Modelo Mariano e Discurso Político: o exemplo de Filipa de Lancaster

July 7, 2017 | Autor: Miriam Cabral Coser | Categoria: Portuguese Medieval History, Historia Medieval, História de Portugal
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Dossiê

Modelo Mariano e Discurso Político: o exemplo de Felipa de Lancaster (1360-1415) Miriam Cabral CoserA

RESUMO MODELO MARIANO E DISCURSO POLÍTICO: O EXEMPLO DE FELIPA DE LANCASTER (1360-1415)

O artigo realiza o estudo da representação da rainha portuguesa Filipa de Lancaster (1360-1415) no discurso político avisino através da análise de duas crônicas oficiais do reino: a Crônica de D. João I (parte II), de Fernão Lopes, e a Crônica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara. A crônica de Fernão Lopes foi escrita durante a regência de D. Pedro (1440-1448) e a de Zurara sob o reinado de D. Afonso V (1438/1481). As duas crônicas, portanto, têm uma continuidade cronológica, mas foram escritas por autores diferentes, em momentos históricos distintos. Autores e momentos históricos distintos produziram perfis distintos de Filipa de Lancaster, nos quais, em que pese a permanência do modelo mariano, dentro de uma releitura portuguesa, surgem significados diferentes de sua atuação política em Portugal. Palavras-chave: Portugal, discurso político, modelo mariano. ABSTRACT MARIAN MODEL AND POLITICAL SPEECH: THE CASE OF FELIPA OF LANCASTER (1360-1415) This article aims to study the representation of Portuguese queen Filipa de Lancaster (1360-1415) in the political speech avisino through the analysis of two official chronicles of the kingdom: the Chronicle of D. João I (part II), Fernão Lopes, and the Chronicle of the Taking of Ceuta, Gomes Eanes de Zurara. The chronicle of Fernão Lopes was written during the regency of D. Pedro (1440-1448) and the chronicle of Zurara under the reign of D. Alfonso V (1438/1481). The two chronicles, therefore, have a chronological keeping, but they had been written by different authors, in distinct historical moments. Different authors and historical moments had produced distinct profiles of Filipa de Lancaster, in which there is the permanence of the marian model – under a Portuguese comprehension –, but also appear different meanings of her political performance in Portugal. Keywords: Portugal, political speech, marian model.

Professor adjunto II da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Endereço: Rua Gustavo Sampaio, 390/1104, Leme. Rio de Janeiro. CEP: 22.010-010 e-mail: [email protected] A

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1 – A personagem histórica A inglesa Filipa de Lancaster nasceu em 1360 e era filha primogênita de João de Gante (filho de Eduardo III e duque de Lancaster pelo casamento) e Branca de Lancaster (filha e herdeira do duque de Lancaster, Henrique). Foi criada em uma das propriedades do pai, com os irmãos legítimos e ilegítimos, a madrasta e a amante de João de Gante. A historiografia portuguesa pouco faz menção à sua vida até os 26 anos. Com esta idade, embarcou para Castela com o pai, a madrasta Constança (filha e herdeira de Pedro, o Cruel, rei de Castela) e a irmã Isabel, uma vez que João de Gante reivindicava o trono daquele reino. Casou-se com D. João I de Portugal, no Porto, em 1387. O casamento foi ilegítimo por quatro anos, devido à condição eclesiástica do noivo, até chegar a dispensa do Papa, em 1391. Tiveram dez filhos, de 1388 a 1402, sendo que oito sobreviveram: D. Branca (morta antes de completar um ano), D. Afonso (morto aos dez anos), D. Duarte, D. Pedro, D. Henrique, D. Isabel, D. João e D. Fernando. Manteve-se rodeada de auxiliares ingleses em sua casa e trocou constante correspondência com a corte inglesa, nos reinados de seu primo Ricardo II (1377-1399) e seu irmão Henrique IV (13991413). Segundo o dicionário dirigido por Joel Serrão1 , Filipa de Lancaster provavelmente exerceu influência sobre a política portuguesa, como no caso do empreendimento de Ceuta. Também voltada para os assuntos religiosos, introduziu em Portugal certos costumes litúrgicos ingleses, os quais discutia com os clérigos. Quanto à influência que teria exercido na educação de seus filhos, a historiografia portuguesa não chega a ser unânime. Morreu de peste, em 1415, sendo sepultada em Odivelos e mais tarde trasladada para o Mosteiro da Batalha. 2 – A personagem das crônicas Filipa de Lancaster é personagem de duas crônicas portuguesas: a Crônica de D. João I (parte II), de Fernão Lopes, e a Crônica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara. A crônica de Fernão Lopes foi escrita durante a regência de D. Pedro (1440-1448) e narra todo o conflito entre Portugal e Castela desde as cortes de Coimbra de 1385 até a assinatura do tratado de paz com Castela, em Outubro de 1411, incluindo as alianças de Portugal com a Inglaterra e a intenção do duque de Lancaster (pai de Filipa) de obter o reinado de Castela para sua filha Catarina (neta de Pedro de Castela). Zurara escreveu a Crônica da Tomada de Ceuta, após substituir Fernão Lopes como guarda das escrituras do Tombo, em 1454, portanto sob o reinado de D. Afonso V (1438/1481). Cronologicamente, esse texto é a continuação da última crônica de Fernão Lopes e provavelmente contém partes escritas por esse autor. A crônica inicia com a paz entre Portugal e Castela e o surgimento da ideia da conquista de Granada, como parte do projeto de D. João de fazer seus filhos cavaleiros. Em seguida, narra a tomada de Ceuta, que é concluída em 1415. As duas crônicas, portanto, têm uma continuidade cronológica, mas foram escritas por autores diferentes, em momentos históricos distintos. Fernão Lopes começou a servir ao Paço em 1418, pouco mais de trinta anos após a Revolução de Avis e ainda sob o primeiro rei da nova dinastia. Toda a questão da legitimação da casa de Avis permanecia muito presente e é um marco de suas crônicas. Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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Por outro lado, é notória sua simpatia pelo infante D. Pedro, e seu afastamento das atividades na Torre do Tombo deveu-se, em parte, ao final da regência desse infante, morto em Alfarrobeira, em 1449. Zurara escreve já em outro contexto, tem um maior distanciamento cronológico em relação à revolução de Avis, e uma das suas questões principais é justificar as investidas da família real na África. Tratava-se de um protegido de D.Henrique, que adquire importância política de relevância após a morte do irmão, D. Pedro, aumentando sua ascendência sobre seu sobrinho, o rei D. Afonso V (filho do já falecido D. Duarte). Autores e momentos históricos distintos produziram perfis distintos de Filipa de Lancaster, o que justifica o fato de a personagem ser analisada dentro de cada crônica separadamente. Por outro lado, a análise da personagem nas crônicas deverá levar em consideração não apenas sua inserção no texto como um todo, mas também as sequências narrativas específicas em que a personagem aparece. Assim, na Crônica de D. João I (parte II), Filipa aparece, após duas menções isoladas no prólogo e no capítulo XCVIII, em quatro segmentos narrativos. O primeiro (cap. XC a XCVI) constitui-se nos antecedentes e na concretização de seu casamento com D. João; o segundo (cap. XCVII e XCVIII ) trata da apresentação da rainha para o leitor; o terceiro (cap. CXV) compreende a doença do rei; e o quarto (cap. CXVII a CXXXIV) enfoca a legitimação do casamento pelo papa. A Crônica da Tomada de Ceuta inclui a rainha em quatro nítidos segmentos narrativos: a aprovação da rainha quanto à expedição a Ceuta (cap. XIX a XXI); a repercussão dos preparativos para a empreitada (cap. XXXIV); a sequência da doença e morte de Filipa (cap. XXXVII a RV); e as considerações do cronista acerca das virtudes da rainha (cap. RVI). 3 – Filipa na Crônica de D. João I A primeira menção à rainha Filipa na Crônica de D. João I, Parte II, já deixa transparecer ao leitor/ ouvinte a propriedade da escolha do rei de tomá-la como esposa. Ainda no Prólogo, Fernão Lopes afirma sobre D. João: “Homrou muito e amou sua molher de onesto e são amor; [...]”2 . Antes mesmo de apresentar Filipa a seu público, o cronista adverte sobre a propriedade do amor de D. João por Filipa, amor são e não sandeu, como eram consideradas as paixões. A próxima menção à rainha será no capítulo em que Fernão Lopes trata da sua nobre linhagem e de seu parentesco com os reis da Inglaterra3 . Mas a primeira sequência narrativa que tem Filipa como centro é a que descreve os antecedentes e a concretização do seu casamento. O duque de Lancaster oferece, para que D. João case com uma de suas filhas, Filipa, fruto de seu primeiro casamento, ou Catarina, filha de seu segundo casamento e neta, por parte de mãe, do rei D. Pedro de Castela. Mesmo recebendo conselhos para casar com Catarina e assim apoderar-se do reino de Castela, D. João opta por Filipa, justamente para evitar mais conflitos com o reino vizinho: [...] a Deus graças, elle estava com vitoria de seus imiguos, que lhe não emtemdia de mover mais guerra, salvo por cobrar o que lhe tomado tinhao e ataa que lhe dese paz e estomçe viver assosseguado guovernamdo seu Reino em direito e [em] justiça. [...] e asy fiquou determinado, prezemdo a Deus, com a Ifamta dona Felipa”4.

