Modelos de indução federal em perspectiva comparada: os casos da saúde e habitação

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38º Encontro Anual da Anpocs 27 a 31 de outubro de 2014, Caxambu, MG

MODELOS DE INDUÇÃO FEDERAL EM PERSPECTIVA COMPARADA: Os casos da saúde e habitação

Walkiria Zambrzycki Dutra Paulo Ricardo Diniz Filho

GT 30: Políticas Públicas

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MODELOS DE INDUÇÃO FEDERAL EM PERSPECTIVA COMPARADA: Os casos da saúde e habitação Walkiria Zambrzycki Dutra1 Paulo Ricardo Diniz Filho2 Resumo O presente artigo analisa a articulação federativa promovida atualmente pelo Governo Feral através do modelo dos “Sistemas Nacionais”. A metodologia utilizada parte do estudo dos fatores de indução capazes de gerar a cooperação entre os entes federados. Serão consideradas duas áreas de políticas públicas: a saúde e a educação, cuja comparação traz respostas interessantes no que se refere às estruturas de incentivo à cooperação federativa. Os resultados são distintos não pela área de política pública, mas pela diferença na oferta de benefícios e condições de trabalho em conjunto entre os entes federados. Palavras-chave: Estratégias de Indução; Políticas Públicas; Sistema Nacional; SNHIS; SUS Introdução

No Brasil, o debate acadêmico acerca das relações estabelecidas entre os três níveis de governo da federação, no âmbito das políticas públicas, tem recebido grandes contribuições ao longo das últimas décadas. Por um lado, é crescente o número de análises sobre as etapas que compõem o ciclo de políticas públicas exercidos por diferentes níveis de governo, em especial as de formulação e implementação (Faria, 2012). Por outro lado, tem-se a preocupação em considerar os aspectos administrativos e financeiros a serem compartilhados entre os entes federados nos diversos setores de políticas públicas (Arretche, 1999; 2004).

Bolsista do CNPq. Bacharel em Relações Internacionais (PUC – Minas), mestre em Ciência Política (UFMG0, e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). [email protected]. 2 Bacharel em Relações Internacionais (PUC – Minas), Graduando em Direito (PUC – Minas) e em Administração Pública (UFU), Especialista em Gestão de Políticas Sociais (PUC – Minas), Mestre e Doutorando em Ciências Sociais (PUC – Minas). [email protected]. 1

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O presente artigo busca contribuir para esse campo, à medida que busca analisar um modelo específico de organização das políticas públicas, que envolve a relação entre os três níveis de governo. Trata-se do modelo dos “sistemas nacionais”, instrumento da coordenação federativa proposto pelo Governo Federal a um número cada vez maior de setores de políticas públicas. Apesar de não haver qualquer unicidade formal entre as diferentes iniciativas de padronização da oferta de políticas públicas, partimos do pressuposto de que todas elas apresentam importantes pontos em comum, especialmente porque têm de lidar com dilemas de ordens semelhantes; a articulação federativa, por exemplo, se coloca como um desafio comum, e que tem suscitado respostas até certo ponto comparáveis. A perspectiva adotada pelo presente trabalho concentra-se sobre a análise de duas dessas áreas: a saúde e a habitação. O foco principal recai sobre as estratégias de indução adotadas em cada caso, cujo objetivo é o de obter a cooperação de Estados e municípios, originalmente autônomos para desenvolverem suas respectivas políticas setoriais. Os casos da saúde e da habitação serão compreendidos, respectivamente, através do estudo do desenho institucional proposto pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e pelo Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS). Ambos os modelos serão avaliados, no presente trabalho, a partir da oferta de incentivos que fazem aos entes federados, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Será adotada como base, nesse processo, a tipologia desenvolvida por Diniz Filho (2006) no estudo dos fatores de indução capazes de gerar a cooperação entre municípios e o Governo do Estado de Minas Gerais no processo de formação de consórcios intermunicipais de saúde e associações microrregionais. Nesse contexto, recursos transferidos na forma de bens de consumo duráveis, ou infraestrutura física de longa duração, têm a tendência de manter fiéis à cooperação os entes federados que os receberam durante boa parte da vida útil de tais incentivos. Já repasses de recursos na modalidade financeira tendem a ter efeito mais volátil, podendo esse ser mitigado pela previsibilidade de transferências futuras. Aspectos institucionais, como os procedimentos de gestão do patrimônio comum, ou mesmo as exigências colocadas para acesso a tais incentivos à cooperação, podem também ser determinantes no sucesso de iniciativas de indução federativa como o SUS e o SNHIS.

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A exposição dos argumentos está dividida em três partes. Primeiramente, é feita revisão acerca da temática federativa, a fim de contextualizar o ambiente geral no qual são desenvolvidas as políticas de saúde e habitação no Brasil. As duas seções seguintes analisam o formato institucional do SUS e do SNHIS, especialmente no que se refere aos incentivos que ambos oferecem para a adesão dos entes federados. O artigo conclui com uma análise comparativa, sublinhando semelhanças nos sistemas nacionais em tela, em contraste com as opções adotadas por cada um ao longo de seus respectivos períodos de implementação. Importante pontuar que a presente comparação leva em conta, principalmente as estruturas de incentivo à cooperação federativa dos sistemas nacionais de saúde e habitação. Dessa forma, as diferenças históricas e orçamentárias que contrapõem SUS e SNHIS, apesar de reconhecidas, não desempenham papel significativo no contexto do presente trabalho, pois a presente análise concentra seu foco sobre os interesses e propostas desenhados para a cooperação federativa nos campos da saúde e da habitação. Os resultados numéricos apresentados, assim, colocam-se como o pano de fundo contra o qual são projetados os modelos de indução federativa do SUS e do SNHIS.

