MODA E ANCESTRALIDADE

May 27, 2017 | Autor: Lucia Leiro | Categoria: Moda, Fashion, Ancestrality, Ancestralidad
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MODA E ANCESTRALIDADE Lúcia Tavares Leiro Doutora em Letras/Universidade do Estado da Bahia “Os africanos começaram a produzir sua própria roupa, a partir de matérias-primas locais, e com o tempo essa passa a ser a roupa não só do escravo, mas também a do colono” (...) “Isto está relacionado com a origem étnica dos africanos trazidos para o Brasil. Na Bahia, por exemplo, a maior força da cultura iorubá se tornou a grande referência no vestuário, mas as nossas roupas são muito diferentes das africanas da mesma etnia. Aqui não temos aquelas mangas volumosas, as formas de amarrar os turbantes são diferentes” (Julia Vidal apud VIRGÍLIO, 2016) Resumo: o artigo aborda, a partir do conceito de ancestralidade e da linguagem como discurso, a moda com base em três peças do vestuário – turbante, túnica e chita. Partindo deste ponto, destaco e situo cada uma desses elementos ancestrais em diferentes usos, analisando as peças inseridas na história e na cultura afro-brasileira. Ressalto ainda a moda como hábito e como discurso, representação e, por isso, um elemento mediador importante nas construções e negociações identitárias. Palavras-chaves: moda – ancestralidade – turbante – túnica – chita

O estudo da moda tem sido objeto de pesquisa de diferentes áreas do conhecimento, incluindo a área de Letras cujos pesquisadores vêm desenvolvendo interesse pelos estudos das linguagens e de suas interseccionalidades. A moda, essa segunda pele que significa e é significada, que ora é inscrita como revelação das identidades, ora como performance no jogo das relações, é ainda vista com desconfiança por acadêmicos, com o argumento de que o assunto é irrelevante à ciência. Entre as feministas da segunda onda, a moda também goza de pouco prestígio porque vista como um dos setores que mais violenta a mulher já que, segundo esta leitura, a indústria da moda esculpe o corpo idealizado e desejado pelos homens para submeter a mulher a um jogo especular que a confina em si mesma. Com tantos discursos desanimadores, por que eu, acadêmica de formação feminista, resolvo trazer a moda para o centro das pesquisas científicas e de uma perspectiva feminista e ancestral? É a partir do conceito etimológico de modus, isto é, maneira das pessoas se comportarem e, no nosso caso, se vestirem, é que proponho um estudo criterioso sobre a linguagem visual do vestuário, para pensar como intervir ideologicamente, politicamente nas práticas socioculturais a partir dos textos visuais. Como linguagem, a moda é um lugar discursivo, intersemiótico, que cumpre o papel de mediadora, de negociadora entre o sujeito e o mundo nas mais diferentes práticas sociais. Enquanto discurso, a moda se faz na história, dialoga com outras textualidades, podendo agir como mediação conservadora ou transformadora, a depender de como os sujeitos de moda e a crítica a interpretem. Como realização intersemiótica, a moda faz uso de códigos diferentes de linguagens – música, artes plásticas, dança, fotografia, cinema- tornando-a complexa e multissensorial. Estes elementos fazem da moda, do habitus de se vestir, um ritual de linguagens. Ao usar o termo 'discurso', proponho considerar o uso de linguagem como forma de pratica social e não como atividade puramente

individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação (FAIRCLOUGH, 2001, 90-91)

