Modernidade e cidadania em Porto Alegre: o combate à vadiagem e a a questão habitacional

June 2, 2017 | Autor: C. Martins Torcato | Categoria: Brazil History, História do Rio Grande do Sul
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Modernidade e Cidadania em Porto Alegre:

o combate à vadiagem e a questão habitacional. Carlos Eduardo Martins Torcato Resumo: Este artigo aborda a universalização das concepções de Estado e de cidadania derivadas do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna que foram mundialmente dominantes a partir do século XIX. No Brasil, as tentativas de implementar tais concepções esbarraram em inúmeras dificuldades. Em Porto Alegre, a partir da bibliografia e das fontes arquivísticas estudadas, pode-se perceber que as políticas públicas de combate à vadiagem e à política habitacional eram pensadas de acordo com o paradigma proibicionista, pois criminalizavam práticas sociais amplamente disseminadas, especialmente pelas camadas sociais mais vulneráveis, e não promoviam a cidadania. Tais políticas reforçavam e reproduziam uma estrutura hierarquizada, autoritária e elitista de Estado. Palavras-chave: modernidade – cidadania – políticas públicas – cultura popular – sociabilidade moderna.

Introdução

O

final do século XIX e o início do século XX foram caracterizados pelo poderio das potências europeias e pela universalização das concepções de Estado e de cidadania moderna. Fora da Europa, entretanto, a implementação dessas concepções encontrou enorme resistência nas populações locais, sendo acolhidas somente por segmentos das elites e de alguns setores citadinos identificados com ideais de progresso e modernidade.¹ No Brasil, a tentativa de implementação de tais concepções, no sentido de adequar o país aos parâmetros internacionais de progresso, encontrou também dificuldades. Esses empecilhos eram, sobretudo, de ordem antropológica, visto que a vivência moderna envolve uma exigência de ordem cultural/moral. Para que o Estado moderno se estabeleça, é preciso que as pessoas que fazem parte da sua coletividade (nação) ajam de forma propícia ao seu funcionamento.² Este artigo pretende abordar as tensões nascidas a partir da tentativa de implementação de noções universalistas de humanidade e cidadania e a existência de 1 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.52-53. ² COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Introdução. In: Além da escravidão: Investigação sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.62-63.

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concepções sobre as virtudes e as falhas de grupos específicos, assim como seus modos de agir e de ser. No caso de Porto Alegre, o período entre o final do século XIX e início do século XX foi caracterizado pelo confronto entre as elites, imbuído de um ideal modernizador, e os grupos populares da cidade. As políticas públicas elaboradas pelas elites Porto-Alegrenses, no âmbito de ordenar o espaço urbano de acordo com os preceitos dominantes de Estado e de cidadania moderna, encontravam resistências diversas que se manifestavam de várias formas, desde a resolução privada e violenta de conflitos circunscritos – ligados aos valores androcêntricos – até o desejo das pessoas, atingidas por elas, em preservar a autonomia do uso do tempo – ligado à maneira como as pessoas vivem e organizam sua cotidianidade. Procurar-se-á compreender os efeitos das políticas públicas de combate à vadiagem e as consequências da política habitacional para os diferentes estratos sociais, principalmente para aqueles mais pobres, tradicionalmente identificados como “classes populares”, a partir da análise dos confrontos nascidos de tais políticas na cidade de Porto Alegre.

Espaços de sociabilidade, cultura popular e ordem androcêntrica A divisão entre um mundo “civilizado” e “atrasado” não pode ser reduzida à mera divisão da sociedade industrializada e agrícola, embora pareça bastante correto associar a modernidade à industrialização e à urbanização.³ A modernização e o “ser civilizado”, por isso, não podem ser reduzidos somente aos aspectos econômicos, em razão da ampliação das relações assalariadas ou da atividade industrial. Ela precisa ser percebida também em seus aspectos cotidianos, no contato com as tecnologias, nos serviços públicos essenciais para a vida moderna e na burocratização. O que significou para a população de Porto Alegre a possibilidade de desfrutar de um serviço público de iluminação? Esse serviço propiciou o desfrute do tempo noturno como espaço de sociabilidade legítimo, fato diretamente relacionado com a urbanização das sociedades modernas. Em poucos anos, após a inauguração da luz a gás (1874), os habitantes de Porto Alegre, assim como os habitantes das principais cidades europeias, também passaram a desfrutar de espaços de sociabilidade legítimos durante a noite.4 Até esta data, o que existiam eram alguns poucos “bordeis” que “ofendiam a moral pública” apesar do toque de recolher5. ³ HOBSBAWM, Eric, op. cit, p.38-41.Valores Sociais e Moralidade no Brasil moderno 4 CONSTANTINO, Núncia Santoro. Modernidade, noite e poder: Porto Alegre na virada do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, vol.4, 1997, p.49-50. 5 Ibidem, p.51-52.

