da ficção curta em língua inglesa. Seus contos, que datam do início do século XX, conquistaram o reconhecimento gradual da crítica da época e continuam ainda hoje a interessar estudiosos da literatura e a deleitar leitores comuns. O êxito de Mansfield pode ser creditado ao seu agudo poder de observação e à sensibilidade de conhecedora da alma humana, expressos em mais de uma centena de contos e nos vários registros íntimos e de crítica profissional que compõem sua obra. Na criação de pequenos acontecimentos cotidianos, que já não correspondem à fotografia exata da realidade, sentimentos, reações e emoções transformam-se em uma experiência sensorial tanto para as personagens como para os leitores. O resultado de tal trabalho

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

113

com o texto rendeu a Mansfield apreciação geral dos leitores e críticas elogiosas por parte de profissionais da literatura. Segundo Gillian Boddy (1988), biógrafa e crítica, alguns estudiosos consideram Mansfield uma contadora de histórias (a teller of tales), enquanto outros acreditam que seus contos são apenas fragmentos de recordações. São também recorrentes análises de seus contos a partir de paralelos com a vida da autora: temas das histórias são verificáveis em sua biografia, assim como personagens e cenários de muitos de seus contos coincidem com membros de sua família e locais onde viveu ou que visitou. A própria autora comenta: I think the only way to live as a writer is to draw upon one’s real, familiar life — to find the treasure … And the curious thing is that if we describe this which seems to us so intensely personal, other people take it to themselves and understand it as if it were their own. (In: Boddy, 1988, p. 158)

Ao se propor descrever “a vida familiar e real” que é “intensamente pessoal”, Mansfield aproxima sua obra do leitor, o que confirma a hipótese levantada por estudiosos. Seus mais famosos críticos e biógrafos, como Antony Alpers (1982), Vincent O’Sullivan (1998), Clare Hanson (1987) e Gillian Boddy (1988) concordam em que os eventos inspiradores de muitos de seus contos são facilmente localizados em anotações de diário e cartas: entre os mais famosos estão a viagem que fez à Alemanha com a mãe, Annie Dyer, para submeter-se a um aborto, viagem que deu origem aos contos que fazem parte da coletânea In a German pension (1911), seu primeiro livro publicado. Outra viagem, desta vez à França, com o fim de encontrar o amante e escritor Francis Carco, originou o conto “An indiscreet journey” (1920). Carco também inspirou o narrador de “Je ne parle pas français” (1917), história bastante criticada por suas conotações sexuais.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

114

A nômade Mansfield garantiu em seus contos um retrato inigualável tanto do povo europeu quanto do neozelandês. É importante lembrar, contudo, que os estudos de sua obra não devem se restringir à investigação da precisão de eventos, lugares e personagens de suas narrativas, se correspondem ou não à realidade da vida da autora. Atenção deve ser dada às circunstâncias em que eventos, cenários e personagens foram recriados e de que forma o processo se deu: There have been few writers whose life and work seem so inseparable, but there seems little point in debating whether it was her experiences in New Zealand or in England which had the greater influence on her work — she could not have written as she did without the particular combination of both those very different worlds, her own peculiar form of “geographical schizophrenia”. (BODDY, 1988, p. 158)

A peculiar “esquizofrenia geográfica” de Mansfield garantiu um julgamento do mundo e da sociedade — tanto da neozelandesa quanto da inglesa — próprio de quem conhece profundamente o funcionamento dos dois mundos, e sente-se capaz de retirar a essência de ambos. Embora sofra o choque da Primeira Grande Guerra — o período mais criativo de Mansfield foi de 1915 a 1923 — e as desilusões da tão sonhada carreira de escritora na Inglaterra, Mansfield ainda se dedica a procurar tanto na Nova Zelândia de sua infância — a que reinventa em sua imaginação — quanto na Londres moderna e no restante da Europa devastada pela guerra, o meio para veicular a Verdade e a Beleza que a motivaram a escrever. Apesar de o conceito de Verdade de Mansfield não ser expresso diretamente em suas obras, é possível inferir que se liga à ideia de compreender os significados abstratos de elementos e eventos do cotidiano. A própria autora afirma que não pode falar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

115

sobre os “desertos de vasta eternidade” diretamente, mas os aborda por meio de um “menino comendo morangos”, ou “uma mulher penteando os cabelos” (1996, p. 148). Deste modo, Mansfield acredita que a Verdade está em observar o mundo com olhos poéticos, e a partir desta observação ser capaz de refletir sobre assuntos profundos e complexos, como a vida e seus processos. Como afirma Hanson (1987), a obra da autora tem tanto função estética quanto ética, e esta última é a de revelar a sua visão de verdade por meio de seus textos. Nota-se, portanto, uma concentração nos detalhes mínimos da vida — como o desabrochar de uma flor — em forma de imagens sugestivas, atribuindo-lhes significados elevados. Na brevidade dos contos, Mansfield é capaz de exprimir anseios e descobertas, na criação de seu mundo ficcional povoado de personagens sensíveis em um contexto carregado de simbolismo. O trabalho de Mansfield é dedicar-se a “intensify the so-called small things, so that truly everything is significant.” (ALPERS, 1980, p. 81). Esta preocupação da autora com o fazer literário e o papel da literatura aparece principalmente em resenhas, ensaios filosóficos para jornais literários da época e registros de caráter íntimo, como cartas a diversas pessoas envolvidas no cenário artístico de sua época — como Virginia Woolf, D. H. Lawrence, John Galsworthy e Hugh Walpole. Além desses meios oficiais, Mansfield também expressou suas opiniões em um extenso diário, rico em anotações que revelam, a par de suas reflexões íntimas, uma profunda preocupação com a literatura e sua execução. Na soma destes registros encontramos um retrato de Mansfield como crítica e como escritora e, acima de tudo, como artista. Os registros não ficcionais, portanto, são imensamente valiosos não somente por possibilitar um estudo biográfico da obra de Mansfield, mas principalmente pelo insight que oferecem sobre a misteriosa relação da autora com sua obra: a análise cuidadosa de passagens

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

116

tanto de diário, quanto de cartas, resenhas e ensaios permite compreender a visão do mundo da artista e o seu processo criativo. These notes and letters are particularly important for what they reveal of K.M.’s artistic development. As a writer she believed deeply in the importance of writing as an art, constantly discussing and explaining her ideas about her own work and others. (BODDY, 1988, p. 109)

O levantamento cuidadoso da não ficção de Mansfield, centrado especificamente sobre seus comentários a respeito do processo de criação literária, — o seu próprio e o de outros autores — evidenciou a existência de pontos essenciais em sua carpintaria artística, dentre estes a fonte de grande parte de suas imagens e temática: a memória da infância e de sua terra natal. O conjunto da ficção de Mansfield aborda, de fato, temas maiores como o nascimento, a vida e a morte, que nas histórias sobre a Nova Zelândia — para onde retorna “quando quer” — assumem profundezas inefáveis na construção de cenário e personagens. Sobre o fundo da paisagem de sua terra natal, Mansfield cria um panorama humano que simboliza seus ideais de Pureza e Verdade, hipótese reforçada pela recorrência de personagens em várias de suas New Zealand Stories. As histórias dedicadas à infância, na paisagem familiar de Wellington e seus arredores, têm destaque indiscutível no conjunto da ficção de Mansfield. Uma carta endereçada a Dorothy Brett, de 11 de outubro de 1917, testemunha a importância que a autora atribui a essa fonte de inspiração: “... tenho uma grande paixão pela ilha onde nasci. (…) eu tentei levantar a névoa que cobre o meu povo, deixar que ele pudesse ser visto, para depois escondê-lo novamente.” (MANSFIELD, 1996, p. 80). Em 1922, cinco anos mais tarde, Mansfield escreve em seu diário: “Não posso dizer o quanto estou agradecida por ter nascido na Nova Zelândia,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

117

por conhecer Wellington tão bem quanto conheço, e saber que ela existe e que posso ir lá quando quiser.” (1996, p. 251-2). É possível considerar estes comentários como um retomar da Nova Zelândia como cenário e tema de seus contos, depois de um longo período na Europa, marcado pelo trauma da guerra que atingiu Katherine Mansfield no centro de suas afeições familiares, com a morte do irmão mais novo, Leslie Beauchamp. Depois destes acontecimentos conturbados, há testemunho, principalmente em seu diário, da intenção de retomar as memórias da terra natal como tema e ambientação de sua narrativa. Ademais, o exame de cartas e ensaios filosóficos aponta para a consciência de Mansfield de ter encontrado no retorno às suas raízes a Pureza, a Verdade e a Beleza: “Beauty triumphs over ugliness in Life. That’s what I feel, and that marvelous triumph I long to express… Life is, all at one and the same time, far more mysterious and far simpler than we know.” (In: BODDY, 1988, p. 181). Nesta passagem, verifica-se o desejo de aperfeiçoar a expressão literária para comunicar e fazer sentir a beleza inerente da vida e o mistério de sua simplicidade. Assim, a postura artística que assume depois da trágica experiência dá origem a contos comoventes, como Prelude, The doll’s house, The garden party e Her first ball, escritos durante um período de produção intensa, que inclui seus melhores contos, segundo a crítica. Mais do que simplesmente relatar as memórias do país, Mansfield trabalha incessantemente para encontrar uma forma de representação literária única, segundo o que se observa em sua obra não ficcional. Cuidadosamente selecionados, os eventos são dispostos sem explicações introdutórias, como em flashes — “Its brevity was that of the flash, not of a condensed narrative.” (ALPERS, 1980, p. 239) — o que posiciona o leitor bem no centro dos acontecimentos. O exame da obra discursiva de Mansfield estabelece um vínculo entre suas concepções sobre prosa de ficção e seus contos, em particular aqueles ambientados ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

118

na Nova Zelândia, assunto de muitas de suas correspondências e registros. Deste modo, argumento que a fase mais sensível de Mansfield, na qual se dedica a reviver suas lembranças, coincide com a morte do irmão caçula, cuja perda traz grandes modificações na sua visão de mundo. Isto é evidente na fala de Leila, protagonista de Her fisrt ball, ao observar o carinho do primo, Laurie Sheridan, com as irmãs. Ocorre-lhe o desejo da companhia de um irmão: “Oh, how marvelous to have a brother! In her excitement Leila felt that if there had been time, if it hadn’t been impossible, she couldn’t have helped crying because she was an only child and no brother had ever said ‘Twig?’ to her;” (1997, p. 166). Em The garden party Laura compartilha a experiência do conhecimento da morte com um irmão querido que a compreende: “‘It was simply marvellous. But, Laurie —’ She stopped, she looked at her brother. ‘Isn’t life’, she stammered, ‘isn’t life —’ but what life was she couldn’t explain. No matter. He quite understood.” (1997, p. 257). É para o irmão Laurie que Laura abre o coração angustiado pelo contato abrupto e inesperado com a morte. Tendo em foco os aspectos até agora expostos, o recorte para este artigo foi feito a partir de um crivo que considerou contos que apresentam um encadeamento de temas sobre as famílias Sheridan e Burnell (protagonistas de diversos contos da Nova Zelândia), e que apresentam personagens recorrentes em diferentes estágios de vida, como numa espécie de história de iniciação. Quatro contos foram selecionados, pois apresentam uma sequência narrativa de desenvolvimento cronológico das protagonistas: Prelude, The doll’s house, The garden party e Her first ball, cujos títulos preferi manter em inglês já que nem todos possuem tradução para o português. Observa-se uma evidente gradação no desenvolvimento das personagens — da infância, à adolescência e à fase adulta — sendo possível catalogar os contos selecionados de acordo com as diferentes fases da vida das ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

119

protagonistas, analisando o processo de seu amadurecimento: da inocência da criança, passando por uma maior consciência do mundo circundante, à relativa maturidade da adolescente e da jovem. O que se evidencia se considerarmos o conjunto maior representado pelos quatro contos é o processo de amadurecimento das qualidades de percepção de certas personagens. A Kezia de sete anos em The doll’s house, que percebe a ansiedade das pequenas Lil e Else em ver também a preciosa casinha de bonecas, se transforma na Laura de The Garden party, colocada em contato brusco com as realidades da vida e da morte entre os mais pobres. Os reveses sofridos por Laura na preparação da festa no jardim são revividos por Leila em Her first ball, de forma mais condensada e talvez mais intensa, uma vez que a protagonista já atingiu os dezoito anos e tem mais aptidão para compreender a complexidade dos relacionamentos humanos. Há, portanto, uma relação sequencial das narrativas. Assim, dotadas de uma capacidade rara de apreensão da beleza, — Kezia é a única entre as Burnell a perceber a perfeição de uma lampadazinha na casa de bonecas; Laura é a “artista” da família, Leila atenta para os menores detalhes do novo cenário — as protagonistas fazem parte de uma única história de amadurecimento espiritual. Isto justificaria a classificação dos contos como um romance de iniciação, agrupados ao redor de um mesmo tema, com uma protagonista única em processo de desenvolvimento. A respeito das histórias de formação, Mordecai Marcus (1976, p. 192) afirma que: “An initiation story may be said to show its young protagonist experiencing a significant change of knowledge about the world or himself, or a change of character, or of both, and this change must point or lead him towards an adult world.” Efetivamente, a sensibilidade para questões relevantes do relacionamento humano faz de Kezia, Laura e Leila facetas diversas de uma mesma personalidade, que ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

120

se torna mais consciente de si própria e do mundo exterior, como uma única personagem feminina em um Bildungsroman no conjunto dos contos analisados. No caminho para o mundo adulto, traços humanos únicos são revelados, o que define a “vida” das personagens da trama, segundo Mansfield, característica importante para a sua construção. Analisando as personagens secundárias de Night and day, de Virginia Woolf, Mansfield defende seu ponto de vista: ... it is true that these characters are not in any high degree important — but how much life have they? — we have the queer sensation that once the author’s pen is removed from them they have neither speech nor motion, and are not to be revived again until she adds another stroke or two or writes another sentence underneath. Were they shadowy or vague that would be less apparent, but they are held within the circle of steady light in which the author bathes her world, and in their case the light seems to shine at them, but not through them. (MANSFIELD, 1930, p. 109)

Sob o controle total da autora, as personagens de Woolf são como marionetes; a luz que deveria brilhar através delas, exaltando suas qualidades humanas, tampouco as ilumina quando paira sobre elas. Sua intimidade fica à sombra, e elas não passam de alegorias na narrativa. Em suas personagens principais, geralmente femininas, Mansfield explora traços mais humanos do que havia encontrado na novela de Woolf. Os contos que analisamos voltam-se principalmente para o aprofundamento da alma feminina: os sentimentos e reações de uma personagem mulher que centraliza o interesse da narrativa e passa por experiências modificadoras. Os incidentes diários, que aparentemente não fornecem nenhum elemento dramático, definem uma trajetória muito próxima daquela de pessoas reais. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

121

O contexto sociocultural em que se movem suas personagens é aquele em que a própria Mansfield viveu e escreveu, mas sobre o qual impõe a sua visão de mundo. A anotação datada de 1921 no seu diário confirma o seu propósito: A realidade não pode se tornar o sonho, o ideal; é tarefa do artista moer e rachar, tentar impor sua visão da vida sobre o mundo real. A arte é uma tentativa de criar o seu próprio mundo neste mundo. O que oferece temas ao artista é a diferença em relação àquilo que aceitamos como realidade. Nós escolhemos — trazemos para a luz — colocamos numa posição mais alta. (1996, p. 241)

Sua literatura é, portanto, um recorte da realidade com o fim de conduzir o leitor para a discussão de questões universais. Para compreender as profundas mudanças em seu íntimo as protagonistas prestam redobrada atenção às pequenas coisas que ocorrem ao seu redor, e apreendem seu valor simbólico. Assim como a própria autora, que se muda da Nova Zelândia para a Inglaterra ainda adolescente e sofre as consequências do ajuste decorrente, — entre elas a solidão e o estranhamento — suas protagonistas se encontram em um isolamento nem sempre físico, mas psicológico, que produz uma visão singular e exclusiva do mundo, definidora do seu desenvolvimento espiritual. Para fins de análise, categorizei os contos em ciclo da infância e ciclo da adolescência, ou emcontos sobre a família Burnell e Sheridan, como já dito. No ciclo da infância começo minha análise pelo conto Prelude. Inicialmente, são três meninas na família, mais uma gravidez apenas sugerida pelo narrador: Linda Burnell não pode carregar as crianças ao colo e permanece languidamente na cama, enquanto a mãe e a irmã se encarregam da organização da casa e dos cuidados com as meninas. O período de gestação é incômodo para Linda, mas para Stanley, seu marido, representa a esperança do sonhado filho homem, que ele imagina ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

122

tomando seu lugar à mesa ao lado das filhas: “É ali que meu menino deveria sentar” (2005, p. 123). O menino não aparece em The doll’s house, mas o vemos em At the bay, conto intermediário. Outras preocupações apenas esboçadas em Prelude ressurgem em The doll’s house. A questão das classes sociais sugerida pelos embates entre a grosseira tia Beryl e a empregada da família, Alice (petulante e desrespeitosa), é o “prelúdio” à ação cruel da tia em The doll’s house, quando expulsa as meninas Kelvey, convidadas secretamente por Kezia para ver a casinha. A falta de polidez da alegre Mrs. Samuel Josephs em Prelude é um prenúncio do episódio que envolve Laura e os trabalhadores em The garden party. Assim, a temática das relações entre classes é retomada e retrabalhada, com diferentes nuances e significados. O ciclo que convencionei denominar “ciclo da adolescência” leva os temas do primeiro — percepções do próprio eu, visão de mundo, relações familiares e diferenças entre classes sociais — a um nível mais elevado de amadurecimento das personagens. Espaço e ambiente se repetem: uma família de classe média alta, em convivência próxima e distante com membros das classes trabalhadoras. Laura, assim como Kezia, uma artista incipiente, é a única da família pronta para uma experiência que irá transformar a relação entre ela e as classes mais baixas; os outros membros seguem reproduzindo os padrões aceitos, sem qualquer indicação de mudança de atitude. A atmosfera que resulta das relações entre elementos humanos dentro e fora do núcleo familiar — uma família de três filhas e um rapaz — poderia representar uma recriação da família Burnell, pai e mãe, três filhas e um bebê provavelmente do sexo masculino. Segundo Mansfield, as características que tornam esses contos tão próximos entre si, além das que apontamos, é a sua “qualidade emocional”, que a autora imprime a personagens e temas. Acrescento que a atmosfera nostálgica dos contos reflete

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

123

os sentimentos da autora, assim como as protagonistas são ecos de sua personalidade: What do we mean when we speak of the atmosphere of a novel? (…) At one time “emotional quality” seemed to cover it, but is that adequate? May not a book have that and yet lack this mysterious covering? Is it the impress of the author’s personality upon his work — the impress of the writer’s passion — more than that? Dear Heaven! There are moments when we are inclined to take our poor puzzled mind upon our knee and tell it: “It is something that happens to a book after it is written. (...) For whatever else atmosphere may include, it is the element in which a book lives in its own right. (1930, p. 289)

Como um elemento que faz com que a narrativa “adquira vida própria”, a atmosfera familiar é trazida à imaginação do leitor por meio de sentidos, como o cheiro de lavanda da avó, o calor da cozinha, o grande jardim da casa e as brincadeiras das crianças. Outra característica bastante marcante das personagens femininas de Mansfield é a capacidade de incorporar máscaras que possibilitem o seu convívio na comunidade e em família. Middleton Murry fascinou-se pelas máscaras que Mansfield usava socialmente, divertindo-se com as suas incessantes mutações. Katherine se refere ao seu uso pelos escritores ao comentar um poema de Emily Brontë em uma de suas cartas: “Uma das principais razões para a insatisfação das pessoas com a poesia moderna é que não se pode jamais ter certeza de que os poemas têm algo a ver com a pessoa que os escreve. É tão cansativo, não é? Nunca abandonar o baile de máscaras, nunca, nunca.” (MANSFIELD, 1996, p. 133). Da mesma forma que a autora no convívio social, suas personagens apropriam-se de máscaras que de certa forma facilitam a sua adaptação ao mundo. Apesar de sensíveis e profundamente incomodadas pela frieza emocional dos outros personagens, as protagonistas devem, de algum modo, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

124

procurar o seu espaço na comunidade à qual pertencem, da mesma forma que Mansfield teve de se adaptar à vida europeia. É possível dizer que, à semelhança da autora, suas personagens interagem subjetivamente com o meio material e simbólico, assumindo a identidade do objeto contemplado. Em The doll’s house, por exemplo, vemos a menina Kezia aproximar-se tanto da lampadazinha que, ao final do conto, a simbologia do objeto — a luz da renovação — liga-se à própria menina, que contraria a mãe ao se relacionar com pessoas de classes sociais inferiores. A alegria de Kezia decorre de seu encanto com a delicadeza de detalhes da casinha e não do desejo de fazer sucesso na escola. Semelhante à própria Mansfield, que percebe a essência do objeto e liga-se espiritualmente a ele, suas personagens, como Kezia, têm a percepção de conceitos abstratos em pequenos detalhes do cenário. A análise das protagonistas de Prelude, The doll’s house, The garden party e Her first ball a partir da possibilidade da construção de uma história de iniciação da personagem feminina, pautada nas afirmações de Mansfield sobre a prosa de ficção, é possível graças às várias camadas interpretativas que os textos sugerem. Esta análise abordou a situação da mulher na sociedade neozelandesa, as diferenças sociais e, indiretamente, a renovação daquele meio a partir do modo de ver e de pensar o mundo de algumas personagens.

Referências ALLOT, M. Novelists on the novel. London: Routledge & Kegan Paul. 1975. ALPERS, A. The life of Katherine Mansfield. USA: Penguin Books. 1982. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

125

_____. A retórica da ficção. Lisboa: Arcádia. 1980. _____. Resurrection of the Implied Author: Why bother? In: Ed. PHELAN, James, RABINOWITZ, Peter J. A companion to narrative theory. Oxford: Blackwell Publishing. 2005. BODDY, G. Katherine Mansfield: The woman and the writer. Australia: Penguin Books. 1988. CORONEOS, Con. Flies and violets in Katherine Mansfield. Ed. TATE, Trudi e RAITT, Suzanne. Women’s fiction and the Great War. Oxford: Clarendon Press. P. 197-218. Disponível em Acesso em: 13 jul. 2006. ELIOT, T.S. Hamlet and his problems. In: ___.The sacred wood. Essays on poetry and criticism. London: Methuen and Co Ltd. 1972. p. 95-103. GORDIMER, N. The flash of fireflies. In: MAY, Charles. Short story theory. USA: Ohio Press. 1976. p. 179 - 181. HAMPL, P. Relics of Saint Katherine. American scholar, v. 70. n. 3, 2001. p.134. Disponível em: Acesso em 06 jul. 2006. HANSON, C. The critical writings of Katherine Mansfield. New York: St. Martin Press. 1987. LEWIS, P. Who Made Virginia Woolf Afraid?. The daily mail, September 14, 1996, p. 22. Disponível em Acesso em 06 jul. 2006. LIMA, M. C. Q. de. Epifania em Katherine Mansfield: imagens essenciais no espaço/tempo poético. Curitiba. 2002. Dissertação

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

126

(Mestrado em Estudos Literários) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. MANSFIELD, K. Aula de canto e outros contos. Rio de Janeiro: Revan. 1999. _____. Bliss and other stories. Penguin Modern Classics. 1967. _____. Contos. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Cosac Naify. 2005. _____. Diário e cartas. Trad. J. Cupertino. Rio de Janeiro: Revan. 1996. Original inglês. 1996. _____. Felicidade. Trad. E. Veríssimo. UFP. Ed. Nova Fronteira. RJ: Jacarepaguá. Original inglês. 1991. ______. In a German pension. New York: Bantam Books. 1991. ______. Letters to John Middleton Murry ¯1913-1922. Ed. John Middleton Murry. New York. Alfred A. Knopf. 1951. ______.New Zealand stories. Selected by Vincent O’Sullivan. Oxford: Oxford University Press. 1998. ______. Novels and novelists. Ed. J. Middleton Murry. London: Constable e Co. Ltd. 1930. ______. Stories. Ed. J. Middleton Murry. Cleveland and New York: The World Publishing Company. 1946. ______. The journal of Katherine Mansfield. ‘Definitive Edition’ Ed. John Middleton Murry. London: Constable, 1954.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

127

______. The letters of Katherine Mansfield. Ed. John Middleton Murry. London: Constable, 1934. ______. The scrapbook of Katherine Mansfield. Ed. John Middleton Murry.London: Constable, 1937. Disponível em: Acesso em: 06 jul. 2006. MARCUS, Mordecai. What is an initiation story? MAY, Charles. Short Story Theory. USA: Ohio Press. 1976. p. 189 – 201. PILDITCH, J. (Ed) The critical response to Katherine Mansfield. London: Greenwood Press Westport. 1996. Disponível em: Acesso em: 22 out. 2006.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

128

A GRANDE FOME, O TIGRE CELTA E O TRAUMA CULTURAL EM STAR OF THE SEA, DE JOSEPH O’CONNOR Autora: Camila Franco Batista (USP) Orientadora: Laura Patricia Zuntini de Izarra (USP) RESUMO: The Star of the Sea é um navio-caixão que transporta irlandeses fugindo da Grande Fome do século XIX na Irlanda em direção aos Estados Unidos. Durante o trajeto, muitos dos passageiros não resistem a doenças e à fome e são atirados ao mar. Suas histórias são registradas em forma de cartas, entrevistas e narrativas em primeira e terceira pessoa no romance histórico Star of the Sea (2002), do escritor irlandês Joseph O’Connor (1963-). A narrativa polifônica do romance demonstra o impacto traumático da Grande Fome no inconsciente coletivo irlandês, trauma este que persiste apesar do sucesso econômico trazido pelo período do Tigre Celta (1994-2008). Com base no conceito de “sociologia da negação” elaborado por Stanley Cohen (2001), esta apresentação visa analisar como Star of the Sea revela a resistência da arte irlandesa contemporânea em esquecer traumas coletivos. PALAVRAS-CHAVE: Grande Fome Irlandesa. Tigre Celta. Trauma cultural. Negação. Joseph O’Connor.

No século XIX, a Irlanda viveu um dos piores períodos de sua história. Entre os anos 1845 e 1852, uma doença chamada “ferrugem da batata” se espalhou pelas plantações irlandesas, tornando a então principal fonte de alimento imprópria para o consumo. Consequentemente, pequenos agricultores perderam sua renda e não conseguiam pagar o aluguel aos donos das terras. A fome fez com que milhares de irlandeses emigrassem ou morressem: estima-se que 1 milhão de pessoas morreu e outro milhão emigrou para países como os Estados Unidos, Canadá, Argentina, Austrália, Nova Zelândia e Inglaterra. A tragédia também significou um golpe na língua gaélica: grande parte da população cujo idioma era irlandês morreu durante a Fome. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

129

Em 1997, um monumento em memória das vítimas do desastre do século XIX foi inaugurado em Dublin. Estátuas de pessoas raquíticas e vestidas de trapos estão dispostas em direção ao mar, como se estivessem fugindo da fome. As estátuas relembram os emigrantes famintos do século XIX que gastavam suas últimas moedas em troca de viagens para outros países onde talvez tivessem melhor sorte. O meio de transporte acessível à maioria eram navios em péssimas condições de manutenção e saneamento. Os chamados “navios-caixão” jogavam ao mar os corpos dos que morriam de fome ou doença durante a viagem. No entanto, o memorial da Grande Fome inaugurado nos anos 90 em Dublin possui uma peculiaridade: em volta das estátuas de pessoas famintas estão placas com nomes de ilustres irlandeses contemporâneos, donos de fortunas e de grandes empresas. Todos os que pagassem 1000 libras ou mais adquiriam o direito de ter seu nome em uma placa do memorial, prestando “homenagem à Grande Fome ao ter o nome de sua empresa fundido em bronze [...] nas Docas da cidade de Dublin, um lugar que muitos deixaram durante a era da fome” (SMURFIT apud O’TOOLE, 2013). Para o crítico irlandês Fintan O’Toole, a venda de placas em um memorial é a marca de uma sociedade que vende até mesmo a memória de uma tragédia. Em suas palavras, if people don’t know what is wrong with using images of human disaster as billboards for the exaltation of personal and corporate egos, nothing anyone can say will impart that knowledge. All we can do is take note of where we are. We exist now in a society where everything, even the sacred memory of the dead, is for sale. Where there is nothing, even the horrible extinction of a million destitute people, that cannot be claimed by the powers that be. Where the power of art to evoke and bring to mind the sufferings of the nameless millions is ultimately at the service of those who are deemed, by virtue of their money and their success, to be important. Where the

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

130

wretched of the Earth are not entitled even to their wretchedness, but must surrender it in return for a few pounds donated to charity (O’TOOLE 2013).

Segundo O’Toole, a Irlanda dos prósperos tempos do Tigre Celta é um país que deseja decretar o fim da história e assumir o fim do sofrimento. Em seu livro Ship of Fools (2009), uma análise da queda do Tigre Celta após a crise econômica de 2008, o crítico e comentarista político percebe na sociedade irlandesa o forte desejo de esquecer os séculos de tragédia e, a partir de então, almejar o desenvolvimento e a modernidade do futuro. Para o autor, the Irish boom coincided with not just one ‘end of history’ but four. There was the general Western illusion that, after the fall of the Berlin Wall, history was over and the American model of free-market democracy would be established as the universal norm. There was the complementary illusion that the historical cycles of capitalism had been ended by the sheer brilliance of the masters of the universe […]. And there was a specifically Irish ‘end of history’. Two of the great continuities of Ireland since the eighteenth century - mass emigration and political violence – seemed, by the late 1990s, to be definitely over. Together, these forces fed a feeling that the past had little relevance to the new era and that it should be, quite literally, obliterated”. (O’TOOLE, 2009, p. 175)

O impulso em direção ao esquecimento do passado – ou o esquecimento seletivo – demonstra o que Stanley Cohen caracteriza como “estado de negação”. Em seu livro States of Denial: Knowing about Atrocities and Suffering, o sociólogo sulafricano define a “sociologia da negação” como uma “reação comum – talvez universal ou até mesmo ‘natural’ – de bloquear, desligar ou reprimir” a memória de eventos traumáticos (COHEN,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

131

2001, p. X, tradução minha). Ao negar que um fato histórico aconteceu de fato ou afirmar que “não foi bem assim”, indivíduos e sociedades inteiras agem como se não soubessem o que aconteceu ou fingem que o evento não tem implicações sérias. Cohen escreve que pessoas em estado de negação parecem “apáticas, passivas ou indiferentes”, não reagindo em relação ao trauma coletivo. Em seu estudo, Cohen mostra que estados de negação podem ser verificados em vítimas, perpetradores e testemunhas. Assim sendo, não significa que vítimas de traumas não consigam lembrar do que aconteceu com elas. A negação dos fatos pode servir como uma válvula de escape para não refletir sobre traumas e não trabalhar sobre eles. O Memorial da Fome em Dublin é um exemplo de negação das implicações contemporâneas da Grande Fome do século XIX. Ao inserir placas com nomes de cidadãos de sucesso, os responsáveis pelo memorial deram um recado à sociedade sobre como a Grande Fome deve ser lembrada: olhando para o passado para celebrar o presente, pois durante o Tigre Celta a Irlanda não mais sofria – era uma potência mundial. Contudo, as artes constantemente oferecem resistência ao esquecimento. Luke Gibbons (2002) demonstra como no Tigre Celta a arte irlandesa resiste à ideia de prosperidade e retorna constantemente ao passado para escavá-lo. No período entre 1994 e 2008, conhecido como o Tigre Celta, foram publicados diversos romances e filmes históricos, contrastando com a representação dos tempos irlandeses contemporâneos e obras que desejavam não representar temas considerados tipicamente irlandeses, tais como a família, a religião e a violência na Irlanda do Norte. Durante o Tigre Celta, porém, vê-se filmes como Korea (1995) e Michael Collins (1996), que tratam de temas históricos como a emigração, o Levante de Páscoa de 1916 e a Guerra da Independência (1919-1921). Na literatura, romances históricos como A Star Called Henry (1999) de Roddy Doyle, A Long Long Way ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

132

(2005) de Sebastian Barry e o objeto desta apresentação, Star of the Sea (2002) de Joseph O’Connor, demonstram a resistência da arte irlandesa em esquecer ou ignorar a história. Publicado em 2002, Star of the Sea é a 11ª publicação do professor, escritor, crítico e dramaturgo dublinense Joseph O’Connor (nascido em 1963). O romance histórico se passa no ano de 1847, durante a Grande Fome, e o cenário principal é o navio-caixão Star of the Sea, que transporta irlandeses e passageiros de outras nacionalidades para Nova Iorque. O nome do navio é irônico, pois a maior parte dos viajantes é composta por irlandeses famintos e doentes que fogem da catástrofe humanitária na Irlanda. Porém, o navio possui também uma pequena primeira classe, formada por um senhor irlandês chamado David Merridith, Lorde Kingscourt, (dono de terras em Galway); sua família e a babá de seus filhos, Mary Duane; um marajá e um jornalista americano, chamado Grantley Dixon. O navio é comandado pelo inglês Josias Lockwood. O livro se assemelha a um romance de viagens cujo narrador principal, o jornalista Grantley Dixon, reúne diversos registros relacionados à viagem e à Grande Fome na Irlanda. São cartas, canções populares, gravuras e registros do capitão do navio, além de recortes de jornais e narrativas em primeira pessoa. Logo no primeiro capítulo, intitulado “The Monster”, o leitor é apresentado ao tema que o narrador deseja tornar principal: um assassino está a bordo do Star of the Sea e ele vai cometer mais um crime. Dixon faz com que o leitor imagine que o monstro é o irlandês Pius Mulvey, um irlandês baixinho e grotesco, autor de muitas crueldades anteriores. Aprofundando-nos na análise do romance, porém, percebemos temas e conflitos mais complexos. Em todos os capítulos vemos ilustrações feitas na época da Grande Fome, desenhos que forçam o leitor a refletir sobre a catástrofe. Star of the Sea nos relembra o que é frequentemente ignorado ou até ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

133

mesmo atenuado em narrativas revisionistas: a Irlanda foi um país colonizado pela Inglaterra, que durante séculos implantou medidas violentas contra professantes de religiões que não fossem o anglicanismo e também a falantes da língua gaélica. Falar irlandês implicava prisão e morte; se revoltar contra a ordem vigente era assinar a própria sentença. Ao povo restava a música e as baladas que registravam o sofrimento de maneira aparentemente simples. É o que o narrador diz de Pius Mulvey: Often it felt to Mulvey as if the songs were a secret language: a means of saying things that could otherwise not be said in a frightened and occupied country. At least they seamed a way of convertly acknowleding that what was unsayable was important: that it might be said more explicitly at another time. (O’CONNOR, 2003[2002], p. 94)

A memória era mantida era mantida pela arte, e os músicos eram como “analistas, cronicistas, biógrafos” (O’CONNOR, 2003, p. 98) que resistiam ao esquecimento. Em diversos períodos históricos, a arte tem papel crucial ao dar voz aos que não podem falar ou àqueles em que a história não permite se expressar. Joseph O’Connor está ciente de que poucos registros da Grande Fome foram realizados na época; raramente o sofrimento dos pobres comoveu alguém ao ponto deste registrar a catástrofe humanitária. Para o crítico James Kincaid (2003), o romance Star of the Sea, is also an agonizing inquiry into the nature of abandonment and the difficulty of finding anyone who will truly care about the fate of others. How large does suffering have to loom before we take notice? O’Connor suggests that we can tolerate mountains of misery, sipping our coffee and reading our newspapers as corpses pile up beneath the headlines. (KINCAID 2003)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

134

Essa ignorância seletiva é representada no romance pela primeira classe, que, apesar de conhecer os problemas na Irlanda, trata os pobres agricultores irlandeses e os passageiros da terceira classe como gente “folgada” e “aproveitadora”, a quem não se pode ser benevolente para não incentivar “ociosidade” e “dependência” (O’CONNOR 2003, p. 15). Contudo, apesar da ignorância, todos são forçados a encarar a tragédia: um cheiro terrível emana do navio e não desaparece mesmo após diversas limpezas. O cheiro não vem da terceira classe, a qual não tem acesso a higiene diária; era “como se o próprio navio estivesse começando a apodrecer”, diz o narrador (p. 153, tradução minha). O cheiro que emana do navio Star of the Sea pode representar a decadência humana dos pobres forçados a emigrar e daqueles que foram cruéis com eles ou se recusaram a ajudálos. O jornalista Grantley Dixon assume a postura de denunciante das atrocidades, forçando David Merridith a reconhecer sua contribuição para a catástrofe. Porém, o jornalista é também desmascarado com a revelação de que seu avô possuía escravos em sua plantação nos Estados Unidos. Para a crítica Caroline Moore (2003), Dixon “representa o impetuoso Mundo Novo, aqueles americanos barulhentos e frequentemente hipócritas que derrubam o Velho Mundo e seus aristocratas, mas que tem a própria culpa para lidar na forma de escravidão e guerras indígenas” (MOORE 2003, tradução minha). No fim do capítulo XV, encontra-se uma citação do escritor vitoriano Anthony Trollope (1815-1882), que escreveu o romance Castle Richmond (1860), ambientado durante a Grande Fome. Trollope visitou a Irlanda em diversas oportunidades durante a Fome e desejou escrever sobre o que vira em suas visitas. No entanto, Throllope descobriu que a audiência inglesa não queria ler sobre a tragédia humanitária na Irlanda, e então criou uma história de amor cujo cenário é a Irlanda da Grande Fome. Em outra publicação, intitulada North America (1865), Trollope dá sua ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

135

opinião sobre as causas e consequências da Grande Fome. A citação encontrada em Star of the Sea é um trecho da opinião de Trollope em North America, onde escreve que “a fome da Irlanda foi a punição por sua imprudência e ociosidade, mas deu a ela a prosperidade e o progresso” (TROLLOPE apud O’CONNOR 2003, p. 151). Segundo Trollope, a Fome foi causada pelo desinteresse da classe agrária de se educar e de trabalhar, repassando às classes baixas a responsabilidade de fazer suas terras darem lucro. No entanto, a Fome é finalmente uma lição de desenvolvimento: a classe ociosa irlandesa está em decadência devido à crise e às mortes, e agora é o momento de mudar a mentalidade (LANDOW. Web. 07/06/2015). O pensamento de Trollope parece ecoar no Memorial da Grande Fome em Dublin. Os nomes dos empresários nas placas de bronze representam a “prosperidade e o progresso” previstos pelo escritor inglês há dois séculos. O memorial não ignora completamente a tragédia da Fome, mas deseja mudar o foco da reflexão: não é o passado que precisa ser lembrado; os esforços têm de ser direcionados para o futuro. Terry Eagleton percebe a “reticência” em relação à Grande Fome na Irlanda contemporânea à qual ele atribui uma razão política. Para o crítico literário, brooding on the one million dead and the one million who fled the famine is hardly much in vogue in an Ireland keen to play down its colonial past and flaunt its new-found modernity. With Ireland and the UK now cheek by jowl in the EU, it is not exactly politic to recall the bungled British relief effort, which sped a good many of the dead to their graves. Or to recall that quite a few eminent Britons, including a man in charge of the relief project, regarded the famine as God’s way of punishing the feckless Micks for their congenital indolence. Moving in his usual mysterious way, the Almighty had chosen potato blight

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

136

as a means of converting Connemara peasants into Boston politicians. (EAGLETON 2003)

Além disso, Eagleton salienta que relembrar a Fome hoje na Irlanda é visto como alimento ao republicanismo militante dos Troubles na Irlanda do Norte. Porém, há ainda outro motivo: alguns irlandeses lucram com a memória seletiva da Fome. A tentativa de selecionar o que pode ou não ser lembrado é o que Stanley Cohen (2001) chama de “estado de negação”. A Irlanda contemporânea ao Tigre Celta está ciente sobre a Grande Fome e suas consequências, mas se recusa a refletir sobre o trauma sofrido. Cohen demonstra que a negação ocorre quando uma situação indesejável não é reconhecida, é ignorada ou considerada normal. O discurso oficial da negação pode afirmar que o trauma “não aconteceu”, “não foi violento” ou “não foi bem assim” (COHEN, 2001, p. 51). A negação vai do micro ao macro: ao se tornar popular, é difícil negar que o evento aconteceu, mas é possível relativizar os efeitos. Dessa forma, Cohen descreve como a negação reflete “estados pessoais e culturais no qual o sofrimento não é reconhecido” (p. 52, tradução minha). As implicações atuais são também ignoradas: There is no exact line between denying the past and denying the present. At what point does public knowledge of atrocities and suffering become a matter of forgetting, memory, history, and commemoration? [...] The media draw the clearest line: the events disappear from “current news”. Wars end with an official peace; famines are declared to be over. The distinction may be banal, but denial talk about not noticing the present is different from talk about not remembering the past. (COHEN 2001, p. 117)

Dessa forma, para Stanley Cohen os conceitos psicológicos individuais podem ser transferidos para a cultura: uma sociedade ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

137

inteira pode esquecer, reprimir ou desassociar ao encobrir ou reescrever a história. Isso tem implicações em nível pessoal: para Cohen, um indivíduo pode considerar mais fácil “não saber sobre isso” quando todos à sua volta afirmam não saber (COHEN p. 13233). Oficialmente, a negação ocorre na reinterpretação e na transformação dos eventos em outra coisa. No caso irlandês, a tragédia da Grande Fome, apesar de grave, é vista como um dos fatores que tornou possível a existência de irlandeses de sucesso e da Irlanda da era do Tigre Celta. O narrador de Star of the Sea enfatiza que o silêncio passado e contemporâneo tem motivação: os que morreram eram pobres, analfabetos e descartáveis. A Irlanda de hoje não quer lembrar o que já foi porque isso envolve pobreza e sofrimento que, teoricamente e oficialmente, quase não existem mais. O narrador questiona: And yet could there be silence? What did silence mean? Could you allow yourself to say nothing at all to such things? To remain silent, in fact, was to say something powerful: that it never happened: that these people did not matter. They were not rich. They were not cultivated. They spoke no lines of elegant dialogue; many, in fact, did not speak at all. They died very quietly. They died in the dark. And the materials of fiction bequests of fortunes, grand tours in Italy, balls at the palace these people would not even know what those were. They had paid their betters’ accounts with the sweat of their servitude but that was the point where their purpose had ended. Their lives, their courtships, their families, their struggles; even their deaths, their terrible deaths - none of it mattered in even the tiniest way. They deserved no place in printed pages, in finely wrought novels intended for the civilized. They were simply not worth saying anything about. (O’CONNOR, 2003, p. 130-1)

Ao fim da narrativa, Grantley Dixon reconhece que seu romance de viagens não é sobre o “monstro” Pius Mulvey; este foi ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

138

apenas um pretexto para unir todas as narrativas sobre a Grande Fome para um leitor que não queria ler sobre tragédias humanitárias, mas é ávido por histórias de aventuras e mistérios. Não há mistério sobre a Grande Fome: cerca de dois milhões de pessoas morreram ou emigraram e estas continuam sem nome. Star of the Sea é uma entre tantas demonstrações da resistência da arte em esquecer a história. Se a Irlanda contemporânea ao Tigre Celta quer silenciar sobre o trauma passado para somente expressar narcisisticamente o seu sucesso, a literatura demonstra o caminho oposto. Se somente os nomes de pessoas ricas e famosas são dispostos em placas em um memorial da Grande Fome, a arte dá nome, ao menos ficcionalmente, àqueles que não tiveram direitos. Termino com uma citação do epílogo do romance: 1847. Marx’s Poverty of Philosophy. Verdi’s Macbeth. Boole’s Calculus of Deductive Reasoning. Emily Brontë’s Wuthering Heights. Charlote Brontë’s Jane Eyre. Ralph Emerson’s Poems. Engels’ Principles of Communism. Quarter of a million starved in that year’s nowhere-land: nameless in the latitudes of hunger. (O’CONNOR, 2003, p. 386)

Referências BATISTA, C. F. Entrelaçando temporalidades: passado e presente em A Star Called Henry, de Roddy Doyle. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2015. COHEN, S. States of Denial: Knowing about Atrocities and Suffering. Malden: Blackwell, 2001.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

139

EAGLETON, T. “Another Country”. The Guardian. 25 janeiro 2003. Disponível em: . Acesso em 31/05/2015. LANDOW, G. P. “Trollope’s analysis of the Irish Famine of 184647". Web. Disponível em: . Acesso em 07/06/2015. KINCAID, J. “Keep Your Tired, Your Poor, Your Huddled Masses”. The New York Times. 01 junho 2003. Disponível em: . Acesso em 31 de maio de 2015. MOORE, C. “Death below Decks”. The Telegraph. 05 junho 2003. Disponível em: . Acesso em 31/05/2015. O’CONNOR, J. Star of the Sea. London: Vintage, 2003. O’TOOLE, F. “Oct 16th, 1998: Turning the Famine into a corporate celebration”. The Irish Times. 20 novembro 2013. Disponível em: < http://www.irishtimes.com/opinion/oct-16th-1998-turning-thefamine-into-a-corporate-celebration-1.1600212>. Acesso em 31/ 05/2015. __________. Ship of Fools: How Stupidity and Corruption Sank the Celtic Tiger. London: Faber and Faber, 2009.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

140

A PALAVRA E A IMAGEM: A EXPANSÃO DO SENTIDO NO LIVRO ONDE VIVEM OS MONSTROS

Autora: Caroline A. S. Fernandes (UFPR) Orientadora: Célia Arns de Miranda (UFPR) RESUMO: Esta pesquisa objetiva analisar o processo de comunicação que se estabelece no livro infantil de Maurice Sendak, Onde vivem os monstros. Pretende-se identificar como as ilustrações, através da expansão que realizam, interferem sobre a diagramação e na estrutura do livro e seu layout. Percebe-se também que nesse livro a construção visual dos personagens permite leituras diversas quanto às referências ao imaginário, ao mitológico e ao universo fantástico. Para enriquecer o estudo dos personagens é necessário pensar a caracterização dos mesmos e o título da obra, principalmente, em relação à tradução para o português e os significados gerados a partir dela. É possível identificar que no livro as imagens quando unidas ao texto, criam sentido não apenas individualmente, mas como uma construção que expande o sentido inicial da obra. Palavras-chave: imagem. Literatura infantil. Monstros. Infância.

A literatura infantil é um universo rico para a análise da interação que ocorre entre texto e imagem. Para este trabalho utilizaremos o termo texto para referenciar as mensagens linguísticas, que valem-se das palavras para comunicar dentro do livro, e imagem para as mensagens visuais ou ilustrações, que não utilizam palavras para sua representação. Tendo em vista a análise da interação entre texto e imagem, concentraremos os estudos sobre o livro infantil Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, lançado originalmente em 1963, cuja tradução, realizada por Heloisa Jahn, foi publicada no Brasil em 2009. Essa obra de Sendak não é apenas um livro infantil mas é também um tipo específico de livro infantil, o que chamamos de livro ilustrado. Nesta proposta as imagens não atuam apenas como explicações/

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

141

ilustrações do texto, mas agem como mensagem individual e mesmo independente em diversos momentos. O livro Onde vivem os monstros propõe esta interação, onde uma linguagem complementa a outra, surgindo assim novos sentidos para a obra. O título Onde vivem os monstros referenciase à tradução de Heloisa Jahn, publicada no Brasil em 2009. Falaremos posteriormente de questões relativas à tradução da obra. Quanto à aventura abordada no livro, Max, o menino protagonista da obra de Sendak, está fazendo diversas travessuras e acaba sendo repreendido pela mãe. Colocado de castigo, Max começa a imaginar uma floresta dentro do seu quarto. Além da floresta surge um oceano, por onde Max navega, até chegar à uma ilha, onde seres grandiosos e, inicialmente assustadores, vivem. Max torna-se rei deles, fazendo toda a bagunça que desejava acompanhado dos animais enormes. Depois de brincar por um longo tempo, Max sente falta de casa e da mãe e decide voltar, apesar dos protestos dos monstros. O livro foi traduzido para mais de 20 países. Maurice Sendak trabalha como escritor e ilustrador nesta obra. Foi uma publicação inovadora ao abordar o inconsciente infantil, como afirma Sophie Van der Linden (2011). Inicialmente o livro sofreu críticas relacionada a sua abordagem, como o próprio Sendak declara em uma entrevista “Só críticas negativas… Aí, dois anos depois, descobriram que nas bibliotecas as crianças estavam loucas por ele!” (SENDAK apud BRESSANE). Após situar a obra podemos começar a discorrer a respeito dos elementos que a transformaram em uma referência como livro ilustrado, focando não apenas no diálogo presente entre palavras e imagens, mas como esta interação transforma a leitura e o sentido do livro.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

142

Diálogo entre texto e imagem Para discutir sobre o diálogo que ocorre no livro entre texto e imagem é necessário reforçar que o livro aqui abordado se trata de um livro ilustrado, que difere do livro com ilustrações. Como afirma Linden (2011) livros ilustrados são “Obras em que a imagem é espacialmente preponderante em relação ao texto [...] A narrativa se faz de maneira articulada entre textos e imagens” (LINDEN, 2011, p. 24). Ou, ainda de acordo com Linden, pode-se definir o livro ilustrado da seguinte forma. A ideia é que o livro ilustrado transcende a questão da copresença por uma necessária interação entre texto e imagens, que o sentido não é veiculado pela imagem e/ou pelo texto e, sim, emerge a partir da mútua interação entre ambos. (LINDEN, 2011, p. 86)

Já no livro com ilustrações verificarmos as imagens como um eco do texto, que apenas transportam a mesma mensagem expressa pelas palavras para o signo da imagem. Essa aplicação ainda ocorre em muitos livros. Em um livro ilustrado não existe uma regra hierárquica onde prevalece o texto, ambos colaboram para conduzir a história, cada qual comunicando algo, complementando um ao outro ou mesmo gerando novos significados individualmente. No caso do livro ilustrado, especialmente na obra analisada, texto e imagem são livres de competições, texto e imagem se intercomunicam, um contribui para o outro, fugindo de redundâncias. Existem muitas formas de interação entre texto e imagem. Martine Joly (2003), ao tratar das diversas possibilidades, menciona que um pode complementar o outro, numa ação de revezamento ou mesmo interação. Como afirma Joly “A função de revezamento, tal como definida por Barthes, é uma forma de complementaridade entre a imagem e as palavras, a que consiste ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

143

em dizer o que a imagem dificilmente pode mostrar.” (JOLY, 2003, p. 119, grifo da autora). Na obra de Sendak podemos verificar esta complementariedade, onde texto e imagem se alternam, expressando ideias individuais para criar um sentido mais amplo. Antes de verificar os elementos que dialogam na obra de Sendak é importante ressaltar que o desenvolvimento do livro ilustrado avança com a inserção de texto e imagem em uma mesma página, possibilitando pensar as relações entre as duas linguagens, tal como enfatiza Linden (2011): “O desenvolvimento dos procedimentos de impressão possibilita que obras reunindo caracteres tipográficos e imagens na mesma página se multipliquem.” (LINDEN, 2011, p. 13). É necessário pensar não apenas o layout da página mas também a concepção estrutural do livro e seu aspecto físico. Ler o livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra. (LINDEN, 2011, p.9)

Como afirma Linden (2011), o design do livro ilustrado é muito importante para que seu objetivo seja realizado com sucesso. Questões de diagramação são essenciais para que texto e imagem tenham espaços adequados na obra. Da mesma forma acontece no livro Onde vivem os monstros, onde a leitura é direcionada para as imagens e esse suporte é fundamental para a leitura. Desde o primeiro livro ilustrado, o trabalho com o texto interage com as imagens e o conjunto dos dispositivos formais dentro de um formato quadrado, ao contrário da relação vigente na ilustração, as mensagens visuais são primordiais, e as

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

144

mensagens linguísticas se adaptam às representações plásticas de estilo gráfico inusitado. Do ponto de vista do conteúdo, o humor, as narrativas minimalistas e a sutileza dos temas abordados são trabalhados em função do suporte e da materialidade do livro. (LINDEN, 2011, p. 19)

No livro Onde vivem os monstros pode-se verificar a escolha por um formato próximo do quadrado, mais especificamente 22,5 cm de altura por 25, 3 cm de largura. Estas são características que fazem parte das escolhas direcionadas à leitura das imagens e compreensão da obra. Sendak cria um movimento dentro do livro que proporciona o mergulho no imaginário do menino Max. Este movimento utiliza as áreas em branco, ilustrações, margens e movimento de leitura tendo em vista este objetivo. Ou seja, o suporte, layout e diagramação atuam para esta jornada. Pode-se notar este movimento na relação entre texto e imagem dentro do livro e como seus espaços se transformam no decorrer dele. Na página 7 verificamos o texto no centro da página vazia e na página 8 uma ilustração pequena de Max, também quase centralizado na página. Na sequência do livro, a partir do momento que Max começa a imaginar a floresta crescendo, a área destinada à ilustração aumenta, em um movimento de expansão. Nas páginas 17 e 18 já verificamos a ilustração invadindo a página esquerda, anteriormente destinada ao texto. Este processo continua, até o texto ver-se comprimido e precisar “fugir” para o rodapé das páginas, como ocorre nas páginas 20 e 22. Este mergulho dentro da imaginação de Max aumenta conforme as imagens transbordam do livro, até alcançar a página 26, onde não há mais palavras. Nesse momento, atingimos profundamente o inconsciente de Max, onde ele é rei e selvagem. Dentro da fantasia de Max ele é puramente instinto.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

145

A fantasia pode ser definida como a representante psíquica do instinto e expressa a realidade de sua fonte, interna e subjetiva, embora esteja ligada à realidade objetiva (OLIVEIRA, 2007, p. 83).

Percebe-se que os recursos utilizados em todo o livro, como cores, espaços em branco, disposição do texto, agem efetivamente para conduzir o leitor para dentro do inconsciente do menino. O design atua também como linguagem e comunicador dentro da obra. [...] tanto a cor quanto a forma e o tratamento ilustrativo contribuem para a mensagem geral de uma publicação, e devem também ser vistos como conteúdo. Do mesmo modo, o tratamento tipográfico [...] acrescenta mensagens ao layout, para além do que está literalmente expresso pela escrita em si (SAMARA, 2011, p. 32).