Uma constante discussão na literatura sobre federalismo

No âmbito da Ciência Política, a organização de um Estado federativo tem, por concepção, a existência de níveis de poder distintos, usualmente conhecidos como governo central (ou Federal) e governos não-centrais (ou subnacionais) (Riker, 1975; Rocha, 2013). Isto significa dizer interesses, recursos e atribuições que também serão divergentes e até mesmo conflitantes entre si. Este artigo chama a atenção é para essa interação entre os entes federados em políticas públicas. A relação de interdependência decisória, baseada no princípio da autonomia dos entes federados, transforma as relações intergovernamentais em uma arena competitiva de interesses (Abrucio, 2005). Nesta condição, somente expressa determinação constitucional pode compeli-los a qualquer ação e, Quando não há clareza constitucional suficiente para que se possa impor a descentralização – como na Constituição de 1988 -, a descentralização só pode ocorrer através da adesão voluntária dos entes federados. (Diniz Filho, 2006, p. 47).

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Os termos descentralização e centralização e a sua aplicação em estudos empíricos para o caso brasileiro são comuns na literatura sobre as relações intergovernamentais. A abordagem aqui proposta entende que a centralização ocorre quando o governo federal exerce maior discricionariedade sobre as principais decisões políticas, no sentido de restringir a divisão dos poderes governamentais (Elazar, 2011; Riker, 1975). A descentralização indica uma maior liberdade para os governos subnacionais na tomada de decisão política, pois se prevê certa transferência do exercício do poder exercido pelo governo central aos demais membros do arranjo federativo (Elazar, 2011; Riker, 1975). O processo como ocorre a transferência do poder é, no entanto, muito heterogêneo entre as federações. Há de se considerar que a descentralização pode se dar em termos políticos – a abertura do espaço decisório para a representação dos interesses subnacionais - fiscais - a interdependência entre o montante de impostos, receita e gastos de cada ente federado - e administrativos – a transferência da administração e provisão de serviços sociais (Falleti, 2006). Os três podem ocorrer de forma distinta e não complementar. A literatura brasileira tende a considerar que a autonomia dos governos locais aliada a estratégias de descentralização administrativa e fiscal sem controle federal pode levar a resultados insatisfatórios na provisão de políticas públicas (Arretche, 2003). Isso ocorre devido ao histórico dos governos locais com administrações ineficientes e deficitárias em: recursos humanos, capacidade instalada e produção de informação. Além disso, permanece o argumento que os governos locais, quando dotados de autonomia para a contratação de empréstimos, tendem a produzir déficits fiscais sistemáticos (Arretche, 2003). A solução que vem sendo encontrada para esse dilema, no Brasil, tem sido induzir um determinado tipo de comportamento aos governos subnacionais, através do desenho de sistemas nacionais que oferecem incentivos quando esses executam a contento as ações planejadas na esfera federal (Arretche, 2003). Nesse sentido, a literatura tem percebido a ocorrência de uma divisão de funções em se tratando da tomada de decisão política: a formulação tem se concentrado em nível central, enquanto a execução em nível local. Por se tratarem de atividades imprescindíveis e igualmente importantes, ocorreria que cada nível de governo poderia exercê-las de forma particular, sem anular a autonomia um do outro (Arretche, 2012).

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No entanto, o passo inicial de tal relação é também um ato de autonomia: a adesão dos entes federados a essa estrutura, que determina quem formula e quem executa, só pode ocorrer de forma voluntária. Segundo Marta Arretche (1999), são três as possibilidades disponíveis ao Governo Federal para o fomento à descentralização das políticas públicas: Em Estados federativos, estados e municípios – porque dotados de autonomia política e fiscal – assumem funções de gestão de políticas públicas ou por própria iniciativa, ou por adesão a algum programa proposto por outro nível mais abrangente de governo, ou ainda por expressa imposição constitucional (Arretche, 1999, p. 114).

Diante da possibilidade de aderir a um sistema nacional de políticas públicas, assumindo a função de executar os serviços a serem oferecidos à população, um governo subnacional tem como parâmetro para a tomada de decisão os incentivos e obstáculos contidos na fórmula de cooperação padronizada que anima tal sistema nacional. Os incentivos são os ganhos a serem obtidos por esse ente subnacional, que podem ser de natureza financeira, como a garantia de recursos que auxiliem no custeio da política em questão, ou também em formato institucional, como a oferta de cursos de capacitação dos servidores públicos locais ou a cessão de equipamentos e instalações. Já os obstáculos são representados pelos custos a serem suportados pelo ente federado que adere ao sistema, tal como a perda de autonomia decisória na formulação dos programas e ações a serem executados. Neste ponto, é necessário ressaltar que essa articulação entre os entes federados para a provisão eficiente de um bem ou serviço público é o principal objetivo da chamada estratégia de indução articulada pelas esferas mais amplas da federação (Abrucio, 2005; Arretche, 2004; Diniz Filho, 2006). Tendo em vista o comportamento autointeressado dos entes federados, assim como o caráter sempre voluntário da opção pela adesão à estratégia de coordenação intergovernamental, o ponto principal que está em jogo é o equilíbrio entre a habilidade da instância central em desenhar uma estratégia de indução que seja ao mesmo tempo politicamente atrativa e tecnicamente viável, e a avaliação da instância subnacional em aderir ou não à posição que lhe é designada no sistema proposto. Em relação ao Governo Federal, o desafio se encontra na capacidade do arranjo institucional em agregar os interesses de todos os níveis de governo com incentivos, aliado à imposição de um menor custo de ação possível para os governos subnacionais. Em relação aos governos subnacionais, a sua adesão