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Uma vez escolhida a noiva, iniciam-se as negociações para o casamento5 , com o acordo de mútua ajuda entre o duque e o rei na guerra contra Castela e a doação, por parte do duque, de determinadas regiões de Castela (ainda a ser conquistada). Filipa é então trazida para Portugal e chega ao Porto, onde é recebida com festa: “[...] tragida muy homrradamente de mamdado de seu padre a Ifamta dona Felipa aa çidade do Porto, segumdo dizemos que fora acordado. Homde foy reçebida com grão festa e prazer, vimdo muito acompanhada de imgreses e portugueses [...]”.6 Por seu turno, D. João parte de Évora para conhecer sua futura mulher: Ell Rey partio dÉvora e o Comdestabre com elle, e quoamdo cheguou ao Porto achou ahy a Ifante dona Felipa, sua molher que avia de ser, [e pouzou] em São Francisco. E em outro dia foy ver a Ifamta que aimda não vira, e falou comella, presemte aquel Bispo, per hu boo espaço; e espediose e foy jamtar. E depois que el Rey comeo, emviou a Ifamte suas joyas e ella a elle, [...].7

Os antecedentes do casamento de João e Filipa seguem os rigores de um casamento por contrato. O acordo parece vantajoso para ambas as partes (marido e pai da noiva). O rei só então conhece sua futura esposa; mas não há pressa: D. João chega ao Porto e só no dia seguinte procura a noiva, volta para o Paço, onde janta, e só então trocam presentes. Finalmente, presente a todos, D. João toma Filipa por esposa: “[...] e aly, em nome do Senhor Deus, a reçebeeo [Ell Rey], presemte todos, por sua esposa e molher lidima, fazemdo lhe tall ofiçio e o mais solene que se pode fazer.”8 Iniciam-se então os preparativos para a festa, que deveria realizar-se na semana seguinte, pois D. João partiria com o duque para a guerra contra Castela. O cronista, antes de iniciar a narrativa das bodas, parece prevenir o leitor/ouvinte de que a extensão da festa era um costume do tempo de D. João: “Nam enbargando que os dias fosem breves pera ordenar de fazer tamanha festa, mormente como naquelle tempo tinhão em custume, emcomemdou ell Rey [...]”.9 Toda a cidade do Porto participa dos preparativos: “Asy que toda a cidade hera ecupada em desvairados cuidados desta festa.”10 No dia marcado para as bodas, o rei e a futura rainha partem do paço em direção à Sé, num espetáculo de luxo, cores e sons: E ell Rey sayo daqueles paços em çima de huu cavalo bramquo, em panos douro reallmente vestido; e a Rainha [em] outro tall, muy nobrememte guoarnida. Leevavão nas cabeças coroas douro ricamente obradas de pedras dalljofare de grãde preço, [...] E ho Arçebispo mlevava a Rainha da redea. Diamte hião pipas e trombetas e doutros estomemtos que se não podia ouvyr. Donas filhas dalguo e isso mesmo da cidade camtavão imdo detras, como he custume de vodas.11

A multidão acompanha o cortejo que chega à Igreja: A jemte hera tamta que se no podião reger nem ordenar, por ho espaço que era pequano dos paços a igreija. E asy cheguarão a porta da See, que era dally muy perto, homde Dom

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Rodrigo, bispo da çidade, jaa estava festivallmente em pomtificall revestido, esperamdo co a clerezia. O qual os tomou pellas mãos, e vemoveo a dizer aquellas palavras que a Samta Igreija mamda que se diguao em tall sacramento.12

Finda a cerimônia, o grupo volta ao paço para dar prosseguimento à celebração: [...] e acabado seu ofiçio, tornarão el Rey e a Rainha aos paços domde partirão, co semelhamte festa, huu avião de comer. As mesas estavão já muito guornidas e todo o que lhe compria; [...] Em quoamto ho espaço de comer durou, faião joguos a vissta de todos, homesis que o bem sabião fazer, asy de mesas e salto reall e outras cousas de sabor; as quais acabadas, alçaramse todos e começarão de damçar, e as donas em seu bamdo camtamdo a redor co gramde prazer.13

Finalmente, o rei e a rainha retiram-se para o quarto e têm a cama benzida pelo Arcebispo: “El Rey se foy emtamto pera sua camara; e depois de çea, ao serão, ho Arçebispo e outros perlados, co muitas tochas accesas, lhe bemzerão a cama daquellas bemções que a Igreija pera tall aucto ordenou. E ficamdo ell Rey co sua molher, foramse os outros pera sua pousadas.”14 Mas a festa se prolonga, abrangendo todo o reino: “Per quimze dias amte a depois duraram restas e juustas reaes, por homrra desta voda como dizemos; e não somente é aquell lugar, mas em todallas vilas e çidades do /Reino, segundo que cada huu hera, forão feitas gramdes alegrias e trebelhos, como se emtão custumavão.”15 Mais uma vez, o cronista atribui a festa aos costumes daquela época. Por outro lado, o casamento de D. João e Filipa aparece, desde já, como um elemento de união e felicidade para todo o reino. Essa sequência narrativa, que inicia em um tom de sobriedade e comedimento, com a ponderação do rei ao escolher a esposa mais adequada para seus interesses e inclui meticulosos acordos de trocas materiais e de favores, termina numa profusão de cores, comidas, músicas, danças e jogos que duram quinze dias e abrangem as várias regiões do reino. O capítulo seguinte, que é aqui considerado uma sequência narrativa à parte, retoma o tema da sobriedade e do comedimento. Esse capítulo é dedicado à descrição da rainha. A perfeição de Filipa vem de sua linhagem e aumenta ao tornar-se rainha de Portugal: “Esta Rainha dona Filipa, nata de nobre padre e madre, asy como era louvada em semdo ifamta de todas bomdades que a molher dalto lugauar pertemçem, asy foy e muito mais depois que novamente foy casada e posta em reall estado, [...]”.16 O casamento foi outorgado por Deus, mas era de desejo dos noivos, que geraram virtuosos filhos: “aa quall [Filipa] Deus outorgou marido comcordavell, comformes huu a outro e a seu desejo, de que ouve fermosa geração de bemavemturados e virtuosos filhos [...]”.17 A devoção religiosa de Filipa revelou-se cedo e, com o tempo, só aumentou: “[...] asy como em sua mocidade era devota e nos divinais ofiçios esperta, asy o foy e muito depois que teve casa e os ordenou a sua vomtade.” Rezava e ensinava até a seus capelãos: “Ela rezava sempre oras canoycas pello custume de Salesbri; e pero el seja não bem de ligeiro dordenar, asy era em esto atemta, que seus capelais e outras onestas pesoas reçebião nelle per ella esynamça”. Às sextas-feiras, mantinha o silêncio até terminar suas orações: “Todallas sestas feiras tinha custume rezar o Salteiro, não falamdo a nenhuha pesoa ataa que o acabava de todo;” Quando estqva empedida de eir à