Palavras e imagens atuam dentro do livro delimitando o espaço da realidade e fantasia, respectivamente. Também atuam juntas para guiar essa transição, do real para o imaginário. Podese verificar que na medida em que o livro conduz para dentro do inconsciente do menino Max, as palavras vão perdendo espaço, sendo subjugadas pelas ilustrações que expandem-se. O crescimento das imagens atua como veículo que conduz ao mundo fantástico ou inconsciente, da mesma forma que as palavras representam conexão com a realidade dentro do livro. Este movimento ocorre como uma viagem ao local onde vivem os monstros e seu regresso. Por esse motivo verificamos que quando Max retorna para o seu quarto que é uma referência do real, as palavras também retornam plenamente sendo que na última página, não há mais ilustração, apenas uma única frase na página em branco. Esse movimento, de mergulho e imersão na fantasia, é realizado graças à interação de texto e imagem no decorrer do ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

146

livro, valendo-se do espaço físico desse suporte para expressar plenamente esse processo. Aspectos da tradução Um aspecto importante para a leitura dos personagens no livro envolve a questão da tradução linguística que ocorre da obra original, concebida em inglês, para o português (Brasil). A compreensão do livro sofre reinterpretações devido às transformações que a tradução oferece. Verifica-se esta mudança já no título da obra, essencialmente com relação à palavra monstro, utilizada no português (Brasil), e a sua expressão correspondente wild thing, utilizada no original em inglês. O título do livro em inglês é Where the Wild Things Are, e pode ser traduzida livremente como onde as coisas selvagens estão ou vivem. Em Portugal o título foi traduzido como O sítio das coisas selvagens. A tradução para o português (do Brasil), realizada através da editora Cosac Naif pela tradutora Heloisa Jahn, traz o título Onde vivem os monstros. O conflito apresenta-se entre a expressão wild thing e monstros. Porém, mesmo parecendo muito distintas, elas possuem proximidade, mesmo no dicionário. Apresentar todos os significados deixaria a análise extensa, mas podemos atentar para alguns dos termos mais relevantes desta relação. No dicionário Webster a palavra wild apresenta suas definições uncontrolled, unruly e barbaric. A expressão wild thing não possui uma correspondência exata no português, que pode ser usada sem gerar contestação, o que reflete um problema linguístico quanto a tradução. As aproximações possíveis para a tradução comportam a palavra selvagem. Em português (Brasil) a palavra selvagem apresenta definições como “[...] grosseiro, rude e bruto” (WEBSTER). Já ao verificarmos os sentidos atribuídos à palavra monstro, diretamente no português, temos os seguintes conceitos.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

147

Ser de conformação extravagante, imaginado pela mitologia. Animal ou coisa de grandeza desmedida. Pessoa cruel, desumana, perversa. Portento, prodígio, assombro. Monstros compostos: os resultantes da fusão de dois ou mais tipos. Monstros das florestas: animais ferozes que nelas habitam; feras (MICHAELIS).

Assim, podemos notar a existência da condição de selvagem dentro do significado da palavra monstro na proximidade existente entre crueldade e brutalidade. Sendo possível identificar a relação entre as expressões wild thing e monstro torna-se viável a tradução empregada. Relacionar as expressões wild thing e monstro permite verificar um abrandamento na primeira delas, oferecendo leveza ao tratamento dos personagens do livro. É de interesse desta análise verificar os demais significados que a escolha tradutória implica para o livro. A primeira vez que a expressão monstro, conforme a tradução já citada, é usada no livro, faz referência ao comportamento rebelde de Max diante da mãe (p. 9) e não aos seres da ilha. Sob esse aspecto o comportamento de Max gera mais identificação com a expressão “coisa selvagem” e suas relações com o mau comportamento, do que diretamente com a expressão monstro, utilizada na tradução. Evidencia-se o problema da aplicação do termo monstro ao menino Max quando a palavra monstro é atribuída à fala da mãe do menino. Segundo Tonia Leigh Wind (2011), para Max o termo mais adequado seria selvagem: Não que seja propriamente “errada” a escolha do uso da palavra “monstro” para o título do livro, mas é algo que remete a uma imagem mais medonha, mais feia, mais sinistra, e não capta o elemento “selvagem” dos seres fora de controle na selva assim como não atende ao fato de Max estar “wild” aprontando e estar fora de controle (WIND, 2011, p.123).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

148

Entretanto, vale aqui levantar outras reflexões sobre a escolha da tradução. Quando Max ameaça devorar sua mãe, assim como os monstros o ameaçam posteriormente, uma relação direta ocorre entre eles, aproximando Max dos monstros, validando a atribuição de monstro ao próprio garoto. Referindo-se aos animais da ilha a expressão monstro torna-se mais adequada, sem nenhum estranhamento, sendo, na versão original, tanto Max como os seres da ilha evocados como wild things. Neste sentido, a tradução apresenta-se adequada, tanto na capa como na referência aos animais deste novo mundo. Além dessa questão é relevante pensar as novas atribuições que a palavra monstro pode receber na atualidade e nas novas leituras, afastadas das ideias já citadas de Wind (2011), como “[...] mais medonha, mais feia [...]” (WIND, 2011, p. 123). Para expandir a compreensão do termo monstro, não apenas na tradução, mas nos outros sentidos em que os personagens podem ser lidos como monstros, é válido explorar qual o significado de monstro, compreender as implicações desse termo no livro de Sendak, assim como em outros universos. Conhecer melhor os monstros possibilita conhecer melhor os personagens de Sendak e sua construção na obra. Sobre os monstros O termo monstro, usado no título e no texto do livro, é o centro da análise, não apenas com relação à tradução, mas também quanto aos novos significados que o termo pode adquirir, quando utilizado na linguagem verbal da obra assim como na leitura realizada das imagens do livro. Verificar as transformações que a expressão monstro, atribuída pela tradução, oferece no livro não significa afirmar que o termo foi corretamente empregado. A intenção é levantar e vislumbrar as leituras da obra que podem ser adquiridas diante deste pressuposto.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

149

O emprego do termo monstro no título da obra traz, no aspecto linguístico, um ganho quanto à sonoridade no português. Mas, além desta questão a imagem presente na capa merece uma interpretação quanto a sua relação com o título traduzido. A capa não traz o personagem Max, afastando a referência do título ao menino. Na capa visualizamos o título e um animal grande, dormindo em uma margem enquanto um barco aproxima-se. Este animal, caracterizado como wild thing, é chamado de monstro na tradução, fazendo relação direta com o título Onde vivem os monstros. Desta forma é possível interpretar a ilustração como referência direta ao título, ao apresentar um lugar/espaço e quem vive neste lugar, no caso o animal. Desta forma, a mensagem identificada na imagem caracteriza o lugar onde os monstros vivem. Este animal da capa merece também uma análise quanto à sua concepção como imagem. Quando olhamos para os animais presentes “dentro” da imaginação de Max, já que é para onde o livro nos leva, podemos verificar elementos significativos na sua composição. Retomando a questão de tradução, estes animais são referenciados como wild things, que podemos chamar de “coisas selvagens”. Buscando referências diretas para coisas selvagens nos deparamos com animais da selva, não domesticados. Sob este aspecto poderíamos esperar destes animais composições naturais, como as que remetem à um leão ou rinoceronte, por exemplo. Estes animais bem conhecidos são “coisas selvagens”. Também é relevante refletirmos sobre o que significa um animal selvagem. Segundo Anamaria Feijó (2005) “É interessante que se entenda que a diferença entre um animal selvagem e um animal domesticado é que o último foi um animal selvagem que passou a ser tutelado pelo homem” (FEIJÓ, 2005, p.76). Diante dessa reflexão qualquer animal não domesticado é um animal selvagem e abrange todo tipo de animal, não limitando a um tipo de formas extravagantes ou exótica, como os animais presentes no livro de Sendak. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

150

Antes de qualquer descrição corporal deve-se contextualizar os animais do livro. Eles existem dentro da floresta imaginada por Max, ou seja, fazem parte do inconsciente do menino. O inconsciente oferece liberdade para a criação de qualquer tipo de animal, assim como carrega imagens simbólicas presentes no imaginário da história da humanidade. Deste imaginário histórico que todos carregam de alguma forma no nosso inconsciente, como afirma Carl G. Jung (2008), fazem parte os mitos e seres mitológicos diversos, “Como os instintos, os esquemas de pensamentos coletivos da mente humana também são inatos e herdados.” (JUNG, 2008, p. 104). Com este conceito podemos partir para a análise visual dos animais do inconsciente de Max. Os animais da ilha têm grandes proporções, grandes olhos amarelos, dentes pontudos, garras e chifres. Pode-se verificar que alguns deles são formados da mistura de mais de um animal, como pés humanos, cabeça de leão e pernas de dragão. Estas características possuem forte relação com a constituição de monstros da mitologia e mesmo com os conceitos atribuídos à palavra monstro no dicionário. Quando consultamos a palavra monstro, retomando citação a utilizada anteriormente, temos referências a estes elementos. Ser de conformação extravagante, imaginado pela mitologia. Animal ou coisa de grandeza desmedida. Pessoa cruel, desumana, perversa. Portento, prodígio, assombro. Monstros compostos: os resultantes da fusão de dois ou mais tipos. Monstros das florestas: animais ferozes que nelas habitam; feras (MICHAELIS; ênfase acrescentada).

Os elementos destacados reforçam esta relação. O próprio conceito de selvagem pode ser lido na descrição de monstro, no trecho “[...] animais ferozes que nela habitam; feras.” (MICHAELIS).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

151

A associação aos monstros compostos, resultado de fusão de mais de um tipo, e a grandeza desmedida também estão presentes. Os monstros, na linguagem da mitologia, eram seres de partes ou proporções sobrenaturais, em via de regra encarados com horror, como possuindo imensa força e ferocidade, que empregavam para perseguir e prejudicar os homens. Alguns deles, imaginava-se, combinavam os membros de diferentes animais, como a Esfinge e a Quimera (BULFINCH, 2000 p. 150).

Outra palavra no trecho acima que se torna relevante para conceber os seres criados pela imaginação de Max como monstros é “[...] imaginado [...]” (MICHAELIS). Quando compreendemos os monstros criados por Max como parte de seu inconsciente não podemos deixar de ressaltar que monstros são frutos do inconsciente em sua essência. Verificar a constituição de alguns dos monstros da mitologia colabora para esta relação. Como as Górgonas, definidas como “[...] mulheres monstruosas, com dentes enormes como os do javali, garras de bronze e cabelos de serpentes.” (BULFINCH, 2000, p.142) ou o “[...] Minotauro, monstro com corpo de homem e cabeça de touro, forte e feroz [...]” (BULFINCH, 2000, p.187). Pode-se perceber que há diversos exemplos na mitologia e nas narrativas das grandes navegações. No texto do livro ocorre outra referência à um elemento monstruoso que é o ato de devorar. e Max disse “OLHA QUE EU TE COMO!” e acabou sendo mandado para cama sem comer nada (SENDAK, 2009, p. 9).

O ato de devorar aparece novamente na página 21, desta vez relacionado aos dentes dos monstros e, algumas páginas depois, quando os monstros pedem para Max não partir “Oh, por favor, não vá embora...nós vamos comer você...gostamos tanto de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

152

você!” (SENDAK, 2009, p. 35). O devorador aparece com frequência na descrição de monstros mitológicos. O Minotauro, por exemplo, devora donzelas em seu labirinto ((BULFINCH, 2000, p.187) e com base neste comportamento poderíamos citar diversos outros monstros. Por esse viés, podemos considerar que, visualmente, os animais presentes na imaginação de Max podem ser nomeados monstros, tanto na sua relação com o inconsciente presente na obra como na sua representação física e comportamental. Outra questão relevante para a leitura dos monstros é o contexto da tradução realizada no Brasil, em 2009 por Heloisa Jahn. O momento temporal e cultural em que foi traduzido pede uma nova interpretação, não apenas devido ao momento no tempo, mas também refletindo sua espacialidade, ao localizar, fisicamente, a tradução no Brasil. Um exemplo deste aspecto pode ser verificado ao levantarmos os títulos lançados em língua portuguesa no país. No seu livro Gonçalo (2008) lista como títulos nacionais de literatura infanto-juvenil mais de dez obras que levam, originalmente, a palavra monstro no título, revelando a familiaridade do nosso leitor com o termo, assim como sua aplicação pelo mercado editorial. Este é um dos elementos para prosseguir com a reflexão do monstro no contexto da tradução. A interpretação do monstro sofreu transformações nos últimos trinta anos, principalmente, através do cinema. As releituras que foram realizadas, refletem sobre o papel do monstro que, muitas vezes, não é apresentado como um ser essencialmente maléfico. Por décadas, o monstro encarnou frequentemente a figura do mal que é derrotado por um cavaleiro ou herói que representa o bem ou as virtudes. A evolução dos costumes e da própria indústria do entretenimento acabaria por ampliar esse conceito e lhe dar diferentes conotações, muitas delas distantes do simples requisito da aparência visual para definir monstro (GONÇALO, 2008, p. 20). ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

153

Uma nova reflexão sobre o que se conhece como monstro foi realizada por Tod Browning, no filme Freaks (1932). Nesse filme são apresentadas pessoas reais com deformidades variadas que trabalham em um circo de horrores. Nesta proposta ocorre o questionamento sobre a relação de maldade e feiura, e como o ser humano belo pode agir de forma monstruosa interiormente, contrapondo-se à ideia da imagem monstro. Gonçalo (2008) fala das companhias de circo que apresentavam este tipo de espetáculo, como a companhia de Barnum, que tinha “[...] várias criaturas a quem tratava, diante do público, como monstros” (GONÇALO, 2008, p. 30). Outra reflexão do aspecto humano no monstro ocorre no filme Homem elefante, de David Lynch (1980), que traz uma história verídica sobre um homem deformado que vive como atração de circo. Desde que Steven Spielberg aproximou três crianças de uma apavorante criatura alienígena e mostrou à garotada que nem tudo que é feio deve ser visto como algo mau, no filme ET – o extraterrestre, em 1982, o cinema infantil nunca mais foi o mesmo. [...] Se antes os monstros apavoravam a garotada, a relação passou, aos poucos, a ser de observação e admiração (GONÇALO, 2008, p. 222).

Neste contexto surgem obras como Shrek (2001), O estranho mundo de Jack (1993) e Monstros S. A. (2001), invertendo, completamente, a concepção tradicional do monstro para crianças, tornando o monstro uma representação do diferente e lidando com questões de aceitação do outro. Ao contrário dos monstros tradicionais, esse destruir, assustar e matar, mas para lançar olhar profundamente triste, de reprovação e monstruosidade deixasse ver, num momento

não emerge para ao seu redor um pena: como se a de fraqueza, sua

humanidade pura. (NAZÁRIO, 1998, p. 14 apud SILVA, p. 232)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

154

Percebe-se que existe um contexto novo e mais amigável para receber os personagens de Sendak como monstros, sem os antigos estereótipos associados ao medo na infância. Todas estas reflexões nos auxiliam a pensar o livro de Sendak além do contexto da imaginação de Max. Podemos identificar os novos sentidos e interpretações que a relação entre texto e imagem possibilitam na constituição da narrativa. O livro Onde vivem os monstros traz monstros que povoam a imaginação infantil e que permanecem na essência do imaginário de todos e na forma que vislumbramos o inconsciente e fantasia do mundo infantil. Referências BRESSANE, Ronaldo. Seu monstro. Disponível em: http:// ronaldobressane.com/2009/10/26/seu-monstro/. Acesso em: 10 mar. 2015. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: História de Deuses e Heróis. 9ª ed. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. GONÇALO, Junior. Enciclopédia dos monstros. São Paulo: Ediouro, 2008. FEIJÓ, Anamaria; Utilização de animais na investigação e docência: uma reflexão ética necessária. EDIPUCRS, 2005. Disponível em: https://books.google.com.br. Acesso em: 15 mar. 2015. FRIOLI, Gleice Lemos. ‘Onde vivem os monstros’... entre dissociações e reparações. Disponível em: http://centropsicanalise.com.br/. Acesso em: 20 mar. 2015 HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

155

IMDB. Disponível em: http://www.imdb.com/. Acesso em: 06 mai. 2015. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. São Paulo: Papirus Editora, 2003. JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. 2. ed. Trad. Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008. LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011. MICHAELIS. Dicionário online Michaelis. Disponível em: http:// michaelis.uol.com.br/. Acesso em: 20 jan. 2015. SAMARA, Timothy. Guia de design editoria: Manual prático para o design de publicações. Porto Alegre: Bookman, 2011. SENDAK, Maurice. Onde vivem os monstros. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Cosac Naif, 2009. SENDAK, Maurice. Where the wild things are. Disponível em: http:/ /www.epubsearch.com/free-download/Where-The-Wild-ThingsAre.pdf Consultado em: 10 mai. 2015 SILVA, Verônica Guimarães Brandão da. Estética da Monstruosidade: O imaginário e a teratogonia contemporânea. Dissertação de Mestrado. UnB, Brasília, 2013. WEBSTER. Dicionário online. Disponível em: www.websterdictionary.or. Consultado em: 10 mai. 2015. WIND, Tonia Leigh; Mosaicos de culturas de leitura e desafios da tradução na literatura infantil. Dissertação de Mestrado. PUC-Goiás, Goiania, 2011.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

156

O AMOR NÃO CONSUMADO NO CONTO “OS MORTOS” E O RPG Autor: Cristian Abreu de Quevedo (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE) RESUMO: Este artigo faz uma leitura psicanalítica do conto “Os mortos”, de James Joyce, por meio da interpretação dos processos identificatórios do RPG (role playing game). Nesse jogo de fantasia, os participantes vivenciam outras manifestações do “eu” na criação e interpretação de um personagem. Robert Jauss, com seu texto “Estética da recepção”, nos oferece o arcabouço conceitual para explorar a literatura e o universo dos jogos, de forma a ressaltar a importância da interação e o impacto da subjetividade nas obras de arte, bem como a recuperação do juízo de valor sobre a mesma. Nosso objetivo é analisar a dinâmica da interface entre o conto e o jogo de RPG de modo a compreender os efeitos que essa dinâmica produz nos variados elementos narrativos como: as relações entre personagens, as construções de cenas, as ações empregadas pelos jogadores, como o caso do amor. Para tanto, utilizaremos como metodologia principal o dialogismo de Mikhail Bakhtin e os conceitos de fantasia e imaginação de Sigmund Freud. Vale lembrar que este é um work in progress. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. RPG. James Joyce.

Introdução O RPG ou Role Playing Game é um jogo de interpretação e performance livres, que difere do teatro e de outros jogos, por não ter um roteiro pronto a seguir. Aos iniciantes promove certa dose de estranhamento. No presente trabalho, transcrevemos as teorias dos autores em forma de diálogo e escolhemos a interpretação para apresentá-lo. A formalidade da língua se deve a ambientação que se passa em meados de 1940. Contaremos com a presença de: James Joyce, Hannah Arendt e Sigmund

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

157

Freud. O RPG é jogado de forma livre, porém, o tempo aqui não nos permitiria. É fundamental deixar a imaginação fluir e embarcar nessa aventura... Dia 16 de Junho No convite, um belíssimo cartão negro com letras douradas que imitam a grafia cursiva, estava escrito: “Temos o imenso prazer de te convidar para a inauguração da Sapientae Libris que se dará às 19h do dia 16 de junho. É imprescindível a leitura do conto ‘Os mortos’ de James Joyce, para o debate de abertura. O manuscrito segue anexo ao convite”. O convite foi suficiente para despertar o interesse de Hannah Arendt pela Sapientae Libris. Passados quinze dias, Hannah se levanta de sua poltrona de leitura e mesmo com frio, chama o taxi para levá-la ao centro da cidade. Ao chegar ao prédio mencionado no convite, ela acende o charuto e espera pacientemente seu relógio de pulso marcar 18h55min. Decide então, após alguns minutos, entrar no elevador e acionar o botão que marca o 16º andar. Caminha com postura impecável, revelando elegância e estilo que nem a guerra e as marcas que permaneceram conseguiram roubar. Olha para os lados, percebe que viera fumando e que não existem lixeiras ou cinzeiros para depositar os restos mortais de seu charuto. Sorri para si mesma. Sente o ímpeto de segurar o colar de pérolas que repousa preguiçosamente sobre seu pescoço, mas tem as mãos ocupadas, com o charuto e com a maleta de couro preto, abarrotada de livros, que escolhera, demoradamente, para o encontro da Sapientae Libris. O prédio certamente tem mais de sessenta anos, calcula Hannah Arendt em seus pensamentos. Conserva a fachada original e a imponência que remete aos anos de sua infância há muito perdidos. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

158

Ela para em frente à porta e bate apenas uma vez, aplicando certa força. Segundos se passam, ela é aberta, vagarosamente, por um distinto homem de pele clara, que usa um tapa olho no lado esquerdo do rosto, e que fala de maneira perspicaz: – Tive o mesmo problema senhora Arendt. Sem cinzeiros no corredor. – Ao dizer isso, ele a convida para entrar com um simples aceno de mão. Hannah Arendt percebe o leve sotaque irlandês e seus olhos percorrem, de imediato, o interior da grande biblioteca. – Obrigada. - responde com voz firme, revelando sua origem alemã. Ela adentra o recinto, como é de se esperar, por estar rodeada de livros, se sente à vontade. Olha à sua direita, nota o cinzeiro em cima do aparador dourado, imitação da época da renascença. Rapidamente, deposita o resto do charuto no objeto feito de um pequeno ônix oval. – Desculpe, não nos conhecemos. Sou James Joyce. – fala de maneira abrupta, segurando o casaco de lã negra de Hannah e colocando-o no cabideiro de madeira de lei. – Ouvi falar de seu livro “Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal” e as controvérsias em torno dele. Muitos judeus não gostaram de suas investigações acerca do nazismo bem como às suas conclusões que a senhora chegou. – Bem senhor Joyce, a compreensão é um processo interminável “em constante mudança e variação, em que aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo” (ARENDT, 1999, p.39). Esse fora o meu sentimento ao compreender o caso Eichmann. – diz Hannah Arendt. – De fato. – James Joyce fecha a porta e semicerra os olhos. Reflete por alguns instantes e fala como que expressando suas dúvidas. – Talvez, por isso que meus livros remetem de maneira tão cíclica o tema da Irlanda, meu país de origem.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

159

– Certamente meu caro amigo. – Responde um senhor de avançada idade que caminha ao encontro dos dois. Aproxima-se, o senhor de meia idade, trajado com um terno cinzaclaro, barba branca, aparada em torno de dois dedos, contrastando com a careca quase completa, com ralos cabelos brancos. -– Desde a sua malfadada estadia, no colégio interno jesuíta de Belverede, pude perceber que tu fazes grande referência à religiosidade e até mesmo a religião nos teus livros. Talvez, os escritos remetam a ideia de que “um homem que está livre da religião tem uma oportunidade melhor de viver uma vida mais normal e completa” (FREUD, 1996, p. 55). – diz Freud. Freud olha Hannah nos olhos, perscrutando seu espírito. Inclina levemente a cabeça para ela e diz com voz séria e grave: – Estamos já em ótima companhia James. Senhora Hannah, sou Sigmund Freud. – Essa será uma discussão por demais interessante! – Hannah sente-se totalmente animada e o cumprimenta formalmente com um aperto de mão. James Joyce, vestindo terno preto e gravata listrada carmesim, é o mais jovem dos três. Freud acomoda-se onde estava sentando. Alguns papéis, lápis e bloco de notas são dispostos sobre a suntuosa mesa oval em mogno, que coroa a visão magnífica do local. Hannah senta-se lado dele. James Joyce senta-se em frente aos dois. Olha para as cópias de seu livro Dublinenses, seus papéis rabiscados e diz de forma descontraída: – Norma, minha esposa, se visse essa bagunça, me condenaria à danação eterna. – diz James Joyce espontaneamente. Freud e Hannah sorriem de forma amena. – Wolfgand Iser e Jean-Paul Sartre virão para o próximo encontro. Uma lástima não estarem presentes na abertura. – Se levanta e fala em tom de anúncio. – Para as devidas formalidades, declaro aberto o primeiro encontro da Sapientae Libris! – Deus salve os livros! – diz Freud com um sorriso irônico. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

160

– Que nossa “herança, que nos foi deixada sem um testamento” (ARENDT, 1999, p.07), adquira sentido a partir de nosso ajuizamento sobre o mundo. – fala Hannah em tom de discurso. – Logo mais servirei um bom vinho, que será o verdadeiro mestre em nossos encontros. E sem mais delongas, gostaria de saber qual o parecer sobre o conto “Os mortos”? – fala James Joyce sentando-se. – Ah, sim! O objetivo da Sapientae é debatermos as mais variadas obras dos mais variados autores buscando, bem – expressando dúvidas –, buscando algo em meio ao mar de letras que nos forem sendo revelados. Hannah segura o colar de pérolas, passando delicadamente as mãos sobre ele como se o tempo ali não encontrasse morada. Freud toma a palavra e diz: – Por uma questão meramente elucidativa, dividi o conto em três momentos, a saber: a recepção dos convidados, início da festa de final de ano em que Gretta chega à casa das tias de Gabriel, seu esposo; depois, a comemoração, com o discurso de Gabriel que, em meio à festa, discute com Molly Ivors, contextualizando e referindo-se ao processo de independência da Irlanda que, a meu ver, o coloca em conflito com sua nacionalidade e sua língua materna; e por último, o fim da festa, a conversa de Gretta e Gabriel no hotel. Gostaria muito, caso concordem, começar discutindo o que denominei: suspeita de um “amor não consumado” presente no conto! Hannah retira de sua maleta o manuscrito que lhe fora entregue e que agora está repleto de anotações e coloca seus óculos. James Joyce expressa curiosidade em seu semblante, afinal, discutir seus escritos sempre lhe proporciona imenso prazer. Freud continua: – Resumirei o conto para chegar ao ponto em que me interessa: O casal se dirige para o hotel onde passarão a noite. No trajeto, Gabriel excitado pelo sucesso do discurso, pelas bebidas ou pela proximidade em relação à esposa enxerga os “momentos de sua ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

161

vida íntima que irromperam como estrelas na memória” (JOYCE, 2012, p. 191). Porém, suas expectativas são logo frustradas quando, ao chegar ao quarto de hotel, Gretta expressa um ar triste. Gabriel questiona o porquê e Gretta diz estar pensando na canção The Lass of Aughrim, que ouvira ao final da festa, a qual fazia se lembrar de um jovem, uma paixão adolescente e que ele haveria morrido por ela. – Acredito que posso complementar sua ideia selecionando algumas frases do texto como referência. Deixe-me ver... Ah, encontrei! – James Joyce habilmente localiza a passagem que está igualmente com o texto aberto em cima da mesa, lê em bom tom e voz clara: – Ele está morto – ela disse finalmente. – Morreu aos dezessete anos de idade. Não é terrível morrer tão jovem assim? – O que ele fazia na vida? – perguntou Gabriel, ainda com ironia. – Trabalhava no gasômetro – ela disse.(...) Procurou manter o tom frio do interrogatório, mas quando voltou a falar a voz soou humilde e inócua. – Imagino que você esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta – ele disse. – Fui feliz ao lado dele naquela época – ela disse. Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que seria inútil tentar levá-la na direção em que pretendera, acariciou a mão dela e disse, igualmente triste: – E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose? – Acho que morreu por mim – ela respondeu (JOYCE, 1999, p. 195).

– O impacto da história que ela viveu, ou que poderia ter vivido se revela de maneira latente ao escutar a canção. – fala Freud com convicção. – Pois bem, posso dizer que o que estava reprimido no inconsciente foi liberado e se tornou consciente naquele momento, expressado pela voz “velada e triste”. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

162

– Já eu – diz Hannah Arendt canonicamente – encontro em Gretta a expressão de uma mulher submetida aos ditames de seu tempo, aos costumes e tradições, à mercê da “virilidade” de Gabriel que se apresenta como tipicamente o “homem que possui a verdade”. Mas, como disse Freud, vamos nos ater na história de Gretta. Partilho da suspeita de Freud de um “amor não consumado”, porém, acrescento que nem todos querem de fato consumar um amor que ficou idealizado, nesse caso com a morte do rapaz. – Se levanta, pega o cinzeiro, e acende outro charuto. Senta novamente, e mira Joyce que está se deliciando com a discussão. – Senhora Arendt, afirmar que nem todos gostariam de ter seu “amor consumado” é demasiado genérico. Temos uma demanda por amor que nasce ou é gerado desde o nascimento. Primeiro sob os cuidados de nossa mãe que nos transmite seus afetos. Relação essa que se manterá por toda a nossa vida, de forma inconsciente, a repetimos em nossos relacionamentos buscando por felicidade. Outra possibilidade de amar é o amor narcisista, no qual procuramos alguém que é nossa imagem refletida ou como nós gostaríamos de ser. Em todos os casos, ao nos apaixonarmos idealizamos a pessoa amada e disso surge a frustração, quando aos poucos vamos nos deparando de fato com a pessoa por quem nos apaixonamos. – Mas, é essa a questão! Em razão da idealização, Gretta, se tivesse vivido ou “consumado” esse amor, não se lembraria dele de forma tão profunda. Afinal, se o tivesse consumado, já não seria mais idealizado. Teria se transformado em frustração, Sigmund. – Esse é um bom argumento Hannah. Poderíamos então concluir que Gretta, teve sua moção recalcada devido à morte prematura do rapaz e que em um momento específico, ao escutar a música The Lass of Aughrim na festa, seu inconsciente se manifestou na forma de lembranças, tornando-se visível pelas lágrimas dela? – O senhor fugiu de minha colocação senhor Freud – Hannah dá uma boa tragada no charuto antes de continuar a falar. – Um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

163

amor que “é consumado” deixa de ser idealizado e por isso perde a força de ser um amor capaz de provocar essa explosão avassaladora de sentimento, tornada visível pela torrente de lágrimas de Gretta. Acredito que, se o amor tivesse sido consumado, ela não teria sofrido esse pathos que gerou tamanha tristeza. Afinal, segundo o senhor mesmo em suas obras, “as fantasias também são as mais próximas preparações psíquicas dos sintomas de sofrimento” (FREUD, 2014, p. 50). Ou seja: se ela tivesse satisfeito essa fantasia, de ter uma vida feliz ao lado do Michael Furey, não teríamos uma Gretta mergulhada em recordações e devaneios que a abalaram de forma tão profunda. James Joyce olha tanto para Sigmund Freud como para Hannah Arendt e sente-se feliz pela escolha dos participantes da Sapientae. Diz de forma alegre: – Percebi que meu texto ao menos na parte discutida por nós apresenta certo grau de profundidade poética e gera, como a arte, uma impressão. Isso poderia soar óbvio não fosse a discussão a que nos propomos. Tenho dito que “a única exigência que faço aos meus leitores é que devem dedicar suas vidas á leitura de minhas obras”. Afinal, de que outra maneira o texto se tornaria de fato compreendido? – ele olha para a expressão séria de cada um dos participantes e diz – Em nosso próximo encontro JeanPaul Sartre nos apresentará algo novo, um jogo chamado RPG! E agora, que tal uma pausa para o vinho? Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Florense Universitária. São Paulo: 2001. _______. A dignidade da política. Companhia das Letras: São Paulo, 1999. FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. Hedra. São Paulo: 2014.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

164

________. O poeta e o fantasiar. In: Escritos sobre literatura. Hedra. São Paulo: 2014. ________. Personagens psicopáticos no palco. In: Escritos sobre literatura. Hedra. São Paulo: 2014. ________. Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. JAUSS, Robert. A História da Literatura como provocação à Ciência da Literatura. Ática. 1984. JOYCE, James. Dublinenses. Hedra. São Paulo: 2012. _______. Entrevista com Max Eastman, em Haper’s Maganize (1959) citado por Richard Ellmann. D’AGORD, Marta Regina (org); RIBEIRO, Maria Dornelles de Araújo; SILVEIRA, Carine Cezar. A identificação com a personagem no role-playing game. Pulsional Revista e Psicanálise. Porto Alegre: WEB. Ano XVI, julho 2013. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Vol 1. Tradução: Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

165

BERNARD SHAW E O MITO DE PIGMALEÃO ÀS AVESSAS Autora: Daniele Soares Carneiro (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE) RESUMO: O presente estudo aborda as possibilidades de construção de sentido a partir da ressignificação do mito de Pigmaleão, na peça Pygmalion (1912) de Bernard Shaw, à luz das teorias sobre paródia e adaptação de Linda Hutcheon (1989, 2013) e perspectivas teóricas sobre transcendência textual de Gérard Genette (2010). Também serão utilizados conceitos sobre arte de Pierre Bourdieu (1996) e alguns paratextos e metatextos que acompanham o texto dramático de Shaw. O artigo ressalta, ainda, a seriedade e firmeza de Bernard Shaw no trato com a destinação de praticamente todas as suas obras, incluindo adaptações para diferentes mídias e sua lucratividade, que para ele não deveria vir em forma de dinheiro ou reconhecimento intelectual e sim como mudança de comportamento de sua audiência. PALAVRAS-CHAVE: Pigmaleão. Subversão. Paródia.

Introdução O irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), aos vinte anos, partiu para a Inglaterra, local em que iniciou suas atividades como crítico de música e de teatro, consagrando-se, mais tarde, como escritor (SHAW, 2011). A prática dele no campo do teatro era variada, incluindo: direção, dramaturgia, controle de orçamento e divulgação (SHAW, 1971). A função de Shaw está próxima à de um “dramaturgista” do contexto atual que, de acordo com a descrição de Saadi (2013), trabalha com o delineamento do projeto artístico do grupo e sua difusão, a escolha do repertório, leitura e comentários de peças, tradução, criação, adaptação, oferecimento do material de pesquisa à montagem, acompanhamento dos ensaios, elaboração do programa do espetáculo, debates com o público e registro dos feitos da trupe.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

166

Henrik Ibsen (1828-1906) foi uma grande influência no ofício de Shaw. A técnica da “ação falada” inaugurada por Ibsen foi largamente utilizada pelo dramaturgo irlandês. Em relação a essa técnica, a argumentação é o núcleo de interesse da peça, baseando-se na pregação, na retórica e na oralidade, no universo forense em que a trama e os golpes são coadjuvantes. Sob outra perspectiva, o que diferencia os dois autores é que Shaw escreve comédias em lugar de tragédias, utilizando mecanismos dramáticos cômicos – a ironia, a paródia, a sátira e o travestimento, entre outros – para expor questões graves, revelando um estilo seriocômico (SHAW, 1971). Outra técnica bastante empregada por Shaw é a inversão cômica, na qual enredos, mitos, temas ou estereótipos conhecidos eram apresentados para depois serem parodiados e subvertidos, geralmente com boa dose de ironia. Ele ridiculariza os valores obsoletos da burguesia inglesa, pautada na nobreza vitoriana repleta de preconceitos, de desigualdades e de divisões rígidas entre as classes sociais. Assim, Shaw inicia uma nova era no teatro inglês, a do teatro novo, ou do realismo, o qual engloba assuntos contemporâneos e personagens que são como pessoas comuns de sua época que lidam com situações corriqueiras. Conforme o estudo de Marvin Carlson (1997, p. 230), Shaw criou sua própria teoria do drama e sustentava a opinião de que as questões morais a serem discutidas no palco tinham de ser inseridas num mundo familiar análogo ao do público em si a fim de despertar o interesse de todos. Dessa forma, a natureza mais essencial do teatro desenvolvido por Shaw é a do utilitarismo didático, trazendo entretenimento e instrução aos espectadores. Ainda, a inversão de expectativa era central no escopo de sua inventividade, por meio da qual princípios ultrapassados eram colocados de modo que, com o desenrolar da ação, não satisfaziam as expectativas da audiência. Iam na direção contrária ao senso comum. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

167

Enfim, mais uma característica importante das criações de Shaw é a ideia do vitalismo, proveniente da filosofia de Henry Bergson (1859-1941). A aplicação de tal conceito será exemplificada mais adiante, na abordagem da subversão do mito de Pigmaleão. A subversão do mito de Pigmaleão na peça de Shaw O conjunto da obra de Bernard Shaw levou o autor a tornarse o merecido ganhador do Prêmio Nobel de Literatura concedido pela Academia Sueca em 1926. Shaw, a princípio, não aceitou receber o prêmio, em razão de suas crenças as quais o faziam repudiar aclamações de seu trabalho, pois seu objetivo era atingir o público e incitar mudanças de comportamento por intermédio da orientação social. Entre suas obras mais exaltadas está Pygmalion, escrita em 1912 (SHAW, 1973). Bernard Shaw toma como referência a antiga lenda grega Pigmaleão para escrever sua peça Pygmalion. Há várias versões da lenda, todas baseadas no texto mais antigo, escrito em latim, pelo poeta Ovídio, que faz parte de sua obra Metamorfoses (8 d.C., Livro II, versos 243 a 297), em que recriou histórias da tradição oral grega. Uma das traduções mais recentes para a língua portuguesa encontra-se n’O livro de ouro da mitologia (a idade da fábula): histórias de deuses e heróis (2006). Em resumo, é a história de um homem (Pigmaleão) que, desiludido por suas relações com as mulheres, não quer saber de casar-se e passa a viver sozinho. Como era um excelente escultor, fez uma incrível estátua de marfim reproduzindo as feições de uma jovem mais bela que alguém de carne e osso. Esta obra parecia-lhe tão real que ele tocava nela, oferecia-lhe presentes, vestindo-a com roupas e acessórios (anéis, colares e brincos), passando a desejar ardentemente que ela estivesse viva e pedindo aos deuses que lhe dessem vida para que pudesse tomá-la como esposa. Vênus escutou suas súplicas e atendeu ao seu pedido. Do amor do casal ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

168

nasceu Pafos, nome de uma cidade erguida em homenagem a Vênus (BULFINCH, 2006, p. 78-79). De acordo com a terminologia introduzida por Gérard Genette (2010), opera-se aqui a “transtextualidade” ou “transcendência textual”, em que há relações explícitas entre pelo menos dois textos, o hipotexto Pigmaleão (Ovídio, 8 d.C.) e o hipertexto, a peça teatral Pygmalion (Shaw, 1912). O teórico argumenta que “A arte de fazer o novo com o velho tem a vantagem de produzir objetos mais complexos e mais saborosos do que produtos ‘fabricados’: uma função nova se superpõe e se mistura com uma estrutura antiga, e a dissonância dá sabor ao conjunto” (GENETTE, 2010, p. 144). Bernard Shaw, a partir daquele enredo, cria uma personagem, o professor Higgins, um solteirão convicto, adepto do celibato, tão habilidoso quanto Pigmaleão, mas no campo da fonética. A protagonista feminina é Eliza Doolittle, uma pobre moça que vendia flores na rua, a qual, no início da peça era descrita como uma ratinha suja, mas que depois se transformou em uma elegante jovem senhora. O fator principal que engendrou a mudança em Eliza não foi o poder divino ou simplesmente seu novo rico vestuário. A educação que ela recebeu de Higgins foi a mola propulsora que a levou a desenvolver mais autoconfiança, fluência na linguagem e articulação de pensamento, mostrando-se bem mais sofisticada e independente ao final da peça. Ela conseguiu, com seu talento, passar por cima de toda a diferença cultural e econômica entre ela e os mais abastados como o professor Higgins e seu colega Pickering, invadindo o espaço deles, para melhorar sua autoestima e condições de vida. Eliza também causou espanto por sua independência e firmeza de caráter desde o começo da ação. No início, ela vivia sozinha, sobrevivendo da venda de flores que realizava nas ruas, tendo sido expulsa de casa por seu pai e por sua madrasta, devido a que eles acreditavam que ela já estava ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

169

crescida o bastante para sustentar-se por si mesma. No dia em que Higgins desperta nela a possibilidade de ascensão através do aprendizado da fala correta, nos mais altos padrões da sociedade londrina e inglesa, ela não pensa duas vezes antes de dedicar-se a esse propósito. Com os trocados a mais que recebeu de Higgins, pega um táxi e vai em frente até conseguir que o professor a ensine. Nesse sentido, a lenda de Ovídio é subvertida e parodiada. Toma-se aqui o seguinte conceito de paródia: “forma de imitação caracterizada por uma inversão irónica, nem sempre às custas do texto parodiado [...] repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON, 1989, p. 17). Nessa apreciação há paralelismos com uma variação irônica que é atributo de toda paródia, em que “a crítica não tem de estar presente na forma de riso ridicularizador” (p. 18); ao contrário, trata-se de uma “abordagem criativa/produtiva da tradição” (p. 19). Em Pygmalion não se desenvolve uma união romântica entre a moça pobre e o famoso professor. Além do mais, o modo de ser de Eliza não se assemelha à estátua, pois ela demonstrou sua vitalidade desde o começo. A estátua é um objeto do desejo de Pigmaleão, a quem foi concedida a dádiva de viver meramente para satisfazer a vontade de seu criador, ser a esposa dele. Até mesmo o tom de comédia que a peça apresenta, por seu vocabulário e atitudes fora do comum, e o realismo das situações distanciam-se totalmente do tom romântico e sobrenatural da lenda. No artigo “Pygmalion: o criador e a criação” citado abaixo apresenta-se uma outra faceta muito interessante de alteração do mito de Pigmaleão, considerando-se o professor Higgins como a estátua: A peça pode ser encarada como uma inversão do mito de Pigmalião escrito por Ovídio, se tivermos em conta que Higgins

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

170

tenta tornar uma criatura viva numa boneca, ou numa máquina, acabando esta por se revoltar contra o abuso de poder do professor e assegurar a sua própria independência. Neste sentido, Higgins seria a «estátua» fria, distante, sem vestígios de humanidade nem desejos carnais, a quem só uma figura jovial como Liza conseguiria trazer à superfície um certo afecto. (COELHO, 2015, não paginado)

Por outro lado, Higgins é um herói ao estilo de Shaw, que carrega uma força vital – apesar dela não estar conectada a questões sociais ou sensuais –, um representante da energia ligada à evolução criativa (MCGOVERN, 2011, p. 50). O centro da vida daquele professor era seu trabalho como foneticista, em que não economizava esforços para avançar em seus projetos. Era incapaz de demonstrar o afeto e a devoção que sentia por Eliza, mesmo quando a admirava mais do que nunca. Não se preocupava com os sentimentos ou o sofrimento dos outros, apenas com suas próprias conquistas: “Uma vez por todas, põe na tua cabeça que eu sigo meu caminho e faço o meu trabalho sem pensar um minuto no que pode acontecer a você ou a mim. Não estou intimidado pela moralidade da crasse mérdia, como seu pai e sua madrasta” (SHAW, 2011, p. 147). Nas vezes em que tentava elogiar alguém era para conseguir um favor em troca. Dessa forma, a influência do vitalismo baseado na filosofia de Henri Bergson permeia toda a peça. A vitalidade constitutiva dos seres vivos origina-se do élan vital cuja potência consiste, especialmente em criar, fazer surgir, gerar. [...] assim como a memória pura tende a se atualizar numa diversidade de idéias ou lembranças atuais, o élan vital faz a conversão do ser contraído da duração em uma variedade de formas vivas que são caracterizadas pela mudança contínua. (SILVA, 2006, p. 3)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

171

No ato V Higgins fala sobre isso: “Olha aqui, eu fiz a pergunta, eu dou a resposta: posso passar sem ninguém. Não preciso de ninguém. Tenho uma alma própria; minha fagulha particular do fogo divino” (SHAW, 2011, p. 145). Cada personagem exerce essa potência vital de forma diferente, de maneira que os conflitos oriundos da estigmatização na rígida divisão de classes sociais britânica é o que principalmente os influencia para que se sintam ou não autossuficientes e assim alcancem suas metas, independentemente das situações adversas, mas em relação direta com a educação que recebem. Além de Eliza e Higgins, temos Alfred Doolittle, o pai dela, que vive intensamente a referida estigmatização. Inicialmente, ele morava com uma mulher, mas não era casado com ela, o que se considerava pecado mortal naquela sociedade, sendo que todas as personagens que se expressaram a respeito disso mantinham essa crença. Ele se colocava como vítima da situação precária em que vivia, como um pobre desfavorecido, sem ajuda do governo: “Si tem arguma coisa qui a genti acha qui tem dereito a genti vai, põe a letra da genti lá, mas êlis diz: ‘Qui é qui há? Tu é um poubre disfavurecido; num merece. Sai da fila’” (SHAW, 2011, p. 66). Ele não se preocupava com o destino de sua filha Eliza, apenas buscou contato com ela para tentar conseguir algum dinheiro do professor Higgins, a quem tentou vendê-la por cinquenta libras, mas acabou por obter ainda menos do que isso em troca de afastar-se deles. Quando o destino dele mudou em razão da herança milionária que recebeu, ele continuou não querendo sua filha por perto, devido a que se sentia infeliz com a nova vida, tendo que sustentar financeiramente os parentes e outros que se acercavam dele visando lucros. Qualquer cidadão comum da época pensaria que muito dinheiro e um bom casamento fariam qualquer homem feliz, todavia essas expectativas inverteram-se, pois não foi isso que mostrou o Sr. Doolittle, contestando toda a hipocrisia social e política da época. Ele, ao contrário dos protagonistas, não teve ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

172

aulas, educação, apenas ganhou muito dinheiro. Isso proporcionou a ele conforto material, mas não trouxe realização emocional e nem aumentou sua autoestima. No caso, seu contentamento encontrava-se diminuído no último ato, assim como o de sua esposa:”Num percisa tê medo mais – ela num diz mais parlavrão nim discruti cum nimguém, coitada! Dispois qui fico reispeitáver perdeu tuda a graça” (SHAW, 2011, p. 140). “É bom pruque ele anda lá in baixo chorano us dia di aligria qui fôro simbora” (p. 141). Na verdade, Doolittle comete o pecado de ser irresponsável, pecado este considerado dentro da escala de julgamento do próprio Shaw e que, por este motivo, é punido com um castigo comparado ao de Don Juan de Il dissoluto punito (MCGOVERN, 2011, p. 75-76). Na ópera Il dissoluto punito, ossia Il Don Giovanni (estreia em 1787), Don Giovanni (ou Don Juan em francês, cuja referência é a peça de Molière, Don Juan ou Le Festin de Pierre, uma tragicomédia de 1665) é um fanfarrão que seduz várias mulheres, entre criadas e nobres, faz promessas a elas e depois as abandona. O desfecho é que a estátua de um homem assassinado por Don Giovanni volta para buscar vingança, mas o fanfarrão não acredita nela e nem se arrepende de seus pecados. O resultado é sua descida ao inferno (DON GIOVANNI, 2015). É interessante analisar que obras antigas repetidamente convertem-se em modelos estéticos cuja recomposição em forma de obra moderna, muitas vezes, tem como objetivo satirizar ridiculamente hábitos contemporâneos (HUTCHEON, 1989, p. 22). Em Pygmalion, o estilo seriocômico da ópera é mantido, porém o final é comicamente invertido, sem nenhum vestígio de efeito sobrenatural. No ato final Doolittle estava “triste, mas magnânimo” (SHAW, 2011, p. 142), vestido desajeitadamente como um lord, pronto para casar-se, o que não era exatamente a sua vontade, era mera formalidade, uma obrigação a fim de obter mais respeitabilidade. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

173

Afinal, tanto o Sr. Doolittle quanto Higgins, Eliza e os outros demonstram seu potencial, o élan vital próprio de todo ser vivo, o qual gerou também mudanças contínuas. Esse princípio de continuidade transformadora fica evidente ao final da ação na peça de Shaw, quando o destino deles não é revelado, apenas um leque de possibilidades, assim como ocorre na vida real, onde as incertezas e mudanças não cessam. As traduções de Pygmalion A partir da escritura da peça teatral em 1912, houve várias traduções em diversas línguas, representações em teatros e também adaptações em outros formatos, como filmes e musicais. “Siegfried Trebitsch [...] apostou suas fichas na tradução daquelas peças [de Shaw] para o alemão [...] De fato, sua fama chegou à Inglaterra via Alemanha [...] pois o Independent Theatre londrino não teria sido capaz de fazer por esta fama” (MANN, 2011, p. 143). Após uma encenação em Viena (1913), utilizando-se a tradução alemã, aconteceu, em 1914, a produção teatral de Pygmalion em Londres, no His Majesty’s Theatre. O público a recebeu como uma grande comédia, descrita no artigo “Why My Fair Lady betrays Pygmalion” (BOSTRIDGE, 2014) como: “the longest laugh in British theatrical history” [a mais longa gargalhada da história do teatro britânico], pelo sotaque e uso de termos esdrúxulos de Eliza, proveniente dos guetos de Londres, o mesmo do pai dela (o Sr. Doolittle) e de outras personagens secundárias e inclusive pelos modos “animalescos” dela, os quais se chocavam enormemente com os do professor Higgins e com os do coronel Pickering, amigo e companheiro de trabalho. McGovern (2011, p. 87-89) expõe que Herbert Beerbohm Tree, o ator que fez o papel de Higgins nessa peça de 1914, conforme a avaliação de Bernard Shaw, parecia um Romeu na última cena, apesar de todas as orientações de Shaw para que isto não acontecesse. Ele ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

174

era um ator típico de finais felizes e por meio de suas improvisações deu a entender que Eliza ficaria com Higgins, o que a plateia aprovou. Em 1916 foi lançada a primeira versão publicada em inglês no formato de livro, em que, entre os diálogos, Shaw insere um prefácio e um epílogo nos quais faz várias ponderações sobre a lógica da história e das personagens. Dentre essas considerações, ele afirma: “Eliza positivamente não acredita na velha e estúpida tradição romântica de que todas as mulheres adoram ser dominadas” (SHAW, 2011, p. 158). No epílogo também é colocada a informação de que Eliza casa-se com Freddy, um apaixonado por ela, que a respeitava e não tentava dominá-la e nem humilhá-la como Higgins. Assim, o casal tem uma lua de mel paga pelo coronel Pickering, logo após abrem uma loja de flores – que quase vai à falência porque Eliza não sabia contar direito e nem escrever corretamente e porque Freddy também não entendia nada de administração – sendo que foram salvos diversas vezes por Pickering, além da menção de que Eliza, a despeito de sua boa convivência com Freddy e de seu marido a fazer muito feliz, tinha fantasias com Higgins, de tê-lo em um lugar isolado de todos, onde ele pudesse demonstrar o amor que sentia por ela. O que Bernard Shaw esperava no desfecho da história era um destino não tradicional, não tão feliz e muito menos romântico. McGovern (2011, p. 3) afirma que a sequência explicativa de 1916 foi publicada numa tentativa de Shaw de impedir que sucessivos intérpretes dessem um tom romântico à relação entre Higgins e Eliza. Além disso, Pygmalion contém uma musicalidade sentida no ritmo e entonação característicos dos discursos de cada personagem, os quais só poderiam ser mostrados por completo em uma performance no palco de um teatro ou no cinema, onde tivéssemos o som de suas falas. Desse modo, reproduzir na escrita todos aqueles diálogos cuja sonoridade ecoava na concepção do ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

175

autor não foi tarefa fácil para Shaw. Tanto é que já no início da peça ele deixa o comentário: “Esta tentativa desesperada de reproduzir essa linguagem, sem um alfabeto especial correspondente, deve ser abandonada, porque é totalmente ininteligível fora de Londres” (SHAW, 2011, p. 16). Se a tarefa já foi árdua para Shaw, imagine para os que traduziram a obra para outras línguas. Os tradutores estrangeiros, além de lidar com a transposição da oralidade para a escrita, tinham de lidar também com a transposição de uma cultura para a outra, de um contexto para outro. Linda Hutcheon (2013), quando discorre sobre a contextualização das adaptações, diz o seguinte: “Não importa se contada, mostrada ou se com elementos interativos, a história sempre ocorre num determinado tempo e espaço social” (p. 194). No caso das traduções brasileiras, pode-se fazer a comparação das escolhas feitas por Miroel Silveira e Millôr Fernandes. Miroel Silveira, em sua tradução publicada em Bernard Shaw: Santa Joana e Pigmalião (1973), apresenta o título: Pigmalião: comédia em cinco atos; Millôr Fernandes coloca: Pigmaleão: um romance em cinco atos (2011). Silveira provavelmente levou em consideração, além de sua própria interpretação, a recepção da peça e dos filmes em outros países, onde ela foi classificada como comédia. Millôr Fernandes prestou mais atenção ao título original criado por Shaw, Pygmalion: a romance in five acts (o subtítulo só não foi mantido na versão em inglês de 1939, conforme a tese de McGovern, 2011, p. 47), em que a ironia da palavra “romance” era proposital, pois Shaw revelava uma história antirromântica, não convencional. Ainda sobre o título, Fernandes preferiu “Pigmaleão”, sem importar-se com a aproximação à pronúncia do inglês, que seria a escolha feita por Silveira, “Pigmalião”. Outra grande diferença entre as duas traduções foi que Silveira transpôs as cenas para o Rio de Janeiro, seguindo o mesmo padrão da tradução francesa do casal Hamon, que, com a autorização de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

176

Shaw, transferiu as ações para as margens do rio Sena (1973, p. 221). Fernandes manteve as cenas situadas em Londres. Já uma terceira diversidade seria a troca de nomes das personagens. Na versão de Silveira, Henry Higgins virou Henrique Mascarenhas; o Sr. Doolittle era Alfredo Garapa; Freddy passou a ser José Rivadávia e Eliza Doolittle transformou-se em Elisa Garapa, enquanto que na versão de Millôr os nomes ingleses foram mantidos. “Os países e as mídias não são os únicos contextos que devemos considerar. O tempo – muitas vezes curtos intervalos de tempo – pode mudar o contexto, inclusive dentro de um mesmo lugar e de uma mesma cultura” (HUTCHEON, 2013, p. 195). No intervalo de algumas décadas, dentro da cultura brasileira, tivemos duas interpretações bem distintas da mesma obra, havendo escolhas importantes nas duas. A originalidade do subtítulo concebido por Shaw e a caracterização típica do contexto e do espaço londrino foram elementos deixados de lado por Miroel Silveira. Já na tradução de Millôr Fernandes a aproximação ao contexto brasileiro não foi empregada. Também houve grande modificação nas duas versões no sentido de que a proposta de Bernard Shaw era a de que não seria possível reproduzir um dialeto típico das camadas desfavorecidas de Londres na forma escrita; por isso desistiu de tal empreendimento. Porém, os dois tradutores brasileiros tentaram manter os dialetos adaptados à língua portuguesa, procurando harmonizá-los com a oralidade no desenrolar de toda a peça. A grande contribuição de Silveira seria por ele ter feito com que o leitor brasileiro ficasse mais confortável em sua leitura em razão de seu empenho em transportar a obra para a cultura nacional. O mérito de Fernandes seria pelo desvelamento dos costumes londrinos de forma o mais próximo possível, promovendo a inserção de elementos novos na cultura do Brasil.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

177

Com o passar do tempo as traduções e adaptações de Pygmalion fizeram da obra um grande sucesso tanto comercial quanto de crítica e audiência. Um empreendimento está tanto mais próximo do pólo “comercial” quanto os produtos que oferece no mercado correspondem mais direta ou mais completamente a uma demanda preexistente, e em formas preestabelecidas. Por conseguinte, a duração do ciclo de produção constitui sem dúvida uma das melhores medidas da posição de um empreendimento de produção cultural no campo (BOURDIEU, 1996, p. 163).

Novas produções a partir da peça de 1912 têm sido realizadas há mais de um século, apoiadas naturalmente pela certeza de êxito e lucratividade, colocando a obra sempre em atividade no campo artístico. Considerações finais As questões apresentadas e a maneira pela qual foram trabalhadas por Bernard Shaw em Pygmalion são marcadamente surpreendentes para seu tempo. Na época do lançamento e durante várias décadas mais tarde as concepções antirromânticas não eram, em geral, aceitas. A tentativa de Shaw no sentido de manter a carga total de realismo na obra, fugindo do modelo tradicional do romance como gênero literário, e de não promover a união entre Eliza e Higgins viu-se frustrada desde a primeira encenação na Inglaterra até pelo menos a década de 1960, quando é lançado o filme My Fair Lady (1964), um musical adaptado para as telas. Contudo, o sucesso e popularização da obra ocupavam e ocupam um importante espaço no cenário cultural de variadas épocas e locais. A peça, construída a partir de mitos como o de Pigmaleão e o de Don Juan, contestou também estereótipos – a moralidade ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

178

da classe média, o papel social da mulher, o matrimônio tradicional, o amor entre pais e filhos, entre outros. Todos esses mitos e estereótipos foram habilmente parodiados, revistos, e adquiriram novos significados. Eles foram transportados para um ambiente real onde não havia heróis, as pessoas se corrompiam, o casamento não passava de obrigação formal, pais não tinham boas relações com os filhos e a opressão e injustiças dirigidas aos miseráveis, residentes das sarjetas de Londres, sem educação, fazia com que vivessem quase sem esperança. Porém, em meio a todos os obstáculos, surge a educação como ferramenta-chave para a ascensão tanto financeira quanto intelectual dos cidadãos, como no exemplo de Eliza. Bernard Shaw acreditava realmente no trabalho dos professores e do conhecimento, pois ele mesmo – conforme McGovern (2011, p. 42) – teve aulas com um voice teacher, que o ajudou a lapidar sua pronúncia e deu dicas a ele de como arrumar o penteado. Além disso, Shaw consultou vários livros de etiqueta a fim de portar-se mais adequadamente. Ele próprio sofreu o preconceito inglês por ser estrangeiro e não estar moldado aos padrões, revelando através de Pygmalion a hipocrisia e as falhas que via naquela sociedade.