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voluntária ocorre via acomodação das funções e estrutura administrativas já instaladas em cada nível de governo (Dutra, 2013). Isso significa dizer que a fórmula de indução proposta, para ser bem sucedida, deve conceder aos entes subnacionais liberdade para a escolha dos serviços a serem oferecidos à população, assim como voz ativa em relação ao formato, duração e periodicidade dessa oferta. Essa possibilidade de participação no processo decisório indica um maior envolvimento do ator indutor no campo de política pública em tela (Diniz Filho, 2006). Nessa formatação institucional, os programas implementados ganham dinâmica própria e são absorvidos pelos governos locais, “transformando-os de acordo com suas preferências e necessidades” (Diniz Filho, 2006, p. 97). Em outras palavras, o governo subnacional pode acomodar suas novas atribuições no contexto do aparato institucional que possui e da capacidade que já tem instalada. Nesse tipo de situação, o custo colocado ao ente subnacional é consideravelmente menor, e portanto, a adesão se torna vantajosa. O federalismo brasileiro, nas últimas três décadas, tem sido caracterizado pela estruturação de conjuntos padronizados de políticas de cooperação federativa na prestação de políticas públicas que, consequentemente, destacam-se por suas fórmulas de indução, que são oferecidas pelo Governo Federal de maneira uniforme, aos entes federados de diversos níveis. Tais arranjos institucionais, conhecidos como “sistemas nacionais”, têm trazido em si forte grau de centralização decisória no nível federal, e ao mesmo tempo, descentralização de recursos e executória nos níveis subnacionais – especialmente nos municípios. Os municípios estariam dispostos à cooperação porque incrementam receita para a realização de suas competências administrativas e até mesmo constitucionais. Já o Governo Federal consegue garantir a provisão dos serviços a todos os cidadãos de forma coordenada e, em alguma medida, homogênea em todo o território nacional (Dutra, 2013, p. 50).

A referência às competências administrativas e constitucionais exercidas de forma coordenada entre os entes federados é entendida por alguns autores como uma forma de se equacionar problemas estruturais. Tendo em vista a histórica insuficiência administrativa e financeira, principalmente dos municípios, os sistemas nacionais transferem para o âmbito nacional as questões mais complexas que seriam de competência local (Rodrigues, 2011), uma vez que passam a recair sobre o Governo Federal – primordialmente – as tarefas de planejamento e custeio dos serviços prestados.

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Em relação ao modelo financeiro proposto pelos sistemas nacionais para a coordenação vertical, este atua como o principal incentivo à cooperação, já que um volume maior de recursos pode passar a compor a receita do governo subnacional, para que este execute a ação proposta. O tipo de transferência de recursos praticado pelos diferentes sistemas nacionais é bastante diversificado, tendo como um dos paradigmas o Sistema Único de Saúde (SUS), que destina recursos automaticamente aos entes federados participantes, a partir de uma estimativa padronizada da demanda local necessária (Viana, Lima e Oliveira, 2002). No extremo oposto, há sistemas nacionais financiados através de repasses discricionários de recursos realizados pelo Governo Federal – denominado Transferências Subordinadas a políticas seletivas, segundo Márcia Soares (2012) –, o que configura incentivos de outra natureza para a cooperação dos entes federados subnacionais. A incerteza quanto aos valores a serem recebidos, assim como no que se refere à frequência dos repasses, é uma marca do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), financiado a partir de convênios e contratos de repasse que dão acesso aos fundos do Orçamento Geral da União (OGU). Para além da fórmula de custeio, as condições institucionais dos entes federados que se lançam à cooperação são decisivas, não apenas para a execução dos serviços acordados, como também para pautar a própria decisão de adesão desses entes federados subnacionais ao sistema nacional de políticas públicas em questão. Uma vez que a homogeneidade vem sendo a regra – que como tal, comporta exceções – dos sistemas nacionais de políticas públicas no Brasil, é preciso considerar que as condições previamente existentes de prestação de serviços públicos nos entes federados subnacionais costumam ser determinante no resultado final disponibilizado ao cidadão (Arretche, 1999; 2004). Sendo assim, outras categorias de incentivos podem ser mais eficientes do que a simples questão financeira na determinação do resultado da coordenação federativa, conformando distintos modelos de indução federativa. O presente trabalho busca analisar, comparativamente, dois sistemas nacionais de políticas públicas, no que se refere à fórmula de indução à cooperação federativa que predomina em cada um deles. O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) constituem extremos do ponto de vista temporal, uma vez que o primeiro teve seu funcionamento iniciado antes