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Igreja, trazia o ofício a seu redor: “[...]) e quoamdo era embarguada per doemça ou constramgida per enpedimento de paarto, açerqua de sy lhe rezavao todo o que ella avia em husança, ouvimdo devotamente sem outra nehua torvaçom.” Jejuava e lia as escrituras, nunca ficando com a mente ociosa: “Dos jejus não compre fazer sermão, nem do ler das Samtas Escrituras em covinhaveis tempos, Qua sy erão todos repartidos co tão madura descrição, que numca oxiosidade em sua maginação achava morada.” Não se esquecia dos pobres: “Era cuidadosa açerqua dos pobres e mimgoados, fazemdo larguas esmolas as egrejas e mosteiros.” Foi boa esposa, amando fielmente o marido e cuidado dos filhos: “Amou bem e fielmente a seu muy nobre marido, temdo gram semtido de numca o anojar, e da boa emsinamça e ciraçaom de seus filhos.” Era incapaz de odiar: “Não fazia algua cousa com ramcor nem odio, mas todas suas obras eram feitas em amor de Deos e do proximo.” Sua conversação era proveitosa, com doces e graciosas palavras: “Em ella avia hua chaã comversaçaom proveitosa a muytos, sem oufana de seu reall estaado, com doces e graciosas palavras a todos prazivees douvir.” Suas distrações eram lícitas e convenientes, na verdade, mais para agradar aos outros e para não parecer apartada das outras mulheres da corte: “Alegravase alguas vezes por nam parecer de todo apaartada despaçar com suas domzellas, em joguos sem sospeita demguano, licitos e comvinhavees a toda onesta pesoa.” O cronista conclui, então, que seus perfeitos costumes seriam um exemplo para qualquer mulher: “Asy que semdo seus perfeitos custumes, em que muyto ffloreçeo, per meudo postos em scripto, asaaz seriam dabastosa emsinamça para quaes quer molheres, posto que de mor estado fosem.”18 Não há uma única menção à aparência física de Filipa, nessa passagem ou em qualquer outra parte da crônica de Fernão Lopes. Filipa é só espírito. Note-se que a vontade de Filipa está voltada para os assuntos religiosos. Profundamente devota, rezava, jejuava e até ajudava nos ofícios religiosos. Sua mente, ocupada pela religião, não ficava ociosa. Esposa e mãe perfeita, não deixa dúvida quanto à legitimidade e virtudes de seus fihos. Incapaz de odiar, promovia a concórdia. Seu jeito de falar e se divertir era comedido, adequado. Sua vida era um exemplo. O modelo mariano aparece aqui praticamente com todos os seus elementos. Mas o cronista reserva para um outro capítulo mais uma virtude de Filipa: o dom da cura. Após o casamento, D. João parte com o pai de Filipa para Castela, iniciando uma série de invasões e pilhagens, obrigando o rei castelhano a propor um acordo ao duque de Alencastro, que incluía o casamento de seus filhos Henrique e Catarina. Já de volta a Portugal, D. João dirige-se a Coimbra para ver a rainha. Entretanto, no meio do caminho o rei adoece. Sabendo da enfermidade do rei, Filipa e seu pai vão a seu encontro. Ambos ficam muito tristes, e a rainha, desesperada, chega a desejar sua própria morte: “[...] ficaram tam novjosos e tristes, espicialmente a Rainha, ffalecerlhe [o rei] logo asy cedo, bem se tinha por malavemturada emtre as molheres do mudo. E cuidamdo esto em sua alma e espirito, nã cesava de chorar, pedimdo a morte que ha levase.”19 O rei manda chamar o condestável e alguns fidalgos e prepara seu testamento. A rainha procurava consolá-lo, mas não podia conter as lágrimas: “A muito nojosa Rainha chagavase a el Rei pelo comsolar, nã tirado os olhos delle, e nã sabia como reter as lagrimas que embarguavam a sua doce fallaa.”20 Todos já haviam perdido as esperanças, mas Filipa redobra suas orações, salvando o marido: “asy como Mestra da Mesiricordia provese de saude ao seu desejado marido, aa quall aprouve por sua merce inpetrar tamta graça do seu Bemto Filho que el Rei começou de comvalecer e melhorar pera saude, cousa que nam foi em menos comta theuda com se resucitara da morte a vida.”21 Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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O primeiro movimento de Filipa é o do choro descontrolado e o seguinte é o das fervorosas orações. A cura do rei é obtida justamente através das orações de Filipa, que pede para a Virgem Maria que interceda junto a Jesus, para a recuperação do rei. A cura do rei, nas palavras do cronista, foi como uma ressurreição. Filipa, que na passagem narrativa anterior é descrita em consonância com o modelo mariano, aparece aqui com dons taumatúrgicos, recebendo uma graça da própria Virgem. O último segmento narrativo que inclui Filipa é o que diz respeito à legitimidade do seu casamento com o rei. Esse tema era de extrema importância para a dinastia de Avis, pois o próprio D. João era um filho bastardo que chegara ao trono através da força e de manobras políticas. A legitimidade do casamento, por extensão, dava legitimidade aos herdeiros de D. João. As virtudes de Filipa descritas pelo cronista não deixavam dúvidas quanto à paternidade de seus filhos. Mas D. João era Mestre de Avis, pertencia a uma ordem religiosa, com votos de obediência, castidade e pobreza. O cronista afirma que havia sido uma condição do pai de Filipa que D. João providenciasse seu desimpedimento com a ordem antes de conceder a mão de sua filha.22 Tal exigência teria sido cumprida, por embaixadores de D. João em Gênova, junto ao papa.23 Entretanto, à época que Fernão Lopes escrevia (reinado de D. Duarte), havia suspeitas de que essa dispensa do papa não teria sido dada antes do casamento, mas sim anos depois. No capítulo que tem como título “resposta as razõees alguas que hum estoriador pos em sua cronica”24 , Fernão Lopes se propõe a responder a um autor que escrevera antes dele: “[...] queremos primeiro reprender alguas nom bem ditas rezoens que hum autor em estao passo, mais por desamor que por fazer histoiraa, enxertou em seu volume [...]”.25 Segundo Fernão Lopes, esse autor afirmara que D. João teria cobrado do duque de Lancaster, antes da sua partida para a Inglaterra, o dote de Filipa e o soldo referente à investida contra Castela. Como resposta, o duque teria se queixado da falta de legitimidade do casamento de sua filha: “O Duque muito queixou, dizendo contra el Rey que tirando elle delle sua filha e leixandolha em refens pelo que elle e sua companha aviom daver de seu soldo, pera depois cazar com ella tanto que dispensaçam ouvesse, que elle a tomara por molher, dormindo com ella ante que as letras de Roma viessem [...]”.26 Fernão Lopes responde a esse autor – “O qual, posto que de resposta merecedor no seja” – com a documentação de que tinha acesso como tabelião e guarda mor da Torre do tombo. Recorre ao contrato de casamento firmado entre D. João e o pai de Filipa, para provar que o rei português não poderia exigir soldo do duque de Lancaster referente às invasões a Castela, porque essas faziam parte do contrato. O acordo não exigia tampouco dote em dinherio, “ca o Duque estava entom assi mesteiroso que escusado era tal requerimento” e acrescenta o cronista que as virtudes da rainha já eram dote suficiente para D. João: “mormente que sua grandiosa liberalidade era assi contente do linhagem, virtudes e condições da Rainha sua molher, que esto era a elle bastante dote pera contentar sua profunda grandeza”.27 O cronista recorre ainda a uma carta do Duque para D. João em que aquele mostrava-se muito satisfeito com o casamento de sua filha: “Outrosy vos agradecemos muito e temos em mesuras a cortezia e nobreza que com nossa filha mostrais, e de vossos ricos doens que vos prougue de lhe dar e da boa ordenança que lhe aveis feita pera mantimento della e de seu estado e dos que com ella estam;”.28 Essa documentação, em poder de Fernão Lopes, provaria o contentamento do duque de Lancaster com o casamento, afastando a sombra da discordia sobre a questão da sua legitimidade. Entretanto, o cronista – após uma interpolação na narrativa, em que ele trata do acordo de Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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casamento da irmã de Filipa, Catarina, com o filho do rei de Castela – retoma o problema da condição eclesiástica de D. João, para afastar qualquer dúvida sobre a legitimidade do casamento do rei português: “[...] comvem que repomdamos, amte que comtemos outra cousa, aquella mall fallada rezaom em que pos boca aquel estoreador que disemos, notado por mall dizer: - que o Papa não despemsara com el Rei que cassar podesse, ne lhe ffora trazida tall letra, e que ficara ao Duque de mamdar por ella.”29 Em seguida, o cronista explicita as “duas falsas razões” sobre o assunto: “A preimeira, que o Papa Urbano não quisera despemsar com elle, a seguuda, que Boniffacio, que depois viera, despemsara com certas comdiçoes; asy que não foram ligeiros os erros que de taes estorias naceram.”30 Em defesa do rei, Fernão Lopes afirma que a dispensa havia sido requerida ao papa Urbano e o rol havia sido assinado, faltando porém que as letras fossem feitas. Entretanto, o papa Urbano falecera antes desse procedimento, o que não invalidava a dispensa: “[...] que a graça feita pelo Samto padre, posto que nam fose escrita em sua forma, ou ffose feita e nam bullada, que nã expirava porem per morte delle , mas ficava em sua força de aquelle tempo que a ell outroguara [...]”.31 Finalmente, as letras da dispensa de D. João foram publicadas, já sob o papa Bonifácio IX. O cronista transcreve as letras expedidas por Bonifácio IX, a fim de dirimir quaisquer dúvidas: Ora como hee verdade que sobre isto veio a morte ao dito Urnbano, nosso prodecessor, e as letres apostolicas sobre taees cousas nã foram feitas, porem nos , queremtes prover a homrra e estaado dese Joanne Rei e Fellipa Rainha, sua molher, e todos moradorees deses regnos, posto que taees letras sobre estas cousas nã fossem feitas vivemdo nosso prodecessor, esse Rei e Rainha e os soprycamtes já ditos nam careçeam de seu effeeto, e pois que se todo asy pasou, a vosa noticia por renembramça pera sempre estas presemtes o fazemos certo.32

A segunda letra é ainda mais explícita quanto à dispensa de D. João da Ordem de Avis: “E aimda te absolvemos e livramos de toda a obrigaçaom e leguamento de voto de obediemcia, castidade e pobreza, e da profisãom e avservamcia reguullar em que a dita Hordem per quall quer modo teudo e obriguado ffoses [...]”.33 As letras apostólicas redimiam ainda D. João de seu nascimento ilegítimo: E mais te legitimamos e restituimos a legitimo nacimeto e te abilitamos, despemsamdo comtiguo que na embarguado as ditas coussas e o ffalimento de tua naceemça, semdo geerado do dito Rei Dom Pedro e de hua molher que per matrimonio nã era a elle comjunta, posto que esse teu padre e madre cada huu fosse casado no tempo do comcebimeto e nacemça.34

Assim, Fernão Lopes cobre todas as dúvidas sobe a legitimidade da origem de D. João, de seu casamento com Filipa e de seus filhos. A crônica segue então narrando a guerra contra Castela – entrecortada por tréguas – até a paz, em 1411. A rainha não faz mais parte da narrativa, salvo algumas alusões referentes aos nascimentos dos filhos e algumas passagens em que é convidada a assistir aos feitos do rei. Retomando as vilas e cidades que haviam ficado sob o domínio de Castela, D. João trazia a rainha para assistir a seus feitos: “E qureremdo el Rei mamdar mover seus artefficios pera combater o luguar, fez saber a Rainha que viese ver o dia do combate.”35 Termiado o combate, a rainha é levada de volta: “E lle tornouse com há Senhora Rainha, pera a villa de Momçaom, que eram dahi Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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tres leguoas, como disemos.”36 Novo combate, novamente a rainha é chamada a ver seus feitos: “E feez hua bastida, e hua gramde escalla, e mamtas pera combaater. E mamdou por a Rainha ao Porto, que viese ver como ha combatia, e veio e estava co el Rei no cerquo.”37 A rainha é levada, trazida, é espectadora das façanhas do rei. A rainha que se delineia no texto de Fernão Lopes é a de perfeitos costumes de ensinança para quaisquer mulheres. A perfeição dos costumes da rainha como formação de um modelo para ser seguido para as mulheres em geral está bastante explícita no texto de Fernão Lopes. A nobreza da linhagem da mãe não deixa dúvida quanto à honra dos herdeiros. A rainha é a boa esposa, que ama com honesto e são amor, é a boa mãe. A manifestação da sua vontade está vinculada à devoção, aos divinos ofícios. Da mesma forma, sua erudição é no mesmo sentido; sua leitura é a leitura das escrituras. A caridade, dar esmolas, é sua principal atividade. A rainha segue todos os princípios da contenção: silêncio, jejum, doces e graciosas palavras, jogos lícitos. Diante da adversidade, chora, mas suas orações são tão fervorosas que fazem o rei voltar à vida. O modelo de rainha de Fernão Lopes tem sua ação praticamente restrita à devoção, e sua importância reside no exemplo que transmite a todas as mulheres do reino. 4 – Filipa na Crônica da Tomada de Ceuta A primeira sequência narrativa que inclui Filipa se dá ainda no início da crônica. O rei mostra-se hesitante, diante de seus filhos, com relação à empreitada a Ceuta, pois duvida da aprovação da rainha e do condestável. O título do capítulo estabelece o mesmo grau de importância a ambas as opiniões: “Como elRey disse a seus filhos que duuidaua mujto começar aquelle feito, amte de o saber primeyramente a Rainha e o comdestabre.”38 Essa equiparação da importância dos consentimentos da rainha e do condestável é significativa. A designação de condestável surgira em Portugal, no reinado de D. Fernando, pela influência inglesa e consistia no imediato do rei no comando militar, função exercida por Andeiro. No reinado de D. João, a designação foi dada a Nuno Álvares Pereira, braço direito do Mestre de Avis na revolução de 1383/85, e passou a ter características do que seria modernamente um chefe de estado-maior. A importância da opinião do condestável para os assuntos da guerra é plenamente justificável, e a equiparação com relação à opinião da rainha evidencia o peso da importância de Filipa. A necessidade da anuência da rainha para assuntos de guerra vem acrescida de uma justificativa do rei: Comsijrey acerqua de nosso feitos começados, e acho que pera sse bem poderem emxecutaar, tenho dous muy gramdes jmpedimentos. O primeiro he a Rainha minha sobre todos mujto preçada e amada molher, a quall por suas gramdes uirtudes e bomdades he assy amada de todos geerallmente, que sse ella em este feito nom da comssemtimento, nehuu dos do pouoo nem ajmda dos outros mayores, numca poram maão em este feito com nehuua fiuza nem esforço.39