Referências BOSTRIDGE, M. Why My Fair Lady betrays Pygmalion. The Telegraph, Apr. 2014. Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/ culture/theatre/theatre-features/10755716/ Why-My-Fair-Ladybetrays-Pygmalion.html. Acesso em: 15 abr. 2015. BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

179

BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia (a idade da fábula): histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. CARLSON, M. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Unesp, 1997. COELHO, L. A. Pygmalion: o criador e a criação. Disponível em: http://oregressoamarienbad.blogspot.com.br/2015/07/ pygmalion-o-criador-e-criacao. html. Acesso em: 09 jul. 2015. DON GIOVANNI. In: WIKIPÉDIA a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Don_Giovanni. Acesso em: 12 jul. 2015. GENETTE, G. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos traduzidos do francês por Cibele Braga et al. Belo Horizonte: Viva Voz, 2010. Disponível em: http://issuu.com/labed/docs/ palimpsestoslivro-site. Acesso em: 10 abr. 2015. HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989. ______. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013. MANN, T. O escritor e sua missão: Goethe, Dostoiévski, Ibsen e outros. Apresentação, revisão técnica e notas: Johannes Kretschmer. Trad. Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. MCGOVERN, D. J. Eliza undermined: the romanticisation of Shaw’s Pygmalion. Thesis presented in partial fulfilment of the ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

180

requirements for the degree of Doctor of Philosophy in English at Massey University, Turitea Campus, New Zealand, 2011. Disponível em: mro.massey.ac.nz/bitstream/handle/1079/2414/ 02_whole.pdf? sequence=1. Acesso em: 08 jul. 2015. PYGMALION: 1914 interview with George Bernard Shaw. The Telegraph, Apr. 2014. Disponível em: http: //www.telegraph.co.uk/ culture/theatre/10757009/Pygmalion-1914-interview-withGeorge-Bernard-Shaw.html. Acesso em: 15 abr. 2015. SAADI, Fátima. Dramaturgias: estudo sobre a função do dramaturgista. Questão de Crítica, dez. 2013. Disponível em: www.questaodecritica.com.br/2013/12/dramaturgias. Acesso em: 04 abr. 2015. SHAW, G. B. Pygmalion: a romance in five acts. Introduction and notes by A. C. Ward. London: Longman, 1971. ______. Santa Joana e Pigmalião. Trad. Dinah Silveira de Queiroz, Miroel Silveira e Fausto Cunha. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973. ______. Pigmaleão. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011. SILVA, A. J. da. O impulso vital enquanto princípio explicativo da evolução no pensamento bergsoniano. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei, ano 2, n. 2, jan./dez. 2006. Disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/ File/existenciaearte/Edicoes. Acesso em: 07 jul. 2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

181

GIACOMO JOYCE E POMES PENYEACH: POSSIBILIDADES DE RECEPÇÃO TEXTUAL E DE DEPREENSÃO DE UMA ESTÉTICA JOYCEANA Autor: Prof. Dr. Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE) RESUMO: Obras que James Joyce não chegou a publicar ou desprezou suscitam problemas quanto à recepção. Pode-se recorrer à hermenêutica dos lugares-vazios, de Iser. Mas apreendê-las com vistas a uma estética joyceana, por sua vez a aplicação de uma estética tomista ao modo de se observar o real, é ação que revela uma dialética da escritura. Não se constata a passagem de uma apreensão sensível do real para que se chegue à compreensão de um ente em si mesmo, condição tomista da verdade. O que se percebe é que o belo sensível desperta o ensejo de uma elaboração estética intelectiva, e esta é a verdade joyceana. O ente verdadeiro é a obra. Exemplos notáveis são a autoficção Giacomo Joyce e o conjunto de poemas Pomes Penyeach, em que o sensível serve como suporte para estados de paixão amorosa. A paixão fracassa, mas o autor constata que só lhe resta escrever. PALAVRAS-CHAVE: Recepção. Joyce. Estética. Iser.

A nova bibliografia joyceana e seus problemas de recepção James Joyce publicou poucos títulos. As obras que o autor considerava prontas e dignas de publicação quase sempre estavam envolvidas em polêmicas. A censura a obras prontas, as quais podem ser vistas como resultantes de longos esforços pela definição de uma estética pessoal, parece ser uma extensão das proibições pessoais que o autor se impunha. Textos incompletos, obras salvas do fogo ou lacradas em arquivos pessoais, a bibliografia de Joyce vem sendo aumentada por publicações de natureza diversa. Interessam ao leitor aficionado, ao estudioso da literatura ou do autor, mas nem sempre podem ser vistas como trabalho pronto, que o autor, se vivo, aceitaria tornar público. Se o leitor busca a leitura em seu aspecto de fruição de texto literário,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

182

certamente esbarra na complexidade de textos que não foram acabados, lacunares, de uma incompletude que não é parte de uma estética deliberada, mas resultante da condição de rascunhos ou textos abortados. Afinal, o leitor de Joyce reconhece, com uma atenção incomum, o modo como o autor explicita a noção de opacidade da linguagem literária, tantas vezes enfatizada por Lefebve (2012). Dentre as recentes publicações, obras como De santos e sábios, conjunto de textos esparsos, como ensaios e crônicas, ou Epifanias, apanhado de anotações das quais o autor faria uso em obras posteriores, evidenciam a incompletude. Por sua vez, Finn’s Hotel e Stephen herói são rascunhos de romances que depois vieram completos à luz. O manuscrito do segundo foi, inclusive, salvo do fogo pela mãe do escritor. O fato de o primeiro ostentar uma chamada da editora, chamando o volume de “livro perdido de James Joyce”, indica que há um leitor informado acerca dessas obras. Este pode buscar nelas material para estudo. Nesse sentido, não seria necessário problematizar a recepção desses textos como leitura de obra literária. No entanto, entre tais edições recentes, também existem as de obras que o autor deixou completas, e chegou a publicar, como o volume de poemas Pomes penyeach, traduzido como Pomas doiscontoscada, ou a novela Giacomo Joyce, incluída na edição de Finn’s Hotel, texto ambíguo, pois foi terminado mas não publicado, como se o autor o guardasse para uma edição póstuma. Essas duas obras problematizam a recepção para o leitor que sabe que são textos acabados. A indicação da natureza do texto pode orientar modos de recepção, ou até mesmo o tipo de envolvimento do leitor com a obra. Fruição ou estudo? Ambos, para aquele leitor possuidor de repertório? Mas, sobretudo, os modos de preenchimento daquilo que Ingarden e Iser chamam de indeterminações e lugaresvazios. No caso de obras como Pomes penyeach e Giacomo Joyce, o acabamento dos textos aponta para leituras que evidenciem os ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

183

usos intencionais, estéticos, como acabados. Da mesma forma, esses usos podem apontar para o desvelamento de uma estética, indicada em ensaios do autor ou em fragmentos abandonados. As ligações de Joyce com uma estética tomista acabam tendo nesses dois textos exemplos de desenvolvimento. Afinal, se há uma relação entre as concepções estéticas de Tomás de Aquino e o estilo joyceano depreendido das obras principais, essas produções menores podem servir como indicadoras. E também como problematizadoras, ao evidenciarem modos como o autor apreendeu e transformou algumas das noções principais do filósofo. Uma estética de indeterminações e lugares-vazios As teorias sobre recepção de textos literários desenvolvidos pela Escola de Constança evidenciam uma atenção que recai tanto sobre as teorias da enunciação quanto sobre a fenomenologia, com suas incursões pela consciência do leitor. Assim, Wolfgang Iser busca constituir uma Teoria do Efeito Estético para diferenciar este efeito daquele que ele próprio chama de “efeito artístico”, ou seja, se o último é atribuição do autor enquanto elabora sua obra, o primeiro cabe ao leitor enquanto a apreende através da leitura. Um dos traços que especificam a produção iseriana é a atenção dada às intenções do autor de exercer alguma forma de controle sobre a recepção da obra. Ou seja, a obra já contém as instruções sobre o modo como o leitor deve recebê-la: (...) o papel do leitor se define como estrutura do texto e como estrutura do ato. Quanto à estrutura do texto, é de supor que cada texto literário representa uma perspectiva do mundo criada por seu autor. O texto, enquanto tal, não apresenta uma mera cópia do mundo dado, mas constitui um mundo do material que lhe é dado. (ISER, 1996, p. 73)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

184

Essa estrutura, ou configuração, que Iser (1996) define como “leitor implícito”, estabelece o esforço do autor por construir um efeito artístico, orientações sobre o modo de recepção que, quando colocadas sob a responsabilidade do leitor, resultam em efeito estético, ou seja, o mundo do texto é apreendido a partir das especificidades do mundo do leitor. As descrições que o teórico faz do ato de leitura atentam para aqueles elementos que constituem a estrutura do texto literário. Há uma atenção para a consciência e os modos de apreensão. Portanto, Iser olha para a fenomenologia como sendo uma exposição abrangente desses modos. A consciência e suas possibilidades de apreender o real também são motivo para que a fenomenologia explicite a leitura como uma apreensão específica. Se o filósofo Edmund Husserl ocupou-se com a apreensão do real de modo abrangente, o teórico da literatura Roman Ingarden fez uso da fenomenologia para diferenciar a apreensão do texto literário em sua especificidade. A principal contribuição de Ingarden está em apontar as limitações do texto literário, como tentativa de representação do real. A composição de uma realidade específica esbarra na impossibilidade de se enumerarem todos os elementos necessários a uma apreensão satisfatória pelo leitor, que o texto não consegue conter. O leitor acaba tendo que preencher as indeterminações do texto, o que ele acaba por fazer a partir de sua experiência como sujeito, o mundo do leitor. Os dados contidos na sua consciência, na forma de esquemas aplicáveis às diversas situações do real, acabam por completar aquilo que no texto está indeterminado. O exemplo mais notório, tanto em Ingarden quanto em Iser, refere-se ao conjunto de informações visuais necessárias para que o leitor represente os cenários em que as ações se passam. A imagem formada pelo leitor é a resultante das instruções do autor preenchidas com dados da sua própria consciência. Ou seja, ela é sua, e não do autor. Para Ingarden, essas indeterminações são uma limitação do texto. E a ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

185

identificação do texto com a experiência pessoal do leitor é um problema, não uma qualidade. É conhecida a crítica que o teórico faz às atitudes do leitor: De facto, não aprecia a obra de arte por causa de seus próprios valores, de que ao assumir tal atitude nem sequer se apercebe e que ficam até submersos sob a plenitude de sentimentos subjectivos. Julga-a simplesmente “valiosa” porque ela é um meio que lhe provoca vivências agradáveis. (INGARDEN, 1965, p. 40-41)

A proximidade com o mundo do leitor seria, para Ingarden, motivo para uma recepção agradável, mas sem chegar ao valor estético. Para Iser, o fato de o texto não conter todas as informações necessárias à apreensão, ou recepção, é uma característica constitutiva, e cabe ao autor configurá-la de modo a obter efeito estético. A ausência de informação, que ambos os teóricos chamam de “lugar-vazio”, é vista por Iser com otimismo: sem ela, a experiência de leitura seria frustrante. Completar o texto é uma experiência que problematiza o mundo do leitor. Ou seja: “Mas estar temporariamente isolado do mundo real não significa que voltemos para ele com novas diretrizes. Ao contrário, a irrealização pelo texto nos permite descobrir o próprio mundo como uma realidade passível de observação” (ISER, 1999, p. 63). A obrigação de completar o texto faz com que os elementos a ele acrescentados sejam vistos através da opacidade da linguagem literária. Observados e problematizados, a ampliação da experiência de leitura faz com que ela não se reduza apenas aos elementos cabíveis na configuração da obra. Estar ou não presente no real é uma condição de interação do leitor com a obra: “A imagem representada e o sujeito-leitor são indivisíveis” (ISER, 1999, p. 62). Uma recepção de obra literária torna-se satisfatória quando o leitor percebe que a ele cabe completá-la. Os textos bem

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

186

escritos são os que evidenciam sua incompletude e o modo como cada autor soube estruturá-los, no sentido da construção de possibilidades de recepção, através do leitor implícito. Se não há como se ter controle completo sobre a recepção, os limites desse controle possível correspondem a uma evidenciação do modo como cada texto se configura. A relação entre determinar e indeterminar é, por natureza, aquilo que define o estilo de cada obra. A estética iseriana é a resultante dessas escolhas feitas durante a configuração e percebidas durante a recepção. Problemas de uma estética joyceana a partir da estética tomista É suficientemente conhecida a intenção de Joyce de elaborar um realismo a partir da estética depreendida da obra de Tomás de Aquino. Da mesma forma, é bastante conhecida as tentativas, feitas por alguns estudiosos do escritor, de reduzir essa estética a procedimentos epifânicos em uma condição que virou clichê. A complexa estética tomista acaba se parecendo com uma negação daquilo que a define: a racionalidade como forma de se chegar à Verdade, condição para o Belo. O realismo tomista faz da arte uma forma de atrelamento do Belo, do Bom e do Verdadeiro, elementos que fazem com que a fruição estética não seja um prazer puramente sensível e ganhe a condição de prazer intelectível. Aquino fala sobre o Belo como sendo o que agrada aos sentidos. Essa visão pode parecer uma limitação ao sensível. No entanto, a arte precisa da razão. Esta é condição para que se chegue à Verdade. Em Tomás de Aquino, a filiação da Beleza à apreensão intelectível faz com que se reconheça o parentesco de sua estética com noções aristotélicas, sobretudo a de “reconhecimento”, a depreensão da Verdade que acaba por gerar a catarse. Se esse reconhecimento, em Aristóteles, tem função catártica e de elevação moral, em Aquino ele conduz ao conhecimento do real como Verdade. Reconhecer a Verdade é atribuição do intelecto. Assim, a ação de apreender o objeto belo, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

187

pelos sentidos, é apenas uma etapa para que se reconheça por que o mesmo foi tido como tal. Se foi percebido como possuidor de Beleza, esta não estaria apenas em sua aparência, mas em algo que só pode ser explicitado pela razão. Aquino estabelece três princípios pelos quais a Beleza pode ser reconhecida: claridade, proporção e ordem (TAZIN, 1943). Pela claridade, o ser se revela em sua Verdade; pela proporção, percebe-se o encadeamento das partes que o constituem, agrupados por importância; por ordem, a harmonia que se estabelece entre as partes em sua funcionalidade. O ser é belo, e essa Beleza já pode ser percebida pelos sentidos; no entanto, compreender por que os sentidos consideraram o objeto belo, já na sua apreensão, é tarefa da razão, ao tomar como critérios os três elementos. Ou seja, é possível ver em Tomás de Aquino um atrelamento dos sentidos a uma intuição da Beleza. Intui-se que algo possua Beleza, mesmo que ainda não se saiba por quê. O motivo final será sempre a capacidade que o ser belo possui de revelar o real como verdadeiro. Para Joyce, apenas essa semelhança não faria a Beleza permanente. Evidentemente, uma estética tomista foi perseguida pelo Joyce jovem com resultados que nem sempre chegaram ao ambicionado. Os originais destruídos dessa época exemplificam essa situação. Textos que oscilam entre a preocupação com o realismo do cotidiano e a criação de técnicas que, por sua vez, atinjam a perenidade. O comentário seguinte, de Carpeaux, aponta para a condição do desafio entre ser universal e partir do cotidiano local: “a obra de Joyce seria produto de circunstâncias muito particulares, de um regionalismo irlandês, se bem que subversivo – e o que tem o mundo com isso?” (CARPEAUX, 2012, p. 164). O regionalismo se universaliza porque Joyce tem consciência de que arte é elaboração da linguagem, muito além de ser reflexão sobre o mundo. Nesse sentido, o regionalismo irlandês subverte a arte literária universal entendendo-a como ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

188

linguagem, técnica. A elaboração da linguagem literária, mesmo que mimetize o fortuito, o cotidiano, é produto de uma reflexão sobre procedimentos estéticos perenes. Suas produções eram um exercício de ensaio e erro, e que até despertavam o sentimento de frustação. É preciso que se reconheça que as obras “perdidas” de Joyce eram anotações ou versões preliminares. Na verdade, esses rascunhos resultaram em obras publicadas. O que se torna problemático é o reconhecimento de uma estética tomista tal como o autor apregoava em sua juventude e seus desdobramentos posteriores. O tomismo joyceano: realismo e epifania Em De santos e sábios, há um conjunto de fragmentos que Joyce escreveu entre 1903 e 1904 e que estão agrupados sob o nome de “Estética”. A organização do texto dividiu-o em dois cadernos: de Paris e de Pola, cidades em que foram compostos. O caderno de Paris é essencialmente aristotélico. Nele, há comentários sobre a natureza mais abrangente dos gêneros literários e sobre a natureza da arte. É conclusiva neste sentido a afirmação: “A arte é o modo como o homem dispõe para um fim estético a matéria sensível ou inteligível” (JOYCE, 2012, p. 155). A noção de “fim estético” faz com que sejam excluídas da arte atividades que tenham uma finalidade prática, como a fotografia, casas, roupas, móveis, e também a beleza que não seja produto da intencionalidade e da ação do artista, como a das crianças. Ou seja, a Beleza da arte não se reduz ao bonito. O caderno de Pola é tomista. Frases de Tomás de Aquino encimam comentários, encerrados com as indicações de data e local. Essas frases nucleares do que seria uma estética tomista constituem um percurso para o escritor conceber e escrever suas obras. No caso, tratava-se da composição de Stephen Herói, rascunho para o Retrato do artista quando jovem. Joyce está, no caderno, preocupado com

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

189

os conceitos de Bom, Belo e Verdadeiro. Assim, retoma e comenta os conceitos tomistas: Bonum est in quod tendit appetitus. Santo Tomás de Aquino. O bem é aquilo para o qual tende o desejo: o bem é o desejável. O verdadeiro e o belo são as ordens mais persistentes do desejável. A verdade é desejada pelo apetite intelectual, que se sacia com as relações mais satisfatórias do inteligível; a beleza é desejada pelo apetite estético, que se sacia com as relações mais satisfatórias do sensível. (JOYCE, 2012, p. 156)

Não há como isolar as formas do desejo. É a possibilidade de o apetite intelectual e o apetite estético se aglutinarem que gera a semelhança da arte com a Verdade. Afinal, o apetite intelectual leva ao Verdadeiro, através da razão; e o apetite estético leva ao Belo. Mas de que forma? Não se trata, evidentemente, apenas da contemplação sensível. Joyce fala das “relações mais satisfatórias do sensível”, que remetem aos três requisitos da Beleza tomista: claridade, proporção e ordem. Se esses elementos podem ser intuídos através da apreensão sensível, só podem ser detectados através da intelecção. Ou seja: Ora, o ato de apreensão estética envolve pelo menos duas atividades, a atividade de cognição, ou percepção simples, e a atividade de recognição, ou reconhecimento. (...) No que diz respeito àquela parte do ato de apreensão chamada atividade de apreensão simples, não há objeto sensível que não possa ser considerado belo até certo ponto. (...) Em relação à segunda parte do ato de apreensão, chamada atividade de reconhecimento, ou recognição, pode-se acrescentar que não há atividade de percepção simples que não seja acompanhada, em certo grau, pela atividade de reconhecimento. (JOYCE, 2012, p. 156-157)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

190

As duas partes do ato de apreensão da arte se complementam, essencialmente: a cognição produz uma sensação de belo, de que o objeto apreendido é agradável; a recognição refere-se ao reconhecimento da semelhança com a Verdade, atividade do intelecto, posterior à apreensão sensível. Se todo objeto apreendido pode, até certo ponto, ser considerado belo, resta precisar o que faz com que o objeto artístico se diferencie dos demais. Trata-se, sem dúvida, de transcender o “certo ponto” e estabelecer a permanência do prazer na apreensão. Ou seja, já se está em uma terceira parte da apreensão, a satisfação: Em sua forma mais completa, no entanto, o ato de apreensão envolve três atividades, a terceira sendo a da satisfação. (...) Na filosofia estética prática, os epítetos “belo” e “feio” são usados principalmente em função dessa terceira atividade, ou seja, se referem à natureza, ao grau e à duração da satisfação resultante da apreensão de qualquer objeto sensível. (JOYCE, 2012, p. 257-258)

O Belo, assim, é resultante da passagem pelas três atividades de apreensão. Se mesmo os objetos não artísticos são considerados belos porque passam pelas três, a arte faz disso um requisito imprescindível. A duração da satisfação, que precisa se repetir, no mínimo, três vezes, é condição para o Belo artístico. Aqui, é preciso retomar as condições estabelecidas por Joyce no caderno de Paris: a natureza desse Belo é a finalidade estética, e não qualquer outra; o grau está, evidentemente, na elaboração sobre a matéria, a técnica; e a duração dessa satisfação não pode ficar restrita a um único momento da apreensão, pois precisa dos três. Tem-se um percurso para se reconhecer uma estética joyceana. A admissão das obras como prontas e sua publicação

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

191

certamente indicam a satisfação do autor com os resultados obtidos. Joyce está pensando em permanência da obra e em arte como elaboração daquele Verdadeiro que pode ser reconhecido. Por isso, o realismo de suas obras. Parecer-se com o real apreensível na cognição é um meio de assegurar o reconhecimento; no entanto, este poderia constituir um “até certo ponto” para a satisfação. O real reconhecido como Verdadeiro não é a única condição para a duração da satisfação. Esta dura devido ao trabalho de elaboração da matéria que constitui a obra de arte. A beleza está nessa elaboração, que também deve ser reconhecida, através da opacidade da linguagem literária. A técnica produz opacidade. Pode parecer estranho, pois a estética tomista fala em claridade. Em Joyce, a claridade parece se referir ao seu realismo, ao regionalismo de que fala Carpeaux; mas a universalidade de sua obra está na satisfação proporcionada pela elaboração da matéria constitutiva da arte literária. E já se falou que o reconhecimento dessa elaboração faz com que se atente para a opacidade da linguagem literária. Não se está diante de uma aporia, mas de algo que remete a uma outra forma de reconhecimento: o do trabalho do artista como parte da obra. Ou seja, o grau de elaboração é requisito para a duração da satisfação. Essa possibilidade de aporia é evidente quando se reduz a estética joyceana à epifania no senso-comum. Afinal, estudos a respeito da epifania em Joyce e em outros autores atrelados a essa possibilidade de apreensão estética a limitam ao que o autor irlandês chama de “cognição”, sem chegar às demais etapas da apreensão do Belo. Atitude recorrente é considerar epifânicos os procedimentos estéticos em que Joyce está, evidentemente, preocupado também com a recognição e com a satisfação. E reduzir a estética joycana à intuição do belo que ocorre durante a cognição. Por isso, o escritor faria uso de cenas do cotidiano, de imagens corriqueiras, que não possuiriam o caráter de belo como bonito. A epifania acabaria gerando um realismo como que por acaso. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

192

Na verdade, essa perspectiva não se detecta dos procedimentos que Joyce indica nos seus cadernos de estética. Sua epifania, como intuição da beleza permanente, ocorre nos fragmentos coletados no livro Epifanias. Anotações que o autor coletava e que, muitas vezes, seriam incorporadas em trechos de suas obras prontas. No entanto, as epifanias precisam ser aprovadas pela condição da duração do agradável na apreensão. Se reduzidas ao momento de cognição, não chegam à condição de beleza que supera o “até certo ponto” do bonito. É preciso também não esquecer que Joyce afirma que “não há atividade de percepção simples que não seja acompanhada, em certo grau, pela atividade de reconhecimento”, ou seja, a intuição pura do belo, no ato da apreensão sensível, pode ser uma quimera, pois ela já pode conter a atividade de reconhecimento da Beleza. No entanto, isso ocorre “até certo grau”, o que não garante que apreensões epifânicas refiram-se sempre ao Belo que permanece; pode-se estar apenas diante daquela possibilidade que todo objeto oferece de ser percebido como belo. E que não interessa à estética joyceana. Uma estética do epifânico como parte da apreensão e do uso do lugar-vazio como evidência de opacidade Ao se pensar no epifânico como etapa, que pode ou não ser incorporada pela obra pronta, pode ser mais fácil depreender os procedimentos indicados nos cadernos de anotações sobre estética naquelas obras que Joyce vinha elaborando na época. Ou que ainda estão na confluência desses ideais com achados estéticos que indicam a maturidade do escritor. Em relação ao primeiro caso, o conjunto de poemas Pomes penyeach, ou Pomas doiscontoscada, é uma evidente demonstração. No segundo, Giacomo Joyce pode ser visto como exemplar. Quando Joyce elaborava seus poemas, ainda havia a expectativa de o autor abrigar um poeta. E a obra parece um ensaio breve, uma testagem de seus ideais estéticos, enquanto se ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

193

elaborava um romance que passou por mais de uma versão. O livro exemplifica o regionalismo irlandês ao adotar a dúzia de treze, tradição nas padarias do país, como estrutura para um conjunto de doze poemas curtos, que admitem um décimo-terceiro. Na verdade, o livro foi composto nas cidades do continente europeu recorrentes nas datações joyceanas: Paris, Zurique, Trieste. A preocupação em localizar e datar cada poema é a mesma que se detecta nos textos da época, como os agrupados em De santos e sábios. A leitura desses poemas revela um Joyce mais lírico que realista, mais próximo do impressionismo que das associações inconscientes expressionistas. Algo que percorre os treze poemas. Veja-se um dos primeiros: WATCHING THE NEEDLEBOATS AT SAN BABBA I heard their young hearts crying Loveward above the glancing oar And heard the prairie grasses sighing: No more, return no more! O hearts, O sighing grasses, Vainly your loveblown bannerets mourn! No more will the wild wind that passes Return, no more return. (JOYCE, 2015, p. 6)

Está-se diante de uma apreensão sensível, já indicada no título. A referência aos sons ancora o poema na apreensível. E em seguida existe uma reflexão, como que originada nas impressões provocadas por esses sons e imagens implícitas no título. A simples imagem poderia conter o Belo, se a apreensão pudesse ficar restrita à cognição. Joyce quer o reconhecimento. E quer a sensação de satisfação provocada pela opacidade de sua linguagem. Aqui, uma linguagem que se parece ainda ao já-feito; a preocupação com a originalidade é restrita a poucos recursos.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

194

Há um trabalho de acoplamento de palavras, que pode ser entendido como criação de termos novos, mas também como utilização de uma possibilidade que a língua inglesa não estranha. O fato é que, acopladas, as palavras passam a representar a opacidade de que fala Lefebve. O texto é para ser visto. E, ao mesmo tempo, o autor faz uso da aliteração no penúltimo verso, recurso simples, diante da complexidade técnica das obras da maturidade. O uso dos lugares-vazios pode ser percebido logo no título: há a indicação de uma cena, com local e imagem definidos. No entanto, o restante do poema não retoma essas indicações. Elas funcionam como o estabelecimento de um esquema, para usar a terminologia de Iser, da situação. Estabelecido o esquema, não é necessário que o texto o reitere; a economia do poema abordará a percepção sensível para expor as sensações atreladas a ela. A apreensão sensível como etapa de cognição parece evidente na quase totalidade dos poemas: ALONE The moon’s greygolden meshes make All night a veil, The shorelamps in the sleeping lake Laburnum tendrils trail. The sly reeds whisper to the night A name – her name – And all my soul is a delight, A swoon of shame. (JOYCE, 2015, p. 22)

Constata-se um processo de apreensão sensível, aqui, de imagens. A visão poderia indicar, de imediato, que se trata da apreensão do Belo. A atitude epifânica, aqui, já contém o grau de reconhecimento que a cognição pode conter. E Joyce adota processos que tornam sua linguagem opaca. A apreensão da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

195

imagem, sensível, ganha a condição de perenidade da sensação do agradável, através da elaboração da linguagem, matéria da arte, mais que a mímesis. Da imagem, passa-se ao estado de ânimo do eu-lírico, aquela sensação de delícias mas também de vergonha. Os poemas indicam um processo que parte da cognição e chega ao reconhecimento, e que fixa a sensação de agradável pela elaboração, o trabalho do artista, altamente detectável. Não se contentam com aquela sensação de Beleza que se restringe à apreensão, ainda uma intuição de que no objeto pode havê-la. Aqui, é evidente que o epifânico transcendeu a intuição e o puramente sensível e passou pelas três etapas. Há epifania, no sentido comum, quando se atenta para o fortuito das imagens e da cena. No sentido de uma estética joyceana, existem as etapas de apreensão, não menos que três. A novela Giacomo Joyce possui essa condição de texto curto, feito enquanto um romance era elaborado. No caso, foi contemporânea de Ulisses. Trata-se, portanto, de um momento em que o autor pode ser encontrado já maduro. O texto não foi publicado pelo autor; o modo como foi guardado, entre originais, em uma pasta fechada, evidencia a intenção de preservá-la, talvez até para uma publicação póstuma. Afinal, a novela narra a paixão frustrada de Joyce por uma aluna para quem ensinava inglês. O texto evidencia marcas de autoficcionalidade: Gogarty veio ontem para ser apresentado. O Ulysses é o motivo. Símbolo da consciência intelectual... A Irlanda então? E o marido? Andando pelo corredor de chinelinhos ou jogando xadrez sozinho. Por que nos deixam aqui? A cabeleireira aqui se entendia ainda há pouco, apertando minha cabeça entre as bolas ossudas dos joelhos... Símbolo intelectual da minha raça. Ouviu? A escuridão precipitou-se. Escuta! (JOYCE, 2014, p. 151)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

196

E acaba por assumir um aspecto confessional. A indicação do nome do romance em elaboração, com a expectativa de consagração, faz desse eu-narrador o próprio autor. Trata-se, assim, de novela? O texto ainda é ficcional? Joyce preferiu não se submeter a esse julgamento, sobretudo não ao julgamento moral de um adultério virtual. Seu desejo pela aluna não consegue ser refreado: Coleia rumo a mim pelo saguão amarrotado. Não posso me mover nem falar. Chegada coleante de carne nascida nos astros. Adultério de sabedoria. Não. Irei. Vou. – Jim, amor! – Macios lábios chupantes me beijam a axila esquerda: um beijo coleante em miríades de veias. Ardo! Desmonto como folha em chamas! De minha axila direita salta um dente chamejante. Uma serpente estrelada me beijou: fria serpente da noite. Estou perdido! – Nora! – (JOYCE, 2014, p. 151-152)

O escritor narra uma cena de desejo frustrado. E não tem pudor ao usar o nome da própria esposa como a causa dessa frustração. O texto certamente agradava ao escritor em termos de resultados estéticos, tanto que o preservou. No entanto, o julgamento de sua confissão ficou para depois de sua morte. A obra está pronta. Não se trata de um plano abortado. E Joyce escreve um texto diferente daquilo que publicava. Na estrutura, na temática intimista, que foge ao regional ou ao real como reconhecimento de um lugar. O processo aqui é de composição de uma obra fragmentária, feita de trechos curtos, que não podem ser chamados de capítulos. O Joyce sinfônico dos romances e até dos contos publicados adota a indeterminação para falar de si. O texto compõe-se de lugares-vazios, evidenciados nas frases curtas e nos trechos soltos, que muitas vezes dão a impressão de não terminado. Só que Joyce está recorrendo a esses ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

197

esquemas compartilhados entre o mundo do texto e o mundo do leitor porque sabe que tais espaços serão preenchidos na recepção. Afinal, trata-se de uma história de amor banal entre um homem casado e uma moça, que acaba não ultrapassando os limites do desejo. O leitor sabe que tipo de informação preencheria esses lugares-vazios, dentro de um repertório vasto de histórias de amor. Mais que isso, Joyce espera de seu leitor a compreensão sobre quem ele seja e sobre detalhes da sua biografia, o que confirma o leitor implícito iseriano. Há uma intenção de controlar a recepção, e de ansiar por um leitor com repertório. O trecho abaixo é exemplar dessa condição: Juventude tem seu fim: o fim está aqui. Jamais será. Você sabe muito bem. E aí? Escreva a respeito, diabo, escreva! O que mais você sabe fazer? “Por quê?” “Porque senão eu não vou poder te ver.” Um deslizar – espaço – eras – folhagem de estrelas – e um paraíso minguante – imobilidade – e mais profunda a imobilidade – imobilidade da aniquilação – e a voz dela. (JOYCE, 2014, p. 153)

O trecho é um exemplo notável dessa condição de confissão que almeja um leitor preparado por outras leituras do autor. Como diz Carpeaux (2012, p. 164-165): “O sexo seria a ‘idée fixe’ do aluno foragido dos jesuítas de Dublin, que conseguiu transformar as doutrinas da psicanálise em sonho fantástico.” Por isso, o leitor implícito ansiado por Joyce é aquele que sabe disso. E que reconheça na confissão de só saber escrever a única possibilidade de ainda “ver” a paixão fracassada. O uso de espaços e a alternância de adentramento de parágrafos evidenciam, de novo, um autor preocupado com a linguagem opaca que desnude o trabalho do artista. O parágrafo feito de expressões soltas indica o uso consciente das indeterminações, de lugares-vazios, mesmo ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

198

que na forma de ideias, para o leitor preencher. Os travessões servem para indicar a condição dessas expressões como afastadas, separadas, precisando que os esquemas do leitor preencham tais espaços. Joyce se aproxima do ideal iseriano da indeterminação como possibilidade de inserção do leitor no texto e de construção do prazer estético. Na visão de Iser, o escritor faria um uso estético dessas informações escondidas, e que possibilitaria o prazer, a satisfação estética. Na estética joyceana, trata-se da elaboração da Beleza através da intencionalidade de criar uma obra elaborada. Essa intenção estética faz da apreensão a destinação da obra. Para tanto, é preciso que o autor faça previsões de como essa apreensão, ou recepção, ocorre. Ou seja, a estética joycena evidencia o leitor implícito iseriano. Considerações finais Os problemas gerados pela publicação de obras de caráter diverso de James Joyce não se esgotam nessa tentativa de indicar algumas características da estética do autor. Essas características não esgotam todas as formulações estéticas do autor. As suas descobertas sobre as possiblidades de elaboração e de recepção do texto literário são muito complexas. Portanto, a limitação a duas obras, dentre as publicadas recentemente, se justifica. Trata-se de exemplificar algo dentro da estética que o autor procurou elaborar, e que passou por etapas diversas. O escritor, em Giacomo Joyce, evidencia uma maturidade e uma originalidade que não podem ser constatadas em Pomes penyeach, texto da juventude. No entanto, é nessa juventude que Joyce procura, de um modo bem sistematizado, criar uma estética pessoal. A sua formação católica o leva a retomar Aristóteles e Tomás de Aquino, como autores preocupados com uma formulação da Beleza que também abarque a Verdade e o Bem. Percebe-se que a estética joyceana faz das três partes da apreensão da obra literária um ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

199

requisito para que se reconheça a mesma como fonte de satisfação, ou prazer estético. A obra literária precisa, sim, ser percebida como elaboração de sua matéria constitutiva, a linguagem, mais do que como cópia do real. Nisso reside a satisfação estética. Iser diria o efeito estético, como resultante da apreensão da obra. Se, nas obras iniciais, uma utilização de processos epifânicos, a serem avaliados pelas três atividades de apreensão, parece uma preocupação recorrente, na maturidade o escritor faz uso elevado de recursos que evidenciam seu trabalho sobre a linguagem e sobre as possibilidades de recepção da obra, como o uso de indeterminações e lugares-vazios. Ele quer a permanência da satisfação quando da recepção.

Referências bibliográficas CARPEAUX, O. M. O modernismo por Carpeaux (História da literatura ocidental Vol. 9). São Paulo: Leya, 2012. INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3ª ed., Trad. de Albin E. Beau, Maria da Conceição Puga e João F. Barrento. Lisboa/ Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965. ISER,) W. O) ato) da) leitura:) uma) teoria) do) efeito) estético. Volume 1. Tradução) de) Johannes) Kretschmer.) São) Paulo:) Ed.) 34,) 1996. ______. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Volume 2. Trad. de Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999. JOYCE, J. De santos e sábios. Tradução de André Cechinel et al. São Paulo: Iluminuras, 2012.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

200

______. “Giácomo Joyce.” In: Finn’s Hotel. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ______. Pomas doiscontoscada (Pomes penyeach). Tradução de Eclair Antônio Almeida Filho e Josina Nunes Magalhães Rocinsvalle. São Paulo: Lumme Editor, 2015. LEFEBVE, M.-J. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Tradução de José Carlos Seabra Pereira. Coimbra (Portugal): Livraria Almedina, 1980. TAUZIN, F. S. Bergson e São Tomaz: o conflito entre a intuição e a inteligência. Rio de Janeiro: Desclée, de Brouwer & Cia, 1943.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

201

INTERFACES DA ESCRITA FICCIONAL DE HILDA HILST Autora: Eliza Pratavieira (Uniandrade) Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (Uniandrade) RESUMO: Este ensaio se configura a partir de questões que envolvem o trabalho ficcional de Hilda Hilst. A primeira questão está relacionada aos aspectos compositivos, onde abordo o cânone como matéria da produção ficcional e aponto as relações que a escrita de Hilst estabelece com a tradição moderna. Para tanto, destaco os pontos de contato entre a escrita hilstiana e a produção de James Joyce e Samuel Beckett, a partir de procedimentos: O fluxo de consciência, o uso do tempo, a carga paródica, a transformação na figura do herói aproxima Hilst de James Joyce, enquanto a presença constante do nonsense, a impossibilidade de narrar e a estrutura dialógica da narrativa, aproxima Hilst de Samuel Beckett. Em seguida, trabalho o uso paródico de elementos simbólicos e místicos no universo ficcional da autora. Para tanto, apresento uma leitura das narrativas “O unicórnio” e “Lázaro”, a partir da apropriação e deslocamento semântico dos mitos. PALAVRAS-CHAVE: Composição. Tradição irlandesa. Metatextualidade. Paródia.

Introdução O estilo ficcional de Hilda Hilst é marcado por intensidade, liberdade e exuberância – características que lhe conferem o estatuto de escritora hermética durante grande parte de sua trajetória. Esse estatuto afasta a sua escrita das escolas literárias dominantes na cena brasileira da segunda metade do século XX. As peculiaridades de estilo, os temas polêmicos, o afastamento dos grandes centros culturais do país e a quase inexistência de um mercado editorial sedimentado no Brasil dos anos 70, dificultam a ampla distribuição de seu trabalho e, consequentemente, o acesso do público. A literatura de Hilst permanece pouco conhecida (apesar do reconhecimento crítico),

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

202

até o início dos anos 2000, quando a Editora Globo dá início ao processo de publicação (e distribuição) das obras completas. Hoje, onze anos após a morte da autora, o trabalho é acessado, citado, analisado, exposto, decomposto, referenciado, traduzido, transposto, transcriado – situações que indicam um forte reposicionamento de sua escrita no cânone brasileiro nesse início de século. Nos textos de ficção, temos sinais de diversas naturezas que indicam que a substância da criação de Hilst é o próprio ato de escrever literatura, e os desdobramentos desse ato. Temos registro, em toda a produção ficcional, de personagens-escritores, sempre em conflito com o sistema produtivo. Nos textos ficcionais, há passagens que abordam as relações íntimas do autor com a sua pesquisa, bem como os entraves do mercado editorial, as diversas rusgas com a crítica e a ausência de diálogo com o público. Isso está marcado no texto em alguns momentos de modo direto e literal, e em outros de modo metafórico ou formal. Alcir Pécora diz, em entrevista ao Itaú Cultural1, que as principais metáforas de Hilst (Deus, Amor e Morte) tem suas bases calcadas no próprio processo da criação literária. Em suas experiências formais, Hilst constrói possíveis ressignificações do que é a literatura. Trata-se de uma escrita que, através de sua composição, procura pensar a literatura, embaçando os limites entre produção poética e crítica. Blanchot trabalha com uma questão que parece central na produção ficcional da autora: Certamente continuam a publicar-se, em todos os países e todas as línguas, livros dos quais alguns são considerados obras de crítica ou reflexão, enquanto outros recebem o título de romance e outros se dizem poemas. É provável que tais designações perdurem, assim como ainda haverá livros muito tempo depois de que o conceito de livro estiver esgotado. Não obstante, é preciso, de início, fazer a seguinte observação: desde Mallarmé (para reduzir este último a um nome e este nome a ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

203

uma referência), o que tendeu a tornar estéreis essas distinções é que, através delas e mais importante do que elas, veio a luz a experiência de alguma coisa que continuamos a denominar “literatura”, mas com uma seriedade renovada e, ainda por cima, entre aspas. Ensaios, romances, poemas, davam a impressão de estar ali, de terem sido escritos simplesmente para permitir que o trabalho da literatura (então considerada uma potência singular ou uma posição de soberania) se realizasse e, por intermédio desse trabalho fosse formulada a questão: “O que é literatura?” Questão extremamente premente, aliás, historicamente premente [...], mas que escamoteava e ainda escamoteia uma tradição secular de esteticismo. (BLANCHOT, 2001, p. 7)

Assim podemos compreender que o trabalho de Hilst acontece num território de diluição de fronteiras: trata-se de uma experiência estética no campo ficcional, que se propõe, através de seus procedimentos e do uso de suas referências, questionar conceitos sobre o que é a literatura, tarefa tradicionalmente vinculada a crítica. Trata-se de uma tendência da modernidade, como aponta Hutcheon (1985, p. 11): “As formas de arte tem mostrado cada vez mais que desconfiam da crítica exterior, ao ponto de procurarem incorporar o comentário crítico dentro de suas próprias estruturas, numa espécie de autolegitimação que curto-circuita o dialogo crítico normal”. Na escrita ficcional de Hilst, os contatos com a crítica não se limitam às referências ligadas ao próprio processo de criação, mas atinge os temas, as figuras e as formas compositivas de que a autora lança mão para compor seu trabalho. Suas experiências promovem diálogos profundos com a tradição literária, e isso é feito a partir de diversos níveis de relação entre textos: citações, hibridismos, apropriações, paródias, pastiches, entre outras. Trata-se, de uma composição por fragmentos, estrutura que em outros trabalhos, chamei de caleidoscópica – ou uma escrita

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

204

constituída a partir de uma ampla reciclagem cultural, que se origina de pesquisas que abarcam diversas referências da tradição literária ocidental. Diálogos com a tradição irlandesa moderna Neste trabalho destacaremos as relações que Hilst estabelece com a tradição irlandesa moderna, a partir do diálogo com James Joyce e Samuel Beckett. De Joyce, Hilst se aproxima a partir da experiência com o fluxo de consciência, o uso não linear do tempo, a apropriação paródica de diversas fontes, enquanto de Samuel Beckett, a autora se aproxima a partir da presença constante do nonsense, do narrar impossível e da estrutura dialógica/ aproximação com o drama. Um dos procedimentos mais importantes na composição de Ulisses (1922), é a radicalização do fluxo de consciência, técnica em que o autor aproxima o leitor dos pensamentos do personagem narrador. Em Ulisses, temos a descrição das impressões de um homem comum, em um determinado tempo/espaço. A radicalização do fluxo de consciência em James Joyce apresenta uma experiência de tradução da percepção/pensamento/memória em linguagem escrita: Para o leitor, é como usar fones de ouvido plugados diretamente ao cérebro de outra pessoa e monitorar essa gravação interminável de impressões, reflexões, questionamentos, memórias e fantasias do sujeito à medida que sensações físicas ou associações de ideias os motivam. (LODGE, 2011, p. 56)

A radicalização do fluxo de consciência traz a narrativa uma estrutura fragmentária. Assim, tempo, referências e acontecimentos não podem mais ser expressos de um modo linear. O uso radical do fluxo de consciência implica na constituição de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

205

outros modos de compor a narrativa, como aponta Tânia Pellegrini em seu ensaio sobre o Realismo: O monólogo interior e/ou fluxo da consciência, a estilização, a abstração, a fragmentação, a colagem, a montagem, aquisições estilísticas desse momento (modernidade)2, são quase o ponto final do percurso empreendido pela mimesis, e correspondem a um conceito de realidade totalmente modificado, que inclui, como concretas, reais e representáveis, as profundas tensões e ambivalências da consciência humana. (PELLEGRINI, 2007, p.146)

James Joyce e Hilda Hilst se afastam do épico heroico e buscam na narrativa, meios de expressar a experiência psicológica do sujeito. Temos, na produção dos dois escritores, a apropriação paródica de referências da tradição e a reapresentação destas referências a partir de um outro ponto de vista: Joyce não escreveu todo o Ulisses como um fluxo de consciência. Após levar o realismo psicológico ao limite, passou a adotar, nos capítulos mais avançados do romance, vários tipos de estilização, pastiche, paródia. Ulisses é um épico psicológico, mas também linguístico. (LODGE, 2011 p. 59)

O diálogo com Samuel Beckett se dá a partir de outros meios. Hilst usa um fragmento de Molloy como epígrafe de Fluxo Floema. Assim a autora anuncia o seu ponto de partida, já que Fluxo Floema é a sua primeira experiência no campo ficcional. É importante marcar que o livro foi publicado em 1970, logo após a breve e intensa experiência da autora no campo da dramaturgia, que aconteceu nos anos de 1968 e 1969. Embora a escrita para teatro não seja retomada, um forte traço dramatúrgico marca presença em toda a produção ficcional da autora. Não por acaso, é que a escrita ficcional de Hilda Hilst é levada aos palcos e com mais

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

206

frequência do que a própria escrita de teatro. Samuel Beckett também dilui as fronteiras entre ficção, teatro e outras artes em seus escritos. Nos textos de Beckett e Hilst, a experiência de aproximação entre escrita e teatro, ganham forma a partir do diálogo, elemento fortemente utilizado pelos dois escritores. Além da estrutura dialógica, há outros pontos de contato: a ideia de esgotamento da forma narrativa se faz presente nas duas escrituras – isso é marcado no texto pelo narrar impossível, resultante da ideia de esgotamento dos modelos narrativos tradicionais, que são de modo geral, calcados no realismo – a negação do realismo acontece aqui pela presença do absurdo. Ambos apontam a insuficiência da linguagem, ou a impossibilidade de expressão daquilo que se percebe a partir da escrita, e trabalham a partir de um estilo conciso e subversivo. Apropriações, rebaixamentos, inversões: Metatextualidade e paródia em Hilda Hilst Destacaremos aqui, o caráter metatextual da escrita de Hilst bem como as relações que ela estabelece, a partir de sua escrita com a tradição literária e cultural do ocidente. Gérard Genette, em Introduction à l’architexte (1979), cria uma sistematização para as diversas formas de relação entre textos, que vão da intertextualidade à metatextualidade. Na introdução de Palimpsestos, o autor retoma essa tipologia, apresentando duas definições para cada relação. A metatextualidade é definida da seguinte maneira: [...] metatextualidade, é a relação, chamada mais correntemente de “comentário”, que une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente cita-lo, (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo […]. É por excelência, a relação crítica. Naturalmente estudou-se muito (meta-metatexto)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

207

certos metatextos críticos, e a história da crítica como gênero, mas não estou certo de que se tenha considerado com toda a atenção que merece o fato em si e o estatuto da relação metatextual. Isso deveria acontecer. (GENETTE, 2006, p. 11)

Linda Hutcheon na introdução de Uma teoria da paródia, chama a atenção para a presençada metatextualidade em diversos discursos da modernidade/contemporaneidade. Da publicidade à arte, da arte à filosofia, atingindo até mesmo os discursos científicos, de modo que a autorreferencialidade parece ser, uma característica do pensamento/expressão do nosso tempo: O mundo moderno parece fascinado pela capacidade que os nossos sistemas humanos têm para se referir a si mesmos num processo incessante de reflexividade. […] Até o conhecimento científico parece hoje em dia caracterizar-se pela inevitável presença no seu interior de alguma forma de discurso sobre os próprios princípios que os validam. A omnipresença deste nível metadiscursivo levou alguns observadores a postular um conceito geral de execução que serviria para explicar o carácter auto-reflexivo de todas as formas culturais [...]. (HUTCHEON, 1985, p. 12)

Neste contexto, a paródia se estabelece como recurso importante para criação diálogos com a tradição, que neste contexto funciona como retorno, valorização ou questionamento das próprias origens. Genette nos dá uma definição do que pode ser a paródia, enquanto Hutcheon observa os meios em que ela se manifesta na produção moderna/contemporânea: A palavra paródia é correntemente o lugar de uma grande confusão, porque usamos para designar ora a deformação lúdica, ora a transposição burlesca de um texto, ora a imitação satírica de um estilo. A principal razão desta confusão está evidentemente na convergência funcional dessas três fórmulas,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

208

que produzem em todos os casos, um efeito cômico, geralmente às custas do texto ou do estilo “parodiado”. (GENETTE, 2006, p. 19) Desde Pound e Elliot até os artistas da performance contemporâneos e aos arquitectos pós-modernos, a intertextualidade e a autorepresentação foram dominando a atenção crítica. Com esse centro de interesse, surgiu uma estética do processo, da actividade dinâmica da percepção, interpretação e produção de obras de arte […]. Muitas épocas compeliram o título de “Idade de Paródia”. Por certo que o entusiasmo demonstrado no século XIX por uma paródia específica e ocasional aos poemas e novelas do romantismo tardio forneceu uma fonte de opinião contemporânea sobre um movimento literário importante (Priestman, 1980). A mescla de elogio e censura faz de tal paródia um ato crítico de reavaliação e acomodação. (HUTCHEON, 1985, p. 12)

A metatextualidade e a paródia são recursos fortemente utilizados na ficção de Hilda Hilst. Essas relações serão evidenciadas a partir da leitura crítica de dois textos que compõe a primeira publicação ficcional da autora, Fluxo-Floema. Utilizaremos para essa leitura, “Lázaro” e “O unicórnio” – escritos paródicos que se apropriam de símbolos místicos/religiosos da cultura ocidental e o transformam de modo ambivalente: ao mesmo tempo em que rebaixam e invertem o sentido positivo do símbolo, reiteram a sua potência. O desejo e a busca pelo místico, nas figuras que compõe as narrativas em questão, são ao mesmo tempo território de existência e ruína destes personagens. Morte, Ressurreição e Delírio em “Lázaro” Em “Lázaro”, Hilst dá voz ao personagem que retorna da morte e que narra essa experiência em primeira pessoa, através do fluxo de consciência, em uma perspectiva psicológica. Lázaro é organizado a partir de três momentos que chamarei de Morte, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

209

Ressurreição e Delírio. A narrativa acontece por meio do fluxo de consciência e dos diálogos que Lázaro estabelece com seus interlocutores. A variação de tempo é expressa a partir do deslocamento – quando se altera o espaço, o tempo também se altera, porém, as marcas textuais estão sempre ligadas ao presente. A narrativa existe no gerúndio: tudo está sempre acontecendo. Em Morte, o personagem encontra-se e em diálogo com Rouah, criatura grotesca, que se apresenta como um duplo do Cristo. Lázaro tem consciência de que está morto, observa e descreve todo o ritual do sepultamento, e quando se vê na cripta, separado do mundo conhecido, sente o abandono de Deus e se enche de medo: […] Algumas vozes dentro de mim tentam confundir-me: mas tu eras amigo de Jesus, Aquele Homem Jesus, Aquele homem Eu Mesmo, Aquele Homem o Outro, Aquele Homem Rouah. Parado. Pousado. E ao redor dele um espaço indescritível. Chegamos. Tenho mêdo. Um pequeno Vestíbulo. Depois a rocha. Dentro da rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última vez a claridade da minha aldeia. Queria tanto ficar neste chão inundado de sol, queria até... ser um animal se não fosse possível ser eu mesmo, queria me agarrar à túnica das mulheres feito uma criancinha, olho para o sul, para o norte, para todos os lados, ah, Bendito, tudo em mim não quer morrer! Agora sei que estou prêso a esse todo que sou, aspiro, duas, três golfadas distendem o meu peito, seguro os ombros de Marta e grito: Marta, Marta, ainda não estou pronto para ficar na treva, ainda tenho tanto amor, ainda tenho mãos para trabalhar a terra, toca-me, vê como essa carne é viva, olha-me Marta, eu que sou tão você, olha-me eu que amo a tua força, os teus pés colados a terra, a tua lucidez. É inútil. O meu corpo for depositado no seu lugar. Estou acima dêle, a uma pequena distância. Pairo sobre ele. Os meus amigos recuam. Olhamme em silêncio. Inútil tentar qualquer gesto. Não me vêem. Grito três vezes: Marta! Marta! Marta! Não me ouve. Rolam a ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

210

pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. (HILST, 1970, p. 92)

Rouah funciona como agente desestabilizador desta primeira parte da narrativa. Tem a intenção de iniciar Lázaro na experiência da morte. Rouah ri dos medos e das orações de Lázaro e planta a decomposição em seu corpo: “Então ouve: tudo o que Rouah cria do invisível, é filho de Rouah. No teu ventre ele colocou o primogênito. Depois teu peito é que servirá de alimento para o segundo. E tua cabeça será leito e leite para o terceiro” (HILST, 1970, p. 94). Lázaro, inconformado com a morte, resiste a Rouah até o momento da ressurreição. […] Tu estás preparado Lázaro? É teu este corpo? Há alguns anos que lutas com ele, não é? Apressa-te. Chegou a hora. E de repente vejo Rouah: tôsco, os olhos acesos, o andar vacilante, as pernas curtas, parecia cego, apesar dos olhos acesos, as mãos compridas, afiadas, glabras, eram absurdas aquelas mãos naquele corpo, todo ele era absurdo, inexistente, nauseante. Rouah me vê. Agarro-me na pedra. Estou num canto. De costas, Rouah estende as mãos e acaricia minhas nádegas. Sai, maldito, sai. Rouah senta-se. Abre as pernas. Seu sexo é peludo e volumoso. Coça-se, estrebucha, sem que eu saiba o por quê. Abre a boca amarela e diz com voz tranqüila: Lázaro, acostuma-te comigo, já sabes meu nome, e eu também sei o teu, como vês. Um enorme silêncio. Um silêncio feito do escuro das vísceras. Um silêncio de dentro do olho. Resolvo caminhar colado a pedra, afastar-me. (HILST, 1970, p. 93)

A relação com Rouah se interrompe no momento da Ressurreição. Quando Lázaro volta, a narrativa entra em um segundo momento. O diálogo com Rouah é substituído por outras vozes que podem ser sintetizados na figura do “outro”. Essa figura do “outro” está ligada as relações estabelecidas na vida cotidiana/ prosaica – essa figura carrega, em suas intervenções, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

211

sentimentos como o ciúme, a inveja, o complexo de inferioridade. Os diálogos da segunda parte da narrativa tratam de reconstruir a partir de fragmentos a experiência de Lázaro e a sua relação com o Cristo – além de revelar todo o espanto, maldade e violência com que sua experiência foi recebida pelos “outros”. Lázaro tem uma ótima aparência, achas meu Senhor? Êle não responde, apenas olha-me e sorri. Há uma certa impaciência no rosto de alguns. Estão mudos, mas parecem dizer: porque Êsse homem não fala? Por que fica misterioso de repente e apenas olha Lázaro? Não somos todos seus amigos? Será que é preciso morrer para que eu nos ressuscite, e depois nos ame? Êle será realmente aquilo que desejamos? Sim, êles pensam assim como estou lhes dizendo. (HILST, 1970, p. 101)