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mesmo da promulgação da Constituição de 1988, e o segundo, iniciou suas operações no ano de 2006. Porém, não necessariamente o SNHIS foi influenciado – e beneficiado – pelo aprendizado acumulado pelo SUS, o que torna a comparação aqui proposta bastante oportuna: não só trata-se de setores com dinâmicas técnicas e financeiras intrinsecamente distintas, como também, estão ligados a processos de evolução histórica muito diferentes. Sob a perspectiva das relações federativas, o presente trabalho deve contrastar SUS e SNHIS, e assim contribuir com a construção da categoria de análise que unifica os sistemas nacionais de políticas públicas no Brasil, passo indispensável para a consolidação do conhecimento já produzido neste campo de pesquisa. O caminho percorrido pelo SUS

A política de saúde pode ser apresentada, sem sombra de dúvida, como a área de maior interesse da literatura brasileira no que se refere ao desenvolvimento de fórmulas que buscam o equilíbrio nas relações intergovernamentais. A partir da década de 1990, foi desenvolvido extenso trabalho exploratório acerca do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente no que se refere a seu desenho institucional, aos programas executados, a seu caráter descentralizador, e principalmente no que se refere à coordenação entre os três entes federados na formulação e implementação do sistema. Afinal, o planejamento que levou à criação do SUS data da década de 1970, sendo que sua versão inicial entrou em operação ainda em 1987, sob a denominação de Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). A regulamentação do SUS está presente na redação original da Constituição de 1988, e sua estrutura e financiamento foram estabelecidos por legislação infraconstitucional em 19903. Do ponto de vista da coordenação federativa, entretanto, merecem destaque documentos de caráter operacional, que se sucederam ao longo da década de 1990, aperfeiçoando a fórmula de indução à cooperação oferecida pelo Governo Federal aos entes federados subnacionais. As Normas Operacionais Básicas (NOBs) determinaram a estrutura de incentivos e 3

Respectivamente, pelas Leis Federais número 8.080/90 e 8.142/90.

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exigências postas aos governos subnacionais, como propostas para que esses optassem pela adesão ao SUS (Diniz Filho, 2006). Como atrativo à adesão de estados e municípios, a primeira Norma Operacional Básica foi editada em 1991 (NOB/91) e trouxe o estabelecimento de regras claras para a transferência de recursos no âmbito do SUS: foi, assim, instaurado

o

critério

de

pagamento

por

produção,

o

que

eliminava

a

discricionariedade no repasse de verbas, levando à remuneração mensurada pelos serviços prestados pela rede de atendimento vinculada a cada ente federado. A previsibilidade dos critérios de funcionamento do SUS na área financeira serviu como incentivo para que 1.074 municípios brasileiros – à época, 22% do total – aderissem à nova estratégia de cooperação federativa no campo da saúde (Arretche,

2003;

Levcovitz,

Lima

e

Machado,

2001).

Considerando

o

estabelecimento dessas novas regras como uma política de indução à cooperação, temos então que pouco menos de um quarto dos municípios brasileiros consideraram vantajosa a atuação em sintonia com Governo Federal, o principal ator do SUS; a já mencionada tendência de intercâmbio de funções, na qual os entes subnacionais abrem mão de tarefas de planejamento em favor da instância federal de governo, concentrando-se sobre as tarefas de execução direta da política pública, tem aqui um de seus mais lapidares exemplos. Para os demais 78% dos municípios brasileiros, a autonomia federativa em matéria de saúde ainda era mais estimada do que a segurança jurídica proporcionada pela inovação da NOB/91. ...assim, apesar de se eliminar a necessidade de influência política para a obtenção de recursos, os estados e municípios não detectaram nenhum incentivo adicional para aderir a uma estrutura na qual eles receberiam novas responsabilidades e, em troca, seriam remunerados unicamente pelos serviços prestados (Diniz Filho, 2006, p.48).

A partir dos resultados obtidos com a primeira Norma Operacional Básica, foi elaborada em sua substituição a NOB/93, que modificou bastante o conjunto das medidas de indução à cooperação oferecidas aos entes subnacionais brasileiros. Foi regulamentado o repasse de recursos adicionais, voltados para o incremento da infraestrutura de saúde instalada nos participantes do SUS; os Estados Federados passaram a ter papel mais claramente definido, sobretudo no que se refere ao planejamento e à coordenação regional dos atores locais; foi flexibilizado o processo de adesão ao SUS, através da criação de diferentes categorias de participação no sistema, o que reduziu os custos de entrada no mesmo; além de terem sido