Com isso, apresento a moda como lugar de disputas onde as ideologias, as identidades, as corporalidades e suas performances são materializadas, historicizadas, modificando os sujeitos e sendo também modificada por eles. É com esta dimensão sobre a moda e a sua textualidade performática ancestral que me detenho nas próximas linhas, enlaçandoa ainda a aspectos epistemológicos, sociais e históricos que a fazem ser um rito dinâmico, em constante diálogo com a tradição, atualizando-se sem perder os seus princípios. Antes de adentrar nas questões mais específicas sobre Moda e Ancestralidade com base nas produções da Afrobrasilidades, marca baseada em túnicas e turbantes feitos de chitas, considero oportuno trazer as bases epistemológicas que legitimam a escolha do objeto e a metodologia adotada. Falar da minha própria criação não é um exercício fácil ou comum na academia porque a tradição científica, construída com base no pensamento da modernidade, nos legou alguns axiomas seculares, e um deles exige que o sujeito e o objeto estejam distantes, separados entre si. A partir dos anos 60 do século passado, pesquisadores(as) de diferentes campos de enfretamento político e intelectual, a exemplo das feministas, iniciaram um árduo processo de identificar as razões da invisibilidade das mulheres nos espaços institucionais e, também, de alguns temas, bem como os postulados que validavam o discurso da crítica que elegia uns em detrimento de outros. No caso das feministas, uma das constatações era que esta tradição foi erigida por homens e os seus juízos pautavam-se em suas vivências e interesses, fortalecendo a sua imagem e protagonismo. Portanto, a crítica ao establishment vinha dos coadjuvantes que não faziam parte ou não se reconheciam no código vigente. Eram feministas, colonizados, imigrantes, que, relendo o discurso da modernidade, começaram a falar de “relações de gênero”, “patriarcalismo”, “pós-colonialidade”, “micropoderes”, “ordem do discurso”, “micronarrativas”, “decolonialidade”, “ancestralidade” para colocar o fundamento da modernidade em xeque ao mesmo tempo em que a superava com epistemologias que apontavam para releituras do cânone e para leituras das vivências não contempladas pelas metanarrativas. A ideia de uma realidade construída por discursos, por performances e não como verdades transparentes, rasurou a centralidade fixa, para inserir a ideia de diferentes núcleos em movimento, em constante disputa por lugares de poder, de visibilidade. Questionou-se, radicalmente, os postulados da modernidade pautados na objetividade, na neutralidade e na universalidade, pilares sobre os quais foi construído todo tipo de premissas e taxionomias da cultura ocidental. É a partir deste lugar da crítica que sujeito e objeto passam a ser vistos como uma coisa só, e os enunciados, visuais ou não, como construtos discursivos por meio dos quais as ideologias se materializam e são inscritas nas disputas de poder pelos sujeitos. Desta forma, estudar a moda a partir das criações que produzo me define como produtora de cultura, neste caso cultura de moda ancestral, afro-brasileira, de crítica, isto é, de alguém que busca fundamentar a análise desta produção a partir de categorias científicas. Este recorte exige uma postura política desafiadora de produzir moda a partir das identidades e das memórias dos povos tradicionais, e uma postura intelectual, já que embasada em postulados éticos e estéticos que explicam esse movimento de escrevivência, isto é, quando a escrita é fruto da vivência do sujeito, termo cunhado pela

escritora Conceição Evaristo, que uso para me referir ao gesto de falar das peças que produzo, um dos objetos de minha pesquisa. A TÚNICA A túnica e do turbante são duas peças de vestuário extremamente importantes para a cultura afro-brasileira. A túnica é uma peça muito conhecida no mundo da moda, pois foi (e é) bastante usada por diferentes culturas. Como a história das indumentárias se insere como linear e evolutiva, a túnica aparece mais ostensivamente nos períodos antigo e medieval da história do Ocidente, sob o protagonismo dos sujeitos europeus (embora a túnica fosse amplamente usada no Oriente Médio, Ásia e África). O contato com os povos islâmicos, através da Turquia, graças ao poderio do Império Otomano que se expandiu em direções diferentes, abarcando parte da Rússia, da Europa e da África, rota bastante conhecida entre os europeus, fez deste trajo, peça de modelagem simples, uma indumentária pomposa e luxuosa, com funções sociais diversas, informando basicamente a classe social da pessoa, o gênero, a idade, o cargo, entre outras significações dentro das práticas sociais de cada grupo. A aproximação entre os países da Europa e o Oriente Médio fez a túnica islâmica (de origem turca, sobremaneira) ser remodelada para vestir as mulheres e os homens europeus, como bem mostra o livro A Roupa e a Moda, uma história concisa, de James Laver: “O rei declarou ontem no Conselho sua resolução de estabelecer uma Moda para as roupas , que ele nunca vai alterar”. Em 15 de outubro comenta: “hoje o rei começou a usar sua túnica e vi diversas pessoas da Câmara dos Lordes e também da Câmara dos Comuns, grandes cortesãos, usando-a: é comprida, justa, de tecido preto ou recortado, com seda branca por baixo e um casaco por cima, as pernas guarnecidas com titãs pretas como as de pombo; e, sobretudo, espero que o rei mantenha, porque é um traje muito fino e bonito”. (PEPYS apud LAVER, 114, 2014)