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Para Constantino (1997), a proliferação dos espaços de sociabilidade, em Porto Alegre, esteve ligada a diversas práticas sociais inauguradas pelos alemães que teriam sido responsáveis pela introdução de restaurantes, cafés, livrarias, boliches, bilhares e diversas agremiações. Era de costume os homens alemães se reunirem ao entardecer. Tais estabelecimentos se multiplicaram, nas últimas décadas do século XIX, a ponto de existirem centenas, no início do XX, tanto para setores da elite quanto para setores pobres.6 A multiplicação dos espaços de sociabilidade, em Porto Alegre, foi percebida como uma ameaça à ideologia do trabalho defendida por alguns setores da burocracia. A valorização do trabalho e a condenação à vadiagem justificaram a implementação de medidas de controle social durante todo o século XIX. Os negros e os europeus podiam ser enquadrados como vadios e compelidos ao trabalho.7 O encontro de homens, com intuito de beber, jogar cartas e conversar é uma afronta ao esforço das autoridades no sentido de imposição do hábito do trabalho. Numa sociedade escravista, a possibilidade de poder usufruir do ócio ou de usar o tempo em atividades lúdicas é uma forma de dignidade enquanto ser-livre. Então, é bem provável que, antes da chegada dos alemães, já existissem locais especializados na sociabilidade daqueles que podiam gozar do seu próprio tempo. As casas de tavolagem, por exemplo, são locais específicos para esse fim. A proibição desse tipo de estabelecimento remonta ao Código Filipino do século XVII.8 A inauguração da iluminação pode ter contribuído para a ineficácia das políticas de imposição do hábito do trabalho e para a legitimação de espaços de sociabilidades noturnos, pois tais encontros poderiam ser promotores de vícios sociais – opostos à ideologia do trabalho e à moralidade das boas famílias. Segundo as elites, os jogos de azar que ocorriam, especialmente, à noite, estavam associados a diversas práticas sociais como o alcoolismo, a prostituição, o ócio e a tendência à itinerância, consideradas devassidões sociais que impediam a incorporação das pessoas à ordem moderna que se pretendia constituir. Os limites eram tênues entre o permitido e o não-permitido. Os encontros entre pessoas, em um café, eram legítimos, no entanto o mesmo não se poderia afirmar acerca de uma reunião para um jogo de cartas. Portanto, não importava o CONSTANTINO, Nuncia Santoro, op. cit. NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: Uma história social do trabalho. Tempo Social, revista de sociologia da USP. v.18, n.1, 2006, p.288. 8 Era determinado que “em nossos Reinos e Senhorios não se jogue cartas” [...] “dados” [...] nem se mantenha “tabolagem” (sic). As penas variavam desde o açoite público para os peões, até multa e degradação “para o Brazil (sic)” durante dez anos para os de “maior condição”. As normas gerais do Código Filipino (como era chamado) perduraram, no Brasil, até 1824 (ano em que foi outorgada a primeira Carta Imperial), estendendo-se outras normas, penais e processuais, até 1830 (quando passou a vigorar o Código Criminal do Império). CASTRO, Estefânia Freitas. et. al. Ordenações filipinas on-line. Disponível em: Acesso em: 21 abr. 2010. 6 7