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operacionalizadas instâncias participativas de vários níveis (Levcovitz, Lima e Machado, 2001). Dessa forma, todas essas alterações serviram para deixar mais atrativa a cooperação com a estratégia federal de saúde pública: chegou a 63%, assim, o nível de adesão municipal ao SUS (Arretche, 2002), o que é sinal inconteste do aumento de efetividade da nova configuração da indução federativa do Governo Federal. Entretanto, a instabilidade econômica do período mantinha acesos receios em relação à previsibilidade do funcionamento do sistema. A municipalização do SUS se completou a partir da vigência da NOB/96, que atingiu a marca de 99,6% de adesão dos municípios brasileiros ao sistema federal de saúde (Arretche, 2003). Sob o ponto de vista dos incentivos à cooperação, a NOB/96 apresentou um conjunto de medidas bastante atraentes aos entes federados, em certa medida aprofundando os sucessos obtidos pela NOB/93 – como a criação de novas categorias diferenciadas de adesão ao SUS – mas, principalmente, elevando o patamar dos recursos transferidos pelo Governo Federal através de uma fórmula de cálculo dos repasses que representou aumento de receitas para 66% dos municípios brasileiros, e manutenção dos valores para outros 22% (Arretche, 2002; Campos, 2002). A introdução de critérios redistributivistas, e a combinação desses com a participação em programas especiais de saúde e o porte populacional dos municípios representaram, afinal, o fim do critério exclusivo de remuneração por serviços prestados, que só significava incentivo à cooperação para cidades que contavam com grande estrutura de serviços de saúde já instalada. Em sua nova constituição, o Sistema Único de Saúde passou a representar um pacote de medidas de indução altamente vantajoso aos entes federados brasileiros, com destaque para os municípios por serem a ponta mais frágil – financeira e institucionalmente – de nossa federação. Considerando a tipologia de indução à cooperação federada desenvolvida por Diniz Filho (2006), deve ser destacado que o SUS inicialmente não oferecia a transferência de bens duráveis de alto valor agregado – forma de incentivo mais eficaz – aos seus membros em potencial, porém passou a fazê-lo a partir da NOB/93, que incorporou repasses de recursos para infra-estrutura em saúde. Também no contexto desse mesmo marco conceitual, a infrequência, a variação de valores e a corrosão inflacionária do montante financeiro transferido aos estados e municípios participantes do SUS atuavam para que esse elemento tivesse pouco efeito de indução à cooperação; de acordo com as observações de Diniz Filho

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(2006) em experiências de consorciamento intermunicipal, os repasses de recursos tendem a manter unidos os cooperantes por pouco tempo, quando não há a expectativa de continuidade. A NOB/96, principalmente, foi responsável por reverter tal quadro, dotando de previsibilidade e certeza as transferências de recursos, o que os transformou em poderoso instrumento de indução à adesão ao SUS. Gradualmente, assim, o SUS foi sendo alterado no sentido de adquirir as características necessárias a uma eficiente iniciativa de indução à cooperação; logrou, por fim, seus objetivos de conquistar a cooperação dos estados e municípios brasileiros, enquadrados em um esquema de divisão de funções que concentra planejamento e financiamento na esfera federal, e a execução – principalmente – no campo dos governos locais. O desenvolvimento autônomo do SNHIS

A moradia, além de ser uma necessidade básica do ser humano, compreende também ideia mais abrangente, de caráter qualitativo, como pode ser visto no excerto do conceito formulado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), abaixo: ...residência somada com a vontade de se estabelecer num determinado local. Em função disso, a questão da moradia deve ser entendida como um conjunto de elementos que se ligam ao saneamento básico, à infraestrutura urbana e aos serviços educacionais, de saúde e de transporte (IBGE, 2007, p. 67).

A complexidade do problema habitacional, expressa no conceito de moradia do IBGE, está no fato de que se atribui alto valor agregado ao seu produto final: não só esse demanda investimentos de vulto, como também sua prestação só é percebida como eficaz pelo público alvo quando combinada com a realização de outras políticas públicas, de caráter estrutural e também dependentes de dispêndios em grande escala. Por sua vez, a unidade habitacional é um bem privado, o que significa dizer que, além da produção, é necessário também financiá-la às famílias de mais baixa renda. Para além do problema da produção e financiamento, tratar de política habitacional é também envolver o ordenamento territorial e urbano das cidades, temas também sensíveis ao histórico de atendimento por parte do Poder Público.

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Todas essas questões foram encaminhadas pelo Governo Federal com a criação do Ministério das Cidades (MCid), em 2003. Em sua estrutura, a Secretaria Nacional de Habitação (SNH) coordenou a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PlanHab), que equacionava a solução dos problemas urbanos relacionados à habitação através de dois instrumentos: o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), estabelecidos por meio da Lei Federal nº 11.124, de 2005. Em linhas gerais, este sistema busca, ao mesmo tempo, centralizar a gestão de todos os programas voltados para a habitação e descentralizar a execução desses através da distribuição dos recursos do FNHIS. Esta forma de ação se fazia necessária à medida que os governos estaduais assumiram as funções de agente operador, financeiro e executor da política habitacional desde o final da década de 1980, com a falência do Banco Nacional de Habitação (BNH) (Cardoso e Ribeiro, 1999; Dutra, 2013). O aparato institucional do SNHIS está a cargo do Governo Federal, uma vez que o MCid é o órgão central do sistema. Diversos programas e ações compõem o SNHIS, e estão ligados tanto à produção da unidade habitacional, quanto a obras de urbanização e planejamento urbano, incluindo fomento à capacidade institucional dos governos (Dutra, 2013). Para cada uma dessas ações, os proponentes podem ser tanto entes federados quanto cooperativas e organizações não-governamentais ligadas à habitação; é bastante ampla, assim, a gama de atores que podem receber recursos e executar as ações próprias do sistema nacional elaborado para desenvolver políticas de habitação. A partir da perspectiva das relações federativas, esse constitui um aspecto bastante interessante do SNHIS, pois rompe o predomínio do Poder Público no fornecimento de políticas públicas de alto custo; a inação de um governo local, que por acaso tenha preferido não aderir às políticas de origem federal, pode representar um considerável custo político a esse, caso outras organizações locais se encarreguem de acessar SNHIS, seus programas e recursos. Assim, a estrutura de indução presente no sistema nacional dedicado à habitação parte da pressão sobre os entes federados, e não apenas da concessão de incentivos. A participação dos governos subnacionais no SNHIS não ocorre de forma automática, pois é preciso que esses proponham ações condizentes com os