Nesta segunda parte do texto, Lázaro também se coloca a narrar a perseguição/morte de Cristo. Vê e descreve o olhar e as atitudes de Judas, vive e procura narrar a experiência do Cristo, e sente de que a continuação de sua própria existência é um dos motivos desta perseguição. Por fim, no Delírio, que podemos considerar a terceira parte da narrativa, Lázaro vive uma espécie de viagem temporal. O personagem tem acesso ao grupo de monges, que vivem em um tempo diverso. Tratam-se dos últimos monges da Terra, perseguidos por acreditarem ainda no Cristo. Esses monges negam as crenças para não serem mortos. Estão isolados e vivem o fim de uma luta perdida. O fluxo de consciência, o uso do tempo, a carga paródica, a transformação na figura do herói aproxima sua escrita a experiência de James Joyce, enquanto a presença constante do nonsense, a impossibilidade de narrar e a estrutura dialógica da narrativa, aproxima a sua escrita a experiência de Samuel Beckett.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

212

A Lázaro é concedida a experiência de conhecer um outro fim, ou a morte da fé. Neste outro fim, a tão esperada salvação não acontece. Acorda de volta a seu tempo, vê a irmã Marta, e termina a narrativa aterrado pela sua visão. Hilst inverte a fé inerente dos personagens do texto-fonte, através da exposição dos medos, das angústias, e dos conflitos internos e humanos de seus personagens. Lázaro não consegue dar vazão a experiência mística num mundo de desamor, descrença, incompreensão e violência – e no fim, é esvaziada qualquer possibilidade de salvação. A experiência do Lázaro de Hilst é em vão. Se na narrativa bíblica A salvação de Lázaro a substância são questões como o amor, a fé e a vida eterna, o “Lázaro” de Hilst funciona como pretexto para o esvaziamento do sentido positivo do texto fonte, já que acontece a partir da inversão do símbolo místico. Pessoa, Escritora, Criança e Unicórnio em “O unicórnio” Em “O unicórnio”, o texto se estrutura a partir da proliferação de vozes narrativas que chamaremos de Pessoa, Escritora, Criança e Unicórnio. Essas vozes se revezam no desenrolar do texto e conjuntamente nos dão a dimensão complexa da experiência de Hilst. Assim como em “Lázaro”, cada voz se desenvolve a partir do fluxo de consciência e do diálogo com uma série de interlocutores. Quando a Pessoa se coloca, temos a expressão de uma série de conflitos relacionais vividos por esta voz. Ela está em diálogo com dois amigos – uma irmã e um irmão gêmeos e homossexuais, que vivem, durante certo tempo, junto com essa narradora e seu companheiro, numa chácara. No decorrer dos diálogos uma série de conflitos relacionais se revelam, a pessoa é traída pelos irmãos, (e esse elemento tem peso em sua transformação em unicórnio). A transformação afasta seu companheiro. Pessoa perde seu território de sobrevivência, seus interlocutores e sua forma humana. A transmutação física altera forma e tom da narrativa. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

213

No início, a Pessoa divide o espaço da página com a Escritora. Esta voz executa rasgos metalinguísticos na “história” que é contada pela Pessoa. O papel da Escritora é revelar questões ligadas ao processo de composição da escrita. Essa voz evidencia o fracasso no ato de narrar, dialoga com a tradição literária através da apropriação e do rebaixamento de referências, faz a reflexão crítica do ato de escrever, enquanto este ainda está acontecendo. É uma voz irônica e crítica – executa algo semelhante as quebras de ilusão do teatro brechtiano. A voz da Criança marca um momento de regressão temporal, onde são mostrados os primeiros anos da infância, a experiência com o pai-louco, os anos no internato, os primeiros contatos com o universo místico e a descoberta da sexualidade e do corpo erótico. Quando a experiência de regressão termina, Unicórnio passa a ser a voz narrativa dominante, que se ocupa em narrar a metamorfose, a banalização da experiência mística, e as consequências de sua transformação: abandono, incomunicabilidade e morte. Neste texto, Hilst recupera a imagem ancestral do animal místico, presente no imaginário humano desde de a pré-história. Na caverna de Lascaux temos O Painel do Unicórnio composto pelas imagens de cavalos e bois. Entre eles, temos uma grande e enigmática figura de um quadrúpede com um longo traço retilíneo dos possíveis sentidos está ligado a fertilidade e a afirmação da vida. No Dicionário de Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant, temos diversos sentidos para o unicórnio, e um deles está associado à cultura cristã, mais especificamente ao episódio da concepção de Cristo, citado diretamente no desenrolar da narrativa de Hilst: El unicornio, con su cuerno único en medio de la frente, simboliza también la flecha espiritual, el rayo solar, la espada de Dios, la revelación divina, la penetración de lo divino en la criatura. Representa en la iconografía cristiana la Virgen

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

214

fecundada por el Espíritu Santo. Este cuerno único puede simbolizar una etapa en la vía de la diferenciación: de la creación biológica (sexualidad) al desarro1o psíquico (unidad ase-xual) y a la sublimación sexual. Este cuerno único se ha comparado a una verga frontal, a un falo psíquico (VIRI, 202); es el símbolo de la fecundación espiritual. También es al mismo tiempo el símbolo de la virginidad física. Los alquimistas ven en el unicornio una imagen del hermafrodita; parece un contrasentido: en lugar de reunir la doble sexualidad, el unicornio la transciende. Se convirtió en la edad media en símbolo de la encamación del Verbo de Dios en el seno de la virgen Maria. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p. 1038)

Trata-se de um símbolo ambivalente, que tem relações com elementos como a pureza e a bondade, assim como possui sentidos ligados a profanação, a sensualidade, a iniciação sexual, e o êxtase: […] Na aula de religião: irmã, o que quer dizer virgem no parto, antes do parto e depois do parto? O que é virgem? O que é parto? O que é antes e depois de tudo isso? Isso é para decorar, decore e pronto. Sou disciplinada, magrinha, uso tranças, tenho muita vontade de ver Jesus no Sacrário. Termino a tarefa antes de todo mundo e peço licença para rezar na capela. Fixo os olhos no sacrário. Os olhos doem. Quero ser santa, quero morrer por amor a Jesus, quero que me castigem se eu fizer coisas erradas, quero conseguir a salvação da minha alma […]. (HILST, 1970, p. 152)

Com correspondência a experiências como a de Teresa d’Avila – a Criança evoca a ambivalência de sua experiência mística. O corpo tem presença fundamental na escrita de Hilst. O corpo é múltiplo: sagrado, obsceno, erótico, performativo. O corpo parece ser um território de passagem, e em “O unicórnio”, os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

215

elementos de distanciamento entre as vozes narrativas e “os outros” é exatamente a transfiguração corpórea. A hora da visita acabou, dou as balas para Josete, Josete é grande, sabe jogar bola ao cêsto, está no terceiro ginásio, acho que ela é a menina mais bonita do colégio. As outras dizem que ela tem os pés muito grandes, mas eu acho que ela é toda linda. À noite tenho um sonho: eu e Josete de mãos dadas no meio da floresta. De repente ela me abraça e o meu corpinho estremece de prazer, é mais ou menos assim quando mamãe me abraça, mas ainda mais gostoso. Depois fico sozinha olho ao redor, e vejo que estou dentro de uma caixa de vidro. Encolhome num canto e nos meus braços começam a crescer pêlos escuros. Sou uma aranha […]. Agora estou muito compenetrada e ao mesmo tempo tenho mêdo: Jesus vai encontrar tudo em ordem dentro de mim? (HILST, 1970, p. 154)

A ideia de metamorfose pode ser tratada como mais uma referência cultural. A transformação da personagem nos leva as Metamorfoses de Ovídio, poema narrativo latino. O poema de Ovídio narra a transfiguração de deuses e homens em todo tipo de coisa: animal, vegetal e mineral. As Metamorfoses são uma das fontes que nos dá acesso a boa parte da mitologia greco-romana. Inclusive a “massa informe e sem lucidez”, expressão utilizada para se referir a Deus no desfecho de “Lázaro”, é uma citação direta de Ovídio em seu poema sobre Caos – deus da confusão de elementos, que dão origem ao universo. Na modernidade, temos a Metamorfose de Kafka, onde Hilst parece resgatar elementos para a composição de sua narrativa. Assim como Gregor Samsa transformado em barata, o Unicórnio de Hilst é percebido pelo outro de modo repugnante após a sua transformação, e tem um fim semelhante ao herói kafkiano: incomunicabilidade, abandono e morte.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

216

Assim como em “Lázaro”, os símbolos positivos da cultura humana caem em profanação. A criatura mística que na tradição simboliza a pureza é compreendida pelo mundo como seu inverso. A transformação mística é tratada como doença: Paro de falar, comprimo o peito com os braços feridos e logo tenho um sobressalto porque ouço um ruído sinistro […] uma voz límpida dizendo com doçura: a sarna de coelho é uma afecção da pele, produzida por parasitas acarianos da família sarcóptide. É enfermidade contagiosa e os coelhos que apresentarem a sarna em estado muito adiantado devem ser sacrificados. (HILST, 1970, p. 140)

A dimensão mística da experiência da metamorfose não é reconhecida pelo mundo, que não demora em isolar a criatura. A transformação é compreendida como sintoma de doenças como a lepra e a sarna (referências igualmente místicas, símbolos do castigo divino). No olhar “dos outros” a transfiguração é sinal de sujeira, contaminação, castigo. A metamorfose tira do personagem todo o aspecto de humanidade. Ele não pode ser comunicar, vive isolado e exposto. A animalização só não atinge a consciência – onde a criatura é abundantemente humana. Nesse aspecto o personagem está muito próximo a Gregor Samsa. Assim como em “Lázaro”, a narrativa é toda estruturada a partir do fluxo de consciência e do diálogo com os interlocutores de cada momento. Os sentidos positivos dos símbolos apropriados são invertidos por meio da paródia e do rebaixamento. Em “O unicórnio”, temos também a experiência da autoficção, que será repetida diversas vezes na produção posterior de Hilda Hilst. “O unicórnio” é semente dos personagens mais marcantes da escritora. A voz da Criança se aproxima de Lori Lamby, protagonista do Caderno Rosa.... A voz da Pessoa e do Unicórnio se aproximam de Hillé, a Senhora D.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

217

Nas primeiras narrativas de sua produção ficcional, que foram publicadas vinte anos após o início da carreira literária, direcionam a produção dos próximos trinta anos de trabalho de Hilda Hilst. A leitura crítica das primeiras ficções é fundamental para a compreensão de seu projeto literário. Considerações finais Neste ensaio procuramos evidenciar interfaces da escrita ficcional de Hilda Hilst a partir dos diálogos que a escritora estabelece do campo formal, compositivo e temático com diversas referências da cultura ocidental. Na Forma/Composição, Hilst se apropria de procedimentos utilizados pela tradição moderna irlandesa: O fluxo de consciência, o uso do tempo, a carga paródica, a transformação na figura do herói aproxima sua escrita a experiência de James Joyce, enquanto a presença constante do nonsense, a impossibilidade de narrar e a estrutura dialógica da narrativa, aproxima a sua escrita a experiência de Samuel Beckett. Durante a leitura das narrativas, vimos que a composição caleidoscópica de Hilst envolve apropriações de fontes de diversos tempos/espaços. Em “Lázaro” e “O unicórnio” temos a apropriação paródica de dois símbolos da cultura religiosa/mística ocidental. Nestes textos temos ainda as referências à tradição clássica com as Metamorfoses de Ovídio e a referência a Franz Kafka, no enredo de “O unicórnio”. A Paródia parece ser, na escrita ficcional de Hilst, um dos principais procedimentos compositivos. A partir da união de fragmentos e da afirmação/inversão de sentidos dos textos-fontes, a escritora pensa o papel da literatura na modernidade, bem como a sua forma de produção e circulação. A escrita de Hilda Hilst se constitui num território de diluição das fronteiras: está entre a criação e a crítica, entre a ficção e a teoria. Parece questionar, a partir da literatura, as fronteiras entre arte e pensamento, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

218

afirmando assim o campo da criação como um território legítimo de exercício do pensamento. Notas Entrevista de Alcir Pécora, concedida ao Itaú Cultural, por conta da exposição dos arquivos da autora, Ocupação Hilda Hilst, que aconteceu em março/abril na sede do Itaú Cultural em São Paulo. Esta entrevista, e outras podem ser acessadas via youtube.com. 2 O parêntese é meu. 1

Referências BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los Simbolos. Barcelona: Herder S.A, 1986. GENETTE, Gerard. Palimpsestos. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006. HILST, Hilda. Fluxo. Floema. São Paulo: Perspectiva, 1970. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985. LODGE, David. A arte de ficção. Porto Alegre: L&PM, 2011. PELLEGRINI, Tânia. Realismo: Postura e método. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, dezembro 2007.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

219

PREÂMBULO A UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM NO CONTO “ARÁBIA”, DE JAMES JOYCE Autora: Elizane de Oliveira Santos (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

RESUMO: A construção do personagem Stephen Dedalus, iniciada nos manuscritos do romance autobiográfico Stephen herói, precede de muito a publicação de Retrato do artista quando jovem (1914) e Ulisses (1922). Da mesma forma, observa-se nos personagens dos contos da infância de Dublinenses, particularmente em “Arábia”, a sugestão do perfil psicológico e emocional do herói joyciano, desenvolvido nas obras subsequentes. Este trabalho se propõe a analisar em “Arábia”, por meio do contraste entre imagens de luz e sombra, indícios desse perfil na relação do personagem com o ambiente físico e social da comunidade em que vive. A análise da técnica narrativa em primeira pessoa, feita a partir da consciência do protagonista, o menino anônimo, revela: o despertar do amor e da sexualidade; a defesa da individualidade; a revolta contra a indiferença da família e, finalmente, a epifania reveladora que o faz consciente de sua insignificância. PALAVRAS-CHAVE: O herói joyciano. Dublinenses. Retrato do artista quando jovem.

Introdução Dublinenses, a primeira obra em prosa publicada por Joyce, em 1914, é uma coletânea de quinze contos ambientados na cidade de Dublin. Escritos a partir de 1904, os contos enfocam diversos aspectos da vida da cidade e de seus habitantes, que poderiam representar o coração de qualquer cidade do mundo, segundo afirmativa do próprio autor. Observa-se nas personagens das três primeiras narrativas, que retratam a infância, particularmente no menino anônimo de “Arábia”, a sugestão do perfil psicológico e emocional ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

220

do herói joyciano, Stephen Dedalus, cuja construção é iniciada nos manuscritos do romance autobiográfico Stephen herói. A caracterização do narrador-protagonista de “Arábia”, assim como as razões de seus conflitos íntimos – relações familiares conturbadas, a presença marcante e dominadora da Igreja Católica e o despertar da sexualidade –, constituem um preâmbulo à caracterização da personagem principal de Retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus, incluída também, posteriormente, na trama de Ulisses. Em seu comentário à edição de 2003, da Civilizaçao brasileira, na segunda contra capa, de Dublinenses, Ênio Silveira põe em destaque o caráter prefacial dos contos: “Dublinenses, microcosmo e painel, é a porta de acesso por que se penetrará no universo joyciano, universo de luz e sombra, de calor humano e de fria, quase insuportável lucidez”. Assim, este trabalho se propõe, inicialmente, a analisar em “Arábia” indícios do perfil do herói, na relação da personagem com o ambiente físico e social da comunidade em que vive, por meio do contraste entre imagens de luz e sombra. A análise de técnica narrativa em primeira pessoa, feita a partir da consciência do menino anônimo, revela os conflitos íntimos que angustiam o protagonista: paralelamente ao despertar do amor e da sexualidade, a percepção gradual da natureza falível e arbitrária dos que estão imbuídos de autoridade, seja na família, na escola ou na Igreja, e, finalmente, a epifania reveladora que o faz consciente de si mesmo. São atitudes e concepções do próprio James Joyce, que as atribui à sua criatura. Diz José Roberto O´Shea, na apresentação de sua tradução de Stephen herói: Em Stephen Herói Joyce narra, topicalizando a figura do “herói” Stephen Dedalus, seu próprio conflito com a Igreja e a família, sua atitude crítica perante o nacionalismo irlandês, sua incursão na sexualidade e sua defesa da individualidade e da arte. (O´SHEA, 2012, p. 8)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

221

Traços de Stephen Dedalus, a personagem de inspiração autobiográfica, podem ser vislumbrados já no protagonistanarrador de “Arábia”. Na análise de imagens e do foco narrativo do conto serão destacados aspectos correspondentes em Retrato do artista quando jovem. O herói joyciano: encantamento e desencanto A ação sucinta do conto pode ser resumida em poucas palavras: a história de um menino pobre, que vive com os tios em um bairro miserável de Dublin, e que se apaixona por uma mocinha, designada apenas como a irmã de Mangan. O amor o faz sofrer a ponto de torná-lo incapaz de desviar os pensamentos da amada, mesmo em lugares e situações nada românticas. Finalmente, a menina, a quem adorava de longe, toma a iniciativa de lhe dirigir a palavra. Profundamente encabulado, o menino, a princípio, não sabe o que responder. É a mocinha que conduz o diálogo para o grande acontecimento na cidade: o bazar Arábia. O menino apaixonado promete trazer-lhe uma lembrança, se for ao bazar. A partir dessa noite, loucas e intermináveis fantasias consomem seus pensamentos. À noite, no quarto, durante o dia, na aula, sua imagem interpunha-se entre meus olhos e a página que me esforçava em ler. No silêncio em que minha alma vagava luxuriosamente, as sílabas da palavra Arábia atiravam-me num encanto oriental. (JOYCE, 2003, p. 32)

O conto é narrado em primeira pessoa pelo narradorpersonagem que começa descrevendo a rua North Richmond, uma rua sem saída, muito tranquila, bloqueada em uma das extremidades por uma casa desabitada. Na rua silenciosa, ecoam os gritos dos meninos que brincam até se esbrasearem, para fugir ao vento gélido. As imagens sensoriais contrastantes, auditivas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

222

% rua silenciosa, gritos que ecoam % e tácteis % esbrasearem, vento gélido %, não apenas descrevem locais concretos, mas sugerem sentimentos e emoções a eles associados. Quando os meninos saem para brincar, as casas já estão mergulhadas na sombra e as vielas, por trás das casas, escuras e lamacentas. Divertem-se provocando os rudes moradores dos barracos, aventurando-se até os portões “de jardins escuros e gotejantes que soltavam odores das borralheiras” (JOYCE, 2013, p.26). A alternância de luz e sombra, de frio e quente, de cegueira e visão, presentes no conto, estabelece correspondências temáticas que ligam partes da narrativa e lhe conferem coesão. O céu de um violeta cambiante e a pálida luz das lanternas nos postes é insuficiente para quebrar a escuridão que, por um lado, é benéfica porque os protege da vigilância dos mais velhos, do tio virando a esquina, ou da irmã de Mangan, que o chama para o chá. A imagem da criatura amada, porém, está envolta em luz: (...) dirigíamo-nos à escada da casa de Mangan, no alto da qual ela nos esperava. A silhueta do seu corpo recortava-se na luz da porta entreaberta. (...) e eu ficava junto à balaustrada contemplando-a. O vestido rodava quando ela movia o corpo e a macia trança de seu cabelo saltava de um ombro para outro. (JOYCE, 2003, p. 30)

Associado à imagem da beleza, o símbolo da água é motivo recorrente em “Arábia”, bem como em Retrato e nos livros subsequentes, tanto em aspectos agradáveis como revoltantes. Em contraposição aos quintais úmidos e odorosos, o menino apaixonado tem uma explosão de amor, quando olha através de uma janela quebrada, em uma noite chuvosa: Certa noite, fui à sala dos fundos onde o padre havia morrido. Era uma noite chuvosa e eu ouvia a chuva bater contra a terra, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

223

as finas e incessantes agulhas de água tamborilando nos canteiros encharcados. Bem longe, brilhava uma luz ou janela iluminada. Agradava-me enxergar tão pouco. Os meus sentidos todos pareciam embotar-se e, a ponto de desfalecer, apertei as mãos até meus braços começarem a tremer, murmurando: “Ó amor! Ó amor!” (JOYCE, 2003, p. 31)

Aos seis anos e meio, no Colégio de Conglowes. Stephen Dedalus é empurrado para dentro de uma valeta de água fria e visguenta, “Tinha sido maldade de Wells empurrá-lo na valeta (...). Como estava fria e visguenta a água! Um garoto vira uma vez uma ratazana cair dentro da escuma” (JOYCE, 1984, p.5). O motivo se repete no livro desde que o pequenino Stephen molha a cama – “no começo fica quentinho, depois vai esfriando” %, passando pelo episódio da valeta e várias referências desagradáveis a água de lavagem e de esgoto até à epifania que ocorre no final do capitulo quatro, em que a moça que caminha à beira do mar parece ao jovem, incerto quanto ao caminho a seguir, transformar-se “em uma estranha e linda ave marinha”. (...) “ – Deus do céu! – exclamou a alma de Stephen, numa explosão de alegria profana” (p. 175). A imagem dela entrara na sua alma para sempre, e palavra alguma tinha quebrado o silêncio sagrado do seu arroubo. Os olhos dela o tinham chamado e a sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida! Um anjo selvagem lhe tinha aparecido, o anjo da mocidade e da beleza mortal, um mensageiro das cortes esplêndidas da vida, para escancarar diante dele, num instante de deslumbramento, os portões de todo todos os caminhos do erro e da glória. Seguir, seguir, sempre para diante, para diante! (JOYCE, 1984, p. 175)

O arroubo da revelação do amor para o menino anônimo e do chamamento da vida para Stephen Dedalus substitui nos dois

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

224

personagens o sagrado pelo profano. Sozinho no quarto onde o padre morrera, o menino ouve a chuva tambolirando nos canteiros, mas enxerga pouco. Agrada-lhe não enxergar o jardim do sacerdote, mas divisar bem longe uma luz ou janela iluminada. Stephen Dedalus está só em seu silêncio sagrado, de onde o arrebata um anjo selvagem, mensageiro não das cortes celestes, mas das cortes esplêndidas da vida; não da imortalidade, mas da mocidade e da beleza mortal. Perdido em seu mundo encantado, o menino, em “Arábia”, imagina conduzir incólume seu cálice, na realidade os pacotes que carrega através de uma multidão de inimigos. A referência a O´Donovan Rossa, herói revolucionário irlandês, e aos problemas do país, compõe o viés político do tripé pátria-igreja-família No mundo de ambos mesclam-se o ideal imaginário e a realidade da miséria circundante, humana e econômica. O menino em “Arábia” convive: (...) com os bêbados e as mulheres que pechinchavam, em meio às imprecações dos trabalhadores, aos gritos dos garotos que montavam guarda às barricas cheias de cabeças de porco e à voz fanhosa dos cantores de rua, que interpretavam uma canção popular sobre O´Donovan Rossa ou uma balada a respeito dos problemas do país. (JOYCE, 2003, p.30-31)

Stephen Dedalus criança, de volta a casa para as férias de natal, assiste aterrorizado à discussão acalorada entre Dante, a tia que defende a Igreja católica, e o Sr. Dedalus e seu convidado, Sr. Casey, partidários do líder protestante, Stuart Parnell. A pressão dos conflitos sobre o lar, a Igreja e o país transformam a cena familiar, que prenunciava a paz e a alegria do natal, em um caos de amargura. Crueldade e violência não fazem parte da caracterização da figura paterna nos dois textos. O tio anônimo e o Sr. Dedalus

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

225

pecam pela indiferença e falta de percepção das necessidades emocionais dos meninos sob sua guarda. O texto de Retrato não culpa o Sr. Dedalus por sua decadência financeira lenta, mas inexorável, que a personagem atribui a supostos inimigos. Coloca em evidência, porém, seu esnobismo, pretensão e desprezo pela gentalha. Em uma viagem a Cork, onde o Sr. Dedalus vai vender uma propriedade, a personagem é revelada por inteiro, por intermédio da consciência de Stephen, jovem adolescente. Stephen envergonha-se das atitudes do pai: alguém que faz referências sentimentais ao passado; um bêbado irresponsável que fala demais, deixa-se lisonjear facilmente, demonstra por vezes jovialidade excessiva irreprimível e é cheio de si: “Stephen observava os três copos serem erguidos do balcão à medida que seu pai e seus dois camaradas bebiam (...). Um abismo de felicidade ou de temperamento separava-o deles” (JOYCE, 1984, p.93-94). Stephen sente-se completamente afastado do pai e, consequentemente, da própria família. Parece-lhe ser filho e irmão adotivo. “A sua infância estava morta ou perdida; e, com ela, a sua alma, já agora incapaz de alegrias simples. Ele estava sendo impelido rumo à vida como o disco estéril da lua” (JOYCE, 1984, p. 94). No conto “Arábia”, a figura paterna representada pelo tio provedor provoca grande angústia no menino-personagem pela longa espera no dia combinado para ir ao bazar. Paulo Vizioli, em James Joyce e sua obra literária, afirma que o escritor vinculava a imagem do pai, John Stanislaus Joyce, com a Nação: (...) otimista incurável, dono de um senso de humor irreverente e de uma língua ferina, amante da música, mas alcóolatra e irresponsável, dilapidou todos os bens deixados por seus pais em Cork. (...) Não obstante ter herdado todas as caraterísticas do temperamento paterno, James Joyce se julgava diferente do genitor, julgando-se dotado da coragem que faltava a este em sua rebeldia perante a sociedade e suas convenções. Por

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

226

conseguinte, já na adolescência, passou a desprezar o pai, vendo-o como o irlandês típico, jactancioso mas inoperante, capaz até mesmo de aviltar-se para obter um trago. (VIZIOLI, 1991, p.16-17)

Vizioli acrescenta, porém, que na vida real Joyce nutria certa simpatia pelo pai % seu tratamento da figura paterna, nos livros, é implacável % e admirava suas tiradas espirituosas, muitas das quais aproveitou em suas obras. A imagem da mãe, católica devota, por outro lado, está ligada à Igreja e aos frutos da educação jesuítica: o gosto pela argumentação e pelos sistemas elaborados de pensamento que Joyce viria a desenvolver. Em “Arábia”, a associação do padre muito caridoso, antigo morador da casa, com o quintal abandonado, põe em relevo os traços negativos da imagem do sacerdote. O jardim negligenciado atrás da casa tinha uma macieira e arbustos tortos em meio aos quais encontrei a enferrujada bomba de bicicleta do falecido morador. Ele tinha sido um padre muito caridoso; no testamento, deixou todo o dinheiro para instituições e todos os móveis da casa para a irmã. (JOYCE, 2013, p. 25)

Percebe-se uma visão deturpada do Jardim do Éden. A descrição do jardim no original inglês % “contained a central apple tree” % (JOYCE, 1992, p.33, ênfase acrescentada) está mais de acordo com a versão bíblica, em Gênesis 2, 9: “e a árvore da vida no meio do jardim”, o que favorece o reconhecimento da imagem do paraíso após a queda. Como as bombas antiquadas dispunham de um longo cano de borracha, cuja forma figura a serpente traiçoeira, “o mais astuto de todos os animais dos campos,” está completa a imagem. Joyce viveu em constante conflito com o que chamava a paralisia da Irlanda, “não fazia segredo de sua repulsa pelo torpor

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

227

intelectual em volta e a abjeta adesão à madre Igreja” (O’BRIEN, 1999, p. 21). Ele cuspia na religião e no sentimento. Deprimiam-no e causavam-lhe asco. Exatamente como seu país. Disse que deixava o país pelo temor de sucumbir à doença nacional, provincianismo, filosofia de botequim, trapaça, vazio e uma verborreia que reservava os sentimentos para Deus e os mortos. (O’BRIEN, 1999, p. 25)

No conto, a irmã de Mangan é menos que perfeita. Ela estava esplêndida, mas há detalhes discordantes: uma ponta da anágua aparecendo e o ficar de conversa ao cair da noite no portão não se coadunam com os rígidos padrões morais impostos pela Igreja. Enquanto falava ela girava uma pulseira de prata que usava no pulso (...). Ela segurava uma das barras, inclinando a cabeça. A luz do lampião do outro lado da rua revelava a curva nívea do pescoço, iluminava os cabelos que ali repousavam e, descendo, iluminava os dedos agarrados ao corrimão. Escorregava pelo lado do vestido e revelava a ponta branca da anágua, visíveis naquele momento de descontração. (JOYCE, 2003, p. 39)

A pulseira de prata da menina contém uma referência implícita às trinta moedas de prata pagas a Judas, que não suportou o remorso e enforcou-se. Já a associação entre tranças, cordas e o enforcamento de Judas é explicita: “...as suaves cordas do cabelo balançavam de um lado para outro” (JOYCE, 2013, p.26, ênfase acrescentada). Mas, finalmente chega o dia tão esperado: Na manhã de sábado lembrei a meu tio que desejava ir à quermesse. Ele atarefava-se junto ao porta-chapéus, procurando a escova, e respondeu rispidamente: % Já sei, menino, já sei. (...) Senti que o mau humor imperava na casa e fui desanimado para a escola. Fazia um frio implacável e meu coração já se mostrava receoso. (JOYCE, 2003, p 32)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

228

Os pressentimentos do menino se concretizam. Depois de uma espera interminável, começa a andar pela sala com os punhos cerrados. Às nove horas, a chave gira na fechadura e ele ouve o tio resmungar e o porta-chapéus balançar ao peso de seu casaco, sinais que ele sabia interpretar. O jantar já está a meio, quando o menino se encoraja a pedir o dinheiro. O homem, que certamente se demorara em algum bar, havia esquecido, mas limita-se a gracejar: “ – As pessoas estão todas na cama a essa hora, disse” (JOYCE, 2013, p 29). Em semelhança com o Sr. Dedalus, que adorava exibir-se no canto, o tio começa a recitar o poema “O adeus do árabe a seu corcel”, certamente lembrado pela referência a Arábia, para uma plateia de uma pessoa só, a tia do menino. O deslocamento de trem até o local da quermesse é insuportavelmente lento: “Depois de um atraso insuportável o trem afastou-se lentamente da estação. Avançou em meio a casas em ruínas e atravessou o rio cintilante” (JOYCE, 2013, p 30). E à chegada, o “imenso edifício, ostentando o mágico nome”, está parcialmente às escuras e quase todas as barracas fechadas. Sentindo-se perdido, o menino recorda com dificuldade o motivo que o trouxera àquele local. O lugar estava parecido com uma igreja, no final da missa. O único som que ouve é o tilintar de moedas caindo em uma bandeja vindo da barraca em que dois homens contam a féria do dia. Esta menção sugere novamente a religião no conto. A realidade cruel afasta a fantasia e os impulsos amorosos do cavaleiro andante, que busca conquistar um troféu para a jovem amada. A epifania do narrador-personagem se dá neste momento, quando se vê diante da percepção da sua própria insignificância. É um momento de revelação negativa, sente-se pequeno, era apenas um menino com algumas moedinhas no bolso. Percebe a traição da fantasia que o acompanha. Ele sente raiva da vida; da ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

229

pobreza - aquelas moedinhas no bolso não poderiam comprar algo que estivesse a altura da sua amada -; da opressão dos mais fortes, onde a figura da moça da loja, que é inglesa e trata-o com desprezo, se faz escancaradamente; sente raiva da realidade cruel, de ter criado e vivido uma fantasia. Stephen Dedalus, em O retrato, quando vê a jovem entrando no mar também tem um momento esplendoroso de epifania que o faz refletir intensamente sobre a beleza dos seres humanos e da natureza, como inspiração do trabalho do artista, capaz de transformar magicamente a realidade em arte: Uma rapariga apareceu diante dele no meio da correnteza; sozinha e quieta, comtemplando o mar. Era como se magicamente tivesse sido transformada na semelhança mesma duma estranha e linda ave marinha. (...) O peito era de um pássaro, macio e leve, tão leve e macio quanto um pombo de penas negras. (...) calmamente, afastou os olhos dele e os abaixou para a correnteza, graciosamente enrugando a água com o pé, para lá e para cá. O primeiro ruído leve da água assim agitada graciosamente quebrou o silêncio; um ruído vagaroso, leve, sussurrante, leve como os sinos do sono; para lá e para cá, para lá e para cá; um leve rubor tremulava em suas faces. – Deus do céu! – exclamou a alma de Stephen, numa explosão de alegria profana. (JOYCE, 1984, p. 174)

A visão naquele momento era que um anjo selvagem lhe tinha aparecido “para escancarar diante dele, num instante de deslumbramento, os portões de todos os caminhos do erro e da glória. Seguir, seguir, sempre para a diante, para adiante” (JOYCE, 1984, p. 175). Devia viver, errar, acertar, cair, levantar, recriar a vida! Voar como um pássaro para fugir da paralisia que o assombrava e alcançar os alvos mais altos e longínquos que pudesse.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

230

Conclusão O tempo da ação propriamente dita, em “Arábia”, estendese da resolução da personagem de trazer do bazar, de nome exótico, um presente para a mulher amada, até o desencanto final, e a revelação de que vivia uma mentira. O espaço de tempo compreendido certamente não excede alguns dias. Na análise de imagens e do foco narrativo do conto, o preâmbulo destaca aspectos correspondentes em Retrato do artista quando jovem. Como romance autobiográfico, por outro lado, o Retrato do artista quando jovem narra a história do desenvolvimento de uma única personagem da infância até a maturidade o que deve cobrir no mínimo uns vinte anos. No processo de crescimento, a criança tem de enfrentar o impacto das diferentes forças ativas no mundo em que vive sobre sua individualidade. Assim, a criança está sujeita às pressões da família, da Igreja e do próprio país, forças que tentam moldá-la de acordo com certos princípios. Em “Arábia”, o menino faz comentários curtos, mas significativos a respeito do tio que chega em casa, atrasado e resmungando. O menino sabe que o tio está bêbado. Isso é dito explicitamente em Retrato, onde Stephen Dedalus se desencanta do pai. Mas em “Arábia”, o desencanto é apenas sugerido. Indícios do perfil do herói, na relação da personagem com o ambiente físico e social, se mostram por meio do contraste entre imagens de luz e sombra, onde, na análise da técnica narrativa em “Arábia” (sempre vendo as coisas pelos olhos da personagem) revelam um ambiente estático, gélido, úmido e odoroso que os remetem a sentimentos e emoções refletidas, então, na relação da personagem com o ambiente físico e social da comunidade em que vive. Joyce não fazia segredo de sua repulsa pela paralisia intelectual de seus conterrâneos e pela madre Igreja. Segundo Edna O’Brien, Joyce “reconhecia que a família era um ninho do qual devia voar, mas também sabia que aquelas criaturas ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

231

encalhadas e aprisionadas(...) constituía o potente material de suas obras futuras” (O’BRIEN, 1999, p.18). Embora tivesse rompido com a igreja Católica quando ainda adolescente, em outro sentido jamais a deixou, “a doutrinação pela mãe e pelos padres fora demasiado intensa” (p.21). Apesar de tudo, a obra de Joyce é toda voltada para a Irlanda e para o simbolismo religioso, como se viu na análise de Arábia e paralelos estabelecidos com Retrato do artista quando jovem. Em que pese a diferença do tempo da ação, a análise da personagem central do conto, o menino anônimo, e do romance, Stephen Dedalus, com base em imagens sensoriais contrastivas, mostrou-se instrumento apropriado para desvelar os traços que caracterizam o herói joyciano. Aparentemente diversa, também, é a técnica narrativa de Joyce, nas duas obras: um narradorpersonagem que relata experiências em primeira pessoa e o narrador não identificado de o Retrato, que narra em terceira pessoa os acontecimentos da vida do herói. Em qualquer dos casos, porém, Joyce apresenta as coisas como percebidas pelos olhos e pela mente do próprio herói, ao invés de utilizar-se da apresentação impessoal e desinteressada.

Referências JOYCE, J. Dubliners. Hertfordshire: Wordsworth Classicis, 1992. _____. Dublinenses. 8. Ed. Trad. Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. _____. Dublinenses. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: L&PM, 2013. _____. Retrato do artista quando jovem. 2. Ed. Trad. José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

232

_____. Stephen Herói. Trad. José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012. O’BRIEN, E. James Joyce. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Textos & Formas Ltda, 1999. O’SHEA, J. R. Apresentação. In: JOYCE, J. Stephen Herói. Trad. José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012. p. 7-13. VIZIOLI, P. James Joyce e sua obra literária. São Paulo: EPU, 1991.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

233

SHAKESPEARE NO CINEMA: O FANTASMA NO HAMLET DE SHAKESPEARE E DE ALMEREYDA Autora: Fernanda Korovsky Moura (UFSC) Orientadora: Profa. Dra. Márcia Regina Becker (UTFPR) RESUMO: De acordo com Robert Stam (2005), adaptações cinematográficas são interpretações do texto literário em uma mídia diferente, o cinema. Portanto, cada diretor oferece novas possibilidades de traduzir o texto escrito para a tela do cinema, proporcionando-lhe uma nova leitura, influenciada pela situação sociocultural do momento em que o filme se insere. As obras de William Shakespeare estão entre as que receberam mais adaptações cinematográficas. Hamlet já teve mais de uma dezena de versões nas últimas décadas, desde filmes mudos a releituras contemporâneas. Um deles foi lançado em 2000, dirigido por Michael Almereyda, e transporta a trama shakespeariana para a cidade de Nova York no século XXI. O presente trabalho se propõe a analisar o personagem do fantasma do pai de Hamlet na peça de 1600 e como ele foi retratado no filme de Almereyda, discutindo as consequências e os efeitos que ela provoca. PALAVRAS-CHAVE: William Shakespeare. Hamlet. Michael Almereyda. Fantasma. Adaptações cinematográficas.

Durante o primeiro semestre de 2013, uma das disciplinas optativas da grade curricular do curso de Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) chamou a atenção dos alunos a tal ponto que a sala de aula não comportou o número de interessados, houve lista de espera. Tal disciplina foi “Shakespeare no Cinema”, ministrada pela Profa. Dra. Márcia Regina Becker. O entusiasmo dos alunos é compreensível, eu mesma acordei cedo no dia do registro da matrícula para não arriscar o meu lugar na turma. William Shakespeare é um dos, senão o, grandes nomes da literatura mundial e todo aluno de Letras, principalmente os apaixonados por literatura, têm

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

234

interesse em conhecer melhor o seu legado. E que maneira mais atraente do que através do cinema? Assim une-se o útil ao agradável. O presente artigo é, portanto, fruto das discussões que ocorreram durante as aulas desta disciplina. As duas peças estudadas neste semestre, além de suas diversas adaptações cinematográficas, foram Hamlet (1600) e Romeu e Julieta (15956). Ater-me-ei aqui, no entanto, a Hamlet, com base no trabalho realizado para a disciplina mencionada em conjunto com a aluna Amanda Arruda Venci. Mais especificamente, focarei na relação entre as representações do personagem do fantasma do Rei na peça de Shakespeare e na adaptação ao cinema feita pelo diretor Michael Almereyda em 2000. Almereyda foi, também, responsável por outros filmes marcantes como Twister (1990), Nadja (1994) e A maldição da múmia (1998). Além de Hamlet (2000), Almereyda adaptou para o cinema a peça Cymbeline de Shakespeare em 2014. O filme aqui em análise foi lançado no Brasil sob o título Hamlet: vingança e tragédia, com Ethan Hawke no papel do príncipe Hamlet, Sam Shepard como o fantasma, Julia Stiles como Ofélia e Bill Murray no papel de Polônio. Fantasmas em Shakespeare Eventos sobrenaturais são ocorrências comuns nas peças shakespearianas. Na realidade, o sobrenatural permeava todo o pensamento popular no período elisabetano, quando Shakespeare escrevia. Em seu livro Ghosts in Shakespeare (2010), L. W. Rogers analisa os episódios sobrenaturais em seis peças de Shakespeare: Hamlet, Macbeth, Ricardo III, Júlio César, Tróilo e Créssida e O conto do inverno. Rogers (2010, p. 4) propõe ao leitor a questão sobre qual seria a intenção de Shakespeare ao inserir fantasmas e fadas em suas peças. Seria um artifício dramático e artístico ou seria uma interpretação válida e condizente com a época das verdades da natureza? ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

235

Rogers escreveu em 1949. Hoje, no início do século XXI e após a emergência das teorias pós-estruturalistas, sabe-se que a intenção do autor pouco importa. Assim que o texto é publicado ou encenado -, ele se desassocia do autor e passa a ter vida própria. Como Roland Barthes já escrevia no final da década de 1960, “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem” (2004, p. 57). Contudo, os escritos de Rogers ainda são válidos, principalmente no que tange seus estudos sobre a presença do sobrenatural nos textos de Shakespeare, além das questões de intenção e autoria. Em sua análise de Hamlet, Rogers não duvida da consciência do príncipe dinamarquês de que existe uma existência após a morte corporal. Portanto, não seria a dúvida desta existência que o atormenta, mas, sim, as condições desta existência. Como seria a vida após a morte? De fato, se analisarmos a seguinte passagem, parte do célebre solilóquio de Hamlet, o argumento de Rogers se torna plausível: [...] HAMLET Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso Com um simples punhal? Quem agüentaria fardos, Gemendo e suando numa vida servil, Senão porque o terror de alguma coisa após a morte O país não descoberto, de cujos confins Jamais voltou nenhum viajante - nos confunde a vontade, Nos faz preferir e suportar os males que já temos, A fugirmos pra outros que desconhecemos? (SHAKESPEARE, 2005, 3.1.63)

A morte, para Hamlet, é um país não descoberto, é algo desconhecido, por isso temeroso. Se ele já conhecesse as condições do além-vida, se pudesse contar com os relatos de viajantes que de lá regressaram, ele certamente deixaria essa vida para seguir a sua viagem. Hamlet, por conseguinte, vê a vida como uma jornada. Em nenhum momento ele duvida da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

236

existência de algo além da vida corpórea, por isso a sua rápida aquiescência da história contada por seus três amigos, Marcelo, Bernardo e Horácio, que disseram ter visto o fantasma de seu pai. Ao contrário de Horácio, que é mais relutante em aceitar a narração da aparição do fantasma. Na segunda cena do Ato 1, ao receber de Horácio o relato de que a aparição de fato surgira e que ele reconhecera o seu pai, Hamlet apenas pergunta onde tal evento acontecera e se eles não haviam falado com o fantasma. Hamlet não descrê a história, apenas diz que ela lhe perturba. Na noite seguinte, Hamlet fica de prontidão ao soar da meia-noite e vê com seus próprios olhos o fantasma de seu pai. Rogers argumenta que o fantasma não poderia ser fruto da mente perturbada e criativa de Hamlet, porque ele não foi o primeiro a descobri-lo (2010, p. 12). Além disso, Rogers afirma ser a aparição sobrenatural um retorno literal do pai de Hamlet à terra dos vivos, já que Hamlet não foi o único a vê-lo (mesmo que haja uma ocasião na peça em que o fantasma não é visto por sua mãe, Gertrudes, que será discutida mais adiante neste artigo). Além dele mesmo, Bernardo, Marcelo e o sensato Horácio são testemunhas do evento sobrenatural (2010, p. 15). O fantasma é peça intrínseca da trama de Hamlet. Sem tal personagem, Hamlet não teria desenvolvido a suspeita do assassinato de seu pai por seu tio e, por isso, não elaboraria um plano de vingança. As representações desse personagem-chave na peça de Shakespeare e na adaptação cinematográfica de Michael Almereyda serão analisadas a seguir. O Hamlet de Almereyda Em primeiro lugar, é necessário discutir a adaptação cinematográfica do texto literário ou dramático em um contexto pós-estruturalista. Sob essa perspectiva, o filme não é visto como uma mera transposição do texto literário para as telas do cinema - mesmo porque tal feito seria impossível, já que o texto literário ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

237

e o filme são mídias diferentes -, mas, sim, como uma interpretação do texto. Tal posicionamento teórico confere mais liberdade ao diretor cinematográfico, que trabalha o texto literário de modo a buscar uma das possíveis formas de adaptá-lo (modificando-o, atualizando-o e adequando-o) para o cinema. Robert Stam (2005) desmistifica a visão preconceituosa da adaptação cinematográfica que, para muitos, ainda é considerada uma agressão ao texto literário, uma violação, uma traição, entre outras palavras pejorativas. Além disso, ele questiona o status de superioridade normalmente atribuído à literatura em relação ao cinema (STAM, 2005, p. 3-4). Na verdade, não se pode atestar que uma mídia é superior à outra; elas são distintas e, por isso, oferecem possibilidades e desafios diferentes. Ao invés da adaptação cinematográfica como infidelidade, Stam sugere o termo intertextualidade. Ele propõe diversas analogias para uma nova perspectiva da adaptação cinematográfica: um modelo Pigmaleão, em que o filme traz o texto literário à vida; um modelo ventríloquo, cujo filme dá voz às personagens mudas dos livros; um modelo alquímico, em que o diretor de cinema transforma as impurezas do romance em puro ouro; ou um modelo possessivo, no qual o corpo da adaptação fílmica é possuído pelo orixá do texto literário (STAM, 2005, p. 24). Analogias à parte, fica claro que a adaptação cinematográfica de um texto literário ou dramático é uma interpretação proposta pelo diretor - uma de várias possíveis, é importante frisar -, que tem a liberdade de transformá-lo de modo a usufruir das possibilidades que o filme oferece e que não é possível na literatura, como efeitos especiais, trilha sonora, atuação, entre outros. Da mesma maneira que o filme deve compensar por elementos só possíveis na literatura, como o fluxo de consciência e a leitura do que se passa dentro da mente de determinado personagem. As peças de Shakespeare já foram adaptadas para o cinema diversas vezes e de diversas maneiras. De uma certa ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

238

forma, o público já está saturado de produções similares de um mesmo texto; é preciso que haja inovação e renovação. Desta maneira, Michael Almereyda utilizou de sua liberdade para adaptar o texto de Hamlet e trouxe a história para a cidade de Nova York nos anos 2000. Hamlet é um estudante de cinema e seu tio, Cláudio, ao invés de ser Rei da Dinamarca, é o CEO da Denmark Corporations, proprietário de um grande império empresarial. No entanto, apesar de o enredo ser transportado para o início do século XXI, a linguagem original da peça é mantida. Anacrônico? De fato, mas certamente confere ao filme um estilo próprio. A primeira aparição do fantasma acontece de formas similares na peça e no filme, mas através de meios diferentes. Na peça, os primeiros a verem o fantasma do rei são Marcelo e Bernardo, que estavam de guarda no castelo. Os dois contam a história fantástica a Horácio, que hesita em acreditar. Quando ele vê o fantasma por conta própria na noite seguinte, Horácio acaba por ceder. Hamlet é avisado por este sobre a aparição do fantasma do seu pai e resolve confrontá-lo. Na versão de Almereyda, os que vêem o fantasma por primeiro são Horácio e Marcela, sua namorada. Almereyda muda o sexo do personagem shakespeariano Marcelo; talvez uma maneira de compensar a falta de personagens femininos no texto original. Horácio e Marcela estão dentro de um hotel e o curioso é que eles avistam o fantasma através de uma câmera de segurança. Almereyda faz recorrente referência à tecnologia nesta adaptação de Hamlet; um contraponto entre a Inglaterra seiscentista e a moderna Nova York do ano 2000. O guarda em serviço no hotel, que faz o papel de Bernardo, faz uma ligação para o quarto onde Hamlet está dormindo para avisá-lo da aparição no vídeo. No entanto, Hamlet não chega a atender o telefone, ele próprio vê a imagem de seu pai na varanda e lhe diz as mesmas falas encontradas na peça de Shakespeare: ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

239

HAMLET Anjos e mensageiros de Deus, defendei-nos! Sejas tu um espírito sagrado ou duende maléfico; Circundado de auras celestes ou das chamas do inferno; [...] Tu te apresentas de forma tão estranha Que eu vou te falar (SHAKESPEARE, 2005, 1.4.28)

O fantasma está vestido de terno e gravata, muito sério, e tem a mesma aparência de quando vivo. Tal conexão do mundo espiritual com o mundo físico, segundo Rogers, é uma forma de ilustrar que a morte corporal não altera o homem; ele permanece o mesmo mental e moralmente (2010, p. 19). Hamlet convida o espectro para entrar e têm o mesmo diálogo que se encontra na peça, salvo alguns cortes devido à extensão da cena, no qual seu pai lhe explica que foi assassinado por seu próprio irmão e pede por vingança antes de desaparecer do quarto. A segunda aparição do fantasma na peça de Shakespeare acontece nos aposentos de Gertrudes. Hamlet e sua mãe haviam discutido, pois Hamlet lhe culpava o romance incestuoso tão súbito à morte de seu pai. Gertrudes grita por socorro e Hamlet, em uma crise perturbadora, mata Polônio, que se escondia atrás de uma tapeçaria. Nesta cena, o fantasma retorna para relembrar Hamlet de seu dever: FANTASMA Não esqueça; esta visita É para aguçar tua resolução já quase cega. Mas olha, o espanto domina tua mãe. Coloca-te entre ela e sua alma em conflito; Nos corpos frágeis a imaginação trabalha com mais força. Fala com ela, Hamlet. (SHAKESPEARE, 2005, 3.4.87-88)

O curioso é que neste instante, que Hamlet fica a contemplar a figura do fantasma, sua mãe não o vê. A rainha indaga: “Ai, o que é que você tem, / Fixando assim seus olhos no vazio, / E conversando com o incorpóreo?” (SHAKESPEARE, 2005. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

240

3.4.88). Como exposto anteriormente, a veracidade do fantasma é inquestionável já que ele havia sido primeiro visto por Bernardo e Marcelo e, além deles, o racional Horácio e Hamlet o enxergaram com os próprios olhos. Como, então, explicar a “cegueira” da rainha? Rogers afirma que há muitos estudos que consideram esta cena como uma comprovação de que a aparição do fantasma era somente fruto da mente perturbada de Hamlet. Rogers, porém, nega tal asserção, pois as visitas anteriores do fantasma são comprovadamente reais. A possível explicação dada pelo autor é que a rainha, provavelmente, não era sensitiva o bastante para captar a presença sobrenatural (2010, p. 17). Ao meu ver, tal explicação não é suficiente. As primeiras aparições do fantasma, de fato, são comprovadas por quatro testemunhas. No entanto, a aparição do fantasma na cena com Gertrudes pode ser indício do início da loucura que domina Hamlet nas cenas finais da peça, que o levam, inclusive, a matar Polônio. Ao que parece, nesta cena em particular, o fantasma é, realmente, produto da imaginação de Hamlet. Na versão de Almereyda, Gertrudes conversa com Polônio em seu quarto de hotel quando Hamlet chega. Polônio não se esconde atrás de uma tapeçaria, mas dentro do armário. Hamlet e sua mãe têm o mesmo diálogo da peça original e, quando Gertrudes grita por socorro, Hamlet acaba matando Polônio com um tiro de revólver que atravessa a porta do armário e o atinge bem no olho direito. Durante a crise de nervos de Hamlet, o fantasma de seu pai aparece, sentado em uma poltrona perto da cama, com os cotovelos sobre os joelhos e um olhar preocupado. Gertrudes mostra a mesma incredulidade ao observar seu filho fitando e falando ao vazio. Enquanto os dois continuam o diálogo, o fantasma permanece a observá-los até o corte para a cena seguinte. Na peça de Shakespeare não há outras aparições do espectro do pai de Hamlet. O filme de Almereyda, no entanto, traz ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

241

mais duas participações do fantasma, quase trinta minutos após a cena no quarto de Gertrudes. Hamlet e Horácio voltam do enterro de Ofélia e encontram Marcela dormindo em seu quarto. Ao pé da cama da garota, está o fantasma, sentado em uma poltrona, com uma das mãos no rosto e um semblante preocupado e cansado. Diferentemente de suas outras aparições, desta vez o fantasma está transparente, quase desaparecendo de vista. Assim que Hamlet e Horácio entram no quarto, o fantasma desaparece totalmente antes que os dois pudessem notá-lo. Esta presença do fantasma dissolvendo-se pode ser equivalente ao esquecimento de Hamlet de seu propósito de vingança, tão conturbado estava com a morte de Ofélia. No entanto, logo em seguida, quando Hamlet e Horácio estão conversando sobre a aposta feita por Cláudio sobre o embate entre Hamlet e Laertes, o fantasma volta a aparecer em cores vibrantes, próximo à porta da cozinha. Neste momento, Hamlet lembra-se de seu propósito e vê no combate contra Laertes uma oportunidade para concretizar a sua vingança contra o tio. Horácio quer dissuadi-lo do combate, mas Hamlet rejeita: HAMLET Em absoluto, desafio os augúrios. Existe uma previdência especial até na queda de um pássaro. Se é agora, não vai ser depois; se não for depois, será agora; se não for agora, será a qualquer hora. Estar preparado é tudo. Se ninguém é dono de nada do que deixa, que importa a hora de deixá-lo? Seja lá o que for! (SHAKESPEARE, 2005, 5.2.133)

Ao proferir estas palavras, Hamlet olha para o fantasma do seu pai, como se para confirmar-lhe que aquele seria o momento da vingança. O fantasma parece satisfeito. Assim termina o papel crucial do fantasma na adaptação de Almereyda, que leva Hamlet a cometer os atos da cena final da peça, que resulta em tantas mortes.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

242

Conclusão Mesmo aparecendo de formas distintas na peça de Shakespeare e na adaptação cinematográfica de Almereyda, o fantasma é papel determinante no desenrolar da trama de Hamlet. É ele que inflama e conduz toda a sede de vingança em Hamlet, que acaba em tragédia. O diretor Michael Almereyda traz a história clássica de Hamlet para o século XXI, momento em que as crenças no sobrenatural já foram sobrepujadas pelo conhecimento científico. Por isso, Almereyda mescla a aparição do fantasma com aparatos tecnológicos, como a câmera de segurança no hotel, mais condizentes com a realidade do contexto em que a trama se insere. O filme de Almereyda é um ótimo exemplo da teoria de Robert Stam sobre adaptação cinematográfica como transformação e intertextualidade. A partir do texto de Shakespeare, Almereyda o traz de volta à vida aproximadamente quatrocentos anos depois, adaptando-o para o cenário do século XXI e oferecendo aos espectadores uma nova leitura da peça shakespeariana. Com relação à indagação de Rogers sobre o propósito de Shakespeare ao inserir eventos sobrenaturais em suas peças, tal mistério não desvendaremos nunca - e tampouco nos importa. Porém, o que é definitivo é que, como Rogers aponta, os elementos do oculto permeiam as obras de Shakespeare de modo a nos relembrar de que há uma grande diferença entre a verdadeira natureza das coisas e o que nossos olhos mundanos imaginam ver (2010, p. 20). Afinal de contas, assim como Hamlet confidencia a Horácio: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, / Do que sonha a tua filosofia” (SHAKESPEARE, 2005, 1.5.36).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

243

Referências ALMEREYDA, Michael. Hamlet. [Filme-vídeo]. USA: Double A films, 2000. DVD: 112 min. Son., color. BARTHES, R. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64. ROGERS, L. W. Ghosts in Shakespeare. Whitefish: Kessinger Legacy Reprints, 2010. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005. STAM, Robert. The Theory and Practice of Adaptation. In: Literature and Film: A Guide to the Theory and Practice of Film Adaptation. Oxford: Blackwell Publishing, 2005.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

244

MOBY DICK – UM MERGULHO NA INTERMIDIALIDADE Autora: Gleyce Cruz da Silva Gomes (UFPR) Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR) RESUMO: Esta pesquisa analisa o entrelaçamento entre a literatura e as artes visuais na obra Moby Dick, do escritor Herman Melville e busca revelar a força imagética apresentada em três capítulos assim descritos pelo autor: “Mistificações pictóricas da baleia”, “Representações menos errôneas de baleias; descrições fiéis de cenas baleeiras” e “Baleias pintadas; baleias esculpidas em madeira, em osso, em pedra e em pranchas de ferro; baleias nas montanhas e nas estrelas”. O escritor, através de seu narrador Ismael, ressalta a importância – aos olhos de um baleeiro – da análise das diversas representações da baleia. Tendo em vista a fundamentação teórica desta pesquisa, utilizo os conceitos propostos por Claus Clüver e de Liliane Louvel para descrição pictural e a aplicação dos dispositivos que identificam o iconotexto. A autora define iconotexto como uma zona onde o texto sonha com a imagem, o que expressa um significado muito poroso para o texto de Melville. PALAVRAS-CHAVE: Moby Dick. Intermidialidade. Iconotexto.