A citação de Pepys extraída do seu diário e citada por Laver em seu livro, mostra a moda turca incorporada ao cotidiano europeu, neste caso à Inglaterra, em decorrência da aproximação cultural entre os dois registros. O que o livro de Laver não deixa explícito é o contexto, isto é, porque os ingleses passaram a usar a túnica, já que a moda está intimamente relacionada com o expansionismo cultural de grupos culturais e com a política. Com base em dados históricos, é importante destacar que no século XVII o Império Otomano está em crescimento - a sua dissolução acontece no início do século passado - e que os conflitos entre os países eram inevitáveis em função do expansionismo da cultura islâmica no mundo. O império turco ocupou diferentes regiões, mostrando o poderio militar e político deste grupo, e fazendo com que, a partir deste alargamento, a sua estética também fosse incorporada às conquistas. Este contexto é importante para mostrar que a moda não pode ser analisada sem a enunciação, sem observar as práticas sociais, o que lhe confere uma textualidade e, portanto, um discurso. Da mesma forma que a resposta dos sujeitos ao prazer estético de uma indumentária, não pode ser desmerecido, pois este prazer é importante para o fortalecimento dos elos de afetividade e da autoestima. A moda começa a ser projetada como um aliado poderoso no cenário de guerra, quando da formação dos EstadoNações, e as peças de vestuário passam a atender à função de afirmar o sentimento nacionalista, a forjar um pertencimento geopolítico sob o discurso das identidades, a instituir e fortalecer o binômio sexo-gênero, a delimitar as fronteiras das idades e a

demarcar as pessoas por meio de classes sociais. Com o mundo e os sujeitos tão compartimentalizados, é compreensível que a classe hegemônica procurasse se afastar de símbolos de outras nações ou ressignificá-los para uso em seu código. É neste momento que a túnica deixa de ser usada em seu sentido mais tradicional, ao mesmo tempo em que passa por um processo de ressignificação para manter-se presente no Ocidente, mas com outra modelagem. Os homens deixam de usá-la, enquanto que a mulher torna-se senhora absoluta das modelagens sem divisão, como acontece com a calça. Estudar moda, portanto, é analisar o contexto e como ela se articula com a tradição ao mesmo tempo em que busca se afastar, pesquisando as identidades, a relação entre a forma de se vestir e às nações ou etnias, aos papeis sociais dos gêneros, aos ritos iniciáticos, entre outros aspectos. Com os estudos sobre a história da África contribuições sobre esta peça de vestuário redimensionam a história da túnica, ao mostrar que diferentes etnias africanas a usaram e continuam usando, mostrando que a história linear, diacrônica, não contempla os movimentos sincrônicos que dinamizam e, não rara as vezes, contrapõe-se ao que é dito pela análise diacrônica. Esta análise não dá conta, por exemplo, de mostrar que os africanos, em geral de origem ou influência islâmica, continuam a usar as túnicas, porque são modelagens que valorizam a estampa, o tecido, um dos produtos mais comercializados do continente africano. O que nos importa é que a túnica com a qual nos identificamos como afrodescendentes são as recriadas na África, com as suas cores, texturas, estampas, ritos e mitos. O colorido, possível porque o continente africano é um importante fabricante de pigmentos e da técnica de tingir e criar estampas, está presente na vida dos africanos, graças aos pigmentos extraídos de sua diversidade natural. Os corantes foi (e é ainda) um das riquezas africanas que se expandiu rapidamente pela Europa na época da colonização e do comércio desenvolvido com as grandes navegações. Desta aproximação de culturas diferentes, as histórias foram sendo escritas, validadas pelo colonizador e que chega para os países colonizados como uma via de mão única, já que enunciada e conhecida apenas por uma das partes. Como a história situa o sujeito no tempo e no espaço, é importante dizer que a túnica atravessa séculos e é usada na contemporaneidade por meio dos africanos ou dos afrodescendentes. A kaftan, o bubu, o abadá passaram a representar a africanidade e usála é uma forma de se posicionar esteticamente diferente do vestuário ocidental. O bubu, também chamado de robe senegalês, é usado por homens e mulheres e é com o objetivo de ativar a memória que me debruço na composição que faço. Em uma cultura ocidentalizada como as que foram forjadas pela colonização europeia, na qual o uso da túnica, transculturada, é marcadamente direcionada para o feminino, porque é associada ao vestido, a reintrodução desta peça na vida dos afrodescendentes reforça a necessidade de se discutir temas como ancestralidade, representação de gênero e decolonialidade, e a importância da moda na formação identitária dos sujeitos, sobretudo diaspóricos. Portanto, o uso da túnica, para os homens, significa um duplo enfrentamento no Brasil: a ancestral e a de gênero. A sintaxe visual que criei para o processo de ativação da memória através da moda é formada pelas seguintes modelagens:

1) Túnica tradicional, vertical (VTC) , de corte reto, usando toda a largura do tecido 1,40, com uma costura apenas na parte posterior. O tecido é alinhado de forma que a costura fique na região posterior, na linha central das costas. Em seguida, dobro e faço um côncavo para a gola e em seguida faço duas aberturas nas extremidades para a passagem dos braços. O acabamento é feito com viés. 2) Túnica horizontal, assimétrica (HRZ), com laterais assimétricas, duas costuras laterais e abertura para os punhos. É uma peça com manga longa. Acabamento com viés. Aproveita-se toda a largura do tecido que é dobrado verticalmente, deixando a aureola nas laterais que serão unidas e costuradas. 3) O bubu, peça que segue a modelagem da túnica horizontal, sendo que larga na parte superior e estreita na parte inferior, formando um triângulo invertido. Como mostram os modelos abaixo:

A túnica nunca deixou de ser usada pelos estilistas. A sua modelagem passou por mudanças ao longo dos séculos, mas sempre foi uma peça presente na vida de qualquer pessoa. Seu corte reto, amplo, sugere simplicidade e elegância, também praticidade, sendo logo associada ao lazer. A territorialização da túnica ao espaço de lazer, à moda praia, acabou restringindo o seu uso e tirando-lhe de circulação dos espaços sociais, urbanos, causando-lhe certo desprestígio, diferentemente de quando era usada pelas autoridades e cidadãos romanos e por autoridades africanas até os dias atuais. Este desprestígio pode ser comprovado pelo uso da “mortalha”, uma túnica que, no Brasil, passou a vestir o morto. Enquanto que em outros países, onde a túnica era usada socialmente, não havia separação entre vida e morte, no Brasil, ela passou a vestir exclusivamente os mortos, criando desta maneira uma linha de separação entre o vestuário do vivo, significando positividade, e o vestuário do morto, associado à debilidade, à negatividade, a partir de uma visão cristã. E como a morte é um tabu em países de herança judaico-cristã, diferentemente das religiões de matriz africana, a túnica passou logo a significar roupa de morto, imagem negativa, portanto. Além deste sentido, a túnica (chamada de mortalha) foi amplamente usada durante o carnaval até o início dos anos 80, sendo logo substituída pelo agbadá, que significa bata na língua iorubá, peça usada pelos blocos não-afros ou um afro mais comercial, mas que sofre mudanças na modelagem feita pelos foliões para ajustar-se mais ao corpo, sobretudo da mulher. A resistência entre as mulheres à modelagem mais solta do corpo advém da disseminação da estética do vestuário justíssimo, ocidental. Assim, trazer a túnica para o uso social é rasurar significações distorcidas pela indústria cultural para recuperar a sua importância e nobreza. Neste processo de memória e de construção de uma identidade afro-referenciada, a túnica é a peça do vestuário que deveria ser mais usada porque ela sintetiza simbolicamente a África na linguagem da moda, ao lado do turbante. As estampas africanas são desenhos e muitas vezes narrativas, histórias, e para que se visualize é necessário que o tecido seja amplo. O corpo funciona como moldura e display móvel pronto para mostrar a beleza e a história de um povo. Sobre este tópico, à guisa de exemplificação, cito um trecho do livro de Laver que destaca o hábito da aristocracia de imprimir histórias bíblicas, em linguagem visual, no tecido, servindo como mensagem, identidade e como adorno: “há o registro de que um senador bizantino tinha em sua toga uma série completa de quadros representando a vida de Cristo.” (LEVER, 49, 2014). Portanto, a túnica tinha uma função para além de cobrir o corpo, de adorná-lo, ela