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programas ofertados pelo sistema, e aguardem o processo seletivo das propostas que serão beneficiadas. Os tipos de programas propostos pelo SNHIS, em sua maioria, não preveem a produção de unidades habitacionais, porém também podem ser considerados como atrativos aos entes federados. A maior parte deles é inédita no histórico de provimento de políticas públicas relacionadas à habitação, e buscam se adequar à realidade dos problemas urbanos enfrentados pela maioria dos grandes centros urbanos (Maricato, 2006). O incentivo financeiro contido em tais programas do SNHIS é significativo, pois obras de infraestrutura representam altos custos, e dificilmente seriam viáveis sem o aporte de recursos do Governo Federal. Considerando a tipologia de formas de indução à cooperação delineada por Diniz Filho (2006), o conjunto de mecanismos de incentivo representados pelo SNHIS se mostra particularmente atrativo por lidar com a transferência de grandes volumes de recursos, desde o ente federado que deseja a cooperação, para aquele do qual se deseja a cooperação. No mesmo sentido, no caso dos projetos de infraestrutura urbana, o SNHIS torna possível a oferta de bens públicos que atingirão um grande público e que, sem a cooperação do ente subnacional às normas de funcionamento do sistema nacional, dificilmente se concretizariam. Por outro lado, há pouca previsibilidade na sistemática de concessão de recursos do SNHIS, e esse é um ponto crucial no processo de escolha dos entes federados; formalmente, não há como um ente federado saber como ou quando se concretizarão os incentivos à cooperação oferecidos pela esfera federal em troca da adesão à especialização de funções típica dos sistemas nacionais de políticas públicas, já mencionada no presente trabalho: planejamento e financiamento sob gestão federal, execução à cargo de estados e municípios. Quanto ao acesso aos recursos destinados à produção habitacional, novamente os incentivos à cooperação têm seus efeitos matizados pelas formas de funcionamento do sistema nacional em questão: o papel de destaque destinado à instância estadual pode fazer com que os governos estaduais se sintam incentivados a aderir à iniciativa federal, porém repelem a participação dos municípios, que teriam pouco espaço de decisão no fornecimento de uma política pública de grande apelo popular. Sendo assim, no que se refere à estrutura de indução à cooperação federativa do SNHIS, essa tem poucos benefícios concretos a oferecer à maioria dos entes federados brasileiros; mesmo que os bens que compõem tais incentivos sejam dotados de características bastante atrativas, é

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sempre abstrata a possibilidade de que esses venham mesmo a ser concedidos a um governo subnacional específico. A partir do ponto de vista do Governo Federal, a transferência de grandes volumes de recursos a um conjunto amorfo de governos pode aparecer como uma oferta vantajosa; porém, os pontos de vista individuais de – por exemplo – cada um dos milhares de municípios é povoados por dúvidas a respeito das possibilidades de atendimento de seus pleitos específicos, assombrados pelo colossal fantasma da competição federativa horizontal. Em uma rápida comparação, a estrutura de incentivos à cooperação do SNHIS oferece menos certeza do que a conformação do SUS sob a vigência da NOB/91; nesse caso, a própria capacidade de realização de serviços de saúde em âmbito local servia como parâmetro, ao governo subnacional, na estimativa dos valores que seriam repassados pelo Governo Federal, configurando um tipo de referência inexistente no caso do sistema nacional dedicado à habitação. Há dois custos principais no SNHIS, colocados aos governos subnacionais. Em primeiro lugar, para aderir a este sistema nacional e tornar-se apto a receber seus recursos financeiros, é necessário passar por um processo de adesão específico, que inclui a criação das estruturas institucionais dispostas abaixo: Art. 12. Os recursos do FNHIS serão aplicados de forma descentralizada, por intermédio dos Estados, Distrito Federal e Municípios, que deverão: I – constituir fundo, com dotação orçamentária própria, destinado a implementar Política de Habitação de Interesse Social e receber os recursos do FNHIS; II – constituir conselho que contemple a participação de entidades públicas e privadas, bem como de segmentos da sociedade ligados à área de habitação, garantido o princípio democrático de escolha de seus representantes e a proporção de 1/4 (um quarto) das vagas aos representantes dos movimentos populares; III – apresentar Plano Habitacional de Interesse Social, considerando as especificidades do local e da demanda; IV – firmar termo de adesão ao SNHIS; V – elaborar relatórios de gestão; e VI – observar os parâmetros e diretrizes para concessão de subsídios no âmbito do SNHIS de que trata os arts. 11 e 23 desta Lei (BRASIL, 2005).