Introdução “Enquanto ainda nos restar algo por fazer, então nada fizemos.” (MELVILLE, 2009, p. 83)

Diante da leitura de Moby Dick, em dois volumes impressos em belíssimo papel amarelado com capa de tecido azul profundo; ocorre um estado de deriva e de vislumbre pela conjunção do texto com a imagem. Uma espécie de visualidade labiríntica está presentificada nas personagens dessa aventura marítima a bordo do navio Pequod, por onde todos nele embarcados, sofrem da vertigem provocada pelos avistamentos da baleia – ou muitas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

245

vezes chamada de leviatã pelo capitão Ahab – em alto mar: “Ele tem seu navio e toda a tripulação tal como seu próprio corpo, restituído e redimensionado para enfrentar – num corpo a corpo – o gigantesco monstro marinho. Tal como uma extensão da embarcação, Ahab finca sua perna postiça (feita de marfim de baleia) como um mastro no convés. E seu corpo segue fixamente obstinado rumo à sua presa.” (GOMES, 2012, p. 111). A escrita de Herman Melville parece se assemelhar a uma filigrana, uma artesania em filamentos de metal precioso, que criam rebuscados e delicados ornamentos ricos em detalhes. O texto vai se desvelando em uma atmosfera de manuscrito, de documento antigo ou de um pergaminho que atravessou o tempo para convidar o leitor – ou explorador – a descobrir através das suas minuciosas descrições um mapa poético singular. Seu mapeamento maleável nos leva por indícios de paisagens, em aproximações com geografias distantes e sob influência de mares abissais. As personagens nos permitem entrever as modulações poéticas do autor, que nesta narrativa se revela como o grande poema épico norte-americano, segundo Heitor Ferraz: Sua narrativa exuberante e de fôlego desliza sobre a superfície de vários modos de escrita: o do relato de viajante, puro e simples; passando pela crônica de costumes, quando ele descreve deliciosamente uma cidade como New Bedford ou Nantucket, ou apenas a vida em uma pousada; o do texto científico, com a sua classificação dos tipos de baleia; do filosófico, quando entra na alma humana para tentar perceber o que há de estranho no homem, de incongruente ou irracional; ou mesmo do lírico, quando a voz retorna para o coração de Ismael, o protagonista desse grande livro. (FERRAZ, H. In: MELVILLE, 2010, p. 428)

Um estudo etimológico serve de introdução à obra, onde o autor nos prepara didaticamente por uma breve apresentação do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

246

étimo – vocábulo que origina outro – da palavra whale (baleia em português) em diversas línguas como em grego, latim e em islandês. O curioso título “Etimologia (fornecida a uma escola secundária por um bedel tuberculoso já falecido)” evoca o tempo passado de um inspetor escolar “já falecido” sendo observado por um narrador desconhecido: Vejo-o agora – de paletó, coração, corpo e cérebro coçados. Estava continuamente espanando seus velhos dicionários e gramáticas por intermédio de um lenço singular, irrisoriamente enfeitado com as alegres bandeiras de todas as nações conhecidas no mundo. Gostava de espanar suas velhas gramáticas; isto de algum modo o fazia lembrar-se vagamente de que era mortal. (MELVILLE, 2010, p. 15)

A seguir, na parte intitulada “Fragmentos (fornecidos pelo sub-bibliotecário de um sub-bibliotecário)” contém dezessete páginas que trazem citações sobre o tema: baleias. Retiradas de “qualquer livro que fosse, sagrado ou profano” – da Bíblia, de jornais e de obras literárias como Hamlet de Shakespeare ou Twice-told tales de Nathaniel Hawthorne, a quem Moby Dick é dedicado – por um subalterno de um subalterno de bibliotecário. (MELVILLE, 2010, p. 17). Em “Fragmentos (...)”, o narrador se dirige ao leitor recomendando-o a não tomar como absolutamente autênticas, como um “evangelho cetológico”, muitas das referências lá apresentadas: No tocante aos escritores antigos em geral, e também aos poetas que aqui aparecem, estes fragmentos são apenas valiosos ou interessantes porque proporcionam uma visão de relance, a olho de pássaro, daquilo que fora dito de modo promíscuo – dito, fantasiado e decantado acerca do Leviatã por inúmeras nações e gerações, inclusive a nossa. (MELVILLE, 2010, p. 17)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

247

É interessante como a narrativa de Moby Dick desde o seu início aponta para atravessamentos textuais diversos, desde a dedicatória de Melville a Hawthorne – “Em sinal de minha admiração por seu gênio”– até as referências aos poetas, dicionários, gramáticas, bibliotecas, etimologia, livros de literatura, além de relatos de viagem. Intertextos Ciência, geografia, história e literatura, são alguns dos campos dos intertextos que constroem uma escrita precisa e organizada. Essa organização compartimentada dos capítulos: 32 “Cetologia”, 42 “A brancura da cachalote”, 60 “A linha”, 74 “A cabeça da cachalote; análise comparativa”, se assemelha a ordenação por meio de arquivos. Porém Melville afirma o contrário em uma carta a Hawthorne: “Entretanto, considerando-se tudo, não posso escrever de outra maneira. Desse modo, o produto é uma bagunça final, e todos os meus livros são malfeitos.” (MELVILLE, 2009, p. 72) As inúmeras citações de documentos de naturezas diversas e, em especial, as de caráter imagético, e que trataremos adiante, parecem suscitar uma averiguação de veracidade, ou pelo menos, algum rastro com o mundo não ficcional ao livro. De onde viriam tais fontes e o como seria o acesso do autor a elas em meados do século XIX, tais intertextos acrescentam um fio investigativo ao leitor descontente com o papel de mero receptor. Dentro desse contexto Claus Clüver afirma: Quando o interesse científico foi transferido do autor – que Roland Barthes declarou morto, em relação a determinados textos, e que Michel Foucault reduziu a funções autorais – para o leitor, que avançou até mesmo com certo direito para o posto de realizador do texto, a intertextualidade se complicou ainda mais, pois surgiram os “pós-textos”, sem falar dos “paratextos”, os quais passaram frequentemente a ter uma ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

248

influência considerável sobre a construção textual por parte do leitor. Entre esses paratextos se encontraram também textos não-verbais, como, por exemplo, imagens de capa e ilustrações. Foi decisivo para uma parte das exigências que se associam hoje aos Estudos Interartes o reconhecimento recente de que a intertextualidade sempre significa também intermidialidade – pelo menos em um dos sentidos que o conceito abrange. (CLÜVER, 2006, p. 14)

A semiótica apresenta um conceito estendido para a palavra texto, amplificando-o para diversas mídias, podendo ser um texto verbal, texto pictórico ou texto fílmico para citar alguns. “Questões de intertextualidade podem fazer de textos literários objetos propícios a estudos interartes – o que não vale apenas para textos literários ou simplesmente verbais.” (CLÜVER, 1997, p. 40). Mesmo havendo uma certa tendência em privilegiar o texto verbal, porosidades ocorrem, como no caso da obra de Melville com os intertextos picturais. Intermidialidade é um termo recente mas que se fez necessário para tratar de correspondências e comunicações entre manifestações artísticas em todas as épocas e culturas. Irina Rajewsky (2012, p. 22-27) apresenta as três “subcategorias” da concepção literária de intermidialidade, que seriam a “combinação de mídias”, as “referências intermídiaticas” e a “transposição midiática”. Como exemplo da “combinação de mídias”, teremos a presença do texto verbal aplicado como título de uma imagem, na segunda subcategoria “referências intermídiaticas” ocorrem quando o texto de uma mídia apenas cita ou evoca textos específicos de uma outra mídia, quando um filme faz referência a um pintor. Na terceira subcategoria “transposição intermídiática” teremos os processos de adaptação ou recriação de um romance literário para uma encenação teatral por exemplo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

249

A existência de textos literários que se referem a textos pictóricos, sejam a pinturas ou fotografias, dentre outras artes, permitem um diálogo entre as “artes irmãs” (poesia e pintura em sua origem) como as denomina Liliane Louvel em seus estudos sobre o iconotexto. Nesse parentesco entre as artes que ocupam o suporte bidimensional e da proximidade que solicita o olhar e a manualidade em ambas, traço e pincelada conjugam os mesmos gestos da escrita. (LOUVEL, 2006, p. 191). O olhar do personagem-narrador Ismael, em seu testemunho de sobrevivente – “E só eu escapei para vos dar a notícia” (MELVILLE, 2010, p. 406, v. 2.) – destaca-se já no capítulo 1 “Miragem”. Ele apresenta-se como o personagem que detém o dom do olhar privilegiado, “Ainda mais: eis aqui um artista. Deseja pintar o recanto mais encantador, mais ensombrado e mais tranqüilo e que mais faça sonhar, em toda a paisagem do vale do Saco”. (MELVILLE, 2010, p. 37). Ismael aponta-nos seu olhar que transfigura o lugar do sonho na narrativa, o lugar onde a imagem visual é convocada, e não apenas ilustra ou serve de inspiração. (LOUVEL, 2006, p. 218). Um jogo curioso de descrições e análises comparativas entre as diversas representações de baleias se inicia a partir do capítulo 55, “Mistificações pictóricas da baleia”, continua nos capítulos 56 e 57. O narrador-personagem enumera diversas referências de imagens catalogadas em estudos sobre baleias, citando-as – não de forma sistematizada – mas apresentando informações sobre autor, título da obra, datas, local e técnica. Seria problemático segundo Liliane Louvel, que a manifestação pictural esteja fora do texto, baseando-se em informações biográficas ou psicológicas. Um exemplo que a autora aponta é quando Marianna Torgovnick baseia-se na biografia de Cézanne apontando uma suposta influência em D. H. Lawrence, mas nada no texto comprovaria essa ligação. Basear-se em biografias e aspectos psicológicos dos autores, seria usar critérios ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

250

subjetivos e não-textuais, tal como uma aproximação aleatória (LOUVEL, 2006, p. 198). Para a validação de um iconotexto é necessário que haja marcadores de picturalidade e estes se relacionem à imagem, nos termos da pintura – usando a palavra picture no sentido polissêmico – da fotografia, ou de quadro. A autora menciona que a presença dos marcadores picturais abrem mais ou menos o texto à imagem pictural em seu desejo de ser imagem, entretanto, sem jamais o atingir. (LOUVEL, 2012, p. 49). Ismael menciona na abertura do capítulo 55, “Mistificações pictóricas da baleia”, um ímpeto de artista: “Dentro em pouco pintarei aqui para vós – tanto quanto é possível com a palavra, já que não conto com a tela – a forma mais ou menos aproximada com que a baleia se apresenta aos olhos do baleeiro, nos momentos em que, retida em sua integridade pela amarra do bote, se encontra por completo ao seu alcance.” (MELVILLE, p. 391, v. I). Neste momento do texto identificamos já uma abertura, um “operador de visão” segundo Louvel (2012), a presença de uma tela pictórica pronta para ser narrada por seu pretenso pintor. Muitas das representações consideradas equivocadas pelo narrador são analisadas por um viés crítico e com uma certa dose de ironia. Ismael apresenta uma análise das representações pictóricas consideradas mistificações, imagens ilusórias e enganosas de baleias em épocas remotas, “As esculturas hindus, egípcias e gregas constituem talvez o ponto de partida de todas essas mistificações pictóricas.” (MELVILLE, 2010, p. 391). Ele também inclui no rol dessas representações pictóricas as publicações do século XIX quando menciona que “Na edição londrina abreviada, de 1807, encontram-se lâminas representando a pretensa ‘baleia’ e um ‘narval’.” (MELVILLE, 2010, p. 394). Até mesmo as representações feitas a partir de estudos científicos parecem ser anedóticas aos olhos da personagem, que considera “puramente imaginárias”, quando, por exemplo, ele faz referência a uma ilustração da baleia cachalote feita pelo naturalista ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

251

Frederico Cuvier (CUVIER,1836, p. 286). Ele comenta que vai “fechar com chave de ouro todo esse acervo de disparates” e conclui sua avaliação dizendo que “não é realmente cachalote, e sim uma abóbora.” (MELVILLE, 2010, p. 394-395). Ao final do capítulo 55, Ismael conclui que o leviatã é dentre as inúmeras criaturas do mundo a que desafiará sempre as possibilidades do homem. Um dos desafios é que tal como um elefante pode ser observado de corpo inteiro, uma baleia habitando o universo submerso dos mares impossibilitaria tal análise. A baleia quando abatida e retida numa rede, traria consigo uma certa deformidade, impossibilitando uma representação fidedigna. A avaliação dos graus de exatidão considerados não atingem a verdadeira conformação da baleia, pois toda a “majestade e grandeza” do animal só poderia ser comprovada na “incomensurabilidade dos mares, enquanto flutua (...)”. Sendo assim, o único olhar privilegiado para a personagem é o do baleeiro e sem deixar de envolver todos os seus riscos, até o da fatalidade, sendo mais indicado refrear qualquer curiosidade acerca do leviatã. (MELVILLE, 2010, p. 395-396). Intermidialidade Neste momento da narrativa, ocorre um impasse entre visão e representação, desde o olhar da personagem para a realidade que o cerca e de como esta seria representada a seu contento. Em busca de uma origem, do olhar primevo do autor, percebemos em Moby Dick percebemos diversas camadas de conhecimento, de pesquisas e da vivência de Melville como marinheiro quando teve contato com a imagens nas suas fontes documentais e a o relato crítico das representações narradas por Ismael. Claus Clüver aponta uma definição própria para écfrase – uma das subcategorias de “referências intermídiaticas” de Rajewsky (2012, p. 25-27) –, como a “representação verbal de um texto real ou fictício composto num sistema sígnico não-verbal.” ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

252

(CLÜVER, 2007, p. 18). Em seu romance e especialmente nos capítulos 55, 56 e 57, Melville insere as descrições de imagens, sejam ilustrações, pinturas, desenhos e objetos, como forma de convidar o leitor a percorrer o texto buscando correspondências, lendo-o como uma espécie de “tradução do texto visual.” (CLÜVER, 2006, p. 111). O capítulo 56, “Representações menos errôneas de baleias; descrições fiéis de cenas baleeiras”, é iniciado com comentários de Ismael sobre as mistificações ou representações infiéis e grotescas citando alguns exemplos. Seguem-se a partir dessa parte as descrições das representações consideradas fiéis de cenas que retratam caçadas e capturas às baleias, sendo as pinturas de ação francesas. Já os ingleses e americanos seriam os detentores dos melhores esboços, provavelmente, por possuírem a prática das caçadas. A fidelidade apontada por Ismael parece trazer como elemento determinante a ação e o realismo, associados à dinâmica da própria vida. Os franceses são excelentes nas pinturas de ação. Contemplemos e comparemos os seus quadros com os de todos os outros pintores europeus. Onde se poderá encontrar maior plenitude de vida palpitante e de dinamismo [grifo meu] do que nessa triunfante galeria de Versalhes?.” (MELVILLE, 2010, p. 400)

Liliane Louvel (2012) classifica como tendo um alto grau de saturação pictural, os textos que se apresentam como quadros vivos que são descritos pelo narrador voluntariamente e não dependem do leitor para fazer essa associação. A utilização de léxico especializado com termos específicos das artes visuais na descrição de um objeto – gravura, desenho, entalhe, esboço – atua no texto “Como uma inserção, a de um objeto espacial, uma inclusão do espaço no tempo, no fluxo da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

253

narração.” (LOUVEL, 2012, p. 63). Quando os dois sistemas de representação coexistem, o texto torna-se híbrido pela aparições da imagem e “conduz além” (méta-phore) da literalidade. O escritor precisa buscar a melhor forma de construção para o iconotexto, desde a “obra visual de partida” para o “texto de chegada” por meio da linguagem. Trata-se da presença do “medium estranho no medium suporte” e da forma como ocorre essa tradução (não literal) mas sim metafórica. Deslizando de um código semiológico a outro, provoca uma transposição segundo Cluver, ou ainda uma translação segundo Louvel. (LOUVEL, 2006, p. 195-196). No capítulo 57, “Baleias pintadas; baleias esculpidas em madeira, em osso, em pedra, e em pranchas de ferro; baleias nas montanhas e nas estrelas”, são analisadas as representações feitas pelas mãos de marinheiros e de artesãos, numa aproximação direta com o artesanato. Há uma contextualização do universo cotidiano cercado de materiais utilizados pelos baleeiros: Em toda a extremidade do Pacífico, bem como em Nantucket, New Bedford e Sag Harbor, é comum encontrar elegantes desenhos de baleias e cenas baleeiras cinzeladas pelos próprios caçadores em dentes de cachalote, ou em espartilhos de senhoras feitos de barbatanas e em outras inúmeras e pequenas invenções que elaboram primorosamente com o material bruto durante as suas horas de lazer, no oceano. Alguns possuem pequenas caixas contendo instrumentos que lembram os de dentista, especialmente destinados à confecção dessas bagatelas, ainda que em geral sirvam-se apenas das suas navalhas, o instrumento quase onipotente imprescindível a todo marinheiro, e com o qual podem fabricar tudo o que lhes dita a fantasia. (MELVILLE, 2010, p. 403-404)

Dentro deste capítulo, Melville narra a cena de um encontro entre Ismael e um “mendigo estropiado” nas docas de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

254

Tower-Hill, e este carrega “diante de si um cartaz pintado representando o trágico acontecimento que causou a perda da sua perna”. Ismael narra então como é a conformação da pintura que representa os botes envolvidos na caça da baleia, e num deles está uma figura que se presume ser do mendigo a sua frente. Apesar dessa exibição pública, o homem e sua história são vistos com incredibilidade, embora eles recebam de Ismael um veredicto de autenticidade quando ele diz: “Essas três baleias são tão autênticas como as que mais o sejam, dentre as que foram pintadas em Wapping (...). (MELVILLE, 2010, p. 403). Ainda nesta cena podemos detectar um “efeito de enquadramento” por meio das duas narrativas que se interpolam - uma criada pelo encontro do mendigo com Ismael e a outra pela presença do mendigo como personagem na pintura. A pintura do cartaz é apresentada como uma micro-narrativa dentro da grande narrativa do capítulo ou do livro. (LOUVEL, 2006, p. 210). Um dos moduladores picturais presentes no capítulo 57, a “vista pitoresca”, remete ao gênero da pintura panorâmica do século XVIII, as vedutas. Louvel (2012, p. 52-53) menciona que “Suscetíveis de serem pintadas” estas cenas de lugares são como “evocadores” de vestígios da memória, das impressões subjetivas e da contemplação. A natureza representada pelas regiões montanhosas – no trecho a seguir – é comparada a um anfiteatro, e de onde o espectador/ viajante poderia vislumbrar formas semelhantes as de baleias, privilégio do olhar atento e capaz de encontrar a intersecção exata na paisagem onde elas se escondem. Tal precisão da visão/ imaginação/ vislumbre, mais uma vez é comparada aos olhos treinados de um baleeiro. Além disso, nas regiões montanhosas onde o viajante se encontra continuamente rodeado por alturas em forma de anfiteatro, pode-se, ora aqui, ora ali, de algum ponto mais feliz de observação, vislumbrar representações passageiras de contornos de baleias, recortando-se ao longo de serranias

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

255

ondulantes. Mas para poder apreendê-las é preciso ser um baleeiro genuíno, da mesma maneira que para tornar a encontrálas com segurança seria necessário tomar a intersecção exata da latitude e longitude do primeiro ponto de observação. Acresce que tão incertas e casuais são essas visões que seria muito difícil tornar a descobrir o lugar preciso de sua observação. (MELVILLE, 2010, p. 405).

Assim como o olhar do baleeiro, também as suas mãos teriam a habilidade da criação e da fantasia – atributos de uma alma selvagem que Ismael admite ter –, criando as representações mais puras, mais autênticas e legitimadas pelas humildes ferramentas do seu trabalho. Ocorreria entre o “marinheiro branco” e o “selvagem havaiano” uma prodigalidade nesse “estado de selvageria” – advindo do afastamento do cristianismo – que os aproximaria daquele “selvagem grego que fez o escudo de Aquiles” e de “outro esplêndido selvagem alemão que foi Albert Dürer”. (MELVILLE, 2010, p. 404). A condição de iconotexto nos capítulos abordados se consolida pelos atravessamentos de imagens icônicas de baleias – citadas de fontes diversas – e pelas evocações de imagens oníricas – das baleias nas montanhas, nas pedras e nos mapas de constelações: Quem me dera que, com uma âncora de fragata por brida e feixezinhos de arpões por espora, eu pudesse montar nessa baleia e lançar-me no mais alto do céu, a fim de verificar se mais além do meu olhar mortal [grifo meu] existem realmente esses céus fabulosos com as suas tendas inumeráveis! (MELVILLE, 2010, 406)

Para Ismael, o olhar mortal não seria suficiente para apreciar e avaliar as representações de baleias, seria preciso olhar além delas, lançando-se aos vislumbres poéticos. É na abertura do texto verbal emoldurando as visualidades que o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

256

pensamento imagético de Melville emerge. Muitos elementos picturais atravessam a narrativa e Ismael nos convoca à observação, à representação e à transfiguração do que possa ser Moby Dick.

Considerações finais Nesta pesquisa continua premente a necessidade de perscrutar – neste sentido mesmo de vasculhar com o olhar – os mares descritos por Herman Melville. Por seus vestígios imagéticos e atemporais, surgem detalhamentos de tecituras em filamentos espraiados de narrativas infinitas, permitindo inumeráveis possibilidades de leitura. As linhas baleeiras de Ismael, as linhas da narrativa, alinhavam texto e imagem, escrevem uma cartografia sensória – abissal – dos mares existenciais em Moby Dick. Através da leitura com o auxílio dos dispositivos conceituais será preciso transpor, ancorar e revolver o que há no fundo do texto. A pulsação da obra literária se intensifica nas camadas de sedimentos móveis dos intertextos, da intermidialidade e no iconotexto que ampliam o horizonte de leitura. Enchamos os pulmões plenamente para o último mergulho, em apnéia, sem qualquer aparato covarde de respiração submarina, suspensos no nada. Somente um leitor que “se lance como baleeiro” fará da caçada ao texto indomável um desejo de busca e sujeito aos perigos da derrota, pode comprovar que tudo apenas começou.

Referências CLÜVER, C. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e Sociedade. Departamento de teoria literária e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

257

literatura comparada da Universidade de São Paulo, n. 2, p. 3755, 1997. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ls/issue/ view/16. Acesso em: 30 abr. 2015. _____. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, Márcia (org.) Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos literários. Faculdade de Letras da UFMG, 2006. p. 107-166. _____. Inter textus/ inter artes/ inter media. Aletria: revista de estudos de literatura. Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Faculdade de Letras da Universidade do Federal de Minas Gerais, v. 14, p. 10-41, 2006. Disponível em: http:// www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/issue/view/96. Acesso em: 21 jun. 2015. _____. Intermidialidade. Pós: Revista do Programa de PósGraduação em Artes da EBA/ UFMG. Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte, v. 1, n. 2. p. 1-16, 2007. Disponível em: http://www.eba.ufmg.br/revistapos/ index.php/pos/article/view/16. Acesso em: 1 de jul. 2015. CUVIER, M. F. De l’histoire naturelle des cétacés ou recueil et examen des faits dont se compose l’histoire naturelle des ces animaux. Libraire Encyclopédique de Roret: Paris, 1836, p. 286. Disponível em: https://books.google.de/ books?id=iMoujAIsEjUC&hl=de&pg=PP10#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 9 de jul. 2015. FERRAZ, H. Herman Melville e Moby Dick: vida e obra. In: MELVILLE, Herman. Moby Dick. volume 1. Tradução Berenice Xavier. São Paulo: Abril: 2010. Clássicos Abril Coleções, v. 15. p. 415-428.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

258

GOMES, G. C. S. Atratores de desenho. Dissertação de Mestrado. Centro de Artes do Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2012. Disponível em: http://www.pergamum.udesc.br/dados-bu/000000/ 000000000016/00001670.pdf. Acesso em 13 jul. 2015. LOUVEL, L. A descrição pictural: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, Márcia (org.) Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006. p. 191220. _____. Nuanças do pictural. In: DINIZ, Thaís Flores Nogueira (org.) Intermidialidades e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p.47-69. MELVILLE, H. Hawthorne e seus musgos. Tradução e organização: Luiz Roberto Takayama. São Paulo: Hedra, 2009. _____. Moby Dick. volumes 1 e 2. Tradução: Berenice Xavier. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções, v. 15 e 16). RAJEWSKY, Irina O. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade. In: DINIZ, Thaís Flores Nogueira (org.) Intermidialidades e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p.15-45.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

259

IBSEN E A HISTÓRIA: UMA REVOLUÇÃO NA MENTE Autora: Helena Carnieri Staehler (UFPR) Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR) RESUMO: Henrik Ibsen começa a escrever suas peças no momento em que a Europa passa pelas convulsões revolucionárias de 1848. Somente anos mais tarde, porém, ele perceberia a influência do clima político de sua juventude em seu pensamento posterior. Entre os temas vitais para o autor está a defesa da liberdade individual, pré-requisito para a revolução da mente humana conforme a enxergava. Alimentado por essas ideias, ele inicia na metade de sua carreira seu “ciclo de 12 peças” (1877-1899), no qual insere uma nova técnica dramatúrgica que revela mais e mais a interioridade de seus personagens. São tramas em que muito pouco acontece, mas fatos passados perturbadores são desvelados. Este artigo irá analisar como essa inovação ensejou a fundação do drama moderno, bem como a forma pela qual a hipocrisia e as injustiças da sociedade compõem um pano de fundo para as transformações pessoais por que passam as personagens de Ibsen, tais como Nora (“Casa de bonecas”, em 1879), Karsten Bernick (“Pilares da sociedade”, em 1877) e Dr. Stockmann (“Um inimigo do povo”, em 1882). PALAVRAS-CHAVE: Henrik Ibsen, drama moderno, liberdade individual.

Introdução A trajetória na escrita de Henrik Ibsen (1828-1906) passa pelas transformações em termos de escola literária do século 19. Tradicionalmente, se atribui ao autor norueguês fases que começam com o romantismo nacionalista, passando por um realismo com alguma influência do naturalismo, desembocando numa escrita interiorizante, muitas vezes, com tintas simbolistas e místicas. Seu legado é composto por 25 peças de teatro, que o escritor desejava fossem lidas numa continuidade, como se “cada peça

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

260

pedisse a próxima”. Peter Szondi atribui a Ibsen a “instauração da crise no drama” (2011), motivo pelo qual ele é comumente considerado o precursor do teatro moderno, um autor que “liderou uma revolta de ideias modernas” (BRADBURY, 1998, p.62). Sua escrita serviu de precursora para nomes como James Joyce, George Bernard Shaw e Arthur Miller. Ele próprio formou sua tradição literária a partir da leitura de escritores setecentistas, entre os quais Voltaire e Schiller, e, entre seus contemporâneos, aprendeu a técnica dramatúrgica com o francês Scribe e com seu concorrente norueguês Bjornstjerne Bjoernson (CARPEAUX, sem data). Tendo deixado uma marca legível na história da literatura, a trajetória de Ibsen também foi marcada por um contexto histórico de grandes transformações – ou tentativas de transformação. Nascido em 1928, ele começa a escrever seriamente aos 20 anos, ou seja, justamente no marcante 1848. É o ano de convulsões revolucionárias por toda a Europa conhecidas como “Primavera dos Povos” quando, por um período, os ideais nacionalistas estiveram em alta e julgou-se poder mudar governos e mentalidades conservadoras. “Novas nações foram proclamadas, [houve] protestos pelo direito ao voto, desintegração do status quo” (FJELDE in IBSEN, 1970). Foram conflitos de caráter liberal, que não se restringiram a uma única classe, havendo pleitos da burguesia enriquecida por constituições que reduzissem privilégios aristocráticos, bem como o combate de trabalhadores por melhores condições. Violentas revoltas regionais também estouraram com caráter étnico e nacionalista. Essas iniciativas armadas, com destaque para o foco revolucionário de Paris, foram reprimidas brutalmente no mesmo ano, ensejando a ascensão de Napoleão III ao poder. Naquele desfecho das revoltas de 1848, o movimento romântico, centrado no indivíduo e caracterizado pelos exageros, nacionalismo ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

261

exacerbado, subjetividade e interiorização, via o fim de seus ideais e utopias. O ano é comumente apontado como a “derrocada” do romantismo, e muitos escritores partiram dali para desbravar novas correntes realistas que incluíssem a denúncia que se fazia premente naquele contexto. Ainda que se referisse especificamente ao romance histórico, é pertinente a assertiva de Fredric Jameson de que aquela foi uma “tradição da qual os mestres do realismo histórico se aproveitaram até o ponto de suas respectivas revoluções descontínuas (1848 no Ocidente, 1917 para os russos) após o que a forma entra em declínio e desintegração” (JAMESON, 2007). Tornava-se contraditório exaltar heróis e nutrir sentimentos idealizantes quando a força bruta neutralizava todo desejo de mudança. Entretanto, o que representou um divisor de águas para muitos escritores, tornou-se para Ibsen um momento fervilhante de ideias que marcou seu início criativo. Ao longo de 1848, o jovem Ibsen recebia notícias de toda aquela movimentação revolucionária em seu país, a Noruega, situado à margem da Europa, e se condoía pelas vítimas e por suas causas. É um tempo de reuniões estudantis, debates acalorados e defesa da união entre os países escandinavos. Ibsen investe em poemas que dedica aos revolucionários e charges satíricas que publica em jornais. Apesar de seu país não ter sido tocado pela luta armada, sua veia política precoce ardia, conforme relatam biógrafos e críticos como o conde Mawriki Prozor (s.d.) e Rolf Fjelde (1970). Para Ibsen, o movimento ascendente de ideais humanitários e nacionalistas, seguido por sua queda livre rumo à decepção, deixariam marcas em toda sua escrita, tornando-se verdadeiramente um estopim até mesmo para que ele começasse a escrever, e escrever teatro especificamente. Inicialmente, o estilo conhecido por ele era o romântico, que irá contaminar sua escrita, repleta de ideal político, conforme o próprio autor relata ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

262

no prefácio da segunda edição de sua primeira peça, Catilina (1850), que busca na história romana um enredo de traições e morte: “Catilina, a peça com a qual comecei minha carreira literária, foi escrita no inverno de 1848-49, ou seja, durante meu vigésimo primeiro ano... Foram tempos extremamente agitados. A Revolução de Fevereiro, as rebeliões na Hungria e outros lugares, a guerra prusso-dinamarquesa pelo condado de Schleswig – tudo isso contribuiu poderosa e pedagogicamente com meu próprio desenvolvimento, por inconcluso que ele tenha permanecido um longo tempo depois.” (IBSEN apud FJELDE, 1970, xiii. Tradução minha)

A partir dessa citação, Rolf Fjelde conclui que não só anos, mas décadas se passaram até que Ibsen assimilasse “todas as lições de 1848 para dentro de sua obra”, assim como ocorreu com inúmeros outros homens e mulheres, artistas ou não, ao longo do século 19. Com a visão privilegiada de quem analisa e escreve um século depois dos fatos ocorridos, Rolf Fjelde, norte-americano de origem norueguesa, percebe que os acontecimentos ligados à revolução de 1848 provocaram uma “empolgação crescente ligada ao desejo de maior liberdade e possibilidades de realização de sonhos, seguida por uma fase de desencanto e um necessário realismo”, não somente na carreira de Ibsen mas de muitos outros autores. Otto Maria Carpeaux (s.d.) considera Ibsen vanguardista desde seus primórdios, ao contrário de parte da crítica que despreza seus primeiros escritos, notadamente aqueles anteriores a 1877, quando publica a primeira peça considerada realista (Pilares da sociedade). Carpeaux não desfaz de seu romantismo, antes enxerga mesmo na peça inicial Catilina temas recorrentes na obra posterior, como o embate entre duas mulheres muito diferentes. Na peça publicada em 1850, trata-se de Aurélia e Fúria, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

263

que lutam pela alma do senador romano. Outros temas que se vislumbram em sua fase romântica e que desabrocharão mais tarde são a corrupção, a mediocridade e o ideal, a hereditariedade dos pecados, o embate entre verdade e mentira, o combate aos abusos e à hipocrisia. “Talvez Ibsen tenha sido o último dramaturgo que exerceu esse papel de juiz duma sociedade”, escreve Carpeaux (s.d., p.52). Enquanto o momento histórico servia de catalizador para a escrita de Ibsen, o autor aproveitava o pensamento de nomes importantes da inteligência europeia da época. Para Karl Marx, o desencanto dos românticos significou maior energia para “derrubar um sistema que parecia tão perto de entrar em colapso” (FJELDE, 1970, p. xiii), e sua obra fala disso. Outros pensadores abraçam em sua obra um maior pessimismo devido à derrota dos ideais, como Kierkegaard e Nietzsche. Ambos integraram as listas de leitura de nosso autor, que era conhecido também pela constância e avidez com que consultava os jornais diários. Um idealista Pode-se dizer que, durante quase duas décadas, Ibsen manteve acesa a busca por um ideal nacional de grandeza – numa época em que os teatros só repetiam comédias francesas e alemãs, ele surge como um excêntrico, abordando temas que seus conterrâneos, como o também dramaturgo Bjoernson, não julgavam prioridade. A primeira fase da escrita de Ibsen se volta para a antiguidade escandinava, com incursões pelos reinados medievais e os códigos de conduta viking. Destaca-se Os pretendentes da coroa (1863), em que a personalidade e a conduta de dois líderes que almejam o reinado é contraposta (MENEZES, 2006). A supremacia da nação e seus rumos surge como ideal nacionalista, bem como a tipificação dos dois personagens em conflito. Um terceiro elemento é acrescido por um mago que detém as provas ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

264

de consanguinidade que poderiam colocar fim à guerra civil – mas ele queima os papéis na hora de sua morte, para que o combate persista, ao mesmo tempo em que encomenda missas pela sua alma. Já em seus dramas históricos românticos estava presente a ponta de sarcasmo e crítica que contaminariam também o realismo de Ibsen. A investida nacional do autor incluiu a defesa de um “matiz dialetal norueguês” em meio à língua dinamarquesa falada pelo estrato culto da Noruega no século 19. Em 1814, a Noruega passara da influência dinamarquesa para a sueca, sendo que a independência viria apenas em 1905. Uma vertente do dinamarquês, o riksmaal, constituía a língua oficial do país naquela época. “Marginal” em seu país, localizado também à margem das grandes fontes de literatura da época, é na década de 1860 que Ibsen inicia um movimento radical de transformação, pessoal e artística. A revolta política assume tons pessoais para Ibsen em 1862 quando ele esbraveja pelo apoio sueco-norueguês aos dinamarqueses do condado de Schleswig, durante a segunda guerra da localidade contra a invasão da Prússia. No primeiro conflito, registrado no calor de 1848, Ibsen já solicitara de seu governo o posicionamento pró-dinamarqueses, mas não fora ouvido. O fato aparentemente o magoou muito. Unindo essa questão pessoal com o desejo de conhecer o mundo, acrescido ainda da revolta com o fracasso de suas peças em território norueguês, Ibsen parte num autoexílio de 27 anos, durante os quais vive entre Itália e Alemanha. A perda de ideais ocorrida naquele contexto histórico iria influenciar Ibsen em suas obras posteriores. Ele passa a imaginar uma nova era em que cada pessoa será liberta. Ao mesmo tempo, sua escrita assume um realismo pessimista em relação às capacidades das pessoas – ele se definiria ateu no futuro (BRADBURY, 1998).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

265

O exílio é também um momento de autodescoberta em que, assim como Nora bateu a porta em “Casa de bonecas”, Ibsen dá as costas a um contexto político e moral com o qual nunca estivera confortável. Muito já se especulou sobre sua revolta pessoal, nutrida desde a infância, quando seu pai, comerciante de sucesso, faliu e a família passou por uma grande redução de status. O filho Henrik interrompera os estudos para se tornar aprendiz de farmacêutico na pequena cidade de Grimstad, localidade onde o despertar de 1848 o encontrara sofrendo com a opinião e rejeição alheias. Mas, no início da década de 1860, o ideal nacionalista e de defesa da pátria já não movia o coração de Ibsen. Desiludido após tentativas de ação política – e do fracasso de seus escritos, rejeitados como marginais – Ibsen desiste da idealização que movera sua vida intelectual até ali. Não é de se estranhar que um autor da margem europeia, que em vários momentos manifestou seu sentimento em relação a essa marginalidade pessoal e nacional vivenciadas num país frio e muito conservador, tivesse interesse em respirar o calor do Sul da Europa, nutrir-se da energia corrente no centro do mundo da época. Ele começa sua jornada por Roma, onde permanece por quatro anos. Frequentando uma espécie de “clube de estrangeiros” no qual rapidamente se torna personalidade de destaque e impacto, nem sempre positivo (OLIVEIRA, sem data), ele investe em personagens mais fortes e profundos, não maniqueístas como foram os de Os pretendentes da coroa. Tratam-se de Brand (1866) e Peer Gynt (1867). O primeiro é um pastor idealista, dotado de moral extremada, que não se detém em sua autoassumida missão de servir os menos favorecidos nem mesmo quando a morte alcança membros de sua família. O segundo, vagante e fugitivo, imune aos apelos da ética, parte pelo mundo em busca de seu “verdadeiro eu”, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

266

vivenciando desventuras que incluem o encontro com trolls e a viagem a outros continentes. A jornada de Peer Gynt rumo à construção de si mesmo ilustra uma busca interior pessoal que o autor nunca mais interromperia. A peça inaugura a transição de Ibsen para a expressão de um sujeito moderno, que representa o ser humano que já não se adapta ao seu entorno. São questões relacionadas a uma transformação de mentalidades, anterior à sistematização do conhecimento sobre Psicologia que seria trazido por Freud com a publicação de A interpretação dos sonhos, em 1899/1900. Na ausência de termos para nomear as forças do inconsciente que Ibsen apenas intuía, ele lança mão de metáforas e de figuras do folclore escandinavo e europeu (MENEZES, 2006). São recursos que permitem o uso da intuição e da imaginação, deixando de lado a tirania da razão. Pilares da sociedade A liberdade que Ibsen conquista em sua escrita é bastante paulatina, e se constrói à custa da derrubada de “espectros”, ou ideias mortas, que assombram o homem daquele momento de transição, quando está em movimento a própria forma como as pessoas pensam em si mesmas (MENEZES, 2006). O resultado para a literatura de Ibsen é um estilo e visão de mundo realistas, que o levam a examinar a incapacidade das pessoas de se realizar – e a combater os motivos que as impedem de alcançar tal realização. Nessa busca por respostas para o fracasso humano, Ibsen abraça a crença no espírito de verdade e de liberdade, proclamado por Lona Hessel em Pilares da sociedade. Nessa obra, datada de 1877, a primeira a adotar um personagem contemporâneo e não heroico, o cônsul Bernick aproveita oportunidades para lucrar, ainda que precise omitir-se ou mesmo mentir. O autor situa a peça num momento de crescente industrialização, e surge en passant a questão da emigração para ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

267

os EUA em busca de uma vida melhor. Surge novamente a ironia, já que esse mentiroso é denominado um “pilar da sociedade”. A atividade em que o protagonista burguês prospera é a indústria naval. Anos depois de ter permitido que um parente assumisse uma culpa que era sua, arruinando seu nome, ele é confrontado por sua hipocrisia pela personagem Lona, por quem fora apaixonado. Por meio do retorno dessa personagem e da análise do passado que Lona incita é que ficamos sabendo de toda a trama pregressa -– técnica analítica utilizada por Ibsen em toda sua obra posterior. No final da peça, Lona irá propiciar a redenção do protagonista, que se arrepende de seus erros e pede perdão à comunidade num discurso. Lona exclama com prazer: “Por fim você se libertou de si mesmo!” O mote final do livro é que “todo cidadão deveria poder viver numa casa de vidro”. As ideias de liberdade e verdade germinam a partir daqui, quando Ibsen muda sua visão de revolução, fazendo com que considere limitado tudo o que recebera com entusiasmo em 1848. Seu amadurecimento literário acontece também numa era de grande movimentação intelectual. O período durante o qual Ibsen redige suas peças mais conhecidas, no chamado “ciclo de 12 peças”, entre 1877 e 1899, é uma época em que, conforme Franco Moretti, “sindicatos, partidos socialistas e o anarquismo estão mudando a face da política europeia” (MORETTI, 2011). Apesar de conter seu contexto sociopolítico, não é do conflito de classes que Ibsen irá se nutrir, e sim de uma percepção cada vez mais aguçada das hipocrisias internas à classe burguesa. Seu olhar perscrutador irá começar com críticas a sua própria vida. Nesta jornada pessoal, o autor busca como alicerces o pensamento revolucionário de sua época. Lê filósofos como Nietzsche e Kierkegaard (com quem o personagem de Brand fora comparado), a partir de cuja obra forma suas convicções a respeito da necessidade de cada um tomar responsabilidade por suas ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

268

escolhas, buscar emancipação e autonomia. A liberdade pessoal surge como condição para que a pessoa faça escolhas verdadeiras, uma bandeira que Ibsen empunhará. Mas o autor percebe o quão longe sua sociedade está desse individualismo liberal e “saudável”. Apesar de muita contestação social e política, pouco havia de autoconhecimento. Nesse contexto é que Ibsen escreve ao crítico dinamarquês George Brandes, em 1871: “As pessoas só querem revoluções específicas, nas questões externas, na política etc. Mas isso é só um remendo. O que realmente é necessário é uma revolução da mente humana” (IBSEN, carta a Brandes, 1871 apud FJELDE, 1970, ix). Apesar de o realismo ter como um de seus focos a denúncia social, Ibsen denuncia, principalmente, a corrupção da própria alma humana. Ciclo de 12 peças Já instalado na Alemanha, o autor produz as obras pelas quais é mais conhecido, seja devido à crítica positiva ou negativa. A fase é denominada por Tereza Menezes e muitos outros como “drama realista”. São suas peças “de ideias”, ou “de tese”, que abririam caminho para a escrita, por exemplo, de George Bernard Shaw e Sartre (MORETTI, 2011). Otto Maria Carpeaux aponta a forma como Ibsen revolucionou o conceito de “peça de tese”, por meio da inclusão da forma caricaturada de seus personagens idealistas, como o médico Stockmann, com quem Ibsen foi erroneamente identificado (CARPEAUX, s.d., p.47). Ao apresentar as peças-problema de estilo francês (como em Scribe) de forma caricaturada, Ibsen estaria elevando seus trabalhos “acima delas”. São essas peças que tratam de “problemas da época” que farão o nome de Ibsen ser conhecido por toda a Europa, sobretudo pelo escândalo causado por Casa de bonecas (1879) e Espectros (1881). Apresentada no início da peça Casa de bonecas como uma mulher infantilizada, que passara das mãos guardiãs do pai para ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

269

as do marido, Nora revela-se em seus três dias de angústia uma profunda analista de seu entorno jurídico e moral. Ao ser confrontada com uma fraude em que incorrera ingenuamente para salvar a saúde do marido, ela passa a questionar a forma como são feitas as leis, que não levam em conta a motivação bem-intencionada. Enxerga dessa forma a hipocrisia de uma sociedade que preza acima de tudo a honra aparente, não a honra em si. Casa de bonecas, título brilhante escolhidos por Ibsen, é uma peça em que se mostra a voz do autor, que por várias ocasiões falou contra as instituições estatais, afirmando odiar o Estado (OLIVEIRA, sem data). No processo pelo qual passa, Nora representa a mentalidade burguesa racional, que exige lógica e conforto na vida privada (MORETTI, 2011). Com aparência realista, a obra revela aos poucos um profundo conflito, não apenas externo, referente ao desenrolar das ações da trama, mas também interno à protagonista. O drama pessoal é desencadeado por causa do conflito externo, fazendo com que ele assuma proporções maiores – e tornando os temas “perecíveis” de Ibsen, questões que, décadas depois, já estariam solucionadas. A promissória com a qual Nora é chantageada, e que comprovaria seu crime, é devolvida rasgada pelo chantagista minutos depois de o marido Torvald Helmer descobrir aquilo que a esposa, seu “esquilinho mimoso”, tentava esconder a todo custo. Contudo, no curto entretempo, ele se enfurece e praticamente rechaça a mulher, permitindo que ela fique em casa apenas para manter as aparências, mas afastada da educação dos filhos. Assim que recebe a promissória rasgada e percebe que o problema não virá a público, Helmer respira aliviado e quer que tudo volte a ser como era antes. Nora, pasma, coloca seu traje mais simples e faz as malas. Sentam-se então para o famoso discurso final, a primeira vez que conversam verdadeiramente, nas palavras da protagonista. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

270

Em seu monólogo Nora diz não conhecer mais o marido e precisar viver sozinha para poder conhecer a si mesma. O “milagre” de que Nora fala em seu discurso, aquilo que ela mais desejava, que seria seu casamento se tornar uma união verdadeira, não é realizado. Porém, sua transformação pessoal ao longo da peça representa a desejada “revolução da mente” pregada por Ibsen. Consciente de que não poderia continuar com sua vida anterior, Nora bate a porta da casa encerrando a peça, num desfecho radical que, por muito tempo, seria recusado por diretores, atrizes e plateias. O próprio autor chegou a escrever um final alternativo para que a peça ao menos pudesse ser encenada. De qualquer forma, o “olhar para si mesmo” de Nora e Bernick passa a dar o tom da escrita de Ibsen, assim como o “dever para consigo mesma” que ela percebe ser fundamental em sua existência. Um inimigo do povo O protagonista em cuja voz mais comumente se identificam traços autorais de Ibsen é o doutor Stockman de Um inimigo do povo, visto se tratar de uma peça-resposta às ferozes críticas recebidas por Espectros. A peça causou revolta por abordar o amor livre, a sífilis e até a eutanásia. Para o crítico Otto Maria Carpeaux, porém, a identidade do médico idealista é a do conterrâneo e concorrente de Ibsen, Bjoernson. Ibsen, por sua vez, “já não acreditava na verdade absoluta [como faz o personagem]. Com incrível coragem procedeu ao desmentido integral de toda a sua obra anterior” (CARPEAUX, in IBSEN, s.d., p.47). A mentira nesta peça, como em muitas na obra de Ibsen, é a escolha descarada da sociedade: Stockman ergue-se como voz solitária ao clamar pela verdade, quando descobre que os esgotos envenenaram as fontes da estância de águas do local. Para o personagem, é inconcebível que a população da cidade, incluindo seu irmão, o prefeito, desconsiderem as evidências ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

271

científicas que atestam a contaminação das águas, preferindo manter tudo como está, ou seja, sem afetar a estabilidade econômica da estância turística. No desenrolar da peça, o médico, devido a sua insistência em proclamar a verdade indesejada, passa de “amigo do povo”, título pelo qual é conhecido, a “inimigo do povo”. Mesmo sua mulher fica contra ele. Não por acaso, a última linha da peça expressa: “O homem mais forte do mundo é aquele que está mais só” (IBSEN, 1970, pág....Trad. minha). Ibsen aborda na peça máscaras sociais em profusão, sem poupar políticos, jornalistas “revolucionários”, professores. São linhas de sarcasmo comedido, que talvez tenham servido de trampolim naquela década para Oscar Wilde dar seu mergulho no deboche das hipocrisias sociais em obras “disfarçadas de realismo”. Da mesma forma, o ineditismo temático de Ibsen serve de precursor para George Bernard Shaw, que “colocou na cabeça fazer em inglês o que Henrik Ibsen estava fazendo em norueguês desde 1875, ou seja, escrever peças tocando em assuntos que envolviam a vida de um grande número de pessoas” (WARD in SHAW, 1971). Não abordaremos neste artigo as fases subsequentes em que Ibsen, nutrido pelo aprendizado que o realismo lhe trouxera e no qual ele introduzira sua própria transformação, faz um mergulho aprofundado rumo à psique humana, servindo-se de correntes como o neorromantismo simbolista. As duas últimas décadas do século 19 veem o triunfo de suas peças, quando Ibsen se torna um dos principais dramaturgos europeus. O fato de haver tratado de questões bastante relacionadas ao seu contexto, como a emancipação feminina, fez com que encenadores o colocassem de escanteio por um período. A crítica, de forma equivocada, de acordo com Carpeaux, prioriza ora sua fase realista, ora a histórica, sem entender a unidade da obra – unidade esta que o autor desejava comunicar, de forma ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

272

que uma peça “pedisse” a seguinte. “Cada peça nasce da anterior”, avisa Malcolm Bradbury (1989). Conforme as palavras de Carpeaux, “não é preciso reabilitá-lo. É apenas preciso restabelecer o equilíbrio na apreciação dos valores permanentes que ele nos legou”. Técnica analítica Como já foi mencionado, a técnica analítica de Ibsen foi inovadora. Conforme Stella Adler, a inserção do elemento argumentativo em suas peças criou toda uma nova forma de drama (2002, p.30). Trata-se de um teatro em que a principal ação ocorreu no passado, de forma que “a representação dramática de Ibsen está exilada no passado e na interioridade” (SZONDI, 2011, p.44). Essa ação dramática representa um foco de tensão na vida dos personagens, que vão desvelando pouco a pouco esses “espectros” uns aos outros, de forma que sua exposição faz parte do próprio desenvolvimento da peça. Não é algo novo, se pensarmos em Sófocles e a forma como Édipo vai conhecendo a profundidade de sua tragédia ao longo dos diálogos. Mas Ibsen surge como inovador ao aliar a técnica analítica, ou seja, o desvelamento progressivo da tragédia, a um teatro realista – realista, ainda que com características próprias. A partir de seu aprendizado da “peça-bem-feita” aos moldes do francês Scribe, Ibsen alia seus diálogos, em que nada parece acontecer, ao ambiente doméstico burguês típico das peças de teatro da época. O resultado era um incômodo na plateia, um desconforto que tinha muito a ver com o clima entre os próprios personagens. Mais do que conflito ou ação, seus personagens enfrentavam dissonâncias, desajustes. Para piorar, não há heróis ou vilões claros: em Ibsen, “no bom há algo de mau, e no mau há algo de bom” (ADLER, 2002, p.27).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

273

Peter Szondi insere Ibsen na primazia do “lento e inexorável avanço do elemento épico no seio da forma dramática, a qual, em princípio, o excluiria” (2001, p.14). Em oposição ao drama absoluto, em que uma ação no presente ocorre entre dois sujeitos, em Ibsen o teatro começa a apresentar a cisão entre sujeito e objeto, falas que mais parecem solilóquios ou diálogos de surdos (o que se manifestará mais claramente na obra de Anton Tchékhov) e a presença de lirismo nas falas. A partir desses recursos dramáticos e também dos finais não conclusivos (como em Espectros ou Casa de bonecas), Ibsen é chamado de pai do teatro moderno. Dentro desse contexto, não só em sua última fase, chamada simbolista, mas mesmo no período analisado neste trabalho, que comumente é identificado com o realismo, percebese que Ibsen mais insinua do que afirma, deixa questões abertas para que o próprio espectador/leitor complete. É como se “penetrasse nas frestas do realismo” (MENEZES, 2006, p. 67), usando o subtexto de forma muito hábil, algo que fará declaradamente a partir de A dama do mar (CARPEAUX, sem data, p. 48). Sua escrita está em franco diálogo com a de Bernard Shaw no que tange a crítica à hipocrisia; com a de James Joyce, no embate com a tradição; e com a da fase inicial de Arthur Miller, no desvelamento da ação situada no passado. Dessa forma podemos dizer que seus herdeiros aprofundam sua preconizada “revolução da mente” – que, no entanto, permanece uma utopia, o desejo de um homem melhor.