Sem o consentimento da rainha para que se faça a guerra, tanto os homens do povo, quanto os maiores, não se empenhariam no feito. E não se empenhariam justamente por amá-la devido as Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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suas virtudes e bondades. O que está implícito aí é a união promovida pela rainha no reino. As suas qualidades morais unem pequenos e grandes no amor dedicado à rainha. Esse amor é unificador e mobilizador, necessário para a disposição de todos nas empreitadas do reino. Um dos papéis da rainha, senão o mais importante, está aí enunciado: unir, mobilizar o reino através de suas virtudes. Na sequência da narrativa, os infantes respondem ao rei que duvidam do consentimento da rainha e expõem suas razões: “Primeyramente que a Rainha era molher, a qauall segumdo sua natureza nom lhes poderia deseiar nehuua cousa perijgosa.”40 É interessante perceber que a rainha não poderia desejar nada perigoso aos filhos devido à sua condição de mulher, que tem esse determinado tipo de natureza contrária ao perigo. A sua condição de mãe não é enunciada, está apenas implícita. O maior impedimento para a aventura de Ceuta está, portanto, na condição de mulher da rainha. Os infantes procuram a mãe para pedir o consentimento e falam sobre os temores do rei: “cuydara que por o amor que nos uos teemdes segumdo a comdiçom das outras molheres, nom uos prazera que cometamos cousa de que nossas uidas fiquem em preijgo [...]”.41 Mais uma vez é a condição de mulher da rainha (equiparando-a às outras mulheres) que aparece como impedimento. A rainha então responde: “Bem he uerdade [...] que eu uos tenho assy aquelle amor que quallquer madre per obrigaçam naturall deue teer a seus filhos.”42 A resposta da rainha enfatiza sua condição de mãe e, na sequência, dá o seu consentimento, justificado pelo amor que tem ao rei e devido à nobre linhagem de que seus filhos descendem e acrescenta: “e certamente que eu nom poderra oje ouuir nouas com que mais pouuera, ca per semelhamte rrequerimento me fazees emtemder queiamdas uoontades terees ao diamte, pera obrardes aquellas cousas que sempre obrarom e obram aquelles rrez e principes de linhagem de que decemdees.”43 A fala da rainha explicita sua singularidade. Apesar de mulher e mãe, deve vencer o medo de sua condição natural, em prol dos feitos esperados da linhagem dos reis e príncipes. No capítulo seguinte, a rainha dirige-se ao rei e diz: “[...] eu uos quero rrequerer huua cousa que he mujto comtrayra pera rrequerer madre pera filhos [...] eu renho teemçom de uos rrequerer que os arredees dos jogos e das follgamças, e os metaaes nos trabalhos e perijgos [...]”.44 Mais uma vez, a rainha reitera que, apesar de ser mãe, quer que os filhos lutem para fazer juz à sua linhagem. O rei responde: “[...] me rrequererdes primyramente o que eu ouuera de rrequereer a uos, metendo a mim em prazimento aquello que per uemtura eu mjto duuidara de uos sem constamgimento de gramdes rrogos quererdes outorgar.”45 Esse diálogo produzido por Zurara deixa claro que para o rei era muito importante o consentimento da rainha e ele estaria disposto mesmo ao “constrangimento de grandes rogos”, para obter esse consentimento. Mas a narrativa vai mais além, e o rei pede também o consentimento da rainha para ele próprio ir à guerra: “E por quamto senhora me uos teemdes feito este rrequerimento, prazeruos ha que eu uos faça outro [...] que uos praza de eu seer homde nossos filhos forem [...].”46 A rainha mostra-se contrária à intenção do rei, e aconselha que fique cuidando das coisas do reino e de Deus. D. João argumenta que a luta seria contra os infiéis e, portanto, um serviço a Deus. Filipa diz então não poder se opor à vontade de Deus. O próximo capítulo narra como o rei começa os preparativos para a guerra, organizando a frota, mas decide omitir à rainha sua ida a Ceuta. Zurara, logo no início do capítulo, afirma: “[...] bem disse Sallamam em seus prouerbios, que a mayor parte da bem auenturamça desta uida pera

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quallquer homem esta em teer boa molher.”47 Filipa havia concordado com a ida do rei à guerra, mas este temia que a rainha, sabendo que ele realmente iria, “[...] sse rrecreceria mayor trabalho desprito, da quall seguir alguu danno polla fraqueza de sua compreissom [...]”.48 Filipa desempenha perfeitamente o seu papel. É a “boa mulher” do provérbio. Mas o rei sabe que não é do seu agrado que ele vá à guerra e por isso esconde sua determinação de embarcar na empreitada. Nessa passagem, a preocupação do rei com o fato de que uma contrariedade poderia levar a rainha a ter problemas de saúde é uma alusão à fragilidade física (“fraqueza de compleição”) da rainha e, de todo, o único tipo de alusão ao seu aspecto físico na crônica. Esse é o fim do primeiro segmento narrativo em que Filipa está incluída. Os capítulos seguintes tratam da consulta ao condestável e ao conselho do rei e do prosseguimento dos preparativos para a guerra. O projeto de invadir o norte da África é mantido em segredo, mas as providências tomadas evidenciavam uma guerra por vir e todos especulavam quem seria o inimigo visado. Essa especulação ultrapassa os limites do reino e embaixadores de Granada são enviados a Portugal para se certificarem da manutenção da paz. É nesse contexto que aparece a segunda sequência narrativa que inclui Filipa. Uma vez que D. João mostra-se evasivo nas conversações com os embaixadores de Granada, estes resolvem procurar a rainha, falando em nome da principal esposa do rei mouro. É digno de nota que os embaixadores, após o encontro infrutífero com o rei, procuram de imediato a rainha, deixando para procurar D. Duarte (sucessor de direito de D. João) por último. Os embaixadores expõem à rainha Filipa que a rainha moura “[...] sabia quamto os boos rrequerimentos das molheres mouiam os coraçoões dos maridos, quando lhe rrequriam alguuas cousas em que tijnham uoomtade [...].”49 Em troca da ajuda de Filipa, a esposa do rei de Granada oferecia um enxoval riquíssimo para a filha da rainha portuguesa. Com relação ao pedido e à oferta, Zurara considera: Mas quem auia de seer aquell que mouesse a Rainha pera fallar em tall partido, ca a Rainha era huua molher mujto amiga de Deos, e segundo suas obras filhara de muy maamente emcarreguo de nehuu emfiell pera lhe procurar alguu fauor, quanto mais ajmda que era naturall d’Himgraterra, cuja naçam amtre as do mumdo naturallmente desamam todollos jmfiees.50

A condição de cristã da rainha, segundo Zurara, é o que não permite que aceite ajudar os infiéis. Zurara enfatiza ainda que, como inglesa, o desamor de Filipa pelos não cristãos era ainda maior. Mas a fala da rainha sugere outra razão para a sua recusa: em nom sei rrespomdeo ella, a meneyra que os uossos rrex teem com suas molheres, mas amtre os christaãos nom he bem comtado a nehua rrainha nem a outra nehuua gramde primcesa de sse tremeter nos feitos de seu marido, quamto em semelhamtes casos, pera os quaaes elles teem seus comsselhos, homde detrminam seus feitos segumdo emtemdem, e as suas molheres quamto melhores ssam, tamto com mayor diligemçia se guardam de quererem saber o que a ellas nom perteeçe. Ca conheçem çertamente que seus maridos com seus comsselheriros teem mayor cuidado que aa homrra de seu estado perteeçe, do que ho ellas podem conheçer.51

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O discurso de Filipa mostra que a matriz cristã tem um lugar reservado à rainha, que não deve se intrometer nos assuntos que a ela não pertencem. Está claro que não é papel da rainha opinar nas questões das alianças políticas do reino, questões que devem ser resolvidas pelo rei e seus conselheiros. A rainha não usa sua vontade para mover o coração do marido. Entretanto, há uma intercessão entre os mundos do rei e da rainha: Verdade he que ellas nom som assy afastadas de todo, que lhe nom fique poder de rrequerer o que lhes praz, mas estes rrequerimentos ssom taaes que os maridos nom ham rrezam de lhos neguar, e alguuas que o comtrairo fazem, nom ssom auidas por emsinadas nem discretas.52

A rainha tem poder para requerer o que lhe praz, mas há a ressalva de que deve saber o tipo de requerimento adequado, do contrário, não são tidas por ensinadas e nem discretas. Daí a recusa da rainha ao embaixador mouro: Poreem uos direes aa rrainha uossa senhora, que eu lhe agradeço sua boa uoontade, mas que ella podera de seu emxouall fazer o que lhe prouuer, ca com a graça de Deos a minha filhe nom falleçera emxouall pera seu casamento.53

