Modelos literários e práticas culturais: paradoxos brasileiros no Caminho de Santiago

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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis

Modelos literários e práticas culturais: paradoxos brasileiros no Caminho de Santiago Raquel Bello Vázquez1 1. Introdução A literatura, igual que outras produções culturais, funciona como mediadora e moldadora de discursos que têm homologias nas práticas sociais e nos consumos culturais. A popularização da peregrinação moderna a Santiago de Compostela a partir da década de 90 do século XX está ligada diretamente ao impacto mundial de Paulo Coelho, particularmente do seu livro Diário de um Mago (1987), que relata a viagem (trans)formadora do protagonista, Paulus, por meio de uma peregrinação a Compostela baseada numa experiência do autor. O sucesso de vendas desta e outras produções de Coelho como O Alquimista (o maior sucesso do autor, que inclui uma personagem chamada Santiago assim como uma das frases recorrentes em depoimentos de peregrinos: “E quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo” (1990, pág. 48) popularizou o Caminho de Santiago no Brasil e noutros muitos lugares do mundo junto com uma visão só parcialmente católica, espiritualizada e menos religiosa do que a peregrinação anterior, associada agora com filosofias e práticas da Nova Era. Num conjunto de entrevistas realizadas em Porto Alegre durante 2014 emergiram duas tendências aparentemente contrapostas: (1) O predomínio do discurso espiritualizado e Nova Era acima referido. (2) O apagamento de Paulo Coelho como referência, ou bem por ser referido negativamente, ou bem por não ser referido em absoluto. Exploramos neste trabalho algumas das implicações que estes dois fatos têm no estudo do relacionamento entre literatura e práticas sociais:  a construção de um discurso literário a partir de uma prática sociocultural;  

o consumo de produtos culturais como parte de uma prática vinculada com outros campos; a circulação e o consumo indiretos de produtos da cultural;



as homologias entre consumos, práticas e repertórios culturais.

1 Doutora em Filologia, Centro Universitário Ritter dos Reis/ Grupo Galabra Universidade de Santiago de Compostela, [email protected]. O trabalho apresentado faz parte dos projetos de pesquisa: Discursos, imagens e práticas culturais sobre Santiago de Compostela como meta dos caminhos de Santiago de Compostela, MIMECO [FFI2013–35521] e Leituras, culturas e turismo. Homologias e feed-back entre os consumos culturais e turísticos no Brasil e nos Caminhos de Santiago. Programa CAPES -PVE

XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016

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2. Metodologia Entre maio e dezembro de 2014 foram realizadas 34 entrevistas abertas em profundidade com peregrinos/as que tinham feito o Caminho de Santiago. Estas entrevistas tiveram lugar em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, no Brasil. Os motivos da escolha do lugar foram: – Relevância quantitativa das/dos peregrinas/os procedentes do Brasil no conjunto de pessoas que completam o Caminho de Santiago. – Relevância qualitativa do discurso do produtor brasileiro Paulo Coelho na fixação da moderna cultura do caminho. As pessoas que participaram no estudo foram localizadas em entornos frequentados por peregrinos/as que já tinham realizado o caminho ou que pretendiam fazê-lo. Em todos esses eventos a pesquisadora se aproximou das pessoas que tinham feito o caminho, apresentando-se como pesquisadora e recavando o contato das pessoas interessadas em colaborar com a pesquisa. Posteriormente, foi feita uma contatação com todas aquelas pessoas que disponibilizaram o seu número de telefone ou e-mail e foram entrevistadas a todas as que aceitaram marcar um encontro, sem fixar cotas por sexo, idade, classe social ou qualquer outro critério. Numa fase diferenciada do projeto maior do qual este estudo de caso faz parte, não foram detectadas diferenças substanciais em função de valores sociodemográficos, e o nosso objetivo era conhecer as narrativas das/os peregrinas/os para identificar as suas motivações e visões do caminho e da cidade de Santiago de Compostela como meta do caminho. Por outro lado, e como era esperável, o estudo revelou uma grande homogeneidade sociocultural entre as pessoas entrevistadas. O fato de a pesquisadora proceder da Galiza e, particularmente, de Santiago de Compostela foi uma mais valia na hora do estabelecimento de contato, da aceitação das pessoas para participarem no projeto e também da forma em que se comunicaram. Em muitos casos as entrevistas foram feitas nas suas casas, durante jantares familiares, onde mostraram lembranças do caminho em forma de fotografias, elementos de decoração das casas, etc. Se bem avaliamos como positivo para o resultado das entrevistas a procedência da pesquisadora pela simpatia que esta despertou entre os sujeitos da pesquisa, a unanimidade dos sujeitos em se expressar em termos elogiosos pode ser vista também como uma consequência dessa procedência, já que as pessoas tenderam a me identificar pessoalmente como uma espécie de representante ou promotora do caminho, e parece razoável pensar que não se sentiriam à vontade para fazer críticas muito explícitas. Para minimizar este viés, foi feito um seguimento presencial das discussões entre peregrinos/as em vários eventos, onde a nossa presença poderia ser menos evidente que numa entrevista cara a cara, e também através das redes sociais onde boa parte dos sujeitos são bastante ativos. Nenhum destes seguimentos mostrou conclusões diferentes das obtidas nas entrevistas, pelo que consideramos que o grau de fiabilidade é alto. 3. Resultados e Discussão XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016.