Referências ADLER, S. Stella Adler sobre Ibsen, Strindberg & Chekhov. Trad. Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

274

BRADBURY, M. O mundo moderno – Dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. CARPEAUX, O. M. Ensaio sobre Henrik Ibsen. In: IBSEN, H. Seis dramas – Parte 1. Trad. Vidal de Oliveira. São Paulo, Escala: sem data. FJELDE, R. Introduction. In: IBSEN, H. Four Major Plays. New York: Signet Classics, 1970. IBSEN, H. Four Major Plays. Nova York: Signet Classics, 1970. JAMESON, F. O romance histórico ainda é possível? Novos Estudos – Cebrap nº77. 2007. MENEZES, T. Ibsen e o novo sujeito da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2006. MORETTI, F. A área cinzenta: Ibsen e o espírito do capitalismo. Trad. Edu Teruki Otsuka. In Literatura e Sociedade nº 15. 2011. OLIVEIRA, V. Alguns dados biográficos sobre Ibsen e ligeiros comentários acerca de sua obra. In Seis dramas – Parte 1. Trad. Vidal de Oliveira. São Paulo, Escala: sem data. SZONDI, P. Teoria do drama moderno [1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. WARD, A.C. General Introduction to the Works of Bernard Shaw. In SHAW, G.B. Pygmalion. Londres: Longman Group, 1971.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

275

A HORA E A VEZ DE “UMA TOLA BORBOLETA” Autor: José Francisco Coelho (Uniandrade) Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (Uniandrade) RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de analisar o conto “A tola borboleta”, de Liam O’Flaherty, publicado na coletânea O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês, organizada por Munira H. Mutran. Com base em alguns pressupostos de Boris Tomachevski (“Temática”, 1925), procura-se estudar a personagem, caracterizandoa de forma indireta, ou seja, o caráter do herói é estabelecido a partir de seus atos, da sua conduta. Considera-se a relação dessa personagem com o espaço e o tempo e examina-se, ainda, a linguagem simbólica empregada pelo autor no que se refere a quatro elementos – terra, mar, sol, vento – para enfatizar a profunda relação estabelecida entre o nascer e o morrer da borboleta: a metaforização da história do ser humano. PALAVRAS-CHAVE: Animização. Personagem. Tempo. Espaço. Simbologia

Introdução No princípio, um deus criou o céu e a terra. O dono do mundo criou o Sol e ordenou a ele que fosse fonte de vida, de luz, de calor, de nascimento. E o deus, decidindo que toda a sua criação carregaria em si a ambiguidade, sabia que o astro, muitas vezes, em vez de aquecer, poderia tudo secar. E criou o Vento como o senhor da renovação e do impulso, mas o movimento do ar também se transformaria em ilusão e engano. Esse ser todo-poderoso criou a Terra como mãe, ponto de apoio e refúgio, e também como palco de dramas, comédias e túmulo da mais alta de suas criações: o que nascera para, irremediavelmente, morrer. E criou o mar, seu maior mistério, sua mais perfeita imagem, sua semelhança. E fez a borboleta, que uniria terra e céu, amiga do sol e inimiga

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

276

do vento, aquela que tentaria desvendar o mar e o que ele guarda e esconde. O mar e a borboleta travariam, no palco do Criador, a mais extraordinária das lutas: a luta pelo conhecimento e pela sabedoria. E Deus deu, também e por fim, ao frágil humano uma compensação: a palavra que faria surgir os escritores, os teóricos e os estudantes. Um desses teóricos, Bóris Tomachevski (1866 – 1939), e em sua obra “Temática”, dedica-se ao estudo das personagens das narrativas literárias – o herói – e afirma: O personagem tem a função de um fio condutor e permite que nos orientemos no acúmulo de motivos, de um meio auxiliar destinado a classificar e ordenar os motivos particulares. Por outro lado, existem procedimentos graças aos quais podemos nos orientar entre a multidão de personagens e a complexidade de suas relações. É preciso poder reconhecer um personagem; por outro lado, ele deve mais ou menos fixar nossa atenção. Caracterizar um personagem é um procedimento que o faz reconhecível. Chama-se característica de um personagem o sistema de motivos que lhe está indissoluvelmente ligado. Num sentido mais restrito, entende-se por característica os motivos que definem a psique da personagem, seu caráter. (TOMACHEVSKI, 1976, p. 193)

Entre outras sugestões de análise das personagens, Tomachevski sugere que: a caracterização do herói pode ser direta, isto é, nós recebemos uma informação sobre seu caráter através do autor, de outros personagens ou de uma autodescrição (as confissões). Encontramos por vezes uma caracterização indireta: o caráter parte dos atos, da conduta do herói. (TOMACHEVSKI, 1976, p. 193)

A partir de tais considerações, este trabalho se propõe a analisar o conto “A tola borboleta”, de Liam O’Flaherty, publicado ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

277

na coletânea O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês, organizada por Munira H. Mutran. Liam O’Flaherty, romancista e contista irlandês, nasceu em 1896 e faleceu em 1984. Publicou alguns romances como The informer (1925), Famine (1937), Insurrection (1950), mas, atualmente, é lembrado por seus contos. Como observa Munira Mutran, “além de poucas narrativas urbanas, em que a cidade é feia e em que desespero e corrupção predominam, dedicou-se principalmente à cena rural, em várias modalidades da ficção curta” (MUTRAN, 2006, p. 295). Na antologia citada, de todos os autores, O’Flaherty foi o que mais escreveu sobre as relações do homem com os animais. A protagonista do conto é uma borboleta e a narrativa acompanha a trajetória do inseto do nascimento à morte. Um narrador onisciente humaniza uma borboleta e, a partir desse recurso estilístico, verificam-se aspectos próprios da condição humana Se a caracterização da personagem se faz a partir de suas ações, buscou-se observar o emprego de verbos e de adjetivos que possam explicitar o caráter desse herói. Examina-se, igualmente, a linguagem simbólica empregada pelo autor no que se refere a quatro elementos – terra, mar, sol, vento - para enfatizar a profunda relação estabelecida entre o nascer e o morrer da borboleta: a sua efêmera trajetória no mundo. Para a necessária fundamentação desse último aspecto do trabalho, recorreu-se a dois dicionários de símbolos: o de Juan-Eduardo Cirlot e o de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. A metamorfose da tola borboleta Em um dia de sol muito quente, uma borboleta “despertou para a vida e lentamente saiu da crisálida” (O’FLAHERTY, 2006, p. 203). Ela experimenta a aventura de voar “no suporte invisível do ar” (O’FLAHERTY, 2006, p. 204). A “criatura de Deus” (O’FLAHERTY, 2006, p. 204) estava em um vale próximo do mar e, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

278

em seu passeio, brincou com outras borboletas, visitou flores vermelhas e se aproximou do mar. As águas a fascinaram e a repeliram. Essa viagem exploratória, nas asas do vento, enfraqueceu o animalzinho e, em certo momento, “o corpo tocou a crista do mar. As asas vibraram uma vez ainda, e depois a água do mar nelas infiltrou-se” (O’FLAHERTY, 2006, p. 206), matando a borboleta. Tem-se a borboleta como símbolo da ligeireza e da inconstância, da beleza, da vaidade. Um outro aspecto do simbolismo da borboleta “se fundamenta nas suas metamorfoses: a crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser; a borboleta que sai dele é um símbolo de ressurreição” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2015, p. 138). Assim, em um espaço imenso banhado de sol, a borboleta, jovem e ingênua, vive a sua infância: o aprendizado e a alegria dos primeiros voos: Abandonou o galho. Penetrou gracilmente, sem esforço, sem um único som, no suporte invisível do ar. Nem ruído, nem sussurro de asas interrompeu o surpreendente silêncio de sua existência. As asas abriram-se à brisa e bateram gracilmente para cima e para baixo, em volteios elegantes, como se estivessem tocando algum instrumento musical, batendo de tecla em tecla, despreocupadamente. (O’FLAHERTY, 2006, p. 204)

Segundo Chevalier e Gheerbrant, o simbolismo do Sol é bastante diversificado, mas, inicialmente, o astro é visto como fonte da luz, do calor, da vida (2015, p. 935.) E sob o sol, a borboleta desperta para a vida, quando sai da crisálida. Levemente balançou-se ali por algum tempo, enquanto sol e vento secavam-lhe o corpo. Do mar vieram raios de sol, trazendo à borboleta um calorzinho agradável, perfumado pela brisa da manhã, cujas carícias suaves bruniram o longo corpo do inseto, fazendo com que as grandes asas, antes fechadas como um ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

279

leque, se abrissem. O calor do sol secou-lhe o corpo, aqueceuo, fê-lo intumescer e pulsar com a alegria da vida recém-criada. (O’FLAHERTY, 2006, p.203)

O aprender a viver exige a convivência com o semelhante e a borboleta brinca com outras borboletas. A borboleta faz contato com pássaros, flores e “inúmeras formas de vida (que) povoavam a grama” (O’FLAHERTY, 2006, p. 2004). A animização da borboleta, desde o início da narrativa, fica evidenciada no emprego de verbos, que mostram suas ações: “Descansava de vez em quando ao calor radiante do sol. Brincava com outras borboletas. Mais do que tudo gostava de voar, batendo as asas, na imensidão do céu” (MUTRAN, 2006, p. 204). Neste mundo edênico, toda a natureza adquire vida: as flores vermelhas, em uma das quais a borboleta pousou, curvavam-se “como crianças fazendo reverências” (O’FLAHERTY, 2006, p. 205). E neste espaço da infância, surge o vento, inicialmente como uma fresca brisa. O simbolismo do vento apresenta vários aspectos. Devido à agitação que o caracteriza, “é um símbolo de vaidade, de instabilidade, de inconstância” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2015, 935). Em “A tola borboleta”, assim como o sol, o vento acompanha o nascimento do animalzinho, apresentando-se como fresca brisa. E a brisa é o veículo no qual a borboleta faz a sua viagem inaugural e exploratória num mundo que o nascer lhe dá. Nesta narrativa, entretanto, o vento assume também outra simbologia: é ele, qual um sonho que se persegue, que vai conduzir a borboleta até o mar. Em suas idas e vindas, ora guiando, ora abandonando a borboleta, é um cúmplice do mar. O vento é a ilusão, é o engano, é a quimera: O vento excitou a borboleta, que voou em ziguezague para o alto, lá para o alto do céu, e então se deixou levar, deliciandose com a pressão da brisa no corpo e nas asas. Logo voou para o mar, deixando a terra para trás. Voou cada vez mais alto, e ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

280

mais, longe, batendo as asas suavemente e deslizando com o generoso impulso das lufadas de vento, longas e constantes. Deslizava, quase adormecendo com o prazer do movimento fácil e rápido. E, então, em uma sucessão de movimentos bruscos e elaborados, dirigiu-se para longe do alcance do vento, para a terra, pensava. (O’FLAHERTY, 2006, p. 205)

A mocidade passou, o doce tempo de irresponsabilidade se evapora e, para voltar à terra firme, a borboleta faz movimentos bruscos. Ela tenta escapar da força do vento, que a conduz a um destino ignorado, desconhecido e misterioso. Nos últimos cinco parágrafos do texto, pouco mais de trinta linhas, a narrativa de O’Flaherty muda de tom. Verbos (fugir, enfraquecer, exaurir, tombar, por exemplo), adjetivos (aterrorizada, estranho, repugnante, desconhecido, frenéticas, por exemplo) e outras expressões que, no início do conto, denotavam leveza e claridade são substituídos por palavras e locuções que prenunciam o destino final do inseto. A tolice da borboleta é ingenuidade e imprudência, e ela confunde a terra com o mar, as ondas lhe parecem flores, a imensidão das águas provoca-lhe temor. Ela sente repugnância, experimenta estranheza diante do mar e sabe que precisa fugir e se salvar: Mas não havia terra lá embaixo. Em vez disso viu surpreendente planície, cuja superfície se movia em inúmeras ondazinhas de cristas prateadas pela luz do sol, e os flancos de profundo azul. Viu também, aqui e ali, manchas escuras e verde-claro, e ainda flocos diminutos de espuma cintilante. A borboleta pensou que aquelas cintilantes coisas eram flores e precipitou-se em direção a uma delas; no entanto, quando se aproximou, não sentiu o aroma do néctar das flores, mas um cheiro forte e pungente que lhe era desconhecido e repugnante. Foi então que uma gota d’água, produzida pelo encontro de duas ondazinhas, bateu em seu corpo. Fugiu depressa, aterrorizada. Voou para bem longe do mar, voou novamente com o vento, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

281

deixando levar com rapidez para longe daquele lugar estranho e repugnante. (O’FLAHERTY, 2006, p. 205)

Agora o cheiro é repugnante, o lugar também é repulsivo e estranho. Diante do mar e de sua imensidão, a borboleta experimenta a atração e a repulsa. Ela busca a luz do sol, a claridade e a liberdade, mas a terra, o chão firme, já desaparecera. O vento a trouxera para junto do mar. De repente, o cúmplice do mar abandona a borboleta e “com o cessar do vento uma grande calmaria envolveu o mar e a imensidão do céu” (O’FLAHERTY, 2006, p. 206). Tudo que é vivo cumpre o destino que o mar, soberano absoluto, determinara desde o início do tempo. O sol se esconde, ele só é protagonista no início da vida. O vento, senhor da ilusão, já trouxera a “criatura de Deus” para junto de um deus maior. Tudo que vive tudo que tem movimento, tudo que respira, tudo que pulsa é do mar e será mar: Mas, outra vez, a planície movediça com penetrante odor e contínuo murmúrio afastou-a para longe e ela subiu, subiu mais uma vez, aterrorizada. Mas desta vez não foi longe. Enfraquecia. Sentiu-se cair de novo. Mais uma vez seu corpo, tenso, roçou a superfície do mar. Subiu outra fez. Em uma série de frenéticas piruetas, agitando-se sem cessar no ar morno, exauriu as últimas reservas de força num louco bater das lindas asas brancas. Então, apesar da feroz vibração das asas, caiu pesadamente. As asas tombaram e pulsaram como tinham feito ao nascer da crisálida. O corpo tocou a crista do mar. As asas vibraram uma vez ainda, e depois a água do mar nelas infiltrouse como tinta e mata-borrão. (O’FLAHERTY, 2006, p. 2006)

A borboleta tem a sua hora e a sua vez. A borboleta cumpre o seu destino, percorre uma jornada que se inicia com o sol e a terra, com voos, flores e brincadeiras. Uma jornada obscuramente

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

282

testemunhada pelo vento. Uma jornada em direção ao mar, que chama, impera, comanda e seduz. Não se foge dele: se a borboleta se afasta, o mar a chama e ficam inúteis as lutas, o medo, a força, o exaurir-se e as frenéticas piruetas. Pulsar é nascer e pulsar é entregar-se ao mar. Há que se transformar em mar. Há que ser mar, como cantava Cecília Meireles: O alento heroico do mar tem seu polo secreto, Que os homens sentem, seduzidos e medrosos. [...] Tem seu reino de metamorfose, para experiência: seu corpo é o seu próprio jogo, e sua eternidade lúdica não apenas gratuita: mas perfeita. (CECÍLIA MEIRELES – Mar absoluto)

Conclusão O conto de Liam O’Flaherty, “A tola borboleta”, ao estabelecer um paralelo entre a vida humana e a do animal, explicita seu tema: a jornada humana entre o nascimento e a morte. A existência do animalzinho, “desde o instante em que desdobra as asas úmidas para secá-las ao sol, passando pelas alegrias e surpresas de sua breve vida até o momento fatal, reflete a pungência e a brevidade da vida humana” (MUTRAN, 2006, p. 288). Humaniza-se a borboleta e outros elementos da natureza, como o vento, o sol, a terra, o mar. Percebemos, portanto, como em “A tola borboleta”, o conflito dramático reproduz a condição humana: a jornada do nascimento à morte. As ações, o movimento constante, as alegrias, o aprendizado e a pungência são marcados pela brevidade, pelo efêmero do qual a borboleta é o símbolo mais adequado. Para tal fim, Liam O’Flaherty apropria-se da linguagem simbólica, da prosopopeia e traduz o humano. O humano de inconcebível fragilidade, que se descobre num espaço sem fim. A grandiosidade

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

283

do espaço – a sólida terra, o alto céu, o mar infinito - ressalta e amplia a finitude do tempo. O tempo que perturba e escraviza a borboleta e a humanidade. O tempo é o mar. E o mar de Liam O’Flaherty, - indecifrável mistério do depois - é o destino da humanidade. A imensidão do mar é o contraponto da pequena borboleta, da efemeridade do humano. O mar traga o humano e o transforma em si mesmo. O mar é o espaço da mudança, um espaço de metamorfose, como a própria borboleta.

Referências BONNICI, T. & ZOLIN, L. O. Teoria literária: abordagens históricas e contemporâneas. Maringá, EDUEM, 2005. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 27. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 2015. CIRLOT, J. E. Dicionário de símbolos. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo, Centauro, 2005. MEIRELES, C. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. V.1. O’FLAHERTY, L. A tola borboleta. Tradução de Munira H. Mutran. In: MUTRAN, M. O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês. São Paulo, Humanitas, 2006. TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre, Globo, 1976.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

284

EDNA O´BRIEN E SUA NARRATIVA A LUZ DA NOITE – NOTAS DE UM DUPLO EXÍLIO, O REAL E O FICCIONAL Autora: Prof. Larissa Degasperi Bonacin (UNIANDRADE) RESUMO: O presente trabalho investiga as construções do real encontradas na obra A luz da noite, da escritora irlandesa Edna O´Brien, buscando evidenciar, através da análise crítica de sua escrita, a relação entre o passado colonial e o presente neocolonial, bem como a questão do nacional no país. A partir da intersecção entre história, memória e ficção, buscar-se-á estabelecer uma discussão sobre as representações de identidade, nação e exílio na referida obra da autora supramencionada. Para tanto, será realizado um recorte na narrativa e será considerada neste estudo a primeira parte do livro, mais especificadamente o relato da protagonista sobre sua vida nos EUA, estabelecendo um paralelo com a própria diáspora irlandesa nos Estados Unidos da América. Como fundamentação teórica, pode ser citado, a título de exemplificação, os ensinamentos de Stuart Hall em Identidade cultural na pós-modernidade. PALAVRAS-CHAVE: Identidade irlandesa. Exílio. Diáspora.

Edna O´Brien – uma nova voz para a Irlanda Primeiramente, faz-se necessário um pequeno recorte da própria história da Irlanda, terra natal de Edna O´Brien. Isto tudo porque analisar a escritora é analisar também toda a história da Irlanda. Deve-se realizar um breve mergulho nessa ilha repleta de paradoxos para elucidar alguns pontos que posteriormente serão abordados. Atualmente a Irlanda encontra-se dividida em duas: ao sul, temos a República da Irlanda, independente, formada por vinte e seis condados; e ao nordeste, a Irlanda do Norte, pertencente ainda ao Reino Unido e formada por seis condados.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

285

Essa cisão contribui para alterar noções de pertencimento dos Irlandeses, bem como fragmentam, juntamente com as diásporas e exílios, a identidade cultural dos Irlandeses, e de Edna O´Brien, como via de consequência. A Irlanda dividida não é uma realidade somente do século XX e XXI. Desde o século V a Irlanda já era separada em cinco províncias: Ulaid (Ulster), Midhe (Meath), Laigin (Leinster), Muma (Munster) e Connacht. Desde então os Irlandeses buscam por uma identidade, ou melhor dizendo, uma unidade em sua identidade. Buscando essa caracterização de sua identidade, os Irlandeses Medievais elegeram três fatores: utilização de um idioma comum, no caso o gaélico, leis comuns, ou seja, Brehon laws e religião única, no caso, a religião Católica. Toda a história da Irlanda é permeada por invasões e dominações, e a busca constante por uma unidade identitária, e os três fatores acima mencionados sempre foram muito valorizados pelos Irlandeses. Essa tentativa de buscar uma identidade única e pura é comentada por Stuart Hall, quando afirma que “(...) existem também fortes tentativas para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o “fechamento” e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade” (HALL, 2006, p. 92). Realizado essa pequena menção à uma das características da História da Irlanda, pode-se retornar ao objeto desse estudo, ou seja, a escritora Edna O´Brien e sua narrativa, A luz da noite. Edna O´Brien nasceu em 15 de dezembro de 1930 em um pequeno vilarejo rural Irlandês denominado Tuamgraney, condado de Clare, região de Munster, no oeste da República da Irlanda. Um dado importante a ser destacado era o fato da família de O´Brien não valorizar a literatura, por considera-la subversiva, perigosa, que levaria ao pecado. Como católicos fervorosos, admitiam que somente a palavra de Deus poderia ser lida através da Bíblia.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

286

É uma das mais aclamadas escritoras irlandesas da atualidade, mas o reconhecimento do seu trabalho se deu de maneira tardia, infelizmente. No Brasil também ocorreu essa valorização tardia, pois a escritora somente obteve reconhecimento após sua participação na FLIP (Festival Literário de Paraty) do ano de 2009. Seus primeiros livros, escritos na década de 1960, a trilogia The Country Girls, chegaram a ser queimados na Irlanda, tudo isso porque narravam com detalhes as aventuras sexuais de suas protagonistas e tal fato era considerado abusivo aos olhos dos Católicos Irlandeses. As multifaces de Edna O´Brien se verifica na sua habilidade em não somente escrever romances, mas também contos, poemas, peças teatrais, biografias (sobre James Joyce e Lord Byron) e até livros infantis. Essas múltiplas facetas de O´Brien pode ser considerada um reflexo de sua identidade híbrida, pois será visto adiante que Edna O´Brien vive, desde a década de 50, exilada em Londres. A luz da noite: Uma outra narração da nação Irlandesa Na ficção de O´Brien, principalmente em A luz da noite, há um retorno ao passado e, consequentemente, às questões históricas de seu país. No centro da narrativa temos Dilly, mãe de Eleonora, que é uma escritora que mora na Inglaterra. Dilly, que no início da narrativa, fica presa à um leito de hospital, passa a relembrar alguns fatos de sua trajetória de vida, dentre eles: seu relacionamento com a mãe Bridget; com a filha Eleonora, a quem devota amor incondicional, embora não concorde com algumas de suas escolhas profissionais e afetivas; sua passagem pela América quando trabalhou de doméstica. A narrativa não aborda somente questões de relacionamentos entre mãe e filha, como a princípio pode-se ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

287

inferir, mas igualmente a construção de uma identidade feminina irlandesa. A narrativa retoma diversos fatos históricos e corrobora diversas mulheres que passaram pelas mesmas angústias que a protagonista. Embora, a princípio, e analisando o próprio Prólogo do livro, podemos inferir que realmente a abordagem se resume ao relacionamento conturbado entre mãe e filha: A fotografia deve ter sido tirada num domingo, e por alguma razão especial – talvez a partida iminente da filha. Reina uma quietude no ar. Pode-se sentir o abafamento, o sol batendo nas copas das árvores sonolentas e sobre os campos indistintos, estendendo-se morosamente até as montanhas de tonalidade azulada. Mais tarde, com o tempo mais fresco e depois de já terem entrado, os gritos dos frangos-d´água farão ecoar por esses mesmos campos, sobre o lago e até as montanhas envoltas na névoa azulada, um solitário canto de entardecer, como o que as mães entoam à noite, e que parecem dizer que é nossa culpa o fato de chorarmos tanto; a culpa é da natureza, que primeiro nos preenche e depois nos esvazia. (grifo nosso) (O´BRIEN, 2009, p. 09-10)

Da análise desse prólogo, podemos ver que a autora, de maneira muito poética, constrói um verdadeiro sentido para a vida, e principalmente para a vida das mães, que cuidam, enchem de carinho e afeto seus filhos, para que, no futuro, os mesmos alcancem seus próprios objetivos, suas próprias vidas: “a culpa é da natureza, que primeiro nos preenche e depois nos esvazia” (O´BRIEN, 2009, p. 10). Entretanto, o romance envolve muitos outros temas transversais. Dentre eles, o que será objeto desse artigo, é a memória da protagonista da sua viagem à América, no início do século XX.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

288

E ao viver um período nos Estados Unidos, como imigrante, a protagonista era uma exilada e vivia uma diáspora Irlandesa na América, como será analisado a seguir. A diáspora irlandesa Bonicci esclarece que “diáspora (do grego, dia = longe, e speirein = espelhar) é o deslocamento livre ou forçado de populações fora de seus país para novas regiões” (BONICCI, 2009, p. 277). A história da Irlanda é permeada por movimentos migratórios diversos. O historiador e jornalista Tim Pat Coogan, em seu livro Wherever Green Is Worn - The History of Irish Diaspora (Onde o Verde É Usado - A História da Imigração Irlandesa) faz menção à existência de mais de 70 milhões de irlandeses espalhados pelo mundo, enquanto no país a população não ultrapassa 5 milhões. Ou seja, há muito mais Irlandeses espalhados pelo mundo do que na própria Irlanda. A pesquisa desenvolvida por Coogan aponta ainda a gênese das correntes migratórias irlandesas o século XII, durante a invasão dos normandos à ilha. Entretanto, os maiores movimentos migratórios ocorreram nos séculos XVIII e XIX na Irlanda devido à falta de alimentos. A fome tornara-se parte integrante do cenário Irlandês e castigou seus moradores por quatro vezes: de 1725 e 1729; de 1740 a 1741; em 1836, 1837 e 1839; e, finalmente, de 1845 a 1849. País agrícola e dependente da produção de batatas, foi dizimado pelo fungo Phytophora infestans que arrasou as colheitas de batata, enquanto as intempéries climáticas destruíram as de cereais. Na colheita de 1845 a perda foi total, conhecida também como Irish Potato Famine – 1845 (A fome da batata). Da crise agrícola decorreu a crise econômica, com cenário de grande recessão e desemprego, além, é claro da fome, que assolou o país e matou 1 milhão de pessoas (vitimados pela falta de alimento, desnutrição e péssimas condições sanitárias) e fez com que mais 1,5 milhão de irlandeses ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

289

emigrassem. Eram Irlandeses cansados, famintos e doentes que precipitaram-se rumo aos Estados Unidos e Grã-Bretanha, e ainda Canadá e Austrália, suscitando repulsas e preconceitos, em vez de compaixão. Das embarcações que atracavam no continente americano, repletos de irlandeses desnutridos, registrava-se perda de pelo menos ¼ da tripulação. Outros morriam na chegada sem a oportunidade de vislumbrar dias melhores. As viagens duravam semanas, em condições subumanas de sobrevivência. O cenário e a angústia são descritos por O´Brien, na voz da protagonista Dilly, de forma minuciosa: Embaixo, onde estávamos encarcerados, os vapores eram terríveis, vapores de cozinha, de gordura de cozinha e de óleo das lâmpadas de parafina que tinham de ficar acesas o dia inteiro. Um buraco, gente discutindo, brigando e de coração partido. Algumas tinham trazido suas próprias provisões e disputavam, ombro a ombro, um lugar no único fogão; a cozinheira oponente manifestando-se com a língua, com uma concha ou qualquer instrumento que tivesse à mão. Era o seu fogão, seu domínio. A dieta básica para a maioria era composta de biscoitos secos e sal marinho. Quase morri de sede. A sede era o pior de tudo. Não parava de pensar nas nascentes lá de casa, imaginava-me descendo o balde e depois subindo-o, já cheio de água limpa que vinha da montanha, e bebendo-a, bebendo uma jarra inteira naquele minuto. As pipas d´água tinham acabado após o terceiro dia; tínhamos de usar água salgada para o chá e tudo o mais. Atendentes vinham lá de cima duas vezes por dia, xingando e gritando, diziam-nos para limpar nossa sujeira, arrumar nossa bagunça e o conteúdo dos urinóis, latas de lixo e panelas eram lançados sobre a amurada, a água do mar manchada de cinza quilômetro após quilômetro, as ondas engolindo aquilo, como as bocas dos milhões de peixes que o mar abrigava (O´BRIEN, 2009, p. 50-51).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

290

Nota-se, portanto, primeiramente as péssimas condições da viagem. Nessas longas viagens, as mulheres eram constantes alvos de assédios e abusos sexuais e eram obrigadas a ficarem caladas por uma questão de sobrevivência. Os relatos de Dilly incluem também uma companheira que tem um filho no navio, fruto de abuso sexual, e acaba, inclusive, assassinando o bebê em decorrência do distúrbio causado pela precariedade da viagem, dos abusos, da fome, pressão psicológica vivida por essas Irlandesas. As humilhações e precariedade de sobrevivência inclusive aumentaram em terras Norte-Americanas. Irlandês-Americano: discriminação e subempregos Entretanto, a vida de imigrantes irlandeses na América não foi das mais fáceis, e, assim como acontece em outras sociedades, a discriminação também permeou os primeiros anos dos sobreviventes irlandeses nos Estados Unidos. A baixa qualificação e a falta de recursos foram alguns dos agravantes para a falta de inserção da comunidade irlandesa à nova pátria. E muitos dos sobreviventes da fome se tornaram sobreviventes de uma comunidade segregadora. O American Dream foi duro e penoso, tal qual a fome que os Irlandeses deixaram para trás. Ao chegarem em Nova Iorque, esses Irlandeses, incluindo a protagonista Dilly, encontravam-se em um entre lugar, e a sensação de não-pertencimento era evidente, como verificamos nesse trecho onde é descrito a chegada em Ellis Island: “Estávamos exilados de onde viemos e exilados, agora, uns dos outros, a espera tão aflitiva quanto a jornada de navio” (O´BRIEN, p. 57). Alvo constante inclusive de humilhações, descrita em detalhes por Dilly:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

291

Na Ilha das Lágrimas fomos expostos a todo tipo de humilhação: Tivemos as línguas apertadas, as pálpebras levantadas com uma abotoadura, o coração auscultado, o cabelo revistado à cata de piolhos... Depois fomos lavados com mangueiras por senhoras estrangeiras que não tinham um mínimo de delicadeza (O´BRIEN, 2009, p. 58).

O cenário era caótico: “Por todo lado havia lágrimas e súplicas, pessoas orientadas para esperar, outras despachadas para quartos próximos, (...)” (O´BRIEN, 2009, p. 58). Felizmente, a América atravessava um período de grande prosperidade, erguendo seus viadutos, canais e pontes. Como o advento das grandes máquinas ainda não era uma realidade, os braços fortes e o porte atlético dos homens fazendeiros irlandeses acabaram garantindo a construção das vias americanas e contribuindo para o progresso visível e notório daquela época. Ocorre que, os irlandeses tinham que ser submetidos aos subempregos, como pedreiros na construção civil e empregados domésticos. E essa realidade não foi diferente para a protagonista. Ela primeiramente trabalhou como empregada doméstica e posteriormente como auxiliar de costureira. Cumpre ressaltar, que ambas as atividades desenvolvidas em péssimas condições e sempre alvo de humilhação: “A América era assim uma terra de blefes e sonhos desfeito, e que eu teria sorte se arrumasse um emprego como empregada numa casa grande. Eu seria serviçal, uma espécie de canário doméstico” (O´BRIEN, 2009, p. 65). E as condições não se alteram quando Dilly passa a ser auxiliar de costureira: “Éramos umas trinta ou quarenta mulheres num porão, o barulho constante das máquinas de costura o dia inteiro, tudo muito ágil e profissional. Era quentíssimo no verão por causa do vapor dos ferros de passar e porque nunca nos deixavam abrir as janelas (...)” (O´BRIEN, 2009, p. 128). Ficção e realidade se alternam na obra, pois a diáspora Irlandesa realmente ocorreu, e eles realmente sofreram com as

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

292

péssimas condições que eram submetidos, humilhações diversas e subempregos que deveriam aceitar para a própria sobrevivência. O exílio ficcional e o autoexílio de Edna O´Brien Como verificado no tópico anterior, todos aqueles irlandeses que foram tentar uma nova vida na América, eram exilados na nova terra e exilados uns dos outros. Várias vezes a protagonista de A luz da noite demonstra esse sentimento de exílio, como por exemplo na passagem onde Dilly, ainda trabalhando como empregada doméstica comenta sobre uma festa realizada na casa dos patrões, também Irlandeses: “A sala de jantar era uma ‘pequena Irlanda’, com grossas velas vermelhas assentadas em nabos escavados; em cada lugar à mesa, uma harpa de vidro, presente dos anfitriões. Vieram de uma fábrica na Itália” (O´BRIEN, 2009, p. 97). E ao final dessa festa, o sentimento de exílio e saudades da terra natal se agravava: Ao final de uma rodada, Christy tirava da sanfona algumas notas mais calmas, melancólicas e prolongadas que evocavam detalhes de nossa terra, terra rochosa, campos, aquela paisagem calcária, com a maldição de Cromwell: “Sem madeira para enforcar um homem, sem água para afogar um homem, sem terra para enterrar um homem”. (O´BRIEN, 2009, p. 130)

Tanto a protagonista do livro como a própria autora passam pela experiência do exílio. A escritora deixou a Irlanda em 1959, portanto, podemos afirmar que Edna O´Brien escreve sobre uma Irlanda presente em sua memória, histórias vividas, contadas ou imaginadas. Escreve sobre a história da Irlanda, mesmo que fisicamente distante dela. Como irlandesa exilada em Londres há mais de 50 anos, Edna O´Brien reside em um entre lugar, já que é produto das duas culturas: a natal, da sua infância e juventude; e a inglesa,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

293

onde assumiu-se escritora, casou-se, teve filhos e vivencia seus dias. No entanto, a própria autora considera-se uma irlandesa exilada na Inglaterra, na constante busca pela pátria perdida. Temos, portanto, um duplo exílio, o real (da escritora) e ficcional (da protagonista). Essa questão ainda tem um duplo efeito quando trata-se da Inglaterra. O ser Britânico, que até o século XIX era algo absoluto e incontestável, e mais sentimento de coerência e integralidade, passa a ser relativizado, “Num país que é agora um repositório de culturas africanas e asiáticas, o sentimento de ser britânico nunca mais pode ter a mesma velha confiança e certeza” (HALL, 2006, p. 84). Atualmente, com o processo de Globalização e Internacionalização das culturas, dificilmente iremos encontrar uma cultura pura e única.

Referências ABRANTES, Elisa Lima. O passado que não passa: Memória, História e Exílio na ficção de Edna O´Brien. Tese de Doutorado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2006. FRANÇA, Avany. Referências de fonte eletrônica. Disponível em: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/61/ artigo290377-1.asp. Acesso em: 01 jun. 2015. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

294

JOANNON, Pierre. Referências de fonte eletrônica. Disponível em: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/ a_grande_diaspora_irlandesa_imprimir.html. Acesso em: 01 jun. 2015. O´BRIEN, Edna. A luz da noite. Rio de Janeiro: Record, 2009. Referências de fonte eletrônica. Disponível em: http://www.cursoobjetivo.br/vestibular/roteiro_estudos/questao_irlanda.aspx. Acesso em: 01 jun. 2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

295

AMORES (NÃO)CONSUMADOS NO FILME OS VIVOS E OS MORTOS, DE JOHN HUSTON

Autora: Lindamar de Fátima Galiotto (UNIANDRADE) Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

RESUMO: Este trabalho faz uma leitura da adaptação do conto “Os mortos”, de James Joyce, pelo diretor John Huston (1987), intitulado Os vivos e os mortos. Ancorando-se nos estudos sobre a teoria da adaptação de Robert Stam e Linda Hutcheon, o objetivo é acompanhar a câmera ao registrar o desempenho da atriz que interpreta Gretta em relação à leitura do poema “Laços partidos” (uma adição do cineasta, que fala sobre uma moça que se entregou ao homem amado e foi abandonada), à canção que ela escuta ao descer as escadas e que a remete ao primeiro amor, Michael Fury, que morreu “por ela”, e as expectativas do marido diante do comportamento distanciado e misterioso da esposa e do fato que estarão, dentro em pouco, apenas os dois em um quarto de hotel. Falaremos, portanto, de três momentos relacionados ao casal principal e ao amor (não) consumado no filme. PALAVRAS-CHAVE: Dublinenses. Os mortos. Adaptação. Consumação.

Este artigo tem como objetivo analisar algumas peculiaridades do amor (não) consumado no conto “Os mortos”, de James Joyce, da coletânea Dublinenses, e na adaptação fílmica Os vivos e os mortos, do diretor John Huston. Nosso recorte inclui três momentos que incluem Gretta: a reação da personagem quando o Sr. Grace faz a leitura do poema “Laços partidos”, que é um acréscimo do diretor John Huston; a reação dela ao descer as escadas na casa das tias Morkan e ouvir o Sr. Darcy cantar “A garota de Aughrim” e a revelação de Gretta frente ás expectativas de Gabriel, já no quarto do hotel.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

296

O filme Os vivos e os mortos foi concluído em 1987, pelo diretor John Huston (1906-1987), figura atuante no mundo cinematográfico, pois além de diretor, foi ator e roteirista. Como diretor fez quarenta e cinco filmes, atuou como ator em quarenta e um e escreveu trinta e seis roteiros. Huston ganhou vários prêmios e indicações, entre elas indicações ao Oscar, na categoria Melhor Diretor, por O tesouro de Sierra Madre, em 1948; Segredo das joias, em 1950; Uma aventura na África, em 1951; Moulin Rouge, em 1952; e A honra do poderoso Prizzi, em 1985. Venceu em 1948 com o filme O tesouro de Sierra Madre. Recebeu quatro indicações ao Oscar, na categoria Melhor Roteiro, por Relíquia macabra, em 1941; O tesouro de Sierra Madre, em 1948; Segredo das joias, em 1950; e Uma aventura na África, em 1951. Foi contemplado em 1948 pelo O tesouro de Sierra Madre. Recebeu uma indicação para o Oscar, na categoria de Melhor Ator (coadjuvante/secundário), por sua atuação em The Cardinal, em 1963. Ganhou dois prêmios com o filme Os vivos e os mortos: no Independent Spirit Awards, na categoria de Melhor Diretor; e o Prêmio Bodil de “Filmes NãoEuropeus”. (Disponível em: http://filmow.com/john-hustona4460/. Acesso em: 15 jul. 2015).

Anjelica Huston, filha de John Huston, é a atriz protagonista do filme Os vivos e os mortos e “tem uma atuação primorosa” e delicada. Huston dirigiu o filme doente e faleceu antes da estreia. “Foi sua última ironia poética”, segundo o blog de Azevedo (acesso em 15 jul. 2015). Atualmente as adaptações estão em todos os lugares: cinema, teatro, TV, romances, musicais, mas “cada mídia tem sua própria especificidade, se não sua própria essência; cada qual tem à sua disposição meios de expressão, uma mídia pode contemplar elementos que outra não pode” (HUTCHEON, 2011, p. 49). Sabemos que “ contar uma história em palavras, seja oralmente ou no papel, nunca é o mesmo que mostrá-la visual ou ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

297

auditivamente em quaisquer das mídias performativas disponíveis” (HUTCHEON, 2011, p. 49), portanto os adaptadores não têm obrigação de se manterem “fieis” aos textos originais (como se tal fidelidade fosse possível). As discussões mais recentes sobre as adaptações cinematográficas de romances passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou traição para um discurso menos valorativo sobre intertextualidade. As adaptações localizamse, por definição, em meio ao contínuo turbilhão da transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem. (STAM, 2003, p. 234)

Robert Stam observa, porém, que a crítica tem sido moralista quando se refere às adaptações e complementa que alguns aludem que o cinema fez um desserviço à literatura, acrescentando que termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização” e “profanação” crescem no debate sobre as adaptações, em contrapartida não podemos esquecer que Embora seja fácil imaginar um grande número de expressões positivas para as adaptações, a retórica padrão comumente lança mão de um discurso elegíaco de perda, lamentando o que foi “perdido” na transição do romance ao filme, ao mesmo tempo em que ignora o que foi “ganhado” (STAM, 2006, p. 2).

Há uma gama variada de discussões sobre adaptação, enquanto uns criticam outros tecem elogios, o certo é que as adaptações estão presentes em nosso cotidiano, pois

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

298

A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. E há claramente várias intenções possíveis por trás do ato de adaptar: o desejo de consumir e apagar a lembrança do texto adaptado, ou de questioná-lo, é um motivo tão comum quanto a vontade de prestar homenagem, copiando-o (HUTCHEON, 2011, p. 28).

Não podemos esquecer que a adaptação é “um processo de criação, a adaptação sempre envolve tanto uma (re)interpretação quanto uma (re-) criação; dependendo da perspectiva, isso pode ser chamado de apropriação ou recuperação” (HUTCHEON, 2011, p. 29). Focaremos a análise do filme Os vivos e os mortos em três momentos em que o amor (não) é consumado: reação de Gretta durante a leitura do poema “Laços partidos”, o comportamento de Gretta quando desce as escadas da casa das tias Morkan e ouve a canção “A garota de Aughrim” e, por último, a revelação de Gretta e a reação de Gabriel no quarto do hotel. Após os convidados ouvirem Mary Jane, sobrinha das tias Morkan, tocar piano, o Sr. Grace é convidado a discursar, mas acaba lendo o poema “Laços partidos” que foi traduzido do irlandês por Lady Gregory. Esta personagem (Sr. Grace) não existe no conto “Os mortos”, de Joyce, ele foi introduzido no roteiro do filme Os vivos e os mortos. O poema trata de uma jovem que foi seduzida pelo amado, pois ele prometeu “um navio de ouro” com “o mastro de prata”, “luvas feitas de escama de peixe”, “túnica da melhor seda da Irlanda” (promessas difíceis de serem cumpridas, na percepção da própria moça). Mesmo sabendo da impossibilidade do cumprimento das promessas, ela se entrega ao rapaz que, depois de tê-la, a abandona. O poema “Laços partidos” diz o seguinte: It is late last night the dog was speaking of you The snipe was speaking of you in her deep marsh. It is you are that lonely bird throughout the woods; ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

299

And that you may be without a mate until you find me. You promised me and you said a lie to me, That you would be before me where the sheep are flocked; I gave a whistle and three hundred cries to you And I found nothing there but a bleating lamb. You promised me a thing that is hard for you, A ship of gold under a silver mast, Twelve towns and a market in all of them, And a fine white court by the side of the sea. You promised me a thing that is not possible, That you would give me gloves of the skin of a fish; That you would give me shoes of the skin of a bird, And the suit of the dearest silk in Ireland. (…) My mother told me, not to be talking with you today or tomorrow, or on the Sunday. It was a bad time she took for telling me that, It was shutting the door after the house was robbed. (…) You have taken the east from me, you have taken the west from me, You have taken what is before me and what is behind me; You have taken the moon, You have taken the sun from me, And my fear is great that you have taken God from me. (Disponível em: AZEVEDO, blog. Acesso em 17 jul. 2015)

As personagens do baile anual das irmãs Morkan, Julia e Kate, ouvem silenciosamente a leitura do poema feita pelo Sr. Grace, enquanto isso Huston vai construindo vagarosamente a entrega de Gretta à nostalgia, Durante a leitura, ela permanece com o olhar distante, entregue a divagações e é, pela primeira ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

300

vez, observada com cuidado pelo marido. Terminado o jantar, os discursos e o baile, é hora dos convidados retornarem para suas casas. Gretta e Gabiel se despedem dos presentes para voltarem ao hotel onde estão hospedados. Gretta desce as escadas e ouve o Sr. D’arcy cantar “A garota de Aughrim”: If you’ll be the lass of Aughrim As I am taking you mean to be Tell me the first token That passed between you and me O don’t you remember That night on yon lean hill When we both met together Which I am sorry now to tell The rain falls on my yellow locks And the dew it wets my skin; My babe lies cold within my arms; Lord Gregory, let me in […] (AZEVEDO, blog, acesso em 19 jul. 2015

Gabriel, no hall, vê Gretta descendo as escadas. No filme, as vestes claras, um lenço branco na cabeça, atrás um vitral colorido, no rosto uma expressão sonhadora, misteriosa, fugidia complementam a cena, é como se estivéssemos presenciando uma santa em seu altar. Todo esse conjunto de imagem e música nos remete a uma cena completamente sublime e, verdadeiramente, poética. A canção acaba e Gretta parece acordar de um sonho, de um devaneio. E Gabriel: volta-se para a esposa e fixa-se nela, atentamente, até o término da canção quando Gretta acorda de seu devaneio e desce os últimos degraus da escada. A expressão do ator não é

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

301

de desejo como descrito por Joyce, mas a de um homem intrigado ao ver Gretta “ausente”, distanciada do mundo que a cerca (REICHMANN. Disponível em: Acesso em 20 jul. 2015).

No conto “Os mortos”, de Joyce, Gabriel é descrito observando Gretta desta forma: Deteve-se ali na penumbra do hall, tentando identificar a canção que a voz entoava e com o olhar fixo na mulher. Havia em sua atitude graça e mistério como se ela fosse símbolo de algo. Perguntou a si mesmo o que poderia simbolizar uma mulher na penumbra, no topo de uma escada, ouvindo música ao longe. Se fosse pintor ele a retrataria naquela pose (JOYCE, 2012, p. 186).

Como vemos, no filme a focalizada é Gretta e no conto, Gabriel. O marido no conto “Os mortos”, em várias passagens, demonstra desejo por sua esposa, como por exemplo quando estão andando na rua procurando um coche para irem ao hotel: Ela caminhava à frente dele tão leve e tão ereta que ele desejava alcançá-la na surdina, agarrá-la pelos ombros e sussurrar-lhe ao ouvido algo tolo e apaixonado. Parecia-lhe tão frágil que tinha ímpetos de defendê-la de um perigo qualquer e então ficar a sós com ela. Momentos da vida íntima dos dois irromperam-lhe na memória como estrelas (JOYCE, 2012, p. 189).

Um pouco adiante outra passagem: Uma onda de felicidade terna e ainda mais intensa emergiu do coração dele e percorreu-lhe as artérias numa cálida torrente. Como o brilho terno das estrelas, momentos da vida da vida deles juntos, dos quais ninguém tinha e jamais teria conhecimento, precipitavam-se e iluminavam-lhe a memória.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

302

[...] Ansiava por ficar a sós com ela. Quando todos estivessem no quarto do hotel, então estariam a sós. Ele pronunciaria seu nome à meia-voz (JOYCE, 2012, p. 189).

Em frente ao hotel: Naquele momento ele tinha se sentido orgulhoso e feliz, feliz por tê-la para si, orgulhoso de sua postura graciosa e digna. Mas agora, após tantas memórias agradáveis, o primeiro toque do corpo dela, musical e exótico e perfumado, despertou nele um desejo ardente. Protegido pelo silêncio dela pressionoulhe o braço contra seu corpo; e, em frente à porta do hotel, ele teve a sensação de que haviam escapado de suas próprias obrigações, escapado do lar e dos amigos e fugido juntos com corações exultantes para uma nova aventura (JOYCE, 2012, p. 190).

Subindo os degraus do hotel: Os dois seguiram-no em silêncio, com passos suaves sobre o espesso tapete que cobria os degraus. Ela subia logo atrás do porteiro, de cabeça baixa, com os ombros delicados caídos como se suportassem um peso, e com a saia firmemente segura. Ele desejava abraçá-la na altura dos quadris e suspendê-la no ar, pois seus braços tremiam de desejo de tocá-la e somente cravando as unhas na palma da mão pôde ele conter o impulso de arrebatá-la (JOYCE, 2012, p. 190-1).

No filme, o desejo de Gabriel é menos perceptível, mas podemos considerar o beijo dado na mão de Gretta, no coche, como um convite à intimidade. Já no quarto do hotel, Gabriel passa a mão no cabelo e afaga os ombros de Gretta carinhosamente e pergunta o que ela está sentindo. Gretta não se encontra na mesma sintonia do marido e conta que está pensando na música “A garota de Aughrim”, porque a faz lembrar de um jovem, Michael

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

303

Furey, que ela conheceu na adolescência. Michael costumava cantar a mesma canção para ela. Gretta conta que ele era delicado, de olhos grandes e escuros, costumavam passear quando ela morava em Galway, na casa da avó, e que morreu quando tinha dezessete anos. Gabriel pergunta de que o jovem morreu e Gretta diz que ele tinha morrido por ela, então relembra que foi no começo do inverno e que ia estudar em um convento em Dublin. Michael Furey já estava doente e quando soube que Gretta partiria foi procurá-la abaixo de chuva, uma semana depois quando Gretta já estava no convento soube que ele havia morrido, ela chora e diz que ele tinha morrido por ela. Em seguida, ainda chorando deita na cama e dorme. No texto “Os mortos” o narrador conta: Ele se esticou cuidadosamente embaixo dos lençóis e ficou deitado ao lado da esposa. [...] Ele pensou no fato de que aquela que estava deitada ao seu lado ocultara no coração durante tantos anos aquela imagem dos olhos do amado dizendo a ela que não queria viver. Lágrimas abundantes encheram-lhe os olhos. Ele próprio jamais tivera esse tipo de sentimento em relação a uma mulher mas sabia que aquilo era amor. Mais lágrimas vieram-lhe aos olhos e na penumbra ele imaginou ver a figura de uma árvore pingando. Havia outras figuras em volta. A alma dele se acercara da região habitada pela vasta legião dos mortos. Ele pressentia a existência errática e perambulante dos mortos, embora fosse incapaz de aprendê-la. Sua própria identidade desaparecia num mundo cinzento e incorpóreo: o mundo sólido, antes construído e habitado por esses mortos, dissolvia-se e se esvaía. Leves batidas na vidraça fizeram-no virar-se para a janela. Recomeçava a nevar. [...] Sim, os jornais tinham acertado: a neve cobria toda a Irlanda.[...] Precipitava-se também no cemitério solitário da colina onde jazia Michael Furey. Acumulava-se sobre as cruzes inclinadas e sobre as lápides, sobre as pontas do gradil do pequeno portão, sobre os espinhos toscos. Sua alma desfalecia lentamente enquanto ele ouvia a neve precipitandoANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

304

se, placidamente no universo e placidamente se precipitando, descendo como a hora final sobre todos os vivos e os mortos (JOYCE, 2012, p. 196-7).

Huston, no filme, mostra um Gabriel amargurado, olhando pela janela do hotel, tendo diversos pensamentos e contemplando a neve que cai: [...] desta vez sabemos deles pela voice over e assistimos algumas imagens recriadas por Huston, como a cena do velório da tia Julia. Gabriel permanece na janela e observa os flocos de neve que caem por toda a Irlanda, sobre todos os vivos e os mortos. No último momento, a neve que cai invade seu pensamento, tanto no conto quanto no filme. O branco da neve paira como uma premonição de morte (REICHMANN, blog, Acesso em: 21 jul. 2015).

Concluímos que, no filme, três amores foram mostrados: o amor do poema “Laços partidos” que é consumado, porém seguido de abandono; o amor de Gretta por Michael Furey que não foi consumado, mas para sempre presente e vivo na lembrança dela; o amor de Gabriel personificado pelo desejo que sente por Gretta, que se concretiza pela vida em comum do casal, contudo não se realiza como desejo intenso, pois Gretta estava nostálgica, sonhadora, relembrando seu amor adolescente.

Referências AZEVEDO, Reinaldo. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/ reinaldo/geral/um-desagravo-anjelica-huston-os-vivos-osmortos/. Acesso em: 15 jul. 2015. JOYCE, James. Dublinenses. Trad. José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

305

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. 2. ed. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2013. REICHMANN, Brunilda. T. Disponível em: http://teorialiterariauniandrade.blogspot.com.br/p/os-mortos-o-conto-de-joyce-e-ofilme-de_07.html, Acesso em 20 jul. 2015. STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Disponível em: http://filmes.seed.pr.gov.br/ arquivos/File/robertstam.pdf. Acesso em: 01 jul. 2015. STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 5. ed. Trad. Fernando Mascarello. Campinas, SP: Papirus, 2014. SITE sobre personagens do cinema. Disponível em: http:// filmow.com/john-huston-a4460/. Acesso em: 15 jul. 2015).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

306

A DUALIDADE E O EXISTENCIALISMO NO CONTO OS MORTOS, DE JAMES JOYCE Autores: Luiz Fernando Warumby (UNIANDRADE) Maria da Consolação Soranço Buzelin (UNIANDRADE) Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira (UNIANDRADE)

RESUMO: Esse artigo propõe-se analisar as questões existenciais presentes em “Os mortos”, conto de James Joyce, publicado em Dublinenses, 1914. Na tentativa de compreendermos o mundo que cerca Gabriel Conroy, o personagem principal da narrativa, com seus anseios e o enclausuramento em seu mundo, nos ancoraremos nos conceitos de Mikhail Bakhtin, presente em Estética da criação verbal, 2011, no capítulo “A questão do homem interior- da alma”, bem como pela percepção existencialista de Jean- Paul- Sartre, em O ser e o nada, 2014, no capítulo “A origem da negação”. Poderemos assim melhor compreender as dúvidas e incertezas desse homem, na busca de respostas que nunca serão totalmente encontradas. Talvez essa angústia e incerteza sejam o maior mistério da condição humana, ou seja, compreender e vivenciar a problemática da morte. PALAVRAS – CHAVE: Existencialismo. Condição Humana. Alma. Incertezas. Morte.