Por fim, a rainha encaminha o representante de Granada a quem, de direito, deve resolver a questão: “E vuos rrequeree uosso feito a elRey meu senhor, ca elle he tall que sse lhe uos rrequeredes o que he rrezam, que uollo fara com muy boa uoomtade.”54 Há ainda um elemento que permanece implícito desde o início da passagem que é o da vontade feminina. A rainha moura manda os embaixadores à rainha cristã porque ela sabia quanto os bons requerimentos das mulheres moviam o coração dos maridos quando lhe requeriam algumas coisas de que tinham vontade. A vontade feminina é uma constante do discurso veiculado nas crônicas dos reis de Avis. Consiste num perigo em potencial, e o caso de Leonor Teles é emblemático. Nesse momento que se estabelece um lugar para o rei, delineiam-se também os limites do papel da rainha. Seus desejos são um perigo e por isso ela deve ser ensinada e discreta. Esse controle sobre a vontade feminina é um marco da matriz cristã e é apropriado para se determinar o poder de ação da rainha. O terceiro segmento narrativo que inclui Filipa é o da doença e morte da rainha. O infante D. Henrique já havia reunido a sua frota quando recebe a notícia da doença de sua mãe, que fora causada pela “[...] gramde abstinemçia que fazia em seus jejuus e oraçoões.” Zurara explica que “Ca posto que ella em toda sua uida fosse huua das primcesas do mundo de mais simgullar deuaçom, [...]”, ela havia sido proibida de jejuar “per seus abades com acordo dos físicos. Ca por aazo da fraquua compreissom que tinha,[...]” A rainha já não jejuava há algum tempo “mas depois qeue a Rainha foi certa da hida de seus filhos [...] alli nom courou ella de fisicos nem de comfessores, mas jeiuaua mujto a meude, e fazia gramde oraçom aalem do que tijnha custumado.”55 Filipa estava ciente do risco que representava o rigor de sua devoção. A fraqueza de sua compleição preocupava padres e médicos. Mas a iminência da ida de seus filhos à guerra faz com que Filipa redobre orações e abstinências. No capítulo seguinte, D. João revela à rainha que além de D. Pedro e D. Henrique, ele próprio e D. Duarte tomariam parte da invasão a Ceuta. Ouvindo isso, a rainha “[...] nom pode Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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soster sua comtemnemça, que nom mostrasse em ella, que auia gramde semtimento. Ca posto que assy fosse uirtuosa como já ouuistes, a natureza das molheres em semelhamtes casos nom pode seer tam esforçada, que nom faça mouer o coraçom a alguua tristeza [...]”.56 Em seguida, a rainha recupera o controle e dirige-se ao rei: E a Rainha tornamdo a sua rrezom, disse a elRey, nom como cabia dizer a molher, mas como quem fallaua per rrespeito daquella linhagem de que deçemdia. Verdade he senhor disse ella, que eu uos pedi que mandasseees uossos filhos em este feito (...) Mas a uossa hida me faz que me nom abaste ssiso nem emtemder, pera me rreteer de nom mostrar o que semtia. Mas pois uos por bem ouuestes e auees dhir [...].57

Voltando-se para as acompanhantes que não paravam de chorar, diz: “Amigas nom auees porque chorar [...] amte uos rroguo que daqui em diamte husemos do que a nos e nosso offiçio perteeçe, e esto he emcomemdarmos a Deos este feito mujto aficamemente [...]”.58

Essa passagem deixa claro que mostrar contrariedade em relação a uma decisão do rei não era o papel adequado para a rainha. O cronista justifica o comportamento de Filipa pelo fato de ela ser mulher e por isso incapaz de controlar seus sentimentos. Além disso, Filipa acaba por retomar o comportamento esperado de uma rainha nessas circunstâncias – visto pelo cronista como tornar à razão – e resigna-se com a partida do rei para a guerra, voltando-se mais uma vez ao que pertencia a seu ofício, ou seja, nessa citação, voltar-se para as orações. Todo esse caminho é percorrido, na narrativa, através de oposições e definições. Logo de início Zurara enuncia que Filipa era muito virtuosa, mas não pode esconder sua tristeza porque isso é da natureza das mulheres. Em seguida, Filipa dirige-se ao rei expondo seus sentimentos, não como compete a uma mulher, mas em nome da nobreza da linhagem de que descendia. Em seu discurso, Filipa diz que não há siso nem entender que a impeça de mostrar ao rei o que sente. Esse jogo de oposições – virtude/natureza feminina, nobreza da linhagem/ lugar da mulher, razão/expressão de sentimento (o que é da natureza feminina) – vai delineando o lugar de Filipa. É virtuosa, mas não deixa de ser mulher. Como mulher não deveria se opor ao rei, mas descende de linhagem muito nobre e tem o direito de se manifestar. Manifesta-se, expõe seus sentimentos (femininos, em última instância), pois não há siso nem entender que a faça desistir de falar. Por fim, reencontra seu lugar, seu ofício que é o de rezar para que tudo dê certo. Ainda no mesmo capítulo, Filipa pede a D. João que faça os filhos cavaleiros antes da partida, para que a rainha lhes dê suas espadas e acrescenta: “ca posto que seia dito, que as armas das molheres emfraqueçem os coraçoões dos caualleiros, bem creeo que segumdo a geeraçom de que eu uenho, numca seram emfraqueçidos por as rreçeberem de minha maão.”59 Mais uma vez a oposição mulher/linhagem nobre. Armas e mulheres faziam parte de universos distintos, mas a alta linhagem de Filipa lhe conferia uma exceção. O pedido é aceito pelo rei e a rainha manda encomendar as espadas. Chega, em seguida, a notícia da peste, que não impressiona Filipa: “ca molher tam uelha como eu, nom deue auer medo de pestenemça. E esto dizia a Rainha, porque ella era emtom de hidade de Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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cimquoemta e tres annos.”60 O rei parte, então, para o mosteiro de Odivelos, e a rainha promete segui-lo após terminar suas preces. Mas, ainda na igreja, Filipa começa a sentir dores e é levada para o mosteiro. A Filipa que se delineia aqui está longe de ser uma mulher passiva. Ela é determinada e, se não pode impedir a partida do rei, apega-se a seu ofício, rezando com todas as forças, ignorando aconselhamento de físicos e abades, sem temer e, mesmo, desafiando a morte. Aqui começa a última sequência narrativa em que aparece Filipa. No capítulo seguinte, D. Henrique vai ver a mãe, que procura parecer bem: “a força do gramde prazer fez escomder ho padeçimento da emfirmidade. Ca assy o rreçebeo com tam boa comtenemça, que pouco pareçia molher semtida de tamanha door.”61 Mas a rainha piora e todos os filhos correm para o mosteiro. O rei não comia nem dormia, preocupado com a mulher “[...] com a quall auia uijmte e sete annos que estaua casado, ssem nehuu amtrepoimento de desacordo, que amtre elles ouuesse, amte mujto amor e comcordia como já ouuistes.”62 Em seguida, Filipa tem a revelação de sua morte: “E porque já mujtas uezes fallamos das gramdes uirtudes que auia em esta Rainha, he de saber como lhe nosso Senhor Deos quis dar conheçimento do uerdadeyro saber, mostramdolhe a escuridade da presente uida per jmtimsico amor, que lhe deu de ssi meesmo com çerto conheçimento da fim da sua uida.”Já esperando a morte, a rainha volta a se confessar e a fazer mais caridade: “[...] aquesta samta Rainha cobrou a uerdadeyra bemauemturamça. Ca posto que mujto a meude fosse comfessada [...] falou muy compridamente com seu abade e [...] mamdou fazer mujtas esmollas e outras gramdes obras de piedade [...]”63 O agravamento da doença da rainha passa então a ser narrado com fortes elementos do maravilhoso e o cronista começa a referir-se a ela como santa rainha. Filipa reúne seus filhos e, como as espadas ainda não estavam prontas, reparte uma relíquia, o lenho da cruz de Cristo, dando um pedaço a cada infante. Filipa manda que preparem logo as armas, mas oferece a relíquia como “o uerdadeiro escudo da fortalleza e deffemssom [...] espiçiallmente comtra os jmfiees.”64 Finalmente as espadas ficam prontas e Filipa as entrega a cada filho com uma recomendação especial. A D. Duarte diz: “[...] que uos seia espada de justiça pera rregerdes os gramdes e os pequenos deste rregno [...]”. A D. Pedro, “porque sempre des o tempo de uossa minimiçe uos ui mujto chegado aa homrra e seruiço das donas e domzellas [...] emcomendo ellas a uos.” A D. Henrique, “quero emcomendar todollos senhores”.65 Mais uma vez, a rainha afirma que a nobreza de sua linhagem compensa o fato de ser uma mulher armando cavaleiros: Porem uos rroguo que sem empacho uos queyraaes filhar esta [espada] de minha maão, a quall uos eu dou com a minha beemçom e de uossos auoos, de que eu deçemdo. E como que que seia cousa empachosa de os caualleiros tomarem armas de maão das molheres, eu uos rroguo que uos nom quieraaes teer açerqua desta que uos eu dou, semelhamte embarguo. Ca segumdo a lihagem domde eu deçemdo(...), numca emtemdo que uos por elle empeecimento nem dano possa uijns, amte creo que a minha beemçam e delles uos fara gramde ajuda.66 Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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As recomendações de Filipa a seus filhos parece obedecer ao grau de importância dada a cada um deles. D. Duarte seria o futuro rei e deveria ser justo com os grandes e pequenos. D. Henrique deveria defender os interesses dos senhores e a D. Pedro sobraram as mulheres. Mesmo assim, no capítulo seguinte, Filipa pede especialmente a D. Duarte que olhe por suas mais próximas acompanhantes, Beatriz Gonçalves de Moura e sua filha Mércia Vaz. O prestígio de Filipa é utilizado, na narrativa, para salientar a importância do protetor de Zurara, D. Henrique, na medida em que o cronista sugere que este era o preferido da rainha e que sua ligação com a mãe era mais forte. No episódio da entrega do lenho da cruz de Cristo, Zurara afirma que D. Henrique jamais se separou de sua relíquia, que D. Duarte foi enterrado com o lenho e que “o iffante Dom Pedro nom sabemos que maneyra teue com o sseu [...]”.67 . Zurara narra que a rainha chega a dizer ao infante D. Henrique “que o amaua espiciallmente” e afirma que “elle auia rrazom de teer em ssy mayor tristeza, que nehuu de seus jrmaãos.”68 Os acontecimentos de Alfarrobeira ainda eram recentes e a posição do cronista transparece em outros momentos na narrativa, mas, aqui, Zurara lança mão de um expediente sutil, que é o de aproximar D. Henrique da santa rainha para valorizá-lo e, por conseguinte, afastar D. Pedro do prestígio que o amor de Filipa conferia. A absolvição de D. Henrique nos acontecimentos que levaram ao desastre da expedição a Tânger é inserido engenhosamente nesse contexto da narrativa. Filipa, segundo Zurara, aconselha D. Duarte a nunca duvidar dos irmãos e por isso, mais tarde, D. Duarte não acreditou nas intrigas que responsabilizavam D. Henrique pelo malogro da expedição.69 Dar bons conselhos aparece, também, como uma das características de Filipa. A rainha diz aos infantes D. Henrique e D. Pedro que sempre amem e respeitem D. Duarte, futuro rei de Portugal, e, segundo o cronista, foi para sempre obedecida: “A quall cousa foi per elles muy bem guardada. Ca em todollos dias do dito senhor o seruiram e amaram com gramde uoomtade e obediemçia.” 70 O zelo de Filipa para com seus filhos e todo o reino (os pequenos, os senhores, as mulheres) destoa da desatenção dada à sua filha. Encomenda as damas a D. Pedro, encomenda suas acompanhantes prediletas a D. Duarte, mas não menciona a filha. Esse fato é lembrado, na crônica, por Beatriz Gonçalves, que diz: “Senhora, pareceme que todollos do rregno a uosso filho o Iffamte auees emcomendaddo, e nom teuestes nembramça da Iffamte uossa filha, que he molher e em tall hidade como sabees, aa quall he mais neçessaario seer emcomemdada a elle, que outra nehuua pessoa.” A rainha responde: “A meu filho [...] todallas minhas cousas som emcomendadas espiciallmente minha filha, de que elle sabe que eu tenho tamanho cuidado e porem nom curey de lhe fallar em ello, semtimdo que elle he tall, que nom fara mimgua de lhe seer mais dito per mym.” 71 O cronista acrescenta que D. Pedro sugere que a rainha deixe suas terras para a infanta até que esta se case ou que Portugal tenha nova rainha. Filipa concorda e pede consentimento ao rei: [...] a Iffamte uossa filha há já de sua hidade ecerqua de dez e noue annos, e como tem forma comprida de molher, e que depois de minha morte todallas senhoras donas e domzellas, que amdam em minha casa, he neçessario que fiquem a ella, e que ella as soporte com a uossa merçee e ajuda porem eu uos peço que as terras que eu de uos tijnha, que lhe façaaes dellas merçee, atee que Deos praza lhe trazer casamento, ou que uenha rrainha a este rregno, ajmda que eu espreo em Deos, que uos a casarees muy cedo como he rrazom.72