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Na análise preliminar dos depoimentos e das notas tomadas após as entrevistas emerge um evidente paralelo entre a narração da experiência do caminho e a narrativa de Paulo Coelho. A narrativa do caminho pode ser sintetizada como se segue:  O caminho é sentido como uma experiência profundamente espiritual.  Peregrinos/as abastados/as elaboram de que formas aprenderam a viver de forma mais simples e austera, evocando a ideia do desapego dos bens materiais.  Consideram a peregrinação como um evento que mudou as suas vidas.  Elaboram a ideia do chamado, profundamente enraizado na tradição cristã das vidas dos santos.  As comunidades locais que o caminho atravessa estão ausentes, descritas em termos visuais gerais como a paisagem, com referências específicas a elementos conotados como exóticos tais como as cerejas e os girassóis.  A ideia de uma energia espiritual que estaria presente no Caminho de Santiago é vinculada à antiguidade do mesmo, identificada não raramente como “medieval”. Particularmente relevantes são as menções a experiências espirituais intensas sentidas em igrejas antigas, com ênfase especial para a do Cebreiro, que se revela como um dos lugares sentidos como mais “mágicos”.  Várias narrativas estão permeadas pelo sentimento de ter experimentado um processo complicado de regresso à casa, uma espécie de luto pela experiência vivida e deixada para atrás, sintetizada por várias/os peregrinas/os como “o caminho começa em Santiago”.  Muitas/os peregrinas/os falam da experiência do caminho como ponto de viragem nas suas vidas e do aprendizado de uma vida mais simples. No entanto, não relatam mudanças radicais nas suas vidas no regresso ao Brasil como mudar de casa, largar empregos, divórcios –apenas num caso-, etc. Em lugar de mudanças em termos práticos, o que relatam é a capacidade de viverem de forma mais simples, mas não uma mudança real para uma vida mais simples.  Relacionado com o anterior, muitos/as peregrinos/as consideram que a essência do caminho não é reprodutível em casa, onde sentimentos de desconfiança respeito a pessoas desconhecidas –perpassados de forma mais ou menos subtil por preconceitos de classe e raça- e o medo aos assaltos são caraterísticos dos relacionamentos urbanos no Brasil.  As mudanças narradas permanecem no nível espiritual e de desenvolvimento individual, interpretadas como crescimento pessoal, tornar-se uma pessoa melhor, mas não no nível material nem em ações de tipo coletivo.  A narrativa predominante mistura ideias católicas/cristãs sobre ser recompensada/o pelas boas ações, junto com ideias espíritas relacionadas a receber da vida o bem merecido.  Imagens positivas em relação à espiritualidade, às viagens e à atividade física (particularmente aquela não competitiva) levam as peregrinas/os a construir uma XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016.