Introdução “Os Mortos”, de James Joyce, é o último, de uma coletânea de quinze contos do livro Dublinenses, lançado em 1912. As cópias foram queimadas por um desconhecido, só restando um volume. Foi reeditado mais tarde, 1914. Como o próprio nome indica, Dublinenses, fala de Dublin e seus habitantes. Os contos do livro, inovadores, prenunciavam o Modernismo. Em “Os mortos” há uma crítica à paixão política, e são colocados em evidência os costumes da sociedade da época.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

307

Narrado de forma linear, com fluxo de consciência e monólogo interior; tem muitas características no tocante aos costumes da Irlanda, principalmente às comidas servidas na ceia: “Enquanto Gabriel e a senhorita Daly serviam os pratos com fatias de ganso, carne assada ou pernil, Lilly ia de convidado a convidado, com uma travessa de batatas dorée quentes, embrulhadas em um guardanapo branco” (JOYCE, 2012, p. 168). Possui um simbolismo bastante forte da neve em todo o conto, do qual iremos tratar mais adiante. O conto se inicia num ambiente festivo, quando os convidados da festa de fim de ano das Senhoras Morkan, tias de Gabriel Conroy, o personagem principal, estão sendo recepcionados, e termina no hotel onde Gabriel e Gretta, a sua esposa, vão passar a noite. As lembranças ocasionais de Gabriel sobre a sua mãe, sobre a infância e a vida adulta são entremeadas de reflexões: Uma sombra percorreu-lhe o rosto ao lembrar-se da obstinada oposição que a mãe fizera ao seu casamento. Certas frases ferinas machucavam-no ainda na memória. Ela afirmara certa vez, ser Gretta uma provinciana interesseira, e isso não era verdade. Gretta é quem cuidara dela durante a longa e fatal enfermidade, em Monkstown. (JOYCE, 2012, p. 160)

A narrativa é, dessa forma, orientada pela conduta de Gabriel na festa, que delimita seu caráter soberbo, sua memória, e a descoberta da verdade de sua existência, que o levam a uma deflagração dos encontros com o passado, com experiências do presente e com as elucubrações futuras, momentos que são considerados “epifanias”, ou seja, “transitou para o circuito literário, graças a James Joyce, com o sentido de “iluminação, “revelação” (MOISÉS, 2004, p. 156).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

308

Para nossa análise, dividiremos o conto em três partes: na primeira, serão apresentadas as pessoas que se reúnem na festa, onde se notará a estagnação da sociedade dublinense presa a valores temporais e mundanos. Na segunda parte, será colocado em evidência o discurso que Gabriel faz na festa com ênfase ao enclausuramento em seu mundo, construído com suas próprias conclusões e certezas e, na última parte, o colóquio de Gabriel e Gretta, sua esposa, no hotel, local em que Gabriel confronta-se com a sua existência, uma vez que as certezas que o solidificavam não existem mais. Como embasamento teórico, nos ancoraremos nos conceitos de Mikhail Bakhtin, presentes em Estética da criação verbal, sobre “A questão do homem interior - da alma”, bem como na percepção existencialista de Jean-Paul Sartre, em O ser e o nada, sobre “A origem da negação”. Em nossa análise será abalizada, como tema central, a mortalidade do ser humano perdido em um mundo sem comunicação e sem propósito. Em um meio no qual persistem regras que são convenções sociais, isto é, sem um argumento plausível que as sustentem, e ações e falas das personagens que, simplesmente, obedecem a um script social para não serem mal faladas e continuarem fazendo parte de um grupo, a aparente contradição entre o ambiente festivo e o título “Os mortos”, faz o leitor refletir, num primeiro momento, sobre a finitude de sua existência. A festa Na primeira parte do conto, Gabriel Conroy chega à festa, e é recebido por Lilly, a filha do zelador: - Diga-me, Lily – perguntou em tom amável – você ainda vai à escola? - Oh, não senhor! Deixei de estudar há mais de um ano.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

309

- Suponho então – acrescentou Gabriel, brincando – que um dia desses iremos ao seu casamento? A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume: - Os homens de hoje são todos uns aproveitadores bons de conversa. Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e, sem olhar para ela, tirou as galochas e esfregou vigorosamente o cachecol nos sapatos de verniz. (JOYCE, 2012, p.152)

No diálogo acima, Gabriel inicia a conversa num tom amável, mostrando-se receptivo à resposta de Lilly, que, num primeiro momento, mostra-se solícita e, de forma respeitosa, responde. Contudo, o tom de Lilly muda, uma vez que Gabriel dá a entender que ela abandonou a escola para casar. Lilly sente-se ofendida e Gabriel tem a sua autoconfiança abalada, por isso enrubesce, ficando envergonhado. No entanto, Gabriel, para mostrar-se superior, dá a Lilly uma moeda: Quando terminou de lustrar os sapatos, endireitou-se, e ajustou o paletó em seu corpo robusto e, afobadamente, tirou uma moeda do bolso: - Lilly, disse ele, colocando a moeda em sua mão - Estamos no Natal, não é? Tome... uma pequena... Apressou-se em direção à porta. (JOYCE, 2012, p. 152-153)

Dessa forma, ele acredita que ao dar dinheiro a Lilly pode apagar a situação embaraçosa, redimir-se frente a ela e comprar a sua estima. Gabriel considera que o equívoco ocorreu devido ao seu deslocamento e inadequação social, porque é difícil conciliar a simplicidade das pessoas com a sua superioridade intelectual, pois se considera um homem autossuficiente, meticuloso, observador e superior, e que não mostrava estar à vontade entre os convidados: “A forma grosseira como os homens batiam os pés

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

310

e arrastavam os sapatos no chão recordou-lhe a diferença de cultura que os separava” (JOYCE, 2012, p. 153). O primeiro clímax do conto decorre dessa certeza de Gabriel ao acreditar que é superior aos demais, e, por isso é sempre agradável e bem quisto pelas pessoas com as quais convive. Era um rapaz forte, bastante alto. O acentuado rubor de suas faces subia até a testa onde se atenuava em manchas informes e rosadas. Em seu rosto liso, cintilavam sem descanso as lentes e os aros dourados dos óculos que lhe cobriam os delicados e inquietos olhos. Os cabelos, negros e lustrosos, eram repartidos no meio e penteados numa longa curva atrás das orelhas, onde se enrolavam levemente no sulco deixado pelo chapéu. (JOYCE, 2012, p. 152)

Observa-se também, que Gabriel, como Narciso, ainda está voltado apenas para a sua beleza, pois, o reconhecimento da sua superioridade só o faz afirmar ainda mais que ele tem qualidades positivas que o fazem diferente dos outros que não as têm. Segundo o Dicionário Rideel de Mitologia: “Narciso, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, viveria muito desde que não contemplasse a sua imagem. Tornou-se o símbolo do egocentrismo, do amor próprio e da vaidade” (JULIEN, 205, p. 153). Na continuação da festa há o seguinte diálogo entre Gabriel e Molly Ivors, que é considerada pelo narrador como uma “jovem falante e desembaraçada”: Ao tomarem seus lugares para a dança, ela afirmou inopinadamente: - Tenho uma conta a ajustar com você. - Comigo? Ela balançou a cabeça com ar grave. - O que é? – perguntou Gabriel, sorrindo de seus modos solenes. - Quem é G.C.? – indagou a jovem encarando-o de frente.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

311

Gabriel enrubesceu e ia franzir a testa como se não tivesse compreendido, quando ela prosseguiu: - Oh, meu ingênuo farsante! Descobri que você escreve para o Daily Express. Não se envergonha disso? - Por que haveria de me envergonhar? - perguntou Gabriel piscando os olhos e tentando sorrir. - Bem. Estou envergonhada de você. – disse ela com franqueza – Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que era anglófilo. (JOYCE, 2012, p.160)

A primeira frase do trecho acima lembra a organização do baile, quando os participantes da dança já têm lugares e funções definidas. Dessa forma, a festa ocorre normalmente, em conformidade com o que é convencionado pela sociedade, de modo racional e equilibrado. Gabriel, nesse momento da narrativa, procura sintonizarse com o ambiente festivo ao tomar seu lugar na dança, voltando à sua certeza existencial. Entretanto, agora ele encontra um interlocutor que parece ser mais gabaritado que os outros, pois Molly Ivors toma a iniciativa do diálogo e num tom de desafio indaga sobre a identidade de G. C. que escreve para o Daily Mail. Num primeiro instante, Gabriel procurou manter o equilíbrio pela manutenção de seus modos solenes. Contudo, enrubesceu novamente e não conseguiu esconder sua identidade de escritor daquele jornal para a senhorita Ivors. A colocação de Molly poderia ser tomada como uma brincadeira, mas na verdade é uma provocação, que novamente abalou a autoconfiança de Gabriel, colocando-o, aparentemente, como traidor dos irlandeses, porque Molly afirma que Gabriel ao escrever para um jornal inglês, logicamente era anglófilo, isto é, amigo dos ingleses. Gabriel espanta-se com as afirmações de Molly, pois não consegue ver ligação entre escrever resenhas e a política. Ele tem bastante prazer naquele trabalho literário:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

312

Não sabia como enfrentar aquele ataque. Queria dizer que a literatura estava acima da política, mas eram amigos há muitos anos e suas carreiras- primeiro na universidade, depois como professores - tinham sido paralelas: não poderia arriscar uma frase grandiosa com ela. (JOYCE, 2012, p. 161)

Dessa forma, Gabriel se sente desconfortável, uma vez que está deslocado, dentro de um contexto que aparentava ser confortável para a sua existência social, a qual deveria ser valorizada pelos participantes da festa. Assim, novamente ele sofre pela sua inadequação social. Não podemos esquecer de que na época em que se passa a narrativa, a Irlanda estava em vias de se tornar independente da Inglaterra, e, por isso, havia a tensão nacionalista entre os ingleses e os irlandeses, o que confirma nossa citação de crítica política presente no conto, além de que, pode estar refletida nesse trecho a voz do autor, a forma de justificar, por meio da literatura, o seu amor ao país e até a sua inadequação enquanto irlandês. O discurso No início da narrativa, logo depois de seu encontro com Lilly, e do incidente que ocasionara, Gabriel encontra-se no salão onde as pessoas dançam: Estava ainda perturbado pela resposta brusca e rude da jovem. O incidente lançara uma sombra sobre ele, que agora tentava dissipá-la ajustando os punhos da camisa e o nó da gravata. Tirou um pedaço de papel do bolso do colete e leu os tópicos que anotara para o seu discurso. [...]. O discurso todo era um equívoco, um completo fracasso. (JOYCE, 2012, p. 153)

Essa constatação faz com que Gabriel reconheça que o seu discurso de final de ano seja revisto, pois, ao considerar-se

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

313

superior às pessoas que estão ao seu redor, “temia que estivesse acima da compreensão dos ouvintes” (JOYCE, 2012, p. 153). Seu medo reside no fato de errar ao não se adequar socialmente, pois se sentia superior ao que lhe era oferecido. Considerava o seu discurso como fadado ao fracasso porque os convidados não o compreenderiam, e que somente ele tinha a erudição para compreender os versos de Robert Browning, ou até mesmo versos de outros escritores mais populares como os citados: Shakespeare e Thomas Moore. O hotel Na terceira parte de nossa análise de “Os mortos”, Gabriel e sua esposa Gretta, vão para um hotel, onde irão passar a noite. Ele encontra-se recuperado das duas situações que abalaram a sua autoconfiança e, por conseguinte, a sua reputação social impecável, e na suposta proximidade com a esposa apercebe-se de que: “Momentos de sua vida íntima irromperam como estrelas na memória” (JOYCE, 2012 p. 182). Gretta não compartilha da mesma euforia de seu esposo e, no quarto do hotel, encontra-se triste e introspectiva. Gabriel depois de vê-la na festa, na escada, parada, ouvindo uma música ao fundo, intriga-se. Ela acaba por revelar que a música lhe trazia a lembrança de alguém que conhecera quando jovem: Procurou manter o tom de frio interrogatório, mas sua voz soou humilde e indiferente: - Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta. - Queríamo-nos muito bem nesse tempo – respondeu ela. Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar arrastá-lo ao que pretendia. Gabriel começou a acariciar-lhe a mão e disse, também com tristeza. - E por que morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose,foi?

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

314

- Creio que morreu por minha causa. (JOYCE, 2012, p.187)

Se no primeiro diálogo apresentado Gabriel sentiu-se culpado e no segundo perplexo, agora ele encontra-se desestabilizado, pois percebe que suas verdades não existem mais. As sucessivas desestabilizações de suas certezas minam a sua autoconfiança e o despem da máscara daquele homem talhado pelas convenções sociais e pelos olhares externos. Agora, Gabriel compreende que sua vida retilínea e metódica não é suficiente para sobreviver socialmente. A constatação de que Gretta havia tido um passado, conhecera alguém, faz com que ele se recorde de outros mortos e os que estavam na festa desapareceriam também: “Pobre tia Júlia! Ela também seria uma sombra (...) surpreendera esse fúnebre presságio em sua face, quando ela cantava. (...). Um por um, estavam todos se transformando em sombras” (JOYCE, 2012, p. 190). Conforme afirma Bakhtin: Os valores de uma pessoa qualitativamente definida são inerentes apenas ao outro. Só com ele é possível para mim alegria do encontro, a permanência com ele, a tristeza da separação, a dor da perda, posso encontrar-me com ele no tempo e no tempo mesmo separar-me dele, só ele pode ser e não ser para mim. (BAKHTIN, 2011, p. 96)

A necessidade de olhar para dentro de si, provocada por situações embaraçosas, ou mais do que isso, questionadoras e desafiadoras, faz dele um personagem cíclico, o qual se volta sempre para a sua situação emocional e existencial. Esse momento pode ser representado quando Gabriel olha a neve que cai na vidraça. A neve nesse conto tem uma simbologia muito forte. Conforme o dicionário de símbolos, define-se a neve como:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

315

Símbolo do indeterminado, que preceda revelações importantes: é o prelúdio da manifestação. No desenrolar da narrativa, significa uma perturbação, uma transição no tempo, uma passagem mais fantástica ou maravilhosa. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2005, p. 634)

Portanto, para Gabriel, a neve que cai é apenas um fenômeno da natureza. Quando ela recobre a paisagem, invade também o pensamento dele e evoca, pelo seu branco, a igualdade de todas as pessoas: os vivos que irão morrer e os mortos que estão entre nós. Essa neve, ao mesmo tempo em que protege a figura imponente de Wellington, cintila, lembrando e destacando a importância histórica de Wellington para a formação da Irlanda. Gabriel busca a fuga e o abrigo da neve, como se fosse a sua capa protetora para confortar a mente. Em Sartre, podemos encontrar uma reflexão significativa sobre as muitas interrogações sobre o ser e não ser, a vida e a morte, que se apresentam ao mesmo tempo como manifestação do ser e do vazio de ser: Partimos em busca do ser e parecia que tínhamos sido levados a seu núcleo pela série de nossas indagações. Eis que uma olhada na própria interrogação, quando supúnhamos alcançar nossa meta, nos revela de repente estarmos rodeados de nada. A possibilidade permanente do não ser, fora de nós e em nós, condiciona nossas perguntas sobre o ser. E é ainda o não ser que vai circunscrever a resposta: aquilo que o ser será vai se recortar necessariamente sobre o fundo daquilo que não é. Qualquer que seja a resposta pode ser formulada assim: “O ser é isso, e, fora disso, nada”. (SARTRE, 2014, p. 46)

Nesse “nada” que atinge Gabriel, ele não encontra respostas. As três passagens que marcam o desnudamento de Gabriel podem ser encaradas como ritos que não precisaram de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

316

longos tempos de maturação ou de uma cerimônia específica. Na verdade, a cerimônia está no próprio baile e no hotel, com sua mulher, as quais propiciaram ao personagem ultrapassar o nível da reflexão, chegando até a percepção da dúvida que passou a guiar a incerteza de sua própria existência. Considerações finais Sem a dúvida que gera a procura por respostas nos seres humanos, o homem não seria um ser lógico e racional. A morte da certeza e o florescimento da dúvida é o que se percebe como a passagem de uma situação determinada a outra, uma vez que o objetivo é idêntico, isto é, o abalo das estruturas que suportam a imagem social que Gabriel vê transparecer em sua vida. Ao mesmo tempo em que relembra pontos do seu discurso, agora voltado para a hospitalidade irlandesa, sente-se incomodado com as palavras de Molly Ivors, que, apesar de elogiá-lo, não crê em suas palavras: “Molly Ivors elogiara-o. Teria sido sincera? Será que, apesar de todo seu proselitismo, ela teria uma verdadeira vida interior? Até aquela noite, nunca existira animosidade entre eles” (JOYCE, 2012, p.164). Assim, Gabriel lembra uma frase que escreveu num dos seus artigos, a qual reflete exatamente como está se sentindo naquele baile: “Sente-se estar ouvindo uma música torturada pelo pensamento” (JOYCE, 2012, p.164). Bakhtin, em sua obra Estética da criação verbal, afirma: Quando as fronteiras estão dadas, a vida pode ser disposta e enformada nelas de modo inteiramente distinto, da mesma forma que a exposição do fluxo do nosso pensamento pode ser construída de maneira diferente quando a conclusão já foi encontrada e dada (foi dado o dogma) e quando ainda está sendo procurada. A vida determinada, livre das garras do porvir, do futuro, do objetivo e do sentido, torna-se emocionalmente mensurável, musicalmente exprimível. (BAKHTIN, 2011, p.98-99)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

317

Gabriel acreditava nos limites dessas fronteiras e por isso vivia o seu mundo construído em suas próprias conclusões e certezas. Não cabe em suas reflexões o conceito de desvio na relação entre o eu e o outro, como afirma Bakhtin que “em linhas gerais, o homem é uma equação do eu e do outro, um desvio em face das significações axiológicas” (BAKHTIN, 2011, p. 99). Na verdade, o dualismo com o qual Gabriel enxerga a vida não considera uma relação entre o eu e o outro, pois ele traça paralelos ao pensar em superior e inferior, cultura erudita e popular e erro ou acerto, além de não perceber o desvio que é o homem, pois ele o vê justamente como um axioma completo pelo que é e representa na sociedade. Nesse sentido, não podemos deixar de mencionar o próprio título do conto “Os mortos”. Segundo o dicionário de símbolos: A morte é o aspecto perecível e destrutível da existência. Ela indica aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas. [...]. Ela é revelação e introdução. Todas as iniciações atravessam uma fase de morte, antes de abrir o acesso a uma vida nova. Nesse sentido, ela tem um valor psicológico: ela libera as forças de ascensão do espírito. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1996, p. 621)

Assim Gabriel vê-se frente à realidade, momento em que compreende melhor a sua existência. No excerto do poema “Ela carpe Rahoon afora”, encontramos também esses momentos: Das sombras sim nossos corações. Ó amor, Jazerão e frios como jazia o do meu amante Sob as urtigas cinza lua, ah o negro bolor E a chuva lamuriante. (JOYCE, 2015, p. 11)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

318

Encontram-se também, no final de “Os mortos”, momentos de paralisia e de epifania. Instantes reveladores que fazem com que Gabriel, no quarto com Gretta, ao se confrontar com a realidade, tente escapar da idéia de sua própria morte. Talvez essa seja, precisamente, a condição humana, situada sempre nos limites entre a existência e o nada, entre a vida e a morte, não como pontos definidos de forma absoluta, mas, como instantes de uma mesma e única totalidade da existência.

Referências BAKHTIN, M. A questão interior da alma. In: Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 91- 120. CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. JOYCE, J. Os mortos. In:_____. Dublinenses 1. ed. Trad. Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012, p. 150-191. ______. Ela carpe Rahoon Afora. In:______. Pomas doiscontoscada. Tradução de Eclair Antonio Almeida filho e de Josina Nunes Magalhães Roncisvalle.São Paulo: Lumme, 2015, p. 11. JULIEN, N. Dicionário Rideel de mitologia. 1. ed. Tradução de Denise Radonovic Vieira. São Paulo: Rideel, 2005. MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

319

SARTRE, J, P. O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia Guedes. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural. 1987. ______. A origem da negação. In: ______. O ser e nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 23. ed. Tradução de Paulo Perdigão. Rio de Janeiro: Vozes, 2014, p. 43-64.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

320

O DIÁRIO DO AMAZONAS DE ROGER CASEMENT Autora: Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE) RESUMO: Este trabalho analisa The Amazon Journal of Roger Casement (1997), com o objetivo de traçar o perfil da figura histórica, o cônsulgeral do Império Britânico no Brasil (1909-1913), que viaja à Amazônia peruana para investigar denúncias de atrocidades contra as populações indígenas na extração de borracha. Admirador de Casement Vargas Llosa transforma-o em protagonista do romance El soño del celta.(2010). Utiliza-se na análise a estrutura da operação historiográfica, estabelecida por Paul Ricoeur: estágio do testemunho e dos arquivos; fase das indagações e plano da escrita da representação historiadora do passado. O registro dos testemunhos de cidadãos britânicos de Barbados, executores dos castigos bárbaros, e das indagações e reflexões de Casement desenha o perfil do diarista: observador perspicaz, juiz destemido e defensor dos direitos humanos. Demonstrase como esse retrato psicológico e moral contrasta com as acusações de pedofilia e traição à pátria que o condenaram à morte, em 1916. PALAVRAS-CHAVE: Roger Casement. Diário do Amazonas. Borracha. Investigação.

No ensaio “As raízes do humano”, Mário Vargas Llosa analisa a dialética entre civilização e barbárie em O coração das trevas: a novela de Joseph Conrad seria uma diatribe contra os crimes perpetrados pela Companhia Belga de Leopoldo II, responsável pelo extermínio de cinco a oito milhões de nativos entre os anos de 1885 e 1906. Entre as vozes de protesto e denúncia, observa Llosa no prólogo do ensaio, as do irlandês, Roger Casement, e as do belga, Edward Morel, “mereceriam as honras de um grande romance” (2007, p. 38). Vargas Llosa concretizou seu propósito com a publicação, em 2010, do romance El sueño del Celta, em que se utiliza de um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

321

simulacro de crônicas históricas e diários pessoais para aproximar o livro do tempo em que o romance transcorre. De fato, a linguagem do sonho está muito próxima ao estilo do Roger Casement histórico no seu diário do Putumayo, editado e publicado em 1997 pelo pesquisador Angus Mitchell, com o título de The Amazon Journal of Roger Casement. A pesquisa que realizamos estabelece na análise do Diário do Amazonas uma relação similar àquela existente entre as fases da operação historiográfica, conforme a epistemologia das ciências históricas de Paul Ricoeur. The Amazon Journal configura o estágio do testemunho e dos arquivos que conduz, no percurso epistemológico, pela fase das indagações ao plano da escrita da representação historiadora do passado. O romance de Vargas Llosa representa esta última fase da operação historiográfica, segundo Paul Ricoeur, isto é, o plano da escrita da representação historiadora do passado. Preâmbulo: O Diário do Putumayo e os Black Diaries Dentre os documentos pessoais de Roger Casement, arquivados na Biblioteca Nacional da Irlanda, Angus Mitchell teve acesso, em 1995, ao vasto manuscrito da viagem ao Putumayo que, provavelmente em virtude do volume, fora praticamente ignorado. Mitchell viria a editar e publicar esse material em 1997 como The Amazon Journal of Roger Casement, agrupado em três partes intituladas “A viagem ao Putumayo”, “O diário do Putumayo” e “A caminho de Londres”, precedidas de informações sobre a controvérsia a respeito dos diários de Casement. Os diários de Casement, de que trata a primeira parte do livro de Mitchell, foram mencionados em público pela primeira vez no quarto dia do julgamento por traição e criaram rumorosa celeuma na imprensa e nos meios intelectuais britânicos. Denominados de Black Diaries abrangem material apreendido pela Scotland Yard entre os papéis de Roger Casement. A par de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

322

anotações inócuas, o material contém relatos de atos sexuais em Londres, no Congo, Madeira, nas Ilhas Canárias e em Serra Leone, principalmente com meninos nativos. Na Inglaterra eduardiana, um crime quase tão grave quanto o de traição à pátria. Especialistas em grafologia e pessoas do círculo íntimo de Casement identificaram sua letra em fac similes dos manuscritos, mas a firme confiança na estatura moral de Casement despertou dúvidas sobre a autenticidade do material, que teria sido forjado pela Inteligência Britânica. Até hoje, quase cem anos após os acontecimentos, as opiniões permanecem divididas. O governo britânico declara o caso encerrado. Todavia, desde os anos cinquenta, adeptos da teoria da falsificação levantam dúvidas sobre a autenticidade dos Black Diaries. Foram liberados ao público, em 1994, o material que constitui os Black Diaries, mais de cento e setenta arquivos fechados: a questão dos diários de Casement passou a constituir história. O exame direto dos documentos, entretanto, não trouxe o esperado esclarecimento e as posições, tanto do governo e da imprensa britânica a respeito do Gay Traitor, como a dos grupos questionadores da autenticidade dos diários, permanecem inalteradas. Já a autenticidade dos arquivos pessoais de Casement, que deram origem ao diário do Putumayo, jamais foi questionada. O próprio aspecto físico desses arquivos % montanhas de manuscritos esparsos, cuidadosamente datados, que não tinham sido manipulados anteriormente % fala em defesa da veracidade das informações. Ao examinar esses arquivos, em 1995, Angus Mitchell começa a duvidar da autenticidade dos Black Diaries, que aceitara até então. Percebe inúmeras discrepâncias de dados e datação entre esses arquivos e outros, já manipulados extensivamente. Mitchell passa a acreditar em um plano brilhante da Inteligência Britânica para impedir que Casement se tornasse um mártir.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

323

O diário do Putumayo é um relato da viagem de Casement à Amazônia peruana, quando cônsul-geral do governo britânico no Brasil, para investigar denúncias de atrocidades contra as populações indígenas empregadas na indústria da borracha. O relato contundente das condições em que se realizam as pseudotrocas comerciais com os nativos revela a natureza firme e destemida do Casement histórico que inspira a caracterização do personagem de ficção. A análise de cartas de Casement e do diário do Amazonas, como gêneros híbridos, quer em acepção especifica, no material arquivado, quer como simulacro ficcional, revelador de suas reflexões íntimas, embasa a construção do perfil do diaristapersonagem. A operação historiográfica Estágio do testemunho e dos arquivos No prelúdio do capitulo intitulado “História/Epistemologia”, em A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricoeur recorre ao Fedro de Platão para explanar o nascimento mítico da escrita da história e a valoração maior atribuída no mito ao discurso oral % “o discurso da verdadeira memória, de nascimento legítimo, inscrito na alma”. Todavia, tanto o discurso oral como o escrito são escrituras, o que permite dizer que ambos são aparentados e “o discurso escrito é de certa forma uma imagem (eidólon) daquilo que na memória viva é vivo” (2007, p. 153). Para conhecer o Casement histórico e levantar seu perfil seria necessário ouvir sua voz. Mas onde ouvi-la? Na falta de testemunhos orais, propomo-nos utilizar as cuidadosas anotações feitas durante a viagem ao Putumayo, bem como as cartas em que ouvimos suas preocupações sobre as dificuldades da missão – anotações que constituem a segunda parte do Diário do Amazonas, editado por Mitchell.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

324

Do S.S. Hilary no mar. 02 de agosto de 1910 Bulldog, meu velho. Viagem agradável até aqui – apesar do excessivo contato com a Comissão da Companhia Peruana do Amazonas. Pretendo manter-me à parte tanto quanto possível sem ferir as regras da polidez. Acho que esta viagem não vai trazer nenhum resultado – talvez indireta, mas não diretamente. (...) É praticamente impossível chegar a um juízo ou seguir qualquer linha de investigação independente quando do começo ao fim estarei recebendo tudo “de favor”. (...) Com meus melhores votos para todos. Seu sempre – Tiger (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 65)

Bulldog. e Tiger são apelidos-símbolo de lealdade, força e coragem usados por Edward Morel – o belga mencionado por Llosa – e Casement, que sedimentam a longa amizade iniciada no Congo, a qual terá final melancólico com as acusações de traição ao Império Britânico, e de pedofilia e perversão sexual. A tarefa da Comissão da Companhia Peruana do Amazonas, formada por ingleses ligados à própria Companhia, é tanto investigar a veracidade das acusações de crueldades praticadas contra os índios na região do Putumayo, onde o empreendimento conjunto britânico-peruano se desenvolve, como fiscalizar suas operações comerciais. Os testemunhos dos barbadianos, bem como os relatos de conversas informais com pessoas ligadas à Companhia Peruana do Amazonas, correspondem à primeira fase da operação historiográfica: a dos testemunhos e arquivos. A missão de Casement é complexa e inúmeros os obstáculos geográficos, linguísticos e, principalmente, políticos que se lhe opõem: (1) para atingir seu destino, Iquitos, cidade principal da província de Loreto e sede da Companhia, bem como

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

325

as estações de coleta de borracha na região do Putumayo, Casement é forçado a utilizar-se dos barcos da Companhia e hospedar-se em suas instalações; (2) os raros intérpretes das principais línguas indígenas, o huitoto e o borá, têm ligação com a companhia; (3) Julio Arana, presidente da Companhia, tem força política superior à do próprio governo peruano. É quem garante o pagamento dos salários de juízes, policiais e de funcionários civis e militares de Iquitos, sempre em atraso. Arana goza de enorme prestigio como civilizador do Putumayo, o patriota que garantiu ao Peru a posse de territórios reivindicados pela Colômbia. Casement tem plena consciência de estar se lançando em luta desigual, de resultados incertos: Se fôssemos realmente uma Comissão investida de autoridade e poder para investigar de fato e colher provas sob juramento, e dispuséssemos de intérpretes adequados e guias com algum conhecimento local de homens, lugares e transações, que estranhas revelações a respeito de “suprimento de mão de obra”, “propriedades da borracha” e “trabalho dos índios” poderíamos trazer à luz! (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 83)

Casement registra meticulosamente o dia-a-dia de sua missão e oferece aos possíveis destinatários um testemunho espontâneo dos fatos registrados quase que simultaneamente à observação. A brevidade temporal entre observação e registro característica do gênero impressiona pela veracidade que não pode alterar nem deformar a recordação dos fatos referidos. Nos diários do Putumayo, o registro objetivo dos fatos é sempre acompanhado de sua refração na consciência do autor, o que lhes confere caráter intimista e quase confessional. Como observa Philippe Lejeune (2008), é difícil encontrar um diário quimicamente puro: há momentos em que a introversão supera

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

326

no espírito do redator a parte da extroversão ou vice-versa. Ao assenhorear-se da situação local, Casement usa o papel como confidente de seus maus presságios: E aqui estou eu, com o relógio marcando quase 3 horas da tarde, esperando para interrogar os peões barbadianos deste baluarte do vicio. Como é que vai ser? Um verdadeiro interrogatório abrangendo o terreno de suas relações com a Companhia e os deveres que lhes cabia desempenhar, ou simplesmente um simulacro que me permita “livrar a cara” e assegurar a Tizon que os homens “parecem satisfeitos e todos dizem que são bem tratados e pagos em dia” etc. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 83)

Eis a grande dificuldade de Casement: coletar e preservar testemunhos que acusam diretamente a cúpula da Companhia. Como fazer valer o testemunho prestado não oficialmente por exfuncionários, estrangeiros de pele escura, cúmplices dos barbarismos cometidos pelos dirigentes? Paul Ricoeur enfatiza o núcleo comum do testemunho em diferentes situações. Seja na conversação diária, em situação dialogal ou no confronto com vários testemunhos e várias testemunhas, em um espaço de controvérsia, somos colocados de imediato diante da questão crucial: até que ponto o testemunho é confiável? A suspeita se desdobra “ao longo de uma cadeia de operações que tem inicio na percepção de uma cena vivida, continua no da retenção da lembrança, para se concentrar na fase declarativa e narrativa da reconstituição dos traços do acontecimento” (RICOEUR, 2007, p. 171). O testemunho de Josiah Dyall, um dos barbadianos, sobre atos de que participou, beira o absurdo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

327

Sábado, 24 de setembro – 8 horas Como seus testemunhos são gravíssimos, pois admitiu que assassinou cinco índios com as próprias mãos, dois a tiros, e bateu em dois até matá-los “esmagando seus testículos” com um pedaço de pau por ordem e com a ajuda de Normand, e um ele açoitou até morrer, achei prudente que apresentasse sua evidência completa diante da Comissão e do Sr Tizon. CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p.124)

Em diálogo com Casement, o barbadiano Josiah Dyall atesta a realidade de cenas das quais participou como ator. No ato de testemunhar, faz o que Dulong caracteriza como uma “narrativa autobiográfica autenticada de um acontecimento passado, seja essa narrativa realizada em condições informais ou formais” (DULONG, in RICOEUR, p. 43) A testemunha pede que lhe deem crédito: eu estava lá. Entra então a parte de Casement: a autenticação do testemunho mediante a resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o aceita. A partir desse instante, o testemunho está não apenas autenticado, mas acreditado (RICOEUR, p. 48). Quanto aos barbadianos, eles se acusaram a si mesmos o que, em grande parte, prova a verdade de seus testemunhos. Eu não conseguia ver que motivo induziria um homem a acusarse de crimes graves e covardes, como fizera Dyall, a menos que estivesse fazendo uma confissão. Se eram culpados de atos criminosos, como acredito que fossem, os verdadeiros criminosos não eram eles, mas os homens que lhes tinham dado ordem para fazer tais coisas e, se fosse o caso de punir alguém, eu procuraria defender esses homens buscando conselho e ajuda legal. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 125)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

328

Casement aceita como verdadeiros os testemunhos dos barbadianos, testemunhas contra a vontade, segundo Ricoeur, que se incriminam a si próprios. É o credenciamento, enquanto processo em curso, que abre a alternativa entre a confiança e a suspeita. O intervalo ideal entre o testemunho e seu credenciamento deve ser curto, para não dar origem, segundo Freud à “elaboração secundária” (RICOEUR, p. 173). Casement defende seu ponto de vista diante de todos os membros da Comissão. LA CHORRERA – DOMINGO 25 DE SETEMBRO Falei bastante durante o encontro. Expliquei que o senhor Tizon não achava aconselhável confrontar os Chefes de Seção, que visitaríamos em breve, com acusadores negros que haviam sido seus empregados. Por outro lado, afirmei que esse confronto era o único meio a nosso dispor para estabelecer a verdade ou não dos testemunhos dos barbadianos contra seus patrões. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 127-128, ênfase acrescentada)

Já na primeira estação, La Chorrera, é evidente que os índios são açoitados: apresentam profundos vergões vermelhos nas nádegas e coxas. Ciente da própria fraqueza, na ausência de juízes imparciais, ou mesmo de qualquer tipo de autoridade legal na vastidão do Putumayo, em cuja imparcialidade também não poderia confiar, Casement pede a ajuda de Deus para guiá-lo a fazer o certo: “Que Deus me ajude a ajudar esses seres infelizes!” O sofrimento imposto aos índios enche-o de justa ira: Juro por Deus que enforcaria todo esse bando de miseráveis com as minhas próprias mãos, se tivesse poder para tal, e com o maior prazer. Nunca tive prazer em caçar; na realidade deixei totalmente de atirar por detestar a ideia de tirar a vida. Eu

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

329

mesmo nunca dei vida a outro ser, e meu celibato me faz frugal no que concerne à vida humana. No entanto, seria capaz de exterminar a tiros esses criminosos infames muito mais facilmente do que atiraria num crocodilo ou mataria uma cobra. CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 140)

Acompanhamos a lenta viagem rio acima até a estação de Ocidente, no registro minucioso de acontecimentos e reflexões no diário de Casement. A situação não se altera: “Mas aí está o que temos % os muchachos, [índios] armados e treinados para matar seus infelizes conterrâneos, ou ainda, índios borás assassinando huitotos e vice-versa para satisfazer os caprichos ou assegurar os lucros de seus senhores, que no final se voltam contra eles (por uma variedade de motivos) e os matam”. Antes de sair de Iquitos, Casement fora avisado de que os postos mais próximos da fronteira com a Colômbia eram os mais perigosos e desses o de Matanzas — matanças ou massacres —o de pior reputação. Muito antes de atingir Matanzas, porém, notícias da crueldade do chefe da estação, Armand Normand, já haviam chegado aos ouvidos de Casement. Bishop o barbadiano que o acompanha desde Iquitos, diz-lhe que acredita firmemente nas histórias de que Normand teria arrebentado os miolos de crianças batendo-lhes a cabeça de encontro a tocos de árvores e queimando-as vivas, contadas a ele mais de uma vez por Donal Francis, barbadiano que estivera a serviço de Normand por quase dois anos. Casement encara com repugnância e raiva impotente a próxima convivência com o assassino desalmado, na condição de hóspede da Companhia. O aspecto físico de Normand, que é chamado de uma correria para receber a Comissão, e suas atitudes altaneiras de comandante, confirmam os receios de Casement:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

330

DOMINGO, 16 DE OUTUBRO Cerca das 5h30 ouvimos um tiro de rifle na floresta, vindo do sul e o nome “Normand”, murmurado pelos rapazes e empregados. Parecia a chegada de um grande guerreiro! (...) Devo dizer que ele correspondia a tudo o que se pensava dele ou lera a seu respeito, um ser minúsculo, raquítico, magro e baixo, cerca de 1,70 m, com a fisionomia mais repulsiva que vira em toda a minha vida. Era totalmente diabólica, cruel e maligna. Senti-me como se estivesse sendo apresentado a uma serpente. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 256)

Casement sente-se impotente por não possuir provas documentais que pudessem ser apresentadas a uma hipotética corte peruana e, pior ainda, pela necessidade de manter em sigilo suas investigações e interrogatórios, a fim de proteger a integridade física dos barbadianos. MATANZAS, TERÇA-FEIRA 18 DE OUTUBRO Estamos cercados de criminosos de todos os lados. Nosso hospedeiro à cabeceira da mesa, os rapazes que nos servem, e todo o saco de gatos. Atravessar este Distrito fazendo de conta que estamos de olhos vendados e aceitando o significado superficial das coisas que vemos, destruirá nossos objetivos – pois não podemos, mais tarde, apresentar, como provas confiáveis, mexericos e histórias contadas em segredo, com homens postados para evitar bisbilhoteiros, comportando-nos como criminosos com medo de ser descobertos. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 265)

Decidido a partir imediatamente, para afastar-se de Matanzas, “o coração desses acontecimentos horripilantes,” Casement interroga os barbadianos Lane e Levine, separadamente e em confronto, quando se contradizem. Consegue arrancar dos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

331

dois homens o testemunho da morte de cinco índios, açoitados até morrer. O relato da morte atroz do mais velho deles, Kodihinka, deixa Casement doente: “E dizer que isso aconteceu no mês passado, quando estávamos em Iquitos ou Chorrera!” Kodihinka havia liderado a fuga dos índios, entre eles sua mulher e seu filho, mas foram todos capturados bem além da outra margem do Caquetá, já na Colômbia, depois de vinte e um dias de perseguição. A “Comissão” de captura, chefiada por Normand, avançara em território estrangeiro em desrespeito às leis. Foram todos açoitados e postos no cepo, onde Kodihinka morreu três dias depois, sua carne em decomposição exalando um cheiro nauseabundo ao lado da mulher e do filho presos como animais ferozes. Os testemunhos dos barbadianos estão registrados e arquivados no diário do Putumayo. Além da constituição dos arquivos, porém, o testemunho como representação do passado vai reaparecer em narrativas. Primeiramente no relatório de ruidosa repercussão internacional que Casement apresenta ao Foreign Office, no regresso à Inglaterra. Como reconhecimento, o rei lhe concede o título de “Sir”, mas Casement não comparece à cerimônia, por problemas de saúde. Fase das indagações (uso dos porquês) nas figuras da explicação e da compreensão. A fase do processo historiográfico que Ricoeur denomina da explicação e da compreensão diz respeito aos modos de encadeamento entre fatos documentados. A configuração narrativa é básica para a arquitetura do saber histórico. A representação em seu aspecto narrativo não se acrescenta de fora à fase documental e à fase explicativa, mas as acompanha e as sustenta. As indagações, nas figuras da explicação e da compreensão, correspondem a uma interpretação do ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

332

encadeamento de fatos. O conceito de interpretação tem a mesma de aplicação que o de verdade. Nesse sentido, há interpretação em todos os níveis da operação historiográfica, por exemplo, no nível documental com a seleção das fontes, no nível explicativocompreensivo com a escolha entre modos explicativos concorrentes e, finalmente, da representação como interpretação. Em relação aos arquivos de Casement, os questionamentos se direcionaram principalmente à questão dos Black Diaries. A interpretação que lhes foi dada aponta para o caráter de Casement como paradoxal: um homem capaz de proteger povos nativos, mas, por outro lado, de pervertê-los para satisfazer seus desejos sexuais; um funcionário exemplar do Império Britânico, capaz de trair princípios e compromissos. Sua sexualidade doentia é um reflexo da sua traição ao país. Angus Mitchel destaca o caráter épico da investigação de Casement e a profunda mudança que provoca em sua visão do império como instituição civilizadora. No início da viagem, defende os métodos britânicos de condução do Império Britânico, em comparação aos portugueses e espanhóis, enfatizando “as garantias legais estabelecidas por nosso governo colonial para proteger os nativos e, acima de tudo, seus direitos sobre a terra” (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 79). A fé nos princípios civilizadores do império, todavia, desaparece diante da crueldade bárbara perpetrada em nome da “civilização,” (In MITCHELL, 1997, p. 265) que testemunha na viagem ao Putumayo. A raiva impotente diante da extensão do crime e da impossibilidade de punir os culpados sinaliza sua mudança radical de atitude. A volta, descendo o rio, mostra um Casement inteiramente desiludido com o processo de civilização de povos primitivos com que os impérios mascaram os interesses econômicos das metrópoles. Está inteiramente convencido do papel do comércio internacional como o verdadeiro vilão destruidor do modo de vida tribal. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

333

ENTRE RIOS, 3ª FEIRA, 25 DE OUTUBRO Acredito sinceramente que a tragédia do índio sul americano é a maior no mundo de hoje, e a maior injustiça da humanidade nestes últimos 400 anos registrados pela história. Não houve interrupções desde que Pizarro desembarcou em Tumbes, nenhuma luz de uma aurora que se aproxima. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 312)

Plano da escrita: representação historiadora do passado A história oficial de Roger Casement ainda está por ser escrita. A imagem controversa de heroísmo humanitário e de perversão sexual norteia até o presente os relatos a seu respeito. Angus Mitchell nos informa que série recente da BBC, sobre o herói do império que renega sua filiação, teve como principio a autenticidade dos Black Diaries e não faz qualquer referência aos movimentos de contestação. O mundo em história é a vida dos homens do passado tal como ela foi. Tal como aconteceu. Mas seria, na realidade, tal como o dizemos? Eis a questão que nos acompanhará até o final do estágio da representação, onde encontrará, se não sua resolução, ao menos sua formulação exata sob a rubrica da representância (RICOEUR, p. 184). Aí é que se distingue o par antinômico narrativa histórica/narrativa de ficção. O leitor pressupõe implicitamente que o discurso do historiador é honesto e verídico, o mais próximo possível daquilo que um dia foi “real”, diferente, portanto da ficção “irreal”. Mas, no mundo do texto, entrecruzam-se os efeitos exercidos por ficções e narrativas verdadeiras. Angus Mitchell inicia a pesquisa dos documentos de Casement, por solicitação de seus editores, com a pressuposição da autenticidade dos Black Diaries. Sua hipótese, todavia, não se confirma e modificam-se o foco e o teor das perguntas que faria ao texto. A introdução, os comentários e as notas explicativas do ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

334

texto de Mitchell, no Amazon Journal, são evidentemente norteados pela hipótese dos Black Diaries como impostura e da probidade moral indiscutível de Casement. Paul Ricoeur reformula o que se costumava chamar de “ficcionalização do discurso histórico” como “entrecruzamento da legibilidade (estilo) e da visibilidade (história) no seio da representação historiadora.” (p. 276) É com o retrato das personagens da narrativa, sejam narrativas de vida, narrativas de ficção ou narrativas históricas, que a visibilidade (história) supera claramente a legibilidade (estilo). As personagens da narrativa são inseridas na intriga ao mesmo tempo em que o são também os acontecimentos que, em conjunto, constituem a história narrada. Com o retrato, distinto do fio da trama da narração, o par do legível desdobra-se nitidamente. É o que se lê na biografia ficcionalizada de Roger Casement em O sonho do celta de Mário Vargas Llosa.

Referências LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Jovita M.G.Noronha (Org.) Trad. Jovita M.G.Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008. LLOSA, M.V. La verdad de las mentiras. Madrid: Santillana, 2007. _____ O sonho do celta. Trad. P. Watch e A. Roitman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. MITCHELL, A. (Ed.) The Amazon Journal of Roger Casement. Dublin: Lilliput Press, 1997 RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alan François [et al.]. Campinas : Ed. UNICAMP, 2007.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

335

A PARÓDIA SATÍRICA EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E JAMES JOYCE Autor: Márcio Pereira Ribeiro (Uniandrade) Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (Uniandrade) RESUMO: Com base em excertos bíblicos e dogmas da igreja, este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise comparativa entre o conto “A igreja do diabo” (1884), de Machado de Assis (1839 – 1908), e “As irmãs” (1914), do autor irlandês James Joyce (1882 – 1941), a partir do conceito de paródia teorizado por Linda Hutcheon (1989). Em ambos os contos, há uma severa crítica à Igreja Católica: no conto de Joyce, o narrador relata o falecimento de um padre, oferecendo indícios de seu envolvimento na prática da pedofilia e, na narrativa de Machado, a figura bíblica do Demônio apresenta queixas a Deus e expõe seu desejo de também fundar sua própria igreja. Tanto Machado quanto Joyce, ao se apropriarem do texto bíblico ou da temática religiosa, flagram aspectos dos abusos cometidos em nome da religião. Enquanto Machado realiza sua denúncia por meio da ironia, Joyce deixa subtendida a pedofilia na amizade peculiar entre um padre e um menino. PALAVRAS CHAVE: Paródia. Sátira. Bíblia. Machado de Assis. James Joyce.

Introdução Religião sempre foi um tema polêmico na história da humanidade. Em seu nome, principalmente pelo do Cristianismo, povos foram dizimados, reinos conquistados, pessoas foram enviadas à fogueira. Amparados pelo texto bíblico cometeram-se, e ainda se cometem inomináveis atrocidades contra a humanidade. O texto cristão já foi (e em alguns locais do mundo ainda é) utilizado para afirmar e impor valores, posições sociais, legitimar racismo, desigualdade social e outros tipos de preconceito.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

336

No Brasil, através do texto bíblico legitimou-se a escravidão negra, dizendo-se até que o escravo africano não tinha alma, ao contrário do indígena que, supostamente a possuía e, assim, deveria ser catequizado e tê-la salva. Essa fé cristã legou-nos, ainda, um ranço preconceituoso em relação às outras religiões. Ranço esse que persiste ainda nos dias de hoje, haja vista os recentes ataques ocorridos a centros de prática do Candomblé, bem como a seus praticantes. No conto “A igreja do diabo”, assim como em boa parte de sua literatura, Machado apropria-se da temática bíblica para desenvolver seus enredos, como no Romance Isaú e Jacó (1904) em que parodia uma história do Livro do Gênesis, atualizando a temática da rivalidade entre irmãos – também presente em outra história Bíblica: a de Caim e Abel. No conto em questão, o diabo, após imensas tentativas de se apoderar do poder celestial, seduzindo aos homens com sua igreja de más virtudes, acaba ao fim inconformado com a dualidade humana, o pode-se dizer resultante do livre-arbítrio bíblico. Machado de Assis parodia o texto cristão envolvendo-nos numa trama bastante espantosa, ou como chama o capítulo I “uma ideia mirífica”. Esta dualidade entre o santo e o profano, entre o pecado e a fé também é utilizada na literatura de cordel, em que há embates entre o bem e o mal, retratados normalmente na figura de um indivíduo que vence as forças das trevas através de certa inteligência popular adquirida ou pela sua própria fé. Em “A igreja do diabo” o autor utiliza-se ainda de obras e personagens ficcionais parodiando-os, e até mesmo dialogando com eles, a fim de reforçar os argumentos que tornariam essa tal ideia – uma igreja fundada pelo diabo – possível de acontecer, deixando-nos a reflexão de que e se fosse possível? Como seria? Já James Joyce nos apresenta o resultado social de sua terra natal, a Irlanda, devido aos conflitos étnicos, políticos, sócioeconômicos e religiosos que deixaram marcas profundas na vida ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

337

e na história de seu povo. Em 1920, a Inglaterra estabeleceu uma divisão na ilha, ficando a província de Ulster (ao norte), de prática majoritária protestante, separada do sul, tornando-se Irlanda do Norte. A outra parte, de prática católica, receberia o nome de Irlanda, somente. Dois anos depois dessa divisão, a Irlanda prosperou, abrindo caminho para que se tornasse independente da Inglaterra. Porém os católicos que viviam na Irlanda do Norte – hoje 40% da população – continuaram insatisfeitos. E foi lá que se acirraram os conflitos entre grupos armados dos dois lados, como o Exército Republicano Irlandês (o IRA, Irish Republican Army, católico e pró-independência) e os movimentos unionistas (protestantes e pró-Inglaterra). Nesse contexto, vivendo já em Trieste (Itália), Joyce iria concluir sua obra Dublinenses (1914). Uma crítica mordaz ao povo de seu país e seus costumes. A obra fora recusada diversas vezes pelas editoras, levando cerca de dez anos para ser publicada. O autor teve que contar, inclusive, com a ajuda de seu irmão, Stanilaus, que havia ficado na Irlanda, para obter algumas informações muito particulares sobre sua cidade natal, como, por exemplo, a informação de que se um padre poderia mesmo ser enterrado de batina, como o fez no conto “As irmãs”. Apesar desses contratempos, relativizando o tempo, a obra viria a incomodar bastante seus conterrâneos dublinenses. O que dizer do conto “As irmãs” em que há um clima tenso de luto devido à morte de um clérigo que supostamente adoecera devido a um incidente canônico, a quebra de um cálice? É admirável e digno de comentário a coragem com que o autor parodia o rito canônico, levando-o a revelar a postura de seus clérigos na época, expondo a religião – um assunto bastante caro à Irlanda durante muito tempo, e à própria Igreja ainda nos dias de hoje, a pedofilia.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

338

Machado de Assis e a Bíblia: “A igreja do Diabo” (ou dos homens?) Em “A igreja do diabo”, Machado de Assis provoca o leitor já a partir do título, causando repulsa em alguns, inclusive. Uma igreja fundada pelo espírito das trevas, pelo anjo caído, aquele a quem se atribui toda a maldade na terra, o pecado original, a tentação de Cristo no deserto... O título já anuncia que se trata de uma paródia entre céu e inferno, entre o sagrado e o profano, ou seja, um confronto proposto pelo diabo: escritura contra escritura, visto que o diabo imita os ritos da Igreja Católica Apostólica Romana, adaptando-os aos seus propósitos. Machado de Assis faz alusão a textos clássicos e parodia o texto bíblico, em especial o Livro do Gênesis e alguns trechos dos Evangelhos, como quando a personagem diabo afirma que irá “lançar sua pedra fundamental” – uma paródia ao texto de Mateus16:18: “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. O narrador cita ironicamente a Ordem dos Beneditinos, fundada no ano de 529, como a responsável pela confecção do manuscrito que nos conta todo o ocorrido quanto à igreja fundada pelo diabo: Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. (ASSIS, 2007, p. 183)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

339

A ironia está no fato de que durante o transcurso da sua história, a ordem Beneditina sofreu numerosas reformas, devido à eventual decadência da disciplina no interior dos mosteiros. A primeira reforma importante foi realizada por São Juan De Perez Lloma no Século X essa reforma, chamada Cluniacense a tomar um grande impulso a tal ponto que, durante grande parte da Idade Média, praticamente todos os mosteiros beneditinos estavam sob o domínio do mosteiro situado na França, na cidade de Cluny. O conto, dividido em capítulos (De uma ideia mirífica; Entre Deus e o Diabo; A boa nova aos homens e Franjas e franjas) apresenta uma boa experiência da tão famosa ironia machadiana: não se trata de um enredo possível na vida real, mas guardadas a devidas proporções é como se o autor nos dissesse: Mas não vivemos, mesmo, num inferno? Perdidos em meio à cobiça, ganância, mentira e luxúria? Então, por que não uma igreja fundada pelo senhor das trevas? Ao que parece, é a mesma ideia que o diabo tem no capítulo I, De uma ideia mirífica: mesmo tendo bons lucros, sente-se humilhado com o papel secundário que lhe fora dado no início dos séculos: sem ritual, sem cânone, sem regras – sem organização. Segundo ele: “Uma igreja seria uma maneira de combater e destruir as outras religiões”. Não é raro na obra de Machado de Assis encontrarmos personagens movidos por essa mesma necessidade gananciosa de reconhecimento e poder, vide Brás Cubas em suas Memórias Póstumas (1881), que após uma odisséia fantasiosa de reconhecimento público, busca num unguento medicamentoso o reconhecimento que o levaria à morte. Pois bem, o diabo imagina que terá o mesmo sucesso que teve Deus ao fundar a sua igreja entre os homens. O diabo imagina sua doutrina indivisível, protegida de Maomés e Luteros. Linda Hutcheon (1989) aponta que a paródia é um processo integrado de modelação estrutural, de revisão, recontextualização, inversão e transcontextualização de obras de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

340

arte anteriores. No capítulo, Entre Deus e o Diabo, temos um bom exemplo desta transcontextualização de uma obra de arte anterior, pois há um diálogo interessantíssimo entre o Senhor da Luz e o Príncipe das Trevas: este cobra de Deus para si todos os Faustos, desde o início dos séculos – ou seja, não estaria na presença de Deus cobrando-lhe uma única alma, mas sim todas, desde o início da criação relatada no Livro do Gênesis. O Fausto aqui mencionado refere-se ao representado pelo romancista alemão Johann Wolfgang Von Goethe (1749 – 1832) na obra homônima de 1830. Nesta obra Mefistófeles (um demônio) faz uma aposta com Deus: diz que poderá conquistar a alma de Fausto – um sábio que tem a ambição de saber tudo que pode ser conhecido. Tema bastante parecido ao proposto por Machado de Assis no conto em análise. É perceptível ainda a paródia feita do rito da consagração do pão e do vinho na Eucaristia, em que o sacerdote ora junto à assembléia: “Permiti que tenhamos sempre, Senhor, um igual temor e amor pelo vosso santo Nome; pois não deixais de governar aqueles que estabeleceis na firmeza do vosso amor. Vós que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Amém” (grifo nosso); e o Livro do Apocalipse 1:6 “e nos fez reino, sacerdotes para Deus, seu Pai, a ele seja glória e domínio pelos séculos dos séculos. Amém”. Ao chegar ao céu, a fim de comunicar a Deus suas intenções, o diabo encontra-o recebendo um homem que salvara um casal de namorados em um naufrágio, dando-lhes uma tábua na qual se salvara, mergulhando assim para a morte na eternidade. Negando, como lhe é de costume (Eu sou o espírito que nega) qualquer sinal de bondade no homem, o diabo dá a este ato de doação ares de misantropia (aversão aos seres humanos). Não tendo mais conseguido admoestar ao Senhor, o diabo, como um raio, cai na terra. Lá estando, não perde um minuto sequer, e põe-se a espalhar uma doutrina nova e extraordinária:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

341

promete aos fieis as delícias da terra, as glórias e deleites mais íntimos: (...) as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu...” O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. (ASSIS, 2007, p. 187)

Quem resistiria a tal pregação? Ainda mais tendo o pregador sua figura retificada, para algo que, ao olhar dos homens, parecia melhor, tendo em vista que o preço para se chegar o céu lhes parecia bastante caro. Por fim, no último capítulo (Franjas e franjas) ocorre o desfecho irônico mais inesperado pelo diabo (e previsto por Deus?): as pessoas, os fiéis da Igreja do diabo, após alguns anos, começam à surdina, sorrateiramente a seguir os antigos preceitos cristãos:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

342

jejuns, dar esmolas, restituir o que fora roubado, buscar confissões, etc. Inconformado com tal desfecho, o diabo retorna aos céus: Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. (ASSIS, 2007, p. 190)

O desfecho é um belíssimo exemplo da já mencionada ironia machadiana e de sua visão pessimista sobre os homens e suas ações. Não importa o quanto tenham, sempre querem mais, e além do mais, não sabem o que querem. Segundo Linda Hutcheon (1989) a paródia é formal, a sátira é social. O objetivo da sátira é ridicularizar os costumes e loucuras da sociedade com a intenção de corrigi-los. Assim, compreender a intenção de Machado de Assis ao parodiar o texto bíblico em nada acrescenta à interpretação do conto, agora reconhecer sua ousadia ao parodiar os dogmas da Igreja católica, bem como seu principal documento, a Bíblia, pode nos levar a compreender como era a sociedade do Rio de Janeiro da época e a crítica que o autor pretendia fazer. Isso, levado quase dois séculos adiante, resultaria, em outra esfera de circulação, na sátira social que faria o autor irlandês James Joyce, em sua obra Dublinenses.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

343

James Joyce e a religião: “As irmãs” (ou A culpa é do coroinha) Em Dublinenses, há vários tipos de delitos, alguns pequenos, como na cena em que dois meninos que haviam decidido matar aula, no conto intitulado “Um encontro”, são abordados num local ermo por um velho, que inicialmente põe-se a lhes perguntar sobre namoradas, e que, depois de proferir algumas falas insensatas sobre violência e punição, os levaria a presenciar uma cena sórdida de masturbação – assim os meninos descobrem que o mundo pode ser pervertido e assustador. E há delitos escandalosos, como no conto “As irmãs” em que se relata o suposto envolvimento homo-afetivo entre um menino de oito anos e o padre James Flynn. O tom narrativo escolhido por James Joyce dá ao conto um ar de mistério. Afinal, que pecados teria cometido o padre ao ponto de levarem-no à insanidade, à paralisia, ao ato falho da quebra de um cálice sagrado? É preciso que leiamos as entrelinhas, as frases metafóricas e sem conclusão do personagem senhor Cotter, como quando diz: “Não, afirmaria que era exatamente... mas havia nele algo de excêntrico... de misterioso. Em minha opinião...”, e também: “tenho minha teoria sobre isso (...) penso que se trata de um desses... casos peculiares... mas é difícil afirmar” (JOYCE, 2005, p.9). Note o dito pelo não dito, a ideia que se completa nas entrelinhas, no titubear da personagem. Não afirmaria que era exatamente (um pedófilo, um mundano?); que teoria teria o Sr. Cotter sobre isso? A que casos peculiares ele se refere – seria comum e de conhecimento público os casos envolvendo abuso sexual por parte de padres? É também muito importante que saibamos interpretar o comportamento incomum do menino, ou é ainda nos dias de hoje, normal um menino andar de segredos com um homem mais velho? Aprendendo “coisas”, como diz o senhor Cotter. Sem mencionar aqui com mais delonga o sentimento de alívio sentido ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

344

pelo menino após a morte do padre Flynn. Algo bastante revelador, uma vez que seria plausível a morte do amigo trazer-lhe ao menos duas das cinco fases do luto, conforme apontadas pela psicóloga Elisabeth Kubler-Ross (1926-2004): Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. O menino não as vivencia, pelo contrário todas elas são substituídas por uma imensa sensação de alívio, de libertação. Mas por que teria James Joyce escolhido um padre como personagem mundano e não outro dublinense? Seria o desejo de escancarar o assunto à sociedade, uma forma de crítica àquela cidade tão puritana. Parece-nos que há uma diferença grande em dizer que um homem maduro tem relações de cunho sexual com um menino e dizer que, um padre, aquele que representa Deus na terra, aquele que consagra o pão e o vinho na Eucaristia tem relações sexuais com uma criança, pior ainda com um menino, um de igual gênero. Os três primeiros contos de Dublinenses (“As irmãs”, “Um encontro” e “Arábia”) apresentam um narrador em primeira pessoa e, foram agrupados no que o autor chamou de “Infância”. Por se tratarem de memórias, pode-se dizer que Joyce teria feito autobiografia. Assim, poderíamos dizer que o menino no conto “As irmãs” representa alguma memória do autor – teria ele sofrido abusos cometidos por um padre em sua infância no Clongowes Wood College? Outro aspecto interessante no mencionado conto é a data da morte do padre Flynn. Joyce escolhia muito bem as datas em seus escritos, por exemplo: Em Ulysses, o dia 16 de junho de 1904 não foi escolhido aleatoriamente. Essa data marca o dia em que James Joyce e sua futura esposa Nora Barnacle teriam tido um “encontro” amoroso, segundo seus biógrafos. Da mesma forma, o dia da morte do padre Flynn (01/07/1895) tem grande importância para os irlandeses em geral. Nesta data, nos países católicos, se

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

345

comemora a Festa do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. E, foi no ano de 1895 que se comemorou o centenário de Maynooth, o mais importante seminário Católico da Irlanda. No conto, o padre é acometido por uma paralisia após um incidente canônico, a quebra de um cálice. Esta paralisia do padre poderia estar associada à paralisia da Igreja Católica diante de crimes cometidos por religiosos, às atrocidades cometidas em nome da fé, e ao seu efeito moralizador e puritano sobre os irlandeses, e a eles próprios como cidadãos que aceitaram no passado as medidas de austeridade impostas pela Inglaterra. A paralisia é um tema recorrente na literatura de James Joyce, visto que aparece também em O retrato do artista quando jovem (1916). Em Dublinenses, em “Eveline”, a personagem que dá nome ao conto desiste de escapar de uma realidade miserável, paralisada no porto, enquanto o noivo a aguardava para fugirem para a Argentina em um navio. Eveline tem uma epifania (chama por seu próprio nome) e desiste de embarcar. Essa mesma sensação de incapacidade de movimento se manifesta no jovem protagonista de “As irmãs” na forma como ele, no final da narrativa, se mostra, ao mesmo tempo, libertado pela morte do padre e incapaz de superar os “ensinamentos” que recebeu do sacerdote. Tanto Machado de Assis quanto James Joyce, ao se apropriarem do texto bíblico e também do rito cristão, parodiandoo ou usando da temática religiosa no enredo, atingem severamente a sociedade. Fosse o Rio de Janeiro da época do Império ou a Dublin do início do século XX, ambas apresentavam um protecionismo aos assuntos escusos de seus clérigos, de suas igrejas, da instituição cristã. Machado de Assis denuncia isto através da ironia, James Joyce deixa subtendida a pedofilia na amizade peculiar entre um padre e um menino.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

346

Referências HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1979. ASSIS, Machado de. 50 contos /Machado de Assis: seleção, introdução e notas de John Gledson. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007. JOYCE, James. Dublinenses. Trad. Hamilton Trevisan, 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BÍBLIA, N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. Reed. Versão de Antonia Pereira de Figueiredo. São Paulo: Ed. das Américas, 1950. Cap. 16, vers. 18.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

347

HENRY JAMES E OSCAR WILDE: EXPOENTES DA HISTORIOGRAFIA RETRATADOS POR THE MASTER, DE COLM TÓIBIN Autor: Maria Aparecida Borges Leal (UFPR) Orientador: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR) RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir acerca do modo como se configura o narrador criado pelo romancista irlandês Colm Tóibin, em The Master (2004), um romance biográfico que discute parte da vida e do percurso literário do escritor norte americano Henry James (18431916), sobretudo no que se refere à tentativa de James de enveredar pela dramaturgia. Parcela significativa desse romance aponta para a maneira pela qual James olhou para a vida privada e a dramaturgia de Oscar Wilde (1854-1900). Aos olhos desse narrador, se de um lado Wilde escancara sua privacidade – por oposição à importância exacerbada de James à própria vida –, de outro, James sempre reconheceu a superioridade de Wilde como o grande dramaturgo de língua inglesa. Contemporâneos, James e Wilde brilham no cenário da prosa de ficção e na dramaturgia, respectivamente. PALAVRAS-CHAVE: Ficção histórica. Intertextualidade. Sexualidade. Romance biográfico.