Toda a passagem parece sugerir que realmente houve um esquecimento da rainha, notado por sua dama de companhia. A argumentação de Filipa de que encomendara todas as suas coisas a D. Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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Duarte e que isso incluía sua filha, não parece muito convincente, pois isso não a impediu de pedir por Beatriz Gonçalves de Moura e sua filha Mércia Vaz. O problema econômico levantado por D. Pedro era de real importância e a própria fala da rainha diante do rei é eloquente a esse respeito. Isabel não tinha recursos próprios até constituir matrimônio e deveria sustentar suas damas de companhia (herdadas da mãe). Filipa, tão próspera em conselhos para seus filhos, não dirige nenhum conselho especial à infanta. A pequena importância dada à filha da rainha é refletida na própria narrativa. Ao passo que as damas de Filipa têm nome e sobrenome, o nome de Isabel não é citado uma única vez, sendo mencionada simplesmente como a infanta. A rainha Filipa, personagem de Zurara, estava com toda a sua atenção voltada ao empreendimento de Ceuta. Mesmo na hora de sua morte, a preocupação da rainha é com seus filhos que vão à guerra. O texto de Zurara deixa transparecer uma tensão entre o desejo da rainha de interferir diretamente na ação do rei e de seus filhos e o lugar reservado à rainha nos assuntos do reino. A Filipa de Zurara, ao contrário da de Fernão Lopes, opina, aconselha, argumenta. Mas reconhece que seu ofício é rezar. Voltando ao fio da narrativa, o fervor religioso da rainha levara, como foi visto, ao enfraquecimento de um físico já debilitado e exposto à peste. Com a proximidade da sua morte, os elementos do maravilhoso intensificam-se na história contada por Zurara. O cronista afirma que, em seu leito de morte, a rainha falava por espírito profético: “[...] a Rainha dezia amte de sua fim, bem poderia jullgar que as nom falaua senam per spiritu profetico, segundo podees ueer per as seguimtes pallauras.” 73 As últimas palavras de Filipa são ditas em seu leito de morte, rodeado por seus filhos. Repentinamente, começa um vento forte que surpreende a todos. Esse vento é o sinal para a rainha de que não veria seus filhos partirem para a guerra: [...] e a Rainha pregumtou que uento era aquelle que assy corria. E os Iffamtes disseram que era aguiam. Creo disse ella, que boom seria este pera uossa uiagem. Respomdeolhe o Iffamte que era o milhor que hi auia. Que cousa tam estranha disse ella, eu que tamto deseiaua de ueer o dia de uossa partida, em que pemssaua tomar tamanho prazer, poe rrezam da uoomtade que tenho de ueer uossa cauallaria, segundo compre a uosso rreall estado. E agora eu seer tamahha causa da torua dello. E de mais seer çerta de a nom poder aqui ueer.74

Diante da resposta de D. Duarte de que Deus a curaria e de que ela ainda veria a partida dos filhos para Ceuta, Filipa responde: A Deos prazera disse a Rainha, de me nom dar em este mundo tall prazer, porque emtamdo que sse mo aqui dessse, que me mimguaria alguua parte da bemuaemturamça do outro. Ca espero na sua mercee, que pois lhe praz de eu aqui nom auer prazer, de mo dar no outro mundo, omde me sera mais proueito pera a saude perdurauell.75

O filho torna a repetir que a mãe ficaria boa. Mas a rainha continua a profetizar: “E ella como molher, que das cousas temporaaes nom tijnha nehuu semtido, começou de dizer. Eu sobyrei no alto, e do alto uos uerey, e a minha deomça nom toruara a uossa hida, ca uos partirees per festa de Samtiago. Do que todos forom mjto marauilhados [...]” 76

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Faltavam apenas oito dias para a festa de Santiago e não seria possível que os infantes partissem em tão pouco tempo. Mas a rainha falava como quem sabia, pois estava diante das visões que se têm antes da morte e suas previsões realmente se concretizaram: “Empero a samta Rainha fallaua como quem o sabia, ca ssy foi perfeitamente comprido, como ao diamte sera comtado. Porque a ora da morte he a mais forte cousa e mais terribel, que sse pode achar emtre todallas cousas do mundo, homde teem muitos que as almas ssom assy apressadas com as imfernaaes uisões [...]”.77 O cronista passa então a fazer considerações acerca das visões que se têm antes da morte e do medo sentido nesse momento, medo que teria levado a própria Virgem Maria a pedir a seu filho que a poupasse dessas visões. E é justamente Nossa Senhora quem auxilia Filipa nesse derradeiro momento: E esta Rainha Dona Fellipa, que estamdo naquelle pomto que já ouuistes, lhe apareçeo nossa Senhor pera lhe dar uerdadeyro esforço pera passagem dequella hora forte ca depois destas cousas que já dissemos, ella emderamçou seu rrostro pera cima, teemdo seus olhos dereitamente comtra o ceeo, sem nhehuu mudamento de comtememça e foi uisto em ella huu aar todo cheo de graça, o quall todos uisiullmente conheçiam que era spirituall, jumtamdo suas maõs, como teemos em custume de fazer quamdo reemos o corpo do Senhor, e disse . Gramdes luuvores sejam dados a uos minha Senhora, poque uos prouue do alto me uijrdes uisitar. E assy filhou a rroupa que tijnha sobre assy, e a beiyou, como sse beyasse huua paz.78

Diante desses sinais de que a mãe faleceria em breve, os infantes procuram o rei e pedem para que ele parta, temendo que o mesmo não suportasse tanto sofrimento: “Porem uos pedimos por mercee, que uos nom apartees daquello que sempre husastes s. rrezam e comsselho, mayomente sobre cousa tam assijnada.” 79 Presenciar a morte da rainha poderia prejudicar a razão do rei, por isso deveria afastar-se. D. João, muito pesaroso, despede-se da rainha e parte. A rainha santa não faz o rei perder a razão nem mesmo na hora de sua morte. No capítulo seguinte, o estado da rainha agrava-se ainda mais e ela é removida para uma cama mais baixa: Mais ella que no ceeo tijnha firmadas as amcoras da sua uoomtade, tamto que foy assy mudadea, rrequereo que lhe touxessem o corpo do Senhor, e foilhe loguo trazido. E ella com todo acatamento e rreueremcia como melhor pode, alleuamtou suas maãos, e disse mujtas pallauras de gramde deuaçom, pedimdolhe com gramde humildade perdom de seus pecados, e saluaçom pera a sua alma com tamta humilldade e graça sprituall, que a quamtos hi estauam parecia que eram ditas per alguu anjo cellestriall.80