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autoimagem que as/os conforta e recompensa num contexto de desigualdade social, contribuindo para resolver a possível contradição entre a certeza de que, de fato, poderiam viver com menos mas que, pelo contrário, vivem num entorno relativamente privilegiado em relação ao conjunto da sociedade brasileira.  Das narrativas desprende-se um sentido de distinção social ligado ao caminho: pessoas bem conhecidas da sociedade do Rio Grande do Sul (jornalistas famosos, magistrados, donos de empresas importantes, etc.) são peregrinos, o qual contribui para sublinhar a ideia de sucesso ligada à peregrinação desde o começo da difusão do caminho no Brasil com o livro de Paulo Coelho. Além de estas peregrinações serem conhecidas, há várias histórias que se repetem nos depoimentos nas quais um/a peregrino/a de aspecto e comportamento particularmente modesto se descobre, tempo após finalizada a caminhada, como uma pessoa com uma importante função social, muito capital econômico ou ambas como reitora de uma universidade britânica ou diretor de um banco francês.  O “chamado” narrado por algumas pessoas, é coerente com a famosa citação “E quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo” (O Alquimista, p. 48, 54a ed, Rio de Janeiro: Rocco, 1990), canalizando a ideia de que foram eleitos/as para realizarem o caminho, de que este é uma espécie de destino que eles/as seguiram, por vezes com dúvidas. Uma narrativa muito próxima à da tradição católica do chamado dos apóstolos, ou do chamado que as pessoas consagradas afirmam receber. 4) Conclusões O Caminho de Santiago como um consumo cultural entre a classe média-alta portoalegrense mostra-se como uma área complexa que faz emergir elementos sociais de classe, raça e status social, com diferentes capitais em jogo. As nossas conclusões preliminares apontam para implicações de tipo social, que nos mostram que “jogar a ser pobre” (a cultura do desapego ou da austeridade), a estética “mochileira” e a viagem espiritual (frente ao turismo) funcionam como formas de distinção para um grupo restrito dentro da elite social; implicações de tipo cultural, com produção específica de produtos literários e cinematográficos e eventos sociais destinados a peregrinos, assim como a construção de uma “ética peregrina” veiculada através desses produtos; finalmente, implicações para as comunidades locais atravessadas pelo Caminho, ausente nas narrativas, com Santiago de Compostela apenas como meta. A cultura e a ética do Caminho não pertencem a nenhum lugar em particular, sendo a peregrinação uma experiência formatada para um mercado internacional pronta para ser consumida, sem necessidade de interação com as pessoas –além de outras/os peregrinas/os- ou de aproximação com as culturas locais. Esta neutralidade cultural aplica-se também à construção ideológica e religiosa, que se constitui como um elemento cultural eclético e miscelâneo para um leque alargado de confissões ou práticas espirituais. 5) Palavras-chave XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016.

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Holomogias; Práticas culturais; Leitura; Peregrinação 6) Agradecimentos (item opcional). Agradeço aos meus colegas do Grupo Galabra da Universidade de Santiago de Compostela a sessão de debate dedicada à discussão de uma primeira versão deste artigo. 7) Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. La Distinction. Critique sociale du jugement. Les Éditions de Minuit. 1979. COELHO, Paulo. O Alquimista. 54a edição, Rio de Janeiro: Rocco, 1990. COELHO, Paulo. O Diário de um mago. Planeta do Brasil, 1987. CRESPO, Carlos J et al. Race/ethnicity, social class and their relation to physical inactivity during leisure time: results from the Third National Health and Nutrition Examination Survey, 1988–1994. American Journal of Preventive Medicine, Volume 18 , Issue 1 , 46 - 53 , 2000. D’ANDREA, Anthony Albert Fischer. O self perfeito e a nova era: individualismo e reflexividade em religiosidades pós-tradicionais. Edições Loyola, 2000. EVANS, John; DAVIES, Brian Social class and physical education. Handbook of physical education. London, U.K.: Sage Publications. 2006 LIZARDO, Omar; Sara SKILES Reconceptualizing and theorizing ‘omnivorousness’: Genetic and Relational Mechanisms. Sociological Theory vol. 30 no. 4, December 2012 263-282. MALUF, Sônia Weidner. Criação de Si e Reinvenção do Mundo: Pessoa e Cosmologia nas Novas Culturas Espirituais no Sul do Brasil. Antropologia em primeira mão, Universidade Federal de Santa Catarina, n.1 1995. MARSHALL, S. J., D. A. JONES, B. E. AINSWORTH, J. P. REIS, S. S. LEVY, And C. A. MACERA. Race/Ethnicity, Social Class, and Leisure-Time Physical Inactivity. Med. Sci. Sports Exerc. , Vol. 39, No. 1, pp. 44–51, 2007 PETERSON, Richard A.; Roger M. KERN. “Changing Highbrow Taste: From Snob to Omnivore.” American Sociological Review 61, 1996, 900-907. REIS, Sérgio, O Caminho de Santiago - Uma Peregrinação ao Campo das Estrelas. Foco: Porto Alegre, 1997. SOBAL, Jeffery; Albert J Stunkard. Socioeconomic status and obesity: A review of the literature. Psychological Bulletin, Vol 105(2), Mar 1989, 260-275. http://dx.doi.org/10.1037/0033-2909.105.2.260 TORRES FEIJÓ, Elias. Literatura, espaço, cartografias. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2011. Discursos contemporâneos e práticas culturais dominantes sobre Santiago e o caminho: a invisibilidade da cultura como hipótese, p. 391-449 . XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016.

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