indicava a visão da pessoa, seus valores e filiação grupal. Na túnica, estampa e modelagem são igualmente importantes, complementares, seguindo um dos princípios filosóficos africano que é a de complementaridade e a de indissociabilidade entre forma e conteúdo. As túnicas largas chamadas de grand boubou expressam o orgulho africano de um produto feito em seu continente, a exemplo do povo Mali que produz a túnica desde a fabricação têxtil até o consumo. Foi partindo dessa consciência ancestral da túnica e do turbante que criei um conjunto formado pela sintaxe túnica-turbante-chita que, como veremos adiante, também considero um elemento ancestral africano. A literatura sobre moda informa que a chita é um tecido originário da Índia, muito embora os indígenas da América Latina também façam uso deste tecido. Longe de querer postular qualquer verdade sobre a sua origem, me interessa partir de um lugar menos abstrato para um mais concreto, mais referencial, e este lugar me informa que a chita foi usada pelas mulheres afrodescendentes em diferentes contextos no Brasil, em especial na Bahia. Foi um tecido usado pelos africanos escravizados, pela população mais pobre, e gozava de pouco prestígio porque era sinônimo e mantinha uma relação metonímica entre a pessoa e a sua classe. É um tecido usado por candomblecistas da nação angolana para vestir os nkisis, por isso que a chita é um tecido diferente de quaisquer outros porque tem história e a sua história está intimamente ligada aos afrodescendentes. A pesquisa em fontes primárias dos registros fotográficos e históricos do século XIX mostram mulheres vestidas com saia (axó) ou camisu, um tipo de bata cuja modelagem traz um detalhe franzido na região do busto que se alarga em direção à cintura, e mangas largas. Por cima do camisu, era sobreposto o pano da costa. A túnica, embora fosse uma peça usada pelos africanos, não foi inserida nas vestes litúrgicas, sendo apenas usada em eventos sociais por mulheres e, mais raramente, por homens que, quando a usam, fazem sobre calças. Apesar de a túnica ser uma peça usada por homens em diferentes regiões do Oriente Médio, Ásia e África, aqui no Brasil, ela ficou quase que exclusivamente usada por mulheres, já que a associação ao vestido é imediata. É importante dizer que túnica não deve ser chamada de vestido, apesar de semelhantes:

O TURBANTE

Outro elemento que faz referência à ancestralidade africana é o turbante, essa peça tem a sua origem nos ojás dos terreiros de candomblé usados para proteger a cabeça do iniciado e, também, para informar o cargo da pessoa. As suas cores refere-se ao Orixá protetor da cabeça, a nação do Egbé e o cargo do filho de santo dentro do Ilê. Embora os terreiros sejam espaço de preservação, o ojá passou por transformações ao longo dos anos, desde o tipo de tecido (tricoline, crochê, tecido africano, brocados...) até o próprio desenho da amarração (torcido ou aberto), sem perder a modelagem indicativa da nação a que pertence o terreiro. O seu uso no âmbito da moda não é novidade, mas há um cenário político atual que tem favorecido o protagonismo de afrodescendentes que veem no turbante uma forma de reconstruir uma história de pertencimento que, por conta dos efeitos da colonização, foram esvaziadas de sentido e a moda, da forma que se apresenta hegemonicamente, é responsável por este processo de apagamento, negando a origem do processo criativo trazidos de outros lugares. Portanto para o sujeito da diáspora africana, o uso do turbante está para além de um hábito adornativo, é símbolo do matriarcado no Brasil, faz parte do patrimônio material e imaterial, ativa e preserva a memória, fazendo com que a moda seja um conjunto de ações e atividades que possam traduzir, atualizar as formas, desenhos, cores, de peças ancestrais, sem perder a sua referencialidade:

O turbante, o ojá estilizado para o uso social, é considerado pelas usuárias como uma peça do vestuário que evoca poder, provavelmente pelo seu desenho que lembra uma coroa ou por ser símbolo distintivo de líderes políticos e religiosos. É também a peça que envolve o Ori, que comanda a inteligência e a criatividade, mantém o equilíbrio da pessoa, daí porque o ojá é um elemento do vestuário importante para o candomblé. Como na Bahia o uso do ojá é restrito às yalorixás, o turbante usado socialmente demarca o lugar do sujeito e o liga a uma ancestralidade reivindicada, por isso que negar a um sujeito o uso do turbante é tentar negá-lo de usufruir desta memória, desta ancestralidade, o que seria nefasto para quaisquer sujeitos diaspóricos. O turbante é inserido como moda neste início de século, como um habitus ancestral, reivindicado pelos sujeitos que conhecem a história dos que lhes antecederam e se reconhecem neste lugar formativo da cultura preservada pelos terreiros de candomblé. Foram as mulheres religiosas de matriz africana que mantiveram o costume de usar o torço no cotidiano, uma vez que não tinha separação entre o espaço público e religioso para o uso desta peça. Com a perseguição pelo Estado, o seu uso passou a ser restrito às práticas religiosas. No Brasil, a túnica e as amarrações de cabeça chegam pelos africanos de diferentes etnias em razão do tráfico negreiro, e o torço (ojá) era usado com bastante frequência

entre as mulheres. Os registros dos pintores do século XIX mostram o torço 1 nos espaços públicos e privados. As africanas ou as afrodescendentes usavam além do turbante, o pano da costa, este sobreposto aos ombros, atravessados ou não. Com o tempo, o pano da costa e o torço foram sendo destinados exclusivamente aos espaços sagrados, visto que com a perseguição ao candomblé, era arriscado usar qualquer símbolo que pudesse identificar os adeptos das religiões de matriz africana. Até hoje essa agressão é vista e pode ser acompanhada pelas mídias televisivas ou impressas, ainda ecos de uma política de Estado, sob os auspícios de grupos religiosos fundamentalistas, que perseguia e ainda persegue o povo de santo. Desta forma, é importante mencionar que as mulheres não deixaram de usar suas vestes - o ojá e o pano da costa - mas foram reservados aos terreiros, às festas litúrgicas.