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espaço em que aconteciam tais devassidões, mas sim se essas práticas eram moralmente compatíveis com a ideologia do trabalho e a moralidade dominante. No dia 4 de abril de 1897, o Delegado Pereira da Cunha foi informado que estava reunidos “um avultado numero (sic) de jogadores”, em um estabelecimento “denominado Café 17 de junho”, localizado na Rua dos Andradas, tradicional rua do centro da cidade. Acompanhado dos agentes municipais, ele deu batida no referido café, às dez horas da noite. Foram encontrados diversos indivíduos entregues “ao jogo de azar denominado ‘primeira’ com cartas de baralho espanhoes (sic)”. Todos foram multados e liberados.9 Outro episódio ocorrido em 1901 mostra que as ações policiais podiam desembocar para a violência física, principalmente se o evento de sociabilidade fosse praticado por indivíduos em situação de vulnerabilidade civil. Os agentes municipais foram avisados por menores de idade sobre a existência de um baile, ou maxixe, no “cortiço conhecido por curral das éguas”. Por isso, eles foram a tal baile “providenciar a respeital (sic) de tal desordem” e “fazer algumas prisões”. Chegando ao local, verificaram que se tratava de “um grande ajuntamento de indivíduos e mulheres das quais a maior parte negros”. Quando a proprietária do local foi falar com os policiais, ao coro de vaias e assovios dos participantes do baile, acabou esbordoada com um chicote.10 O desenvolvimento urbano de Porto Alegre foi acompanhado pela multiplicação dos espaços de sociabilidades, sejam eles ligados ou não-ligados diretamente à comunidade alemã. Independente desse possível recorte étnico, este desenvolvimento permitiu às pessoas, de forma geral, um acesso maior às inúmeras atividades ligadas aos vícios sociais (jogo, prostituição, ociosidade, itinerância) que eram percebidos na época como os grandes promotores da vadiagem. Como os exemplos que se acaba de trazer, a amplitude da ideologia do trabalho e do combate aos vadios não deixava as autoridades policiais indiferentes a tal cenário, gerando, como resposta, ações repressivas por parte da Polícia. Entretanto, qual era o alcance efetivo dessa ação repressiva contra a vadiagem? Em Salvador, por exemplo, as elites alcançaram muitos êxitos na política de combate à vadiagem, porém a pobreza das ruas era maior do que a capacidade de o Estado isolar e reprimir. Por isso, a questão da vadiagem atravessa o período colonial, imperial e republicano como algo não resolvido.11

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS), Códice de Polícia nº2, 04/04/1896. p.9-10v. Apud MAUCH, Cláudia. Vigiando a vizinhança: Policiais, classes populares e violência no sul do Brasil (18961929). IN: PESAVENTO, Sandra; GAYOL, Sandra. Sociabilidades, justiças e violências: Práticas e representações culturais no Cone Sul (séculos XIX e XX). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p.100-101. 11 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XIX. Campinas-Salvador: Hucitec-EdUFBA, 1995, p.180-181. 9

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Pode-se avaliar que em Porto Alegre, as políticas públicas elaboradas acerca da sexualidade e da infância abandonada também não alcançaram a eficácia desejada, porque os fenômenos de ordem estrutural, como a pobreza generalizada, eram maiores do que a capacidade do Estado de tutelar as crianças.12 Analisando-se os modos de vida e os valores próprios dos trabalhadores ligados ao policiamento da cidade, percebe-se que os agentes policiais gozavam de um estilo de vida próximo ao dos trabalhadores pobres.13 No dia 4 de maio de 1907, por exemplo, durante batida em casa de tavolagem onde se reuniam indivíduos para jogar “primeira”, foram presos 14 pessoas e um guarda.14 O jornalista carioca Vivaldo Coaracy, em visita a Porto Alegre, no ano de 1905, destacou nas suas memórias, a intensa vida dos porto-alegrenses: as ruas eram movimentadas, existiam inúmeros cafés, confeitarias e casas de jogos. Por outro lado, espantou-se com a sujeira e imundice da cidade. Como a cidade ainda não contava com serviços de esgotos, os dejetos corriam em canaletas para grandes caixas de madeira (revestidas de piche) que eram recolhidas, uma ou duas vezes por semana, por funcionários da prefeitura. Os jornalistas do jornal Gazeta da Tarde e Gazetinha, recorrentemente, reclamavam das imundices jogadas nas ruas e nas águas do Guaíba.15 Existia, no imaginário político brasileiro de fins do século XIX, a imagem do perigo social representado pelos “pobres” através da metáfora da doença contagiosa. A solução defendida para essa “doença social” seria a repressão aos hábitos viciosos dos pais e a educação das crianças.16 Em Porto Alegre, os jornalistas da Gazeta da Tarde e da Gazetinha também se utilizavam de uma linguagem pretensamente científica baseada em pretextos higienistas. Estes serviam para reativar temores e preconceitos arraigados contra negros e pobres em geral, associando cortiços, becos e botequins a focos de irradiação de epidemias.17 Os discursos jornalísticos apresentavam Porto Alegre como uma cidade tomada pelo desregramento e pela constante ameaça da “horda” de vagabundos que existiam nas ruas.18 Os jornalistas, as elites empresariais, os socialistas vanguardistas, os políticos, os respeitosos cidadãos e todos aqueles identificados com os ideais de progresso queriam a expulsão dessas pessoas e de seus hábitos dantescos do centro 12 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Crimes contra a moral: Infância e sexualidade (Porto Alegre, RS - 18801920). Métis: história & cultura. v.6, n.11, 2007, p.208-209. 13 MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS, 2004, p.89-90. 14 AHRGS, Códice de Polícia nº 14, 04/05/1908. p.32. 15 Apud MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.75-76. 16 CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no rio de janeiro da belle epoque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p.29. 17 MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.90-92. 18 Ibidem, p.106-107.