Os itens dispostos nos incisos I, II e III, de considerável complexidade por se tratar de uma área de ação inovadora por parte do Poder Público, devem ser elaborados pelo governo subnacional e apresentados à Caixa Econômica Federal de acordo com prazos estabelecidos nacionalmente pelo Ministério das Cidades. Após a análise da documentação, o ente federado pode ser classificado como “regular”

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junto ao SNHIS – portanto, apto a fazer parte dos programas e pleitear os recursos descentralizados – ou, pode ter sua adesão ao sistema nacional considerada como “pendente” – o que não o exclui imediatamente, mas obriga à reformulação dos documentos supracitados, enquanto impossibilita qualquer participação

nos

programas e ações. Sendo assim, a formalização da adesão do ente federado ao SNHIS representa, por si só, um grande desestímulo à cooperação federativa, especialmente quando se considera que a elaboração de um plano de habitação, de acordo com meticulosa – e inédita – metodologia desenhada pelo Ministério das Cidades, foi exigência que perdurou da criação do sistema até o ano de 2012 – quando foi substituído por versão simplificada, de preenchimento online para municípios com menos de 20 mil habitantes. O segundo obstáculo, colocado pelo SNHIS à participação dos entes federados subnacionais em sua estrutura, está ligado à forma como esse busca interferir nas dinâmicas políticas e sociais daqueles que vierem a fazer parte desse sistema nacional. A exigência de se constituir um fundo, responsável pelos recursos a serem transferidos no âmbito do SNHIS, assim como a formação de um conselho participativo (paritário entre o poder público e os movimentos populares) e a elaboração de um plano temático determinam, necessariamente, uma profunda alteração no processo de tomada de decisão em âmbito subnacional no campo da habitação. Aos governantes, essa estrutura institucional significa inegável redução de seu espaço decisório, o que torna a participação no SNHIS muito pouco atraente para os gestores públicos locais. Prestes a completar nove anos de existência, e dotado do arcabouço institucional supracitado, o SNHIS conta com a participação de exatos 1.0024 municípios brasileiros (Brasil, 2013), o que perfaz a proporção de 17,98% de todos os governos locais do país – no total de 5.570. É de se destacar que já nos primeiros anos de operação do SUS, sob a vigência da NOB/91, esse sistema nacional logrou obter a adesão de 1.074 municípios, certamente devido ao fato de que apresentava certo grau de segurança e previsibilidade na transferência de recursos, mesmo que apenas para os governos locais que apresentassem condições para prestar serviços para posterior remuneração. As cidades que hoje estão aptas a participar do SNHIS, classificadas sob a categoria de “regulares” junto a esse sistema, cumpriram com 4

Dados atualizado em dezembro de 2013 (Brasil, 2013).

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todas as tarefas estipuladas para adesão; certamente, consideram que o esforço realizado e a adoção de uma nova configuração na gestão de sua política habitacional têm boas chances de serem recompensados por algum repasse de recursos futuro. Quanto às demais 4.568 cidades brasileiras, essas não consideram a fórmula de indução à cooperação suficientemente atraente para as levar a alterar seus modos tradicionais de ação. Em resumo, temos que o SNHIS apresenta incentivos incertos à cooperação federativa e, ao mesmo tempo, impõe restrições concretas à atuação dos entes federados que dele decidirem participar. Ainda assim, é marcado por procedimentos de adesão complexos, capazes de limitar o acesso de seus membros aos recursos do

sistema

caso

não

tenham

sido

atendidas

condicionalidades

técnicas

estabelecidas pelo Ministério das Cidades. Um cenário, certamente, que contrasta bastante em relação ao que marca as relações federativas no âmbito do SUS.

Conclusões

Este artigo buscou analisar a proposta contida nos chamados sistemas nacionais nas áreas de saúde (SUS) e habitação (SNHIS), enquanto modelos de indução à cooperação propostos pelo Governo Federal. Em linhas gerais, ambos compõem uma estratégia federativa que visa, em conformidade com a tendência descrita por Marta Arretche (2012), transferir aos governos subnacionais a responsabilidade pela execução da política pública em tela, enquanto concentra sobre o governo central as atribuições sobre o planejamento e financiamento dessa área. A semelhança entre os dois sistemas recai em dois aspectos. O primeiro envolve a centralização decisória no Governo Federal para o planejamento e formulação da política pública: além de definir as prioridades estratégicas de investimento e ações, o governo federal tem grande liberdade para determinar as regras de funcionamento do sistema, muitas delas editadas unilateralmente por meio de normativas internas. Este poder de agenda federal coloca tal instância em vantagem sobre os demais níveis de governo e até mesmo em relação ao Poder Legislativo5. O segundo aspecto que aproxima o SUS e SNHIS é a ênfase na execução de programas pelas instâncias locais. O repasse de recursos financeiros 5

Este argumento foi discutido em trabalhos anteriores (Figueiredo e Limongi, 1999; Souza, 2013).