Introdução Desde as últimas décadas do século XX, a ficcionalização de pessoas que desempenharam papéis na História tem sido uma constante tanto na literatura brasileira quanto na literatura inglesa. Quatro aspectos da ficção histórica carecem de destaque: o primeiro diz respeito aos grandes homens que desempenharam papéis relevantes em fatos históricos, sobretudo em guerras e conflitos de uma maneira geral, assentados nos livros de História. O segundo, mais acentuadamente na última década do século XXI, refere-se àquelas pessoas das quais não se tem registro

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

348

histórico, mas que desempenharam papéis igualmente relevantes, e, no entanto, foram consideradas secundárias nesses mesmos conflitos. Essas pessoas, que só agora estão sendo buscadas pela ficção para trazê-las para o primeiro plano narrativo, são postas como protagonistas de romances considerados históricos. O terceiro, bastante significativo, cria ficcionalmente a vida e a trajetória literária de escritores famosos que fizeram história na literatura. Essa vertente é a que mais interessa aos propósitos deste trabalho. O quarto desdobramento da ficção histórica alude àquelas personagens, criadas por textos canônicos, que migram para os textos novos que lhes permitem o reconhecimento pelos leitores atentos. Essas personagens são resgatadas por escritores contemporâneos para protagonizarem seus romances. Segundo Marilene Weinhardt (2010), podemos refletir sobre esses romances como ficções críticas, por deixarem vir à tona não só a identidade literária dessas personagens, mas, também, estabelecerem intenso diálogo intertextual com as obras de seus criadores e, além disso, fazerem com que a crítica literária faça parte do processo de ficcionalização. Em referência ao terceiro aspecto, conforme explicitado por Marilene Weinhardt (2006), o primeiro romance da literatura brasileira que cria ficcionalmente a vida, a trajetória literária de um escritor e discute o papel do artista na vida político-cultural brasileira é Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago (1981), do renomado escritor e ensaísta Silviano Santiago. Nesse romance, o autor elabora um discurso baseado nos recursos estilísticos de Graciliano Ramos, cria uns originais que teriam sido publicados postumamente e constrói ficcionalmente o sujeito que marcou época na história literária brasileira. Tanto na Nota do editor, quanto em Sobre esta edição – elementos textuais que antecedem o romance e ambos assinados por Silviano Santiago – é possível observar um discurso tão convincente que

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

349

aquele leitor menos atento é capaz de acreditar que Graciliano teria mesmo mantido um diário após a sua saída da prisão. Na Literatura de Língua Inglesa, o processo de criação ficcional de aspectos factuais e de sujeitos que tiveram uma existência empírica tem sua semente em Ivanhoé (1819), de Walter Scott (1771-1832), contudo, não faz parte desse trabalho traçar um panorama histórico desde então. Em 2004, a vida privada e o percurso literário de Henry James foram retomados em, pelo menos, três romances, considerados pela crítica como biographical novels about a writer, publicados quase que ao mesmo tempo: The Line of Beauty, de Alan Hollinghurst; Author, Author, de David Lodge e The Master, de Colm Tóibin. O propósito deste trabalho é refletir a respeito do olhar do narrador de The Master, principalmente no que se refere à tentativa de James em buscar na dramaturgia uma segunda via de expressão artística, encontrando ninguém menos que Oscar Wilde (1854-1900), o grande dramaturgo de língua inglesa, em seu caminho. Dois admiráveis expoentes da historiografia seduzem, ainda hoje, críticos e leitores: James na prosa de ficção e Wilde na dramaturgia. Contextualização de The Master The Line of Beauty, de Alan Hollinghurst, conta a história de Nick Guess, um jovem estudante, homossexual e usuário de drogas injetáveis, que diz escrever uma tese de pós-graduação sobre Henry James, contudo o romance termina sem que ele escreva uma só linha sobre o romancista norte-americano. O enredo se passa em Londres, apresenta como referência temporal o período entre 1983 e 1987 e reflete acerca do início da propagação do vírus da AIDS entre o público do qual Nick Guess faz parte. Nessa época, as pessoas morriam muito jovens sem que ninguém soubesse quais eram as formas de contaminação pelo vírus HIV e prevenção, o que se tornou um grande enigma ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

350

para a medicina. A impressão que se tem é a de que o protagonista usa o argumento de escrever sobre Henry James para manter o status de acadêmico entre o seu grupo de amigos e para dar uma justificativa à sua família e aos seus amigos e professores do interior. Interessante que, embora o romance não trate nem da vida nem do percurso literário de James, ele é considerado como tal e retrata um momento histórico significativo e, talvez, por esse motivo tenha levado o Booker Prize de 2004. Author, Author, de David Lodge é o segundo romance que a crítica considera como romance histórico, publicado em 2004, que realmente discute e reflete sobre a vida e a obra de Henry James. O romance, composto de quatro partes, tem início in medias res. Henry, a essa altura um cidadão britânico, muito doente, intercalando momentos de consciência e semiconsciência, em dezembro de 1915, em Londres, recebe o anúncio de que seria condecorado com a Ordem do Mérito. Na segunda e terceira partes, a narrativa, no uso do recurso do flashback, retrocede ao ano de 1880, quando o protagonista encontra-se no auge da carreira. Segue, de modo relativamente linear até 1897 quando Henry tenta se recuperar do malogro de Guy Domville – peça teatral escrita pelo James, sujeito empírico – e, aos poucos, retornar à prosa de ficção. De acordo com Author, Author, por oposição ao fracasso de Henry no teatro, o leitor se depara com o sucesso extraordinário de Trilby (1895), um romance com recursos narrativos muito pobres, escrito pelo cartunista belga George Du Maurier (1834-1896), amigo íntimo de Henry. Esse romance fora adaptado para o palco e trouxe ao seu autor grande êxito de crítica e de público. Na quarta parte de Author, Author, o fio narrativo deixado pendente na primeira parte é retomado e tecido até o final da história, em fevereiro de 1916, com a morte de Henry. O círculo da narrativa e o portal metaficcional abertos pelo prólogo autoral se fecham com os agradecimentos, etc., em que o autor faz referência às fontes de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

351

pesquisa às quais ele recorreu para escrever o romance. A título de informação, Lodge não constou da lista dos indicados para o Booker Prize de 2004, o que lhe causou grande frustração. The Master, do escritor irlandês Colm Tóibin, é o terceiro romance sobre Henry James, publicado em 2004. Fora indicado para o Booker Prize, mas não levou o prêmio. O enredo do romance, com alguns flashbacks e flashforwards, se passa em Londres, entre os anos de 1895 a 1899, período considerado pelo historiador Leon Edel (1969) como The treacherous years. Tem início com a apreensão de Henry em função da estreia de Guy Domville, no teatro St James, em Londres. Passa pela dor e o sofrimento causado pelo malogro da peça. Segue de modo relativamente linear até outubro de 1899 com um Henry vivendo severos conflitos interiores em relação à sua sexualidade e à arte de ficção. O romance termina com Henry vivendo na Lamb House, despedindose do irmão William, da cunhada Alice e da sobrinha Peggy após passarem um período com ele. A essa altura Alice, a irmã, já estava morta. Nesse lapso de tempo em que passaram juntos, William – homem muito prático, bem sucedido na carreira de professor e filósofo – discute com o irmão sobre sua prosa de ficção, considerada complexa e intricada pela crítica e o público da época: “Harry, [eu] percebo que preciso ler e reler inúmeras frases que você escreve agora para ver se encontro o que elas querem dizer. Isso é tudo, em poucas palavras.” (TÓIBÍN, 2005, p. 405). E William continua sua crítica: “[...] nesta época movimentada e de leitura apressada, você vai permanecer ignorado e não lido enquanto continuar a se perder nesse estilo e nesses temas; [...].” (p. 405). Cabe considerar que a relação dos irmãos não se restringiu à esfera familiar. Henry orientou-se pelas teorias de William James (1842-1910), reconhecido como o pai da Psicologia Americana, autor de Principles of Psychology (1890) e criador do termo stream of consciousness. Foi sobre essa base que James desenvolveu o realismo psicológico, interessando-se pela ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

352

consciência das suas personagens, explorando-a à exaustão e se transformando no mestre de muitos romancistas. Não por acaso, Tóibín demonstrou um lampejo genial de sagacidade ao escolher o nome de The Master para o seu romance biográfico sobre Henry James. Expoentes da historiografia: Henry James e Oscar Wilde Em Henry James (1960), Leon Edel divide a trajetória literária de James em três fases distintas: a primeira estendese de 1865 a 1882 e tem como obras principais a novela Daisy Miller (1879) e os romances The American (1877) e The Portrait of a Lady (1881). Essas obras apresentam como tema o choque que domina as personagens americanas no austero contexto sociocultural europeu. Na segunda fase, entre os anos de 1883 e 1900, James abandona o tema internacional e parte para romances sociais que criam molduras realistas, porém o seu determinismo apresenta-se como essencialmente psicológico – tema que viria a ser desenvolvido no século XX – e que, na época, não teve a aceitação que seu autor gostaria. Entre 1890 e 1895, na tentativa de estabelecer uma segunda via de expressão artística, James escreve sete peças teatrais das quais apenas duas são encenadas: The American, uma adaptação para o palco do romance de mesmo nome e Guy Domville, peça de costumes. Vaiado publicamente pela segunda delas, James, ressentido, sai de Londres. Retoma a prosa de ficção, agora com histórias curtas, das quais as que mais se destacam são: o conto “The Middle Years” (1893) – considerado como autobiográfico pelo biógrafo –, a novela The Turn of the Screw (1898) e os romances What Maisie Knew (1897) e The Awkward Age (1899). Na terceira fase, a mais importante da sua carreira, James retorna a prosa de ficção e os temas internacionais, agora com aproveitamento das técnicas apreendidas na sua fase ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

353

madura, sobretudo na experiência com o teatro. A ação é apresentada por meio da cena, os diálogos são construídos como um processo narrativo, o narrador deixa de desempenhar o papel de informador e comentarista o que torna mais difícil a leitura, obrigando o leitor a um esforço extra. As obras mais significativas dessa fase são os romances The Wings of the Dove (1902), The Ambassadors (1903) e The Golden Bowl (1904). O objetivo de traçar esse painel é o de contextualizar minimamente, na historiografia, os cinquenta anos do percurso literário de James. Oscar Wilde, famoso dramaturgo, ensaísta, ficcionista e poeta irlandês, começa a ser premiado e publicar em 1874, com apenas vinte anos. Contos infantis e góticos fazem parte de sua produção em prosa, contudo, o único romance é The Picture of Dorian Gray (1891). As peças teatrais, todas de uma relevância extraordinária, tanto que são encenadas até hoje, mais de um século após sua morte, são: Salomé (1892), proibida em Londres e encenada com muito sucesso em Berlim e Paris, em 1893; The lady Windermere’s fan (1892); A woman of no importance (1893) An ideal husband (1895) e The importance of being Earnest (1895). Vale salientar que, no início de 1895, An ideal husband estava em cartaz no teatro Haymarket, em Londres, com excepcional sucesso de bilheteria e acontece a estreia deslumbrante de The importance of being Earnest, no teatro St James, também em Londres. Extasiado pelo sucesso, Wilde não conseguiu conter seus ímpetos e externou seus sentimentos de modo imoral para a sociedade da época. Apenas para contextualizar a época na qual Wilde viveu, vamos fazer um breve apanhado: Era Vitoriana, época em que os aspectos morais eram muito considerados e qualquer deslize, punido de forma severa gerando uma atmosfera altamente repressiva. Victoria se torna rainha aos dezoito anos, em 1837, fato que assusta os britânicos por temerem que ela não fosse respeitada como tal. No entanto, ela rege o mais longo período da ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

354

história inglesa. Nesse sentido, a opinião da sociedade torna-se relevante o que faz com que a hipocrisia reine como a mais importante virtude. A repressão, como se sabe, gera pessoas submissas e obedientes por medo das represálias e pessoas excêntricas, destemidas e rebeldes dispostas ao embate com as regras estabelecidas. Além das pessoas não poderem manifestar suas ideias publicamente, em 1859 as teorias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies revolucionam as convicções religiosas estabelecidas até então e o conflito entre religião e ciência é iminente, levando algumas pessoas ao desespero. Para piorar um pouco mais, a Revolução Industrial (1750-1850) já havia provocado uma série de mudanças sociais e econômicas: a Inglaterra movida basicamente pela agricultura e o comércio torna-se uma moderna sociedade industrial. Surgem inúmeras invenções, e as cidades crescem desordenadamente, sem condições sanitárias adequadas o que culmina com uma severa epidemia de cólera. Crianças passam fome e pessoas morrem sem qualquer assistência numa luta de extrema crueldade. Dessa forma, alguns artistas preferem escrever sobre os horrores enfrentados pelo povo, manifestando repúdio a tudo aquilo. Outros preferem dar ênfase à beleza, por oposição àquela situação repulsiva. Wilde torna-se um participante proeminente de The Aesthetic Movement uma espécie de reação contra o conformismo e as incertezas em relação à Inglaterra do século XIX. Nesse Movimento, a arte vale por si e o belo é um refúgio seguro. O deleite por algo belo é o maior prazer que alguém pode obter, por isso, vamos viver intensamente e nos deliciar com o belo. Entre 1880 e 1890, um sofisticado grupo de artistas foi gerado por essa longa rebelião contra a hipocrisia vitoriana, o cientificismo, o materialismo e a crueldade da industrialização. Isso fica muito claro, sobretudo nas peças de Wilde que ironizou toda essa atmosfera de sordidez e repressão. O sucesso de suas peças se deve ao fato de os expectadores terem ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

355

conhecimento desse clima e se sentirem na pele de suas personagens. A excentricidade atribuída a Wilde culmina não só com o sentido pessoal do termo, mas, sobretudo, nesse seu caráter inovador numa Londres que demonstrava certo esgotamento na dramaturgia. Uma pena que ele não tenha fingido tolerância com a hipocrisia de seu tempo para, talvez, não ter sido punido como foi e morrer tão jovem. O pressuposto sobre esses dois grandes artistas é que se de um lado Wilde escancara a sua vida privada permitindo que isso interfira e até prejudique a sua arte, James tem extremo cuidado com a sua privacidade e faz da sua arte a sua vida. Quando lemos “The middle years” (1927), conto considerado autobiográfico pela crítica, isso fica muito claro. Dencombe, o protagonista, demonstra essa angústia do artista de viver uma vida curta sem tempo para aprimorar as técnicas apreendidas no decorrer dessa vida, que para James, ao que tudo indica, se restringia à sua produção artística. Muito embora ele tivesse uma intensa vida social, nunca se permitiu que uma esfera interferisse na outra. Contudo, em um aspecto os dois artistas se assemelham: Wilde, como James, segue a sua intuição e defende seus ideais, independentemente de se referirem à vida pública ou privada. Em outras palavras, se Wilde, de convicções fortes em relação a si, não aceita compactuar com toda a repressão, crueldade e hipocrisia da sociedade londrina e mudar o seu comportamento íntimo para não sofrer represálias, de outro, James não abre mão das suas convicções artísticas para agradar ao público e violentar-se interiormente, se fechando para o seu ideal de perfeição artística. O olhar do narrador de The Master sobre Wilde e James De modo linear, usando a estratégia do narrador onisciente neutro, segundo a classificação de Friedmamn – Philip Stevick (1967) – Tóibín cria uma narrativa que gera pouco material para ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

356

reflexão a respeito da prosa jamesiana. Quase todo o enredo é construído em torno da sexualidade de Henry. Para introduzir essa temática, o autor, enquanto manejador de disfarces, dá uma importância exagerada à prisão de Wilde, suas motivações e consequências. Páginas e páginas são destinadas às especulações que circundam Londres, muitas delas com fundamentos concretos e muitas sem base sólida alguma. A explosão do sucesso de Wilde eclode com o fracasso de James na dramaturgia e com a prisão de Wilde, numa Londres extremamente conservadora. Após o malogro de Guy Domville, o Henry criado ficcionalmente por Tóibín vai para a Irlanda e hospeda-se no castelo de Dublin, no qual reside um casal de amigos, na certeza de que ninguém saberia do ocorrido em Londres e ninguém lhe cobraria um comentário, ou uma explicação. Contudo, dentre os convidados dos Wolseley, um jovem parlamentar, Webster, político influente, indicado para ser o Primeiro Ministro, arrogante e indiscreto, questiona Henry sobre sua possível amizade com Oscar Wilde e lhe dá a notícia dolorosa: “[...] uma peça do senhor [de Henry] foi tirada de cartaz para dar lugar ao segundo sucesso dele [de Wilde] na temporada, e ele parece bastante satisfeito com a coincidência.” (TÓIBÍN, 2005, p. 56). O segundo sucesso de Wilde ao qual Webster se refere é The importance of being Earnest, e, de acordo com a Introdução de The Plays of Oscar Wilde, Anne Varty (2002), o famoso dramaturgo Irlandês é preso em 05 de abril de 1895, com An Ideal Husband e The Importance of being Earnest em cartaz no St James e no Haymarket, respectivamente. E a provocação de Webster não para por aí, ela continua com a referência aos problemas que Wilde estaria vivendo com a esposa: É uma época difícil para ele [Wilde] [...], Lady Wolseley me diz que o senhor não tem esposa. Essa poderia ser uma solução.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

357

Desde que não vire moda, suponho. [...] Mas o fato de ser solteiro deve deixá-lo aberto a todo tipo de... Como posso me expressar? Todo tipo de afinidade. (p. 56)

Essa postura de Webster, sutilmente, introduz o tema da sexualidade em The Master. Wilde encontra-se às voltas com o processo movido pelo marquês de Queensberry, sob a acusação de sodomia. Com seu temperamento rebelde e excêntrico, Wilde enfrenta o marquês movendo-lhe um processo por calúnia e difamação, sendo que ele estava envolvido, de fato, com Lord Alfred Douglas, filho do marquês. O embate entre os dois gera uma série de provas – com poucas evidências de serem verdadeiras – e isso resulta na prisão de Wilde. Em The Master, na noite de estreia de Guy Domville, chama a atenção o fato de Henry ir ao Haymarket assistir a An Ideal Husband, para relaxar, até que apresentação de sua peça finalizasse e ele chegasse, ao final, apenas para os aplausos. Na verdade o que ele recebe são vaias pesadas de uma plateia constituída de pessoas que mal conheciam James e que foram ao teatro para ver a interpretação de George Alexander, ator muito querido do público, diretor e protagonista da peça. Instantaneamente, assim que [Henry] colocou os pés da calçada do Haymarket, ele sentiu ciúmes de Wilde. Havia algo de leviano naqueles que entravam no teatro, pareciam pessoas prontas a se divertir como nunca. [...], pessoas que pareciam tão alegres, tão despreocupadas, tão vistosas, tão bem, dispostas. [...] essas pessoas procuravam desfechos felizes. [...] o óbvio, o vazio, o superficial provocavam na plateia gargalhadas entusiásticas e sinceras. [...] o texto, fala após fala, era um arremedo de texto, um apelo ao riso fácil, [...] a peça era malfeita. (TÓIBÍN, 2005, p. 24-25)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

358

É curioso que Henry sabia do caráter triste e de renúncia que sua peça apresentava, por oposição a toda aquela euforia transmitida pela peça de Wilde. É nesse momento que Henry pressente o fracasso e percebe que agora era tarde demais. Ele sabe que vai perder essa identidade de dramaturgo que ele tentou conquistar, vai ser humilhado e ter a sua identidade como romancista arranhada, senão, destruída. Um aspecto que chama a atenção, nesse fragmento, é a afirmação de que a peça era malfeita. Wilde abusou da fórmula da well made play e essa colocação do narrador remete a um paradoxo não à fórmula, mas à terminologia. Não é novidade que um dos grandes obstáculos que James encontrou na dramaturgia foi a questão do tempo e do espaço limitados que não permitem voltas. No teatro, as falas devem ser concisas e consistentes, sem espaço para divagações. Ele sente isso na pele quando adapta The American para o palco. Mesmo com os apelos do diretor para cortes infindáveis, a estreia da peça, na província de Southport, durou quase quatro horas, um tempo impossível de ser administrado no palco. Diante disso, é natural que ele sinta ciúmes da superioridade e perspicácia de Wilde em explorar a temática da ridicularização das regras sociais estabelecidas, com a brevidade adequada e, pelo público conhecer bem toda a hipocrisia reinante, o riso e a descontração são evidentes. De acordo com The Master, não muito tempo depois de Henry voltar a Londres, começam as visitas dos amigos para demonstrarem solidariedade após o fracasso de sua peça, e, dentre esses amigos, os destaques ficam com Johathan Sturges (18641911) e Edmund Gosse (1849-1928), e Wilde é o assunto que mais se destaca nesses encontros. Henry, de natureza muito reservada, deixa para os amigos a divulgação dos fatos e procura ouvir e observar os gestos e as alterações no semblante quando tratam da indecência desenfreada no comportamento de Wilde e a disposição dos juízes para puni-lo dentro dos rigores e preceitos ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

359

da lei. Gosse trazia suas informações diretamente do gabinete do primeiro ministro, enquanto Sturges as trazia dos salões e dos encontros casuais com informantes poucos confiáveis. Logo após o início do julgamento de Wilde, os dois passaram a visitar Henry diariamente e sempre apresentavam “[...] um novo elemento de intriga [...]”. (p. 92). Os três, Henry, sobretudo, não entendiam por que Wilde não tomava Douglas e fugia com ele para Paris, por exemplo, onde as convenções sociais não eram tão rígidas quanto na Inglaterra. Gosse explica que se encontrara com George Bernard Shaw (1856-1950) e este lhe contara da tentativa de dissuadir Wilde do embate com o marquês. Douglas, todavia, insistia na continuidade do processo contra o pai. Segundo o narrador de The Master: Wilde frequentara bastante os pensamentos de Henry durante os meses anteriores. Suas duas peças ainda estavam em cartaz. [...] Escreveu a William a respeito, comentando um dos novos fenômenos da vida londrina, o inescapável Oscar Wilde, subitamente próspero em vez de ridículo, subitamente diligente e sério em vez de alguém ocupado apenas em desperdiçar o seu tempo e o dos outros. (p. 89).

Esse fragmento é muito significativo por demonstrar o respeito de Henry pela dramaturgia de Wilde, independentemente do sua vida privada. Num dos encontros com os amigos, Henry pergunta da esposa e dos dois filhos de Wilde. Embora não conseguisse imaginar os sentimentos da senhora Wilde, a existência dos meninos em meio a essa atmosfera de tensão e desespero em relação ao pai, o deixava bastante comovido. “[Henry] Imaginou os dois filhos esperando pela volta do pai [...]. Pensou neles, inconscientes da reputação do pai, mas aos poucos formando uma noção a seu respeito e sentindo sua falta [...].” (p. 91). Gosse informa que as testemunhas arranjadas pelo marquês, contra

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

360

Wilde, são pessoas desqualificadas. “Wilde, ao que parece, andou se relacionando com patifes, ladrões e chantagistas.” (p. 93). No momento em que o Henry de Tóibín percebe que não vai haver volta e que Wilde vai ser mesmo punido, ele sugere: “[...] talvez um período de confinamento solitário ajude Wilde, [...]. Mas não o martírio. Não se deve desejar isso a ninguém.” (p. 96). E, novamente Henry pergunta “[...] dos filhos de uma união de duas forças opostas.” (p. 103). Quem responde é Gosse dando conta de que a esposa tinha seu próprio dinheiro, mudou-se para a Suíça, trocando seu nome e os dos filhos. As crianças passam a ocupar os pensamentos de Henry: “[...] criaturas lindas em estado de alerta num país onde não compreendiam uma palavra da língua, seus próprios nomes suprimidos, seu pai responsável por algum crime obscuro e sem nome.” (p. 99). Sturges comenta que a esposa de Wilde teria vindo à Inglaterra para dar ao marido, já encarcerado, a notícia da morte da mãe dele. Henry novamente se comove com a situação das crianças: [...] Imaginou os dois filhos de Oscar Wilde, com os nomes mudados e o destino incerto, vendo de uma janela sua mãe partir. Perguntou-se o que eles mais temeriam agora, quando a noite caía, duas crianças assustadas, [...] sem saber muito bem por que sua mãe os deixara aos cuidados de serviçais, perseguidas por pavores sem nome [...] [e] pela escassa lembrança de seu pai infeliz que tinha sido trancafiado. (p. 103)

Diante desse excerto, é possível perceber um Henry sensível, comovido e indignado com os rumos que as coisas tomaram para Wilde. Uma leitura possível para esse Henry ficcional é que a sensibilidade do artista vai muito além da preocupação em publicar, vender, fazer sucesso com sua obra e ressentir-se com o sucesso do outro. Ao que parece, a dor maior está em se colocar no lugar do outro num momento destruidor desses, e mais, ser ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

361

capaz de colocar-se no lugar das crianças e pensar no sofrimento delas, no que elas poderiam pensar ou sentir em relação ao pai. O James empírico vem de uma família de cinco irmãos, dentre os quais William, de quem a diferença de idade é de apenas um ano. Os pais viajavam com frequência e os deixavam por conta de serviçais e isso devia gerar muita angústia e muitos questionamentos interiores numa cabecinha de criança, em função dessa sensibilidade aguçada. Talvez, por isso, o Henry ficcional se posicione com tanta intensidade emocional sobre os filhos de Wilde. Considerações finais Em 04 de setembro de 2004, Alan Hollinghurst escreve uma crítica a Author, Author, para o jornal The Guardian, com o nome de The middle fears, com o intuito de fazer um jogo de palavras com “The middle years,” de Henry James – conto inacabado, e publicado postumamente em 1917. Nessa crítica, Hollinghurst aborda os aspectos tomados por Lodge para criar ficcionalmente a vida e o percurso literário de Henry James em Author, Author, em comparação às abordagens de Tóibín, em The Master, sobre o mesmo artista. Afirma que Tóibin se mantém mais próximo do que James considerou o ponto de vista puro. O narrador de The Master, segundo o crítico inglês, permanece na consciência do protagonista, apontando para seus medos, inseguranças, dúvidas, desejos e sua ansiedade acerca da própria sexualidade. A crítica é pertinente na medida em que Henry James penetrou na consciência de suas personagens e as constituiu com intensa interioridade. Dessa forma, Tóibín cria um protagonista largamente convincente e completo, tanto que agradou ao público e à crítica e o romance fora indicado para o Booker Prize. Todavia, pelo fato de o narrador de The Master tratar, mais especificamente, da suposta homossexualidade de Henry, ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

362

as ferramentas para penetrar na consciência do protagonista são vastas e dispõem de uma série de aspectos a serem explorados: seus anseios, suas expectativas, suas dúvidas em relação à própria sexualidade o que torna o romance atraente ao público leitor. Outro ponto que vale salientar é que esse narrador não é tão complexo como costumam ser os narradores contemporâneos. Nesse sentido, a leitura se torna mais fluente e um leitor semântico, segundo a denominação de Umberto Eco (2003) – aquele leitor mais interessado no enredo e em descobrir de que jeito o romance vai terminar, sem preocupação com as estratégias narrativas adotadas pelo autor – é perfeitamente capaz de lê-lo sem dificuldades. Como dito no início, o romance abre poucas discussões sobre a obra de James. Podemos afirmar, sem medo de errar, que a importância exagerada que Tóibín dá à vida privada e à trajetória literária de Oscar Wilde, em The Master, não só reforça a temática do romance, como também o torna ainda mais atrativo aos leitores. Prova disso é a grande quantidade de páginas dedicadas ao artista irlandês. Para finalizar, a postura do Henry ficcional é bastante discreta, suas falas são mínimas e seus questionamentos poucos e sempre bem fundamentados. Muito do que sabemos dele é por intermédio do narrador, por meio do discurso indireto. Henry é um observador atento, prefere ouvir e saborear o gosto de cada palavra que seus interlocutores pronunciam e calcular o peso de cada uma delas. Escolhe ponderar os gestos, as expressões e as respostas dadas por eles, fazendo sua própria análise do quadro todo. Henry censura o fato de Wilde escancarar a sua vida privada e não pensar no destino da esposa e dos filhos pequenos. Percebemos que mesmo tendo em Wilde um rival muito forte na dramaturgia, Henry defende pena branda para o dramaturgo irlandês e se emociona profundamente com os danos psicológicos que o comportamento do pai imporia às crianças.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

363

Referências ECO, Umberto. Ironia intertextual e níveis de leitura. In:_______. Sobre a literatura. Tradução de: AGUIAR, Eliana. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 199-217. EDEL, Leon. The treacherous years: 1895-1901. Published by arrangement with J. B. Lippincott Company. New York: Avon Books, 1969. ______. Henry James. University of Minnesota Press, 1960. HOLLINGHURST, Alan. A linha da beleza. Tradução de WHATELY, Vera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. ______. The Guardian. The middle fears. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/books/2004/sep/04/ fiction.henryjames, Acesso em 19/07/2015. LODGE, David. Author, Author. Great Britain: Secker & Warburg, 2004. FRIEDMANN, Norman. Point of view in fiction: the development of a critical concept. In: STEVICK PHILIP (org). The theory of the novel. London: The Free Press. A division of Macmillan Publishing Com., Inc. 1967, p.108-138. TÓIBÍN, Colm. O Mestre. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. The Master. New York: Macmillan Library, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

364

WEINHARDT, Marilene. A biblioteca ilimitada ou uma Babel ordenada: ficção-crítica contemporânea. Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1 p. 91-116, jan./jun. 2010. ______. O romance histórico na ficção brasileira recente. In: CORRÊA, Regina Helena M. A. (Org.). Nem fruta nem flor. Londrina: Ed. Humanidades, 2006, p. 131-172. WILDE, Oscar. The plays of Oscar Wilde. Introduction and Notes: VARTY, Anne. Hertfordshire: Wordsworth Editions Limited, 2000.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

365

O MITO DA AMÉRICA NO CINEMA ITALIANO CONTEMPORÂNEO: GIUSEPPE TORNATORE x EMANUELE CRIALESE Autora: Maria Célia Martirani Bernardi Fantin (UFPR) RESUMO: O presente estudo pretende verificar os modos pelos quais o cinema contemporâneo - mais especificamente o de dois cineastas italianos – por meio de seus respectivos discursos cinematográficos atualizam, transfiguram e relativizam o mito do “fare l’America”, consolidado no imaginário dos imigrantes italianos, que foram obrigados a partir em busca de melhores condições de vida, especialmente no contexto histórico de fins de séc. XIX, início de séc. XX. O foco desta análise se dedicará ao filme La leggenda del pianista sull’oceano (1998), de Giuseppe Tornatore em diálogo com Nuovomondo (2006) de Emanuele Crialese. Importa notar o quanto o tema vem assumindo relevância na contemporaneidade, já que a nova geografia humana que se impõe em nossos dias implica necessariamente em incessantes travessias de verdadeiras levas migratórias, na maioria das vezes, trágicas e desumanas. PALAVRAS-CHAVE: Cinema Italiano Contemporâneo. Migração. Tornatore. Crialese.

Uma das infinitas tentativas de aproximação ao polissêmico conceito de Mito pode ser a que o considera, a princípio, como uma construção ideológica baseada no imaginário das populações, que expressa, pela via do simbólico, o anseio por respostas aos limites de uma realidade vivida. Segundo Lévi-Strauss (2003), o Mito não é uma narrativa histórica, mas a representação generalizada de fatos que ocorrem com uniformidade na vida dos homens. Por isso, o Mito nunca reproduz a situação real, mas opõe-se a ela, porque a representação é embelezada, corrigida e aperfeiçoada, expressando assim as aspirações a que a situação real dá origem. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

366

Ao retomar os princípios da “ontologia cinematográfica” sistematizados por André Bazin (1958), para quem o cinema é, antes de tudo “linguagem e discurso”, Gilles Deleuze (2006) afirma que a força da imagem consegue implementar reflexões fundamentais sobre a origem, a perpetuação e a relativização dos mitos, “produzindo conhecimento”. Nesse sentido, o presente estudo pretende verificar os modos pelos quais o cinema contemporâneo - mais especificamente o de dois cineastas italianos – por meio de seus respectivos discursos cinematográficos atualizam, transfiguram e relativizam o mito do “fare l’America”, consolidado no imaginário dos imigrantes italianos, que foram obrigados a partir em busca de melhores condições de vida, especialmente no contexto histórico de fins de séc. XIX, início de séc. XX. Importa notar o quanto o tema vem assumindo relevância na contemporaneidade, já que a nova geografia humana que se impõe em nossos dias implica necessariamente em incessantes travessias de verdadeiras levas migratórias, na maioria das vezes, trágicas e desumanas (como por exemplo, as que partem do Norte da África com destino à ilha de Lampedusa, no sul da Itália). E como não poderia deixar de ser, cresce, cada vez mais, o número de manifestações e representações artísticas que vem se debruçando sobre o assunto, a exemplo da sétima arte. Nossa escolha se pautou pelo método de análise comparatista entre o filme La leggenda del pianista sull’oceano (1998), traduzido entre nós como A lenda do pianista do mar, de Giuseppe Tornatore em diálogo com Nuovomondo (2006), em português: Novo Mundo de Emanuele Crialese, pois, em nosso entendimento, guardando as diferenças específicas de cada obra, ambas se detém na atualização do mito do “fazer a América”, nos primórdios do século XX.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

367

A América como “Terra Prometida” na literatura italiana: Carlo Levi Cumpre observar o quanto boa parte da Literatura Italiana contemporânea também tratou do tema e em que medida algumas de suas páginas antológicas podem servir de apoio para a verificação de como o referido mito foi sendo consolidado ao redor da ideia de “Terra Prometida”. É o que podemos depreender do seguinte excerto de um romance de Carlo Levi: Para a gente da Lucania, Roma não é nada; é a capital dos Senhores, o centro de um Estado estrangeiro e maléfico. Nápoles poderia ser a sua capital e realmente o é, a capital da miséria, nos rostos pálidos, nos olhos febris de seus habitantes, nos vãos das portas abertas por causa do calor; é o verão, com mulheres seminuas que dormem sobre as mesas e nos degraus de Toledo; mas já não há em Nápoles, desde muito tempo, nenhum rei, e nela só se chega para embarcar. (LEVI, 1990, p.108, trad. nossa)

Nessa obra-prima de traços autobiográficos, que narra a situação de exílio forçado do autor, devido a seus embates com a ideologia fascista da época (1935-36), conseguimos notar a minúcia retratista do olhar do que vem de fora (Carlo Levi era proveniente de Turim, do norte desenvolvido, quando é mandado para o sul subdesenvolvido) observando tudo ao redor, especialmente o atraso e a miséria da região da Lucania – o que, inclusive, justifica o título do romance: Cristo si è fermato a Eboli (1945), traduzido entre nós como Cristo parou em Eboli. A narrativa hiper-realista do autor parece querer documentar o anseio daquela gente por migrar, fugindo da miséria e do abandono, na tentativa desesperada de se reinventar no outro mundo, a América:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

368

O Reino acabou: o reino dessa gente sem esperança não é desta terra. O outro mundo é a América. A América também tem, para os camponeses, uma dupla natureza. É uma terra para onde se vai para trabalhar, onde se sua e se dá duro, onde o pouco dinheiro se economiza com muitas dificuldades e privações, onde, às vezes se morre e ninguém nem se lembra, mas ao mesmo tempo e sem contradição, é o paraíso, a terra prometida do Reino. (LEVI, 1990, p.108, trad. nossa)

A obra literária foi adaptada para o cinema pelo diretor Francesco Rosi, (numa coprodução ítalo-francesa em 1979) que obteve, naquele ano, dois prêmios David di Donatello como melhor filme e melhor diretor, além de ter vencido também o Grande Prêmio do Festival de Moscou no mesmo ano e, em 1983, o de melhor filme estrangeiro (BAFTA). Contou com a excelente a atuação de Gian Maria Volonté, como protagonista. A América eufórica de Alessandro Baricco e Giuseppe Tornatore Outro autor que trata do tema de modo enfático é Alessandro Baricco (nascido em Turim em 1958), considerado um dos mais importantes escritores italianos contemporâneos. Sua obra : Novecento: un monologo (1994) inspirou o filme de Giuseppe Tornatore: La leggenda del pianista sull’oceano (1998) e é a história de um homem que nasce, cresce e morre dentro de um navio, tornando-se um exímio pianista, vivendo confinado entre a proa e a popa do transatlântico Virginian, grande embarcação, que fazia incessantes viagens entre a Itália e a América, carregando levas de migrantes que procuravam “fazer a América”, na virada do século XIX para o XX. Tornatore transfigura, plasticamente, a chamada primeira “aparição” da América, conseguindo como que ilustrar, por meio da “imagem em movimento” (JAMESON, 1995) - que é, em síntese, uma das definições da linguagem cinemato- gráfica - a primeira página da obra de Alessandro Baricco. ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

369

De fato, a página que abre o monólogo, refere-se à tal aparição como algo de encantado, maravilhoso, um fascínio associado, ao mesmo tempo, à dúvida e ao medo do novo (aquele que primeiro a via, ficava como que extasiado e anunciava, com os pulmões cheios de ar, como marinheiro que, antes de todos, avistasse terra: América! Interessante notar que essa primeira visão da América, coincidindo com a abertura da obra e também do filme, quer enfatizar o quanto havia de expectativas geradas, em torno do simples nome “América”. (FANTIN, 2009, p.182,183) O que percebemos, logo de saída, na obra de Baricco e também, mais ainda, de certa forma, na adaptação feita para o cinema por Tornatore é a configuração de um ideal de América calcado na euforia do sonho, numa idealização que exacerba a visão utópica da assim chamada “Terra Prometida”, onde jorrariam o leite e o mel. O imaginário simbólico – em cuja base reside a construção do conceito de mito – nessa acepção, eleva ao máximo as expectativas daqueles que se deslocam em busca de melhores condições de vida e que almejam encontrar, nas longínquas terras americanas, o paraíso perdido, o bálsamo para toda sorte de privações e sofrimentos: Acontecia sempre que alguém, a certa altura, levantava a cabeça... e a via. É uma coisa difícil de entender. Quero dizer... Éramos mais de mil, naquele navio, entre ricaços em viagem e emigrantes, e gente estranha, e nós... E no entanto havia sempre um, um só, um que primeiro... a via. Talvez estivesse ali comendo, ou passeando, simplesmente, na ponte... talvez estivesse ali ajeitando as calças... levantava por um instante a cabeça, lançava um olhar ao mar... e a via. Então ficava imóvel, ali onde estava, partia-lhe o coração em mil pedaços e sempre, todas as malditas vezes, juro, sempre, virava-se para nós, para o navio, para todos e gritava (baixo e lentamente): a América! Depois permanecia ali, imóvel como se devesse fazer parte de uma fotografia, com cara de quem a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

370

tivesse feito, a América. À noite, depois do trabalho, e aos domingos, pedira a ajuda de um cunhado, pedreiro, boa pessoa... primeiro, tinha em mente alguma coisa em compensado, depois... tomou-lhe um pouco a mão, fez a América... (BARICCO, 2000, p. 9-10)

Nesse tipo de abordagem, há a exaltação do mito do “fare l’America” e a representação é embelezada, corrigida e aperfeiçoada (Levi Strauss, 2003) expressando assim, as aspirações a que a situação real dá origem e a mitificação quase premonitória daquele que primeiro “descobre” a nova terra: Aquele que é o primeiro a ver a América. Em cada navio existe um. E não é preciso pensar que são coisas que acontecem por acaso, não... nem mesmo por uma questão de dioptria, é o destino, aquilo. É o tipo de gente que desde sempre teve aquele instante gravado na vida. E quando eram crianças, você podia olhá-los nos olhos e, se olhasse bem, já a via, a América, já ali, pronta para saltar, para escorregar pelos nervos e pelo sangue – e eu sei como – até o cérebro e dali para a língua, até dentro daquele grito (gritando) AMÉRICA!, já existia, naqueles olhos de menino, inteira, a América.(BARICCO, 2000, p.9, 10)

A América de Emanuele Crialese: a diluição do sujeito nos mares de leite Emanuele Crialese é um dos mais importantes diretores do cinema italiano da atualidade. Nascido em Roma em 1965, não deixa de homenagear, em boa parte de seus filmes, alguns traços de suas origens sicilianas. Passou a ser reconhecido mundialmente, após o lançamento da premiada trilogia: Once we were strangers (1997); Nuovomondo (2006) e Terraferma (2011), que ele mesmo denomina “Trilogia do movimento humano” (CRIALESE, 2011).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

371

Uma das características mais evidentes do conjunto de sua obra é fruto do que se poderia denominar – conforme o nome de um famoso festival de cinema italiano – de “contaminações”: O meu cinema fala de integração e diversidade... Interessamme as “contaminações”, termo que, porém é, muitas vezes, usado em acepção negativa. Eu acredito que seja muito importante, para a raça humana, misturar os contornos, abolir as fronteiras, os limites, pois, do contrário corremos o risco de nos trancafiarmos em nossas celas particulares e egocêntricas . Quando nos “contaminamos”, nosso olhar se torna mais genuíno: ir embora de casa nos dá uma nova visão também do retorno... (CRIALESE, 2012)

Da trilogia, escolhemos, para o presente estudo, analisar o segundo: Nuovomondo, pois parece ser o que melhor ilustra o propósito, explicitado anteriormente. A primeira cena que abre o filme é impactante. Dois homens, pai e filho, sobem uma montanha altíssima de pedra. Hábeis e ágeis pisam a aridez daqueles rochedos apenas com a planta dos pés que sangram, habituados, desde sempre, à dureza descalça daquele chão. E é, também, pedra o que carregam nas bocas totalmente cerradas. Estão sós e sua solidão é ampliada em meio a um mundo que parece feito de calcário branco acinzentado, a se perder de vista nesta espécie de agreste siciliano. Os dois vão escalando o cume escarpado. A única música que se ouve é a dos ruídos dos corpos em movimento, quase como a batida compassada de seus corações aflitos e dos pios de aves agourentas. A pergunta inicial que, inevitavelmente, fazemos é: para onde estarão indo essas criaturas tão abandonadas, que palmilham aquelas pedras com tamanha desenvoltura, carregando, no olhar, apenas, urgências? E o que se descobrirá, após esse árduo trajeto, é que estão indo ao alto, em direção a um ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

372

Santuário. Lá depositam as pedras que retiram da boca, em oferecimento a uma santa, em penitência, para que Ela os oriente, dando-lhes um sinal qualquer que indique a melhor escolha: ficar ou partir. E o veredicto acabará sendo o mesmo que impulsionou tantas levas de pobres italianos meridionais a aventurarem-se nos navios, que os levariam à América, ao Novo Mundo, na esperança de uma vida digna. Esse primeiro momento se fecha com uma tomada de cena em que a câmera lentamente se afasta dos dois e vai flagrandoos do alto, como se os sobrevoasse. Nessa panorâmica, o efeito que se cria é de uma plasticidade singular. Os dois homens vão se tornando diminutos, até a diluição total em meio àquele relevo silencioso e absoluto das pedras que se impõem, numa reverência ancestral. E, a partir daí, terá início a travessia de Salvatore Mancuso, seus dois filhos e a mãe, além de duas moças, que ele se incumbe de fazer chegarem sãs e salvas à América. Aparentemente estamos diante de mais um filme sobre a saga de imigrantes, obrigados a tentar uma nova vida em outra terra, tema já tão bem tratado por outros grandes cineastas, como por exemplo, os irmãos Taviani em Kaos (1984) ou Good Morning Babilonia (1987), Tornatore em La leggenda del pianista sull’oceano (1998) e Gianni Amelio, em L’America.(1994). Entretanto, o que parece excepcional é a nova linguagem com que Crialese traduz esse tão conhecido e atualíssimo tema. Veja-se, ilustrativamente, a cena da partida propriamente dita. Temos apenas o apito doloroso do navio que, lentamente, vai se afastando do porto. Uma nesga de mar se interpõe entre a multidão de homens que fica e a outra que parte, como se a integridade de um corpo fosse cindida ao meio. A tênue linha de água que os separa vai se ampliando, aos poucos, dando conta do paulatino, mas decisivo afastamento dos que vão para nunca mais voltar. Quase como morrer um pouco, nessa despedida… Quase como deixar pra trás toda uma vida, uma história, em que só resta o ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

373

apego obstinado à idéia da reinvenção do ser no novo mundo que se anuncia. E o navio passa a ser uma espécie de ventre gigante que abriga a todos, irmãos transitórios da mesma embarcação. A travessia, então, assume o papel de protagonista e aqueles homens, antes dispersos, passam a se reconhecer. Em tudo que, de alguma forma, já foi reiterado por diversos cineastas ao retratarem essa viagem pelo oceano, a câmera de Crialese assume, aqui, a força de uma beleza inigualável. Especialmente na cena da tempestade em alto mar, em que os corpos desgovernados são jogados de um lado para o outro, acompanhando a fúria das ondas que oscilam impetuosas, ele consegue ilustrar aquela dor, com a mesma precisão dramática de certos clarosescuros que vemos, por exemplo, nas telas de um Caravaggio. Finalmente, depois do duro percurso, a chegada: o Golden Gate, a porta de entrada para a América. Os imigrantes que chegam a Ellys Island são submetidos a uma série de exames e testes para que possam ser admitidos no novo mundo. Um viés de profunda e irônica crítica à mentalidade americana, nesse momento, denuncia a arrogância e a postura extremamente preconceituosa dos “civilizados”, em relação aos pobres ignorantes “bárbaros” que acabam de chegar. Toca-se aqui, de modo explícito, na ferida, ainda aberta e muito atual, subjacente às teorias xenófobas de eugenia e de superioridade de raças, sustentadas pelos regimes nazi-fascistas. E teremos o absurdo dessas mentalidades, revelada na justificativa dada pelos agentes americanos, ao submeterem os imigrantes recém-chegados a certos “testes de lógica”. Afirmam eles que a inteligência seria determinada geneticamente e que aqueles povos poderiam representar uma séria ameaça, se não fossem submetidos a uma triagem, já que se sabia que a falta de certas capacidades mentais revelariam uma grave doença contagiosa. Importa notar a coragem com que, abertamente, o filme denuncia a ferrugem corrosiva do preconceito e da política de ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

374

higienização, camuflada no Portão Dourado de entrada para as “facilidades” da nova terra. O preço para nadar nos amenos rios de leite (imagem recorrente, à época, para falar da fartura das terras americanas) é muito mais alto do que, de longe, se poderia supor... E parece ser justamente nisso, nesse eixo de tensão que se estabelece entre a ânsia e a necessidade de sair da terra de origem e a integração esforçada, na difícil assimilação dos novos padrões da terra de chegada, que reside uma das muitas qualidades da obra de Crialese. Sabiamente, muito além da história da saga de italianos obrigados a buscar trabalho e vida digna no eldorado paradisíaco, o filme traz à tona a problemática atualíssima das questões migratórias de nossos tempos, em que o mapa geográfico do mundo implica novas configurações humanas. A última cena, quase surreal, aproximará, num close, a câmera de Mancuso, Lucy e dos dois filhos, de quem só veremos as cabeças, já que os corpos estão submersos no grande mar de leite em que nadam. Uma cenoura gigante corta-lhes a frente e, satisfeitos, eles se apóiam nela, usando-a como bóia. Gradualmente, tal como no momento inicial do filme, a câmera vai se distanciando em movimento de ascensão, como se os sobrevoasse e o que se nos apresenta é um imenso fundo branco, o oceano de leite em que milhares de cabeças, com seus chapéus negros, nadam. A abertura e o final do filme são construídos, formalmente, de modo coincidente. No início, os Mancuso, peregrinos pastores sicilianos, diluem-se no gigantesco universo montanhoso das pedras que parece absorvê-los por completo. Ao final, também, como que se diluem na imensidão branca do mar de leite da América. Talvez, a diferença resida em que, no primeiro momento, sejam ainda seres autênticos que integram aquele ambiente, meio homens-meio pedras, num entranhamento íntimo de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

375

convívio com a terra, que só se conhece, por meio da raiz umbilical e única da identidade e do reconhecimento. Nadando no mar de leite, ao contrário, ainda que com todas as facilidades sedutoras e fascinantes da nova vida, os Mancuso deixam a pedra ancestral e correm o risco de não saber mais quem, de fato, são, em meio à multidão anônima dos que perambulam por aí errantes, talvez, na eterna busca de uma simples, mas verdadeira, identidade. Conclusão O mito da América tem sido representado artisticamente, em diferentes épocas e contextos da história humana. Como procuramos observar, no presente estudo, os fenômenos migratórios de fins do século XIX e início do século XX, ocuparam e ocupam boa parte da literatura e do cinema. Hoje, mais do que nunca, alargam-se as questões em torno da nova reconfiguração geográfica mundial, em grande parte determinada pelas arbitrariedades impetradas pelo póscolonialismo, que vêm obrigando o êxodo incessante de populações inteiras, como por exemplo, as do norte da África. Os fenômenos migratórios da contemporaneidade se impregnam das marcas trágicas das diásporas, cujas consequências funestas, equiparadas a verdadeiros genocídios, estão nas páginas de todos os jornais, acusando o Mediterrâneo como um Mar de Morte (EURONEWS, 2014). Como não poderia deixar de ser, a literatura e o cinema (enquanto expressões artísticas) abrem-se ao diálogo crítico com o contexto histórico atual, por meio das múltiplas representações e abordagens que nos apresentam, seja retomando mitos para reforçá-los, seja revisitando-os de forma irônica e relativizadora. Justamente porque percebemos a urgência de abordar tais questões é que nos propusemos a analisar, especificamente, duas linguagens cinematográficas distintas, criadas por grandes nomes ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

376

da cinematografia italiana. Mais do que analisar a adaptação fílmica, por exemplo, feita por Tornatore, a partir da obra de Baricco; mais do que constatar que o filme de Crialese traz uma nova abordagem de um dos temas mais explorados pelo cinema e pela literatura, qual seja o da viagem transoceânica de pobres imigrantes italianos, que eram obrigados a deixar a terra natal “per fare l’America”, nosso intuito foi o de ir além, buscando refletir, especialmente, como cada um destes cineastas tratou do mito da América idealizada, enquanto paraíso de salvação e como a História se repete ciclicamente, trazendo cenas do passado para ilustrar o presente. Se Tornatore investe na visão paradisíaca e eufórica da América, Crialese propõe o pathos e a ironia, na tensão que cria entre as cenas da partida e a da chegada com a subsequente diluição do sujeito, na tentativa de aquisição da nova identidade, tocando muito de perto na condição precária e desesperada dos deslocamentos humanos que se configuram na atualidade. Em cada um dos respectivos casos, é o discurso cinematográfico que se impõe, composto de elementos procedimentais que conferem à película o status de tessitura narrativa autônoma, que determina e reafirma o que Frederic Jameson (1995) denomina: “ontologia visual”. O Mito do Novo Mundo – aqui revisitado pelo cinema – se relativiza e assume outra dimensão, porque traduz, em termos dialéticos, importantes e pertinentes reflexões para a própria contemporaneidade, na medida em que coloca em cena a atualíssima problemática do sujeito, obrigado a partir, em processos cada vez mais traumáticos de desterritorialização e reinserção nos novos mundos, cujos portões insistem em não abrir.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

377

Referências BARICCO, A. Novecento: un monologo. Milano: Feltrinelli, 2002. _______. Novecentos: um monólogo. Trad: Y.A.Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. BAZIN, Andre. Ontologia da imagem fotográfica In: Qu’est que ce le cinema? Vol.I, Paris: Editions du Cerf, 1958, trad: Hugo Sérgio Franco In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema, São Paulo: Graal, 2003, p.121-128. CRIALESE, E. Il mio cinema è contaminazione, la Sicilia la luce ispiratrice.Disponível em: http: //www.panorama.it. Acesso em: 13 giugno 2012. _______.Nuovomondo. Direção: Emanuele Crialese. Gênero: Aventura. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Vincenzo Amato, Aurora Quattrocchi, Francesco Casisa, Filippo Pucillo, Federica De Cola, Isabella Ra- gonese, Vincent Schiavelli, Massimo Laguardia, Filippo Luna, Andrea Prodan, Ernesto Mahieux, Robert Allyn, Adriana Angrisano, Antonio Angrisano, Cetti Arancio, Tom Bocanelli, Antonio Bruschetta, Oriana Celentano, Doriana Chierici, Nino D’Agata, etc. Duração: 124 min. País de origem: Itália/ Alemanha/ França. Idiomas: Italiano. Legendas: Português/ Inglês. Distribuidora: Imagem Filmes. Site oficial: http://www. goldendoormovie.com. 2006. DELEUZE, Gilles. La imagem-movimento. Barcelona/Buenos Aires/ México: Paidós, 2005 e A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006. FANTIN, M. C. M. B. O leite da pedra: a idealização da América, a partir da câmera de três cineastas italianos: Giuseppe Tornatore,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR

378

Irmãos Taviani, Emanuele Crialese. Revista de Italianística , São Paulo, v. XVII, p. 191-205, 2009. Disponível em:
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.