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comercial e político da cidade. Vargas (1993), analisando o jornal O Independente, destaca que os discursos moralistas eram acompanhados de idéias de decadência civilizacional.19 Elmir (2004), analisando os discursos jornalísticos, literários, políticos e policiais, destaca a existência de uma ideia pessimista e da projeção de um tempo passado idealizado onde o “outro” carente de moral não existia.20 Portanto, apesar dos esforços empenhados pelo poder público, fica a impressão que a manutenção do problema significa a incapacidade da elite de impor aos setores populares a ética do trabalho. Problemas de ordem econômica – pobreza generalizada – seriam um dos maiores obstáculos. Alguns autores também destacam fatores de ordem cultural. Kowarick (1994) acredita que não bastaram mudanças nas relações de produção e no aumento da coerção econômica para o correto desenvolvimento do capitalismo. Segundo ele, era necessária uma mudança cultural, capaz de alterar o estigma que o trabalho carrega.21 Para Fraga Filho (1995), na perspectiva dos homens livres, existia clareza sobre sua dignidade enquanto livres e uma cultura do trabalho e noções de tempo próprias. O que transparece nos discursos das elites é que essa cultura do trabalho popular, identificada como vadiagem, era o principal obstáculo à incorporação do livre ao trabalho regular.22 Esta-se diante, enfim, também de uma disputa cultural. Para alguns autores da historiografia de Porto Alegre, a intenção disciplinadora e normatizadora das instituições políticas foram vistas como uma arma da elite contra a “detestável” cultura popular. Segundo Vargas (1993), para os jornalistas do jornal O Independente, a coexistência de duas culturas antagônicas dentro da sociedade do período era considerado um fator de desagregação na cidade. Para reverter tal quadro, eram necessárias medidas autoritárias, principalmente contra determinadas áreas da cidade (subterrâneos). 23 Para Arend (2001), as ações normatizadoras recaíram sobre os populares, visando a alterar também as formas de relacionamento afetivo próprias de sua cultura. Assim, a partir da “descrição densa” de alguns processos-crimes selecionados, seria possível perceber que os grupos populares de Porto Alegre desenvolveram uma forma particular de união, similar ao casamento, conhecido pelo nome de amasiamento, que era moralmente condenado. 24 Segundo essa autora, tal relacionamento ocorria 19 VARGAS, Anderson Zalewski. “Os subterrâneos de Porto Alegre”: Imprensa, ideologia autoritária e reforma social (1900-1919). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1993, p.101-103. 20 ELMIR, C. P. Porto Alegre: A perdida cidade una (Fragmentos de modernidade e exclusão social no sul do Brasil). Estudos ibero-americanos. PUCRS, v. XXX, n. 2, 2004, p. 107. 21 KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1994, p. 11-12. 22 FRAGA FILHO, Walter, op. cit, p.175-176. 23 VARGAS, Anderson Zalewski, op. cit, p.308-312. 24 AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001, p.61.