Nos anos 70, os blocos afros do Carnaval baiano passaram a usar uma versão mais elaborada do ojá, estilizada, explorando a criatividade da turbanteira 2 e abrindo espaço para o uso desta amarração de cabeça para além das cerimônias religiosas, ainda que esses blocos fossem protagonizados por candomblecistas. De qualquer sorte, era uma maneira diferente de usar o ojá, redesenhado pelas mãos de mulheres do axé para outros fins, com tecidos cujas estampas eram feitas exclusivamente para o bloco, com temas específicos, todos fazendo referência à cultura africana ou à diáspora africana. Do Carnaval para o uso social, isto é, para o uso cotidiano mais intensivo e amplo, cerimonioso ou não, foi um longo tempo, quase meio século, mas que veio no momento da colheita, singular, quando as políticas de promoção à cultura africana foram instituídas, vide as leis brasileiras 10.639 e a 11.645, que inserem os estudos sobre a história africana e indígena nos currículos escolares. Portanto, o movimento que hoje vivenciamos no âmbito da moda advém da resistência e enfrentamento seculares para que se tornassem políticas públicas, com avanços em diferentes setores, inclusive na moda. É desta forma que entendo também o lugar da moda, como espaço pedagógico, 1 Faço uso do termo torço para me referir ao ojá, palavra iorubana. 2 Existem outros termos para quem faz turbantes: turbanistas, designer de turbantes (este último usado por mim ao criar uma página no facebook específica para essas/esses profissionais)

por meio do qual podemos ensinar e aprender mais sobre as identidades, o odu3 dos sujeitos de um grupo sociocultural, sobre civilizações e o conceito de belo que só os objetos de arte possuem, a exemplo das peças de vestuário e acessórios. A Pedagogia da Moda é esse movimento intelectual, acadêmico que visa educar as pessoas para o uso consciente da moda, ensinando valores e princípios pautados no projeto civilizatório afro-brasileiro, a partir de metodologias que torne o hábito de se vestir um gesto estético-político. O turbante vem sendo usado neste início do século XXI por mulheres e homens, sobretudo jovens da periferia, para demarcar e afirmar um território estético tão relegado pelas escolas e universidades públicas por não serem vistos como assunto de relevância pedagógica, e, por isso, não compõem os currículos escolares. No entanto, a força do movimento, inicialmente de forma espontânea com encontros em Parques e Feiras, vem mostrando que a omissão do assunto dos estudos universitários e escolares apenas significa mais um caso de epistemicídio, por ignorar não apenas um assunto, uma área do conhecimento, mas impede que teorias possam dar conta de uma análise mais aprofundada das atividades organizadas por lideranças que apostam no movimento estético como uma das formas de afirmação identitária. A moda vem sendo também protagonizada por estilistas afrodescendentes, principalmente mulheres, que por meio dos tecidos, texturas, estampas, modelagens, inscrevem na história uma moda esteticamente afro-referenciada e de vivência ancestral, o que significa dizer que o gesto de vestir-se e de fazer uso de acessórios é uma extensão e exteriorização dos valores e cosmovisão de um dado grupo sociocultural. Com isso, reforça-se a ideia africana de que o belo deve ser também confortável, e em termos de moda o africano em seu momento mais continental, preza por modelagens amplas4. Além do conforto, as formas largas deixam à vista as estampas que são o motivo de orgulho e, por isso, as peças de vestuário são feitas de tecido, inclusive sapatos e acessórios, e a modelagem da túnica, do bubu, do abadá, representa a forma ideal de expor a arte nas estampas. O corpo é visto como display para a projeção do produto que, neste caso, é uma confluência entre forma e conteúdo.

3 Odu significa destino, mas também o caminho construído pelo livre-arbítrio. 4 É importante dizer que as modelagens ocidentais fazem parte do dia-a-dia dos africanos em razão do processo de colonização. As peças mais tradicionais são usadas em momentos específicos ou por aqueles que defendem um movimento de valorização do que é genuinamente africano. Trata-se de um processo de descolonização baseado no uso e comercialização dos produtos feitos em África ou que expresse os seus valores e riquezas.