Em seguida, a rainha recebeu a comunhão e foi ungida. Mais tarde, Filipa mandou chamar os clérigos e lhes disse que iniciassem o ofício dos mortos: e ella com todo seu emtemdimento ouuimdo o dito offiçio per tall guisa, que quamdo alguu delles errua, ella o corrigia, e em sse acabamdo a derradeyra oraçom, ella corregeo todo seu corpo e nembros hordenamemente, e alleuamtou seus olhos comtra o ceeo, e sem

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nehuu traalho nem pena, deu a sua alma nas maãos daquelle que a criou, pareçemdo em sua boca huu aar de rrijso, como quem fazia escarnho da uida deste mundo, ca assy há de seer segundo teemçam dalguus doutores, que o homem que dereitamente há de uiuer, uenha a este mundo charamdo, e se parta delle rrijdo.81

A rainha santa, o anjo celestial, após falar por espírito profético, vê Nossa Senhora e prepara-se para a morte. Comanda os clérigos, corrige-os, tem pleno controle sobre sua passagem. Como fizera Fernão Lopes, Zurara enfatiza o conhecimento que Filipa detinha sobre os ofícios religiosos, chegando a ensiná-los aos clérigos. Da mesma forma, a ligação com Nossa Senhora é também enfatizada. Na narrativa de Fernão Lopes, a santa atende às preces de Filipa para curar o marido e na narrativa de Zurara, a Virgem aparece diante da moribunda para auxiliá-la em seu fim. Ainda nesse capítulo, o autor dá início ao que está sendo aqui considerado o quarto segmento narrativo, que diz respeito às considerações do autor acerca das virtudes da rainha. Zurara parte da premissa de que na vida só há dois caminhos: “E porque per nossa uijmda nos ssom mostrados em este mundo dous caminhos s. huu de uirtude, e outro de deleitaçom, [...]”82 A rainha, um exemplo de virtude, teve “em muy e excellemte graao”as quatro virtudes cardeais: “justiça, prudemçia, esperança, fortalleza”, assim como as “outras tres, que sse chamam theollogaaes”.83 No último capítulo da crônica dedicada à rainha, Zurara esmiúça essas virtudes. Inicia pelas virtudes cardeais. Primeiro a justiça: a rainha promove a concórdia e age sem ferir os direitos dos súditos: A quall uirtude [justiça] era muy perfeitamente em aquella senhora, ca assy trazia sua uida justamente hordenada, que numca achamos que a alguua pessoa fezesse emjuria per nehuu modo, poque suas pallauras sempre eram ditas muy mamssamente, e fora de toda esctema, fazemdo jujtas amizades, per que sse escusaram gramdes jmiurias e malles, ca tamto que sabia que alguus sse queriam mall, lougo trabalhaua de os auijr per ssi ou per alguuas pessoas rrelligiosas, e mujto lhe prazia de despemder hi alguua cousa do seu, se emtemdia que pera acabar seu deseio era necessario. Numca do alheo mandou tomar nehuua cousa forçosamente, nem comtra uoomtade de seus donos.84

Em segundo lugar a prudência, que é justamente a disposição para ser aconselhada, de forma a evitar o mal. É aceitar os ensinamentos: Da uirtude da prudemçia seeria sobeio fallar em camanho graao hosou della em todollos seus fitos, e porque já disse assaz do claro conhecimento, que teue pera seguir todallas uirtudes, ca a prudemcia nom he outra cousa senam huu abito ou clara desposiçom, per que o homem per jmtrimsico conhecimento pode rreceber comsselho pera sse arredar das cousas maa, e sse acheguar aas boas.85

Em terceiro lugar a temperança, que, de todas as virtudes de Filipa, é a que recebe do cronista considerações mais detalhadas. A temperança de Filipa era manifesta por seus trajes: “Seus trajos forom sempre mjto honestos assy hordenadamente, que nem eram de tam baixo uallor, que per seu aazo naçesse prosumçom descaçesa ou menos preço, nem assy altamente obrados, que per sua uisa mostrassem aos outros huua conhecida louuaminha.”86 Manifestava-se também por seu silêncio e ocupação: Mujto louua o philosofo a todallas molheres silemçio e ocupaçom, a quall cousa certo Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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era achada em ella em gramde sofficiemçia, ca tarde e per gramde uemtura fallaua sem necessidade, e as suas pallauras sempre eram ditas com a comtenemça baixa e muy mamssamente rrazoadas, nem sse parecia em ella o geito que mujtas senhoras tomam em fallar [...]”87 Manifestava-se ainda na sua alimentação: “E seu comer nom era por deleitaçom, soomente por sosteer a uida, nem o seu cozinheiro nom era mujto costramgido pera buscar nouas manerias diguarias. Jjeiuaua tamto como a sua natureza podia sofrer, e mayor trabalho tijnha o fisico em a costramger que comesse pera audar a natureza, que o comfessor tijnha em a rrepremder da sobegidom.”88 Filipa cultivava a temperança, amando a castidade: “Amaua mujto a uenerosa castidade, e assy fazia gramde homrra a todallas pessoas que a mamtijnham. Nom sse deleytaua em jazer lomgamente na cama depois das oras rrazoadas, mas mujto primeiro do que a sua natureza e seu estado rrequeriam, era leuamtada.”89 Por fim, retomando o que já havia sido enunciado, Zurara reafirma a temperança da rainha ao dedicar-se às ocupações apropriadas: A mayor parte da sua opcupaçom era em rrezar, e todollos dias rrezaua as oras canonicas segumdo ho custume de Sallusbri, e as oras de nossa Senhora, e dos mortos, o os sssete sallmos com outras mjtas deuaçoões e mujtas uezes rrezaua o salteiro todo, e outras oras certas uigilias, segumndo a hordenamça de sua deuaçom. E o tempo que lhe ficaua, nom era despeso em proueer o cofre das joyas nem corregimentos de seus toucados, masis em proueitoso eixerçicio obrmdo per suas maãos alguuas obras perteeçemtes a seu esstado, nas quaes mujto a meude fazia ocupar todallas molheres de sua casa, pollas arredar dalguuas aazos comtrairos da sua fortalleza, nom quero dizer mais porque a fim da sua uirtoria he manifesta proua de sua gramde uirtude.90

Assim, o cronista encerra o tema das virtudes cardeais sem se deter na virtude da fortaleza. Passa então às virtudes teologais. Em primeiro lugar, a fé: “E assy amaua todollos guiadores da nossa samta ffe, e auia gramde odio aos jmfiees, e nom he duuida que o Iffamte Dom Hamrrique seu filho ouue aquella meesma empreessam demtro no seu uemtre, a quall o fez ao depois sempre comsseguir aquelle deseio, segumdo ao diamte em nossa estoria seera comtado.”91 Em seguida, a virtude da esperança: “A sua uerdadeira espermça sempre foi em Deos e nas suas uirtudes, ca numca foi achado que tmtasse outras maneyras de pouca firmeza, soomente teer sua esperamça uerdadeira naquelle Senhor, em cujo seruuiço deseiaua uiuer e acabar, o quell deseio lhe Deos comprio, como já ouuistes.”92 Por fim, a caridade: “Da sua caridade nom direy tamto, quanto com rrezam se pode dizer, ca sua rriqueza toda era thezouro de pobres, fazemdo mujtas esmollas seegumdo já temos dito.”93 O cronista, que já estendera a virtude da fé ao filho da rainha, D. Henrique, que a teria herdado no ventre da mãe, conclui o capítulo estendendo as qualidades de Filipa a seus filhos: Por todas estas cousas cobrou assy a bem auemturamça deste mundo, como do outro, ca em este mereçeo naçer da mais alta geeraçom, que auia amtre todollos primcipes chistãos, e muy aposta de seu corpo, com excellemcia de uirtudes, e ouue huu dos homrrados primcipes do mundo por marido, comstituido em dignidade rreall, o quall a amaua mujto, e assy aouue filhos, de que numca ulo nojo, amte teue rrezam de sse allegrar mujto com elles, poque comhecia que nehuua rrainha do mundo tijnha filhos semelhantes a elles, ouue rriqueza e seruidores mujto oediemtes e seguidores de sua uoomtade.94