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não só viabiliza a execução das ações propostas em nível central, como também figura como incentivo à adesão dos entes federados ao sistema. Para além das semelhanças encontradas, é necessário ressaltar as diferenças significativas no desenho institucional de ambos os sistemas nacionais analisados. Em primeiro lugar, é preciso destacar o reduzido grau de flexibilidade da estrutura federativa do SNHIS: enquanto o SUS, em sua primeira década de funcionamento, experimentou diversas combinações de incentivos oferecidos aos entes subnacionais (como pôde ser visto a partir da evolução das NOBs) até atingir uma fórmula eficiente de indução à cooperação, o sistema nacional de habitação não passou por mudanças significativas, tanto do ponto de vista institucional quanto financeiro, que objetivassem aperfeiçoar sua relação com estados e municípios. Também sob a ótica institucional, o SNHIS não tem definidos os papéis de cada ente federado – nem suas respectivas competências gerenciais – no âmbito desse sistema nacional, em flagrante contraste como aquela produzida no SUS. É bom lembrar que o SNHIS se aproxima de completar sua primeira década de funcionamento, e ainda os governos estaduais e municípios parecem assumir as mesmas funções e competências, em uma estrutura que também envolve instituições da sociedade civil em um – ainda obscuro – patamar de igualdade. Em relação ao aspecto financeiro, esse guarda uma das principais diferenças entre os sistemas nacionais em questão: enquanto os recursos destinados à saúde são transferidos automaticamente aos participantes do SUS, aqueles relacionados à habitação não apresentam qualquer tipo de garantia, pois o acesso a esses parte de “chamadas públicas”, às quais se candidatam os membros aptos do SNHIS – podendo ou não ser atendidos. No mesmo sentido, também há imprevisibilidade quanto à realização de novas chamadas, os valores a serem disponibilizados e as modalidades de projetos que poderão ser atendidos. O crucial fator financeiro, um dos pilares de qualquer estratégia de indução à cooperação federativa, apresenta então poucos incentivos para que os entes subnacionais participem do SNHIS, o que contrasta flagrantemente com a maioria das configurações adotadas pelo SUS. Por fim, o SNHIS coloca condicionalidades significativas para adesão de entes federados, exigências essas puníveis com a impossibilidade de se pleitear recursos e participar dos programas e ações que o compõem. Por sua vez, a primeira década de funcionamento do SUS foi marcada pelo desenvolvimento de estruturas cada vez mais voltadas para o acolhimento dos entes federados em seu

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âmbito, com destaque para os municípios de menor porte e capacidade financeira e institucional. Nesse aspecto, o SNHIS exige sacrifícios dos governos subnacionais que pretendem fazer parte de sua estrutura, sem oferecer em troca qualquer garantia de recompensa futura, o que se coloca como um grande contrassenso no campo das relações interfederativas. A comparação entre as estruturas de incentivo à cooperação federativa, presentes nos sistemas nacionais de saúde e de habitação, traz à tona algumas respostas interessantes. Apesar de ambos os sistemas nacionais partirem de dilemas muito parecidos, adotaram modelos intrinsecamente distintos na estrutura de incentivos aos entes federados subnacionais. Basicamente, a estratégia de indução à cooperação levada a cabo no âmbito do SUS pode ser classificada como um modelo de “agregação positiva”, uma vez que concentra-se na atração dos entes subnacionais para sua esfera de influência, principalmente através da oferta de benefícios e condições favoráveis de trabalho em conjunto. Já o SNHIS busca se afirmar como um sistema efetivamente nacional fazendo uso do que chamamos como “agregação negativa”, pois se caracteriza pela imposição de constrangimentos à ação autônoma de Estados e municípios, o que os levaria obrigatoriamente à cooperação com a esfera federal. Salta aos olhos a extrema inabilidade política com a qual foi desenhado o SNHIS, baseando sua relação com estados e municípios na pressão institucional e na cobrança generalizada por tarefas próprias da realidade das grandes cidades metropolitanas. Enquanto o SUS mudou para se adaptar ao cenário federativo brasileiro, o SNHIS permaneceu estático, como referência a ser seguida por todo o país; desconsiderando o princípio básico da autonomia que anima a todos os entes federados, o SNHIS vem sendo tão obsoleto quanto obstinado em manter sua fórmula original. Por fim, outra conclusão que deve figurar aqui – mesmo que em caráter superficial – está relacionada ao debate sobre a competição entre o SNHIS e outras ações habitacionais levadas a cabo pelo Governo Federal, com destaque para o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) (Dutra, 2013). Mesmo sendo o MCMV dotado de uma estrutura de incentivos à cooperação muito mais amigável aos entes subnacionais, convém não menosprezar o fato de que o próprio SNHIS já vinha criando entraves em sua relação com estados e municípios desde quando figurava sozinho no plano das ações habitacionais do Governo Federal. Dessa forma, pode

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ser – em grande medida – responsabilizado pelos resultados que obteve em termos de adesão efetiva de governos subnacionais às suas políticas. Referências Bibliográficas ABRUCIO, Fernando Luiz. (2005), “A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Rev. Sociol. Polit. 24:41-67. ARRETCHE, Marta. (1999), “Políticas Sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14, 40:111-141. ARRETCHE, Marta. (2000), Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro, Revan; São Paulo, Fapesp. ARRETCHE, Marta. (2002), “Relações federativas nas políticas sociais”. Educação e sociedade, 23, 80:25-48. ARRETCHE, Marta. (2003), “Financiamento federal e gestão local de políticas sociais: o difícil equilíbrio entre regulação, responsabilidade e autonomia”. Ciênc. saúde coletiva, 8, 2:331-345. ARRETCHE, Marta. (2004), “Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia”. São Paulo em Perspectiva, 18, 2:17-26. ARRETCHE, Marta. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro, Fiocruz. BRASIL. Lei nº 11.124, de 16 de junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de junho de 2005. BRASIL (2013), Situação dos entes federados frente às exigências do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social: Atualizado em 09/12/2013. Brasília: Ministério das Cidades, Disponível em: https://www.cidades.gov.br/situacao_snhis/src/situacaoSnhis/formSituacoes?view=sit e. Acesso em: 13/01/2014. CARDOSO, Adauto L.; RIBEIRO, Cleber L. V. (1999), “Municipalização da política habitacional: Uma avaliação da experiência brasileira recente”, in VIII Encontro Nacional da ANPUR.

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