Figura 9 Bubu com turbante afrobrasilidades

A CHITA A chita é um dos raros tecidos no mundo cuja história se mistura a dos afrodescendentes. Por ser um tecido de baixo custo (apesar dos recentes aumentos) vestiu os africanos e seus descendentes no Brasil há séculos, o que significava dizer também que vestiu a camada mais pobre da população. As narrativas literárias e as telenovelas dão mostras da visão que as camadas mais ricas da população tinham em relação ao tecido. Machado de Assis em História Comum nos apresenta a relação entre moda, classe social e raça: “Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita (...) Tinha-me comprado uma triste mucama.” (ASSIS, 1995, 35-36). A chita foi, portanto, um tecido que vestiu as africanas ou as afrodescendentes escravizadas e que por esta razão sempre gozou de desprestígio social. Explica-se, com isso, a possível resistência das atuais afrodescendentes ao uso da chita em situações mais cerimoniosas ou até mesmo públicas 5 com o fito de se afastarem de uma memória que venha fazê-las se lembrar de uma origem social apresentada pela história oficial como negativa já que associada à escravidão. Assim, afastando-se da chita, pelo menos publicamente, os afrodescendentes estariam se afastando de um passado de tristeza, dos preconceitos, de uma negação externa que a sua memória deseja esquecer. Recentemente em uma mesa sobre Moda e Ancestralidade, durante o I Encontro Nacional sobre Moda e Ancestralidade, realizado na Universidade do Estado da Bahia, uma participante, muito emocionada, falou como a chita fazia parte de sua memória. O tecido era usado tanto para forrar o colchão feito de capim, quanto para vesti-la, o que a constrangia quando saia à rua porque era molestada pelas amigas que diziam que se vestia com o pano do colchão. É, contudo, pelo conceito de decolonialidade e de ancestralidade que o passado do afrodescendente se reinscreve de outra perspectiva, mostrando uma origem para além das terras brasileiras e, com isso, trazendo novos sentidos para a sua história, para as suas origens, e esta foi uma das mais significativas contribuições epistemológicas na 5 Algumas mulheres confirmam o seu uso exclusivo em casa.

universidade. Isso fez com que os afrodescendentes buscassem por um começo que não era o Brasil, mas a África, de onde vieram muitos reis e rainhas vencidos em conflito com outras etnias, e que vieram na condição de escravos para as colônias, dentre elas o Brasil. Desta forma, sem muito esforço, podemos inferir que a chita pode ter vestido a nobreza africana aqui no Brasil. A chita, portanto, não era usada por escravos, mas por soberanos, reis, rainhas, a nobreza africana escravizada. É desta forma que busco resignificar a chita nas minhas criações, enobrecendo-a e aproximando-a das modelagens largas usadas pelos africanos mais comprometidos com as suas referências ancestrais, a fim de mostrar a beleza dos contrates de cores em motivos florais, geométricos e animal print (estampa de animal)6. Até recentemente a chita era exclusivamente usada em decoração – cortinas, almofadas, toalhas de mesa - e só mais recentemente em acessórios – colares, brincos, calçados - e de forma menos folclórica, como vestuário. Neste quesito, é importante destacar que a chita é introduzida em espetáculos folclóricos com o objetivo de fantasiar, envolver, suavizar momentos históricos de sofrimento em performances sentimentais e vazias de sentido. Longe de ser uma evocação à memória, o fato de o tecido ser apenas usado em espetáculos folclóricos mostra o quanto a moda está longe de discutir o uso da vestimenta como instrumento de controle social. É restringindo o uso da chita à decoração e ao espetáculo que a lançaremos aos porões de uma memória embaçada e sedimentada pela reiteradas imagens e discursos que há anos a arquiteta Lina BoBardi se referia, a de transformar a cultura local no olhar o Outro, como categoria “, própria da Grande Cultura central, para eliminar, colocando no devido lugar, incômodas e perigosas posições da cultura popular periférica.” Sendo assim, penso na chita como um tecido que pode e deve ser usado em qualquer espaço social e não apenas como objeto do folclore popular que no Brasil e, sobretudo Bahia, equivale a dizer de origem africana. Outra forma de regular a memória é engessá-la no tempo e no espaço. Em se tratando de tempo, já discorri anteriormente sobre o uso nas apresentações folclóricas, já em relação ao espaço, é importante destacar que a moda segue uma lógica hegemônica, que é destinar o uso de uma peça a um lugar específico. A chita e as amarrações de corpo são discursivamente apresentadas como moda resort ou moda praia e, sendo assim, a (re)territorialização consiste em uma estratégia para reduzir o campo de visão e atuação da chita e das amarrações, minimizando-as e, consequentemente, desvalorizado-as. A segmentação no setor de moda muitas vezes impõe a maneira de como o corpo deve circular nas diferentes práticas sociais, disciplinando-o a serviço de interesses de alguns que, no nosso caso, não deseja que a chita, as amarrações e a túnica sejam valorizadas, desejadas e amplamente consumidas. Se no século XIX a chita rivalizava com outros tecidos nobres, no século XXI ela continua provocando mal-estar. Para entendermos a importância da chita para o afrodescendente, vale dizer que no Brasil, o tecido é usado nos terreiros para vestir Orixá, sobretudo de nação angolana: O Candomblé de Angola-Congo é chamado pelo povo de outras nações de o candomblé da chita, referência ao tipo de tecido utilizado nas roupas das Muzenzas (do quimbundo: munzenza, plural: azenza) e Cotas (do 6 Eu uso as chitas produzidas pela Fabril Mascarenhas, localizada em Alvinópolis, MG. Na classificação desta fábrica, as flores menores são chamadas de chitinha e as maiores de Reps-chitão. As estampas São João seriam as mais geométricas (por exemplo, o xadrez) e Carnaval as estampas animal.