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A própria morte de Filipa tem o significado de conferir maior honra a seus filhos, uma vez que seu falecimento permitiu que os infantes partissem para Ceuta e se fizessem cavaleiros: “[...] que por aazo de sua morte seus filhos podessem seer mais homrradamente caualleyros, ca sse ella uiuira, seus filhos forom feitos caualleiros em Portugall, segumdo lho elRey tijnha prometido, que lhe nom fora tamanha homrra, como foi de o seerem em terra dAffrica em huua tam homrrada cidade depois do acabamento de tanta uitoria.”95 Zurara, na Crônica da Tomada de Ceuta, retoma todos os elementos do modelo de rainha presentes no texto de Fernão Lopes. Principalmente quando escreve sobre as virtudes cardeais e teologais, Zurara reforça as características já atribuídas a Filipa por Lopes: a aversão à vaidade, os trajes honestos, o silêncio, a ocupação lícita, o comer sem deleitação, os jejuns, as rezas, a castidade. Retoma a imagem da boa esposa, da erudição nos assuntos religiosos e da sua virtude que converte para a nobreza e honra de seus filhos. Diante da adversidade, a rainha chora, mas depois redobra as orações. Assim como em Lopes, a vontade de Filipa está voltada para Deus – “no céu tinha firmado as âncoras da sua vontade” –, afastando a rainha de um dos principais defeitos da mulher real, a vontade feminina. Mas a rainha Filipa de Zurara incorpora também características que não estão presentes em Fernão Lopes. O cronista de Ceuta descreve uma rainha intolerante com os infiéis, usando mesmo a expressão “ódio aos infiéis”. O momento em que Zurara escreve, com a luta contra os mouros e as incursões na Áfirca, justifica esse novo elemento na narrativa. Aqui, a principal oposição é entre o cristão e o não-cristão, não estando tão presente, como na narrativa de Fernão Lopes, a oposição entre o português e o castelhano, uma vez que se consolidava a paz com Castela. Na passagem em que Filipa se recusa a usar sua vontade para mover o coração do marido, o que fica claro é que isso não seria aceito entre os cristãos de uma forma geral, sendo um costume bárbaro. Curiosamente, a principal diferança presente no perfil da rainha Filipa com relação ao perfil traçado por Fernão Lopes está justamente nessa interferência da rainha nos assuntos do reino, na sua importância política. Logo no início da narrativa, fica clara essa importância. A rainha une grandes e pequenos, motiva-os para servirem ao reino. A força que promove essa união e mobilização reside no amor que a rainha inspira em todos, por suas virtudes. Zurara utiliza uma expressão que Fernão Lopes utilizara para definir a mulher de Nuno Álvares: uma mulher de toda bondade”. Essa importância da rainha transparece de várias formas na narrativa e em várias falas dos personagens. A própria rainha aparece no texto plenamente ciente de sua posição, da nobreza da sua linhagem; mostra-se orgulhosa disto. Mas, ao passo que torna evidente o papel político da rainha, Zurara de certa forma relativiza esse papel, insistindo na sua condição de mulher, na sua natureza feminina. Há, na narrativa de Zurara, uma tensão entre uma rainha que tem orgulho da sua linhagem, quer interferir nos destinos de seus filhos, do rei e do reino, quer ter voz – não há siso nem entender que a faça calar – e a rainha que sabe que seu ofício é rezar, que não usa a sua vontade para interferir nos assuntos do reino, pois o rei tem um conselho para isso. Essa tensão é resolvida, na narrativa, através de dois recursos. Primeiro, com a superação da natureza feminina, da incontinência verbal, da aversão ao perigo (em última instância, da covardia), através das orações, jejuns e caridade, o verdadeiro ofício das mulheres. Esse é o mesmo movimento traçado por Fernão Lopes para contar a história da mãe de Nuno Álvares, falante, argumentando sempre, mas que se deixa convencer pelo filho e acata sua decisão de seguir o Mestre de Avis. Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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O segundo recurso é decorrente do primeiro e consiste na transformação da mulher rainha em santa rainha. Uma vez superada a sua natureza feminina e totalmente voltada para as orações – de forma tão intensa que a leva à morte – Filipa passa a ser designada na narrativa como a santa rainha. A narrativa assume o aspecto do maravilhoso, e a rainha, um anjo celestial, prevê sua morte, tem visões, decifra sinais, sabe da partida dos filhos. Filipa morre amparada por Nossa Senhora, como foi o desejo de Maria, assassinada por D. João, na narrativa de Lopes. Esse modelo de rainha que Zurara apresenta a seu público, com um papel-chave na empreitada a Ceuta, extremamente virtuosa e mesmo santa, mas também com características da mulher real – mesmo que superadas –, só é possível dentro do novo contexto em que escrevia o cronista, já bastante distanciado da regência de Leonor Teles e do significado que o seu período de poder representou para os partidários do Mestre de Avis. A função de rainha de promover a concórdia, a paz, citada mais superficialmente em Lopes, é retomada mais explicitamente em Zurara, principalmente quando discorre sobre a virtude da justiça. Há, portanto, de um cronista para outro, uma mudança na conjuntura política que permite o aparecimento de novos elementos no modelo de rainha que se propunha para Avis. Mas permanece a questão da importância do estabelecimento desse modelo e da definição do papel de atuação política reservada às rainhas, capazes de unir e mobilizar o reino, mas que para isso deviam ser ensinadas e discretas, para poderem requerer o que lhes praz. Permanecem, também, as categorias da matriz cristã, o modelo mariano “aportuguesado” por Fernão Lopes e reafirmado por Zurara. Fontes LOPES, Fernão. Crônica de D. João I (parte II). Edição de M. Lopes Almeida e Magalhães Bastos. Porto: Civilização, 1949. ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Tomada de Ceuta. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915. Bibliografia BRAGANÇA, José de. Introdução. In: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Guiné. Barcelos: Editora do Minho, 1973. BEIRANTE, Maria Ângela. Estruturas sociais em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. FRÓES, Vânia. Teatro como missão e espaço de encontro de culturas: estudo comparativo entre o teatro português e brasileiro do século XV. Actas do Congresso Internacional de História Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Braga, v. 3, 1993. LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes: texto e contexto. Coimbra: Minerva, 1988. Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica v.31 n. 2 julho/dezembro 73-96 2009

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PEREIRA, Francisco Maria Esteves. Introdução. In: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Tomada de Ceuta. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915. REBELO, Luis de Sousa. A concepção do poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. SARAIVA, Antônio José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, [s/d]. SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1985. SARAIVA, Antônio José. Zurara. In: SERRÃO, Joel (Org.). Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1971. SERRÃO, Joel (Dir). Crônicas. In: Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1963. SOUZA, Armindo; MATTOSO, José (Org.). História de Portugal: A monarquia feudal. v. 2. Lisboa: Estampa, [1992]. Notas SERRÃO, Joel Justiniano Batista (Org.). Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1965. LOPES, Fernão. Crônica de D. João I (parte II). Edição de M. Lopes Almeida e Magalhães Bastos. Porto: Civilização, 1949, Prólogo, p. 3. 3 Ibidem, cap. LXXXVII. 4 Ibidem, cap. XC, p. 215-216. 5 Ibidem, cap. XCII. 6 Ibidem, cap. XCIII, p 220-221. 7 Ibidem, cap. XCIII, p. 221. 8 Ibidem, cap. XCIV, p. 222. 9 Ibidem, cap. XCV, p. 223. 10 Ibidem, cap. XCV, p. 223. 11 Ibidem, cap. XCV, p. 223. 12 Ibidem, cap. XCV, p. 224. 13 Ibidem, cap. XCV, p. 224. 14 Ibidem, cap. XCV, p. 224. 15 Ibidem, cap. XCVI, p. 224. 16 Ibidem, cap. XCVII, p. 225. 17 Ibidem, cap. XCVII, p. 225-226. 18 Ibidem, cap. XCVII, p. 226. 19 Ibidem, p. 256. 20 Ibidem, cap. CXV, p. 257. 21 Ibidem, cap. CXV, p. 257. 22 Ibidem, cap. XCVII. 23 Ibidem, cap. XCIII. 24 Ibidem, cap. CXVII. 25 Ibidem, cap. XCVII, p. 260. 26 Ibidem, cap. CXVII, p. 260. 27 Ibidem, cap. CXVII, p. 261. 1 2

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Ibidem, cap. CXVII, p. 262. Ibidem, cap. CXXII, p. 269. 30 Ibidem, cap. CXXII, p. 269. 31 Ibidem, cap. CXXIII, p. 272. 32 Ibidem, cap. CXXIV, p. 276. 33 Ibidem, cap. CXXV, p. 280. 34 Ibidem, cap. CXXIV, p. 280. 35 Ibidem, cap. CXXXV, p. 295. 36 Ibidem, cap. CXXXV, p. 297. 37 Ibidem, cap. CXXXIX, p. 304. 38 ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Tomada de Ceuta, cap. XIX, p. 60 39 Ibidem, cap. XIX, p. 60. 40 Ibidem, cap. XIX, p. 60. 41 Ibidem, cap. XIX, p. 62. 42 Ibidem, cap. XIX, p. 62 43 Ibidem, cap. XIX, p. 62. 44 Ibidem, cap. XX, p. 63. 45 Ibidem, cap. XX, p. 63. 46 Ibidem cap. XX, p. 63. 47 Ibidem, cap. XXI, p. 66 48 Ibidem, cap. XXI, p. 66. 49 Ibidem, cap. XXXIII, p. 107. 50 Ibidem, cap. XXXIII, p. 107. 51 Ibidem, cap. XXXIII, p. 107. 52 Ibidem, cap. XXXIII, p. 107. 53 Ibidem, cap. XXXIII, p. 107. 54 Ibidem, cap. XXXIII, p. 107. 55 Ibidem, cap. XXXVII, p. 117. 56 Ibidem, cap. XXXVIII, p. 120. 57 Ibidem, cap. XXXVIII, p. 120. 58 Ibidem, cap. XXXVIII, p. 120. 59 Ibidem, cap. XXXVIII, p. 121. 60 Ibidem, cap. XXXVIII, p. 121. 61 Ibidem, cap. XXXIX, pp. 122-123. 62 Ibidem, cap. XXXIX, p. 124. 63 Ibidem, cap. XL, p. 126. 64 Ibidem, cap. XL, p. 126. 65 Ibidem, cap. XLI, pp. 128-129. 66 Ibidem, cap. XLI, p. 128. 67 Ibidem, cap. XLI, p. 127. 68 Ibidem, cap. XLII, p. 129. 69 Ibidem, cap. XLII, p. 130. 70 Ibidem, cap. XLII, p. 131. 71 Ibidem, cap. XLIII, p. 132. 72 Ibidem, cap. XLIII, p. 133. 73 Ibidem, cap. Riiij, p. 135. 74 Ibidem, cap. Riiij, p. 135. 75 Ibidem, cap. Riiij, p. 135. 76 Ibidem, cap. Riiij, p. 135. 77 Ibidem, cap. Riiij, p. 136. 78 Ibidem, cap. Riiij, p. 136-137. 79 Ibidem, cap. Riiij, p. 137. 80 Ibidem, cap. Rv, p. 138. 81 Ibidem, cap. Rv, p. 139. 82 Ibidem, cap. Rv, p. 139. 83 Ibidem, cap. Rv, p. 140. 28 29

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Ibidem, cap. Rvj, p. 141. Ibidem, cap. Rvj, p. 141. 86 Ibidem, cap. Rvj, p. 141. 87 Ibidem, cap. Rvj, p. 141. 88 Ibidem, cap. Rvj, p. 142. 89 Ibidem, cap. Rvj, p. 142. 90 Ibidem, cap. Rvj, p. 142. 91 Ibidem, cap. Rvj, p. 142. 92 Ibidem, cap. Rvj, p. 142. 93 Ibidem, cap. Rvj, p. 142. 94 Ibidem, cap. Rvj, p. 143. 95 Ibidem, cap. Rvj, p. 143. 84 85

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