quimbundo: kota, plural: makota) para a cerimônia pública do templo. Enquanto outras nações se preocupam com as sedas, brocados e richilieu, as angoleiras gostam mais das padronagens dos panos multicoloridos e vistosos, e segundo elas, nada é mais vistoso que uma chita cheia de ramagens. (RODRIGUES, Aislan/ KIIENGI, Nganga, 2016)

Além de servir de vestimenta para as divindades, o morim, tecido de que é feito a chita, é usado em diferentes rituais nos terreiros. Serve para vestir iniciados de cargo menor, como abians, e para envolver os ebós, oferenda para os Orixás. Portanto, falar da chita é fazer referência ao morim e é por esta razão que considero a chita um tecido ancestral. Em relação ao fragmento acima, a leitura que eu faço é a de que a chita se aproxima do gosto angolano por razões estéticas, já que o tecido africano usado em Angola é majoritariamente colorido, assim como a chita. Apesar de a fábrica Fabril Mascarenhas, ser uma das maiores fabricantes de chita do país, ela não exporta para outros países, mas chega ao mercado internacional através dos clientes atacadistas7. Esta estética, traço constitutivo da cultura, é um dos indicadores da nossa ancestralidade, pois o prazer visual por determinadas estampas, jogo de cores, texturas, caimento de tecido, é cultivado pelo grupo social, por meio das pessoas que formam laços afetivos com outras. O tecido, bem como as peças de vestuário, passa a ser um elo que fortalece os sentimentos entre pessoas de gerações diferentes e situam os sujeitos em um lugar social e identitário. O uso do vestuário como expressão da visão de mundo, das transformações comportamentais, políticas e sociais deixam evidente a importância da roupa em momentos decisivos na vida das pessoas. No cotidiano, isso é constatado em ritos importantes, a exemplo de batizados, casamentos, velórios, formaturas, etc. A túnica e o turbante de chita, sintaxe visual que compõe o meu processo criativo, visam ativar a memória ancestral, redimensionando o olhar, modificando comportamentos e situando os sujeitos na história. Anexos:

Referência: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Trad. Izabel Magalhães. Distrito Federal: Editora Universidade de Brasília, 2001. LAVER, James. Capitulo Final (por) PROBERT, Christina. A Roupa e a Moda: Uma História Concisa. Trad. Gloria Maria Mello Carvalho São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 7 Informação prestada pelo Sr. Astrogildo, funcionário da fábrica, por telefone, tentando explicar o interesse do mercado externo pelo tecido.

RODRIGUES, Aislan/NGANGA, Kiiengi. Roupas Tradicionais no Candomblé. Disponível em: http://aislanrodrigues.webnode.com/news/roupas-e-adere%C3%A7ostradicionais-no-candomble/. Acesso em: 09 jan 2016. VIRGÍLIO, Paulo. Livro aborda influência da cultura africana no vestuário do brasileiro. Disponível em: http://www.ebc.com.br/cultura/2015/02/livro-abordainfluencia-da-cultura-africana-no-vestuario-do-brasileiro, Acesso em: 09 jan 2016. LEIRO, Lúcia. Figuras de 1 a 13 retiradas do arquivo pessoal, exceto 7 e 8 que foram extraídas da internet, fazendo parte do domínio público.

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