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quando: o casal se encontrava com certa regularidade, existia responsabilidade mútua entre o homem e a mulher, além do reconhecimento por parentes, vizinhos e amigos. O namoro, considerado a etapa anterior ao amasiamento, também possuía algumas características distintas daquelas da classe dominante: as escolhas dos namorados eram feitas pelas partes envolvidas, “diferente da família patriarcal e/ou aristocrática, onde havia uma preocupação com a perpetuação da linhagem para manutenção do poder político e econômico”. 25 As carícias entre os casais populares não eram restritas ao espaço privado, sendo sutil a vigilância de pais, de parentes e de vizinhos. Os populares mantinham relações sexuais durante o período de namoro, o que era considerado imoral pela moralidade dominante.26 Dessa forma, “para os populares, estar amasiado era considerado um estado próprio da sua cultura, equivalente a um estado civil na ordem jurídica”.27 O Judiciá­ rio, além de não reconhecer essa forma de relacionamento, classificando os pares desse tipo de relação como solteiros, tentava impor aos envolvidos que se portassem de acordo com um padrão de comportamento próprio da elite, simbolizado na instituição do casamento, o que poderia garantir um controle maior do Estado em relação ao cidadão. Portanto, os grupos populares estavam inseridos num combate cultural com as elites.28 É possível pensar os populares como um grupo distinto da elite devido o compartilhamento de experiências comuns, tais como a pobreza, as relações violentas no cotidiano e a construção de laços de solidariedade. As instituições públicas tentavam introduzir a norma familiar burguesa que era contrária às práticas da família popular como o amasiamento, as relações sexuais durante o namoro, a circulação de crianças e a construção de parentesco a partir de laços consanguíneos.29 As conclusões de Arend (2001) influenciaram outros trabalhos sobre as mulheres, como os de Careli (1997) e, posteriormente, o de Santos (2008) sobre a prostituição. Talvez nenhum estudo tenha antagonizado mais as diferenças entre cultura popular e de elite como o de Grosso (2007). Segundo este autor, o final do século XIX foi caracterizado pelo desenvolvimento de um novo modo de vida das elites da cidade de acordo com o ideal modernizante. Já os grupos populares e moradores do centro se destacavam pelo seu comportamento desviante, apresentando-se como grande obstáculo ao projeto idealizado por uma elite “já desgarrada dos valores e códigos sociais nativos”.30 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit., p.54. Ibidem, p.54-56. Ibidem, p.61. 28 Ibidem, p.76-78. 29 Ibidem, p.85-86. 30 GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Poderiam viver juntos? Identidade e visão de mundo em grupos populares na Porto Alegre da virada do século XIX (1890-1909). DISSERTAÇÃO. (PPGHIS-PUCRS), 2007, p.30. 25 26 27

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Mais do que negar a existência de uma cultura popular agredida pelo projeto modernizador, acredita-se que a ênfase demasiada ao antagonismo entre popular e erudito pode esconder formas generalizadas de dominação calcadas na ordem patriarcal e masculina. Formas não apenas presentes em todas as classes sociais, como diversas vezes respeitada pelos agentes burocráticos. Em todas as esferas, são constituídas formas de inculcação que visam constituir, por um lado, a virilidade masculina e, por outro, a feminilidade. Ser homem implica um dever-ser, uma forma de honra/virtude que se impõe por si mesma, sem discussão. 31 A mulher, por sua vez, é definida “como uma entidade negativa, definida apenas por falta, suas virtudes mesmas só podem se afirmar em uma dupla negação, como vício negado e superado, ou como mal menor”.32 A dominação masculina e patriarcal precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva que relacione o feminino e o masculino. No que se refere ao contexto histórico específico da cidade de Porto Alegre na virada do século XIX para o século XX, a mulher (pobre, principalmente) possuía uma conjuntura que diminuía traços da dominação. Primeiramente, trata-se de uma sociedade de enorme desigualdade econômica e de disseminada pobreza, fato que proporcionava à mulher a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. Não se criando as condições materiais necessárias para confinar a mulher e, por ventura, as filhas, no espaço privado, os homens pobres viam-se em posição precária para controlar a castidade das mulheres sobre sua posse. Isso não significa, entretanto, que eles não utilizavam suas filhas como objeto de trocas simbólicas, características do mercado matrimonial.33 Consoante a isso, Arend (2001) concorda sobre a importância da construção de parentescos a partir de laços consanguíneos como uma estratégia de sobrevivência das famílias populares.34 Outro quesito que influenciava no sentido de diminuir os traços da dominação era a disparidade no número entre homens e mulheres. Apesar de não existirem dados demográficos confiáveis para o período, é possível atribuir tal disparidade ao forte fluxo de imigrantes que chegavam à capital, em geral homens solteiros. O desequilíbrio entre os sexos, aliado ao fato de as mulheres terem inserção no mercado de trabalho, ampliava, consideravelmente, a possibilidade de escolha seletiva de seus companheiros. No entanto, mesmo com todas essas possibilidades, a mulher continuava reproduzindo a lógica androcêntrica que convinha ao seu gênero, operando uma escolha seletiva entre homens em troca da exclusividade sexual.35 A oportunidaBOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.63-64. Ibidem, p.37. 33 Ibidem, p.55. 34 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit, p.61. 35 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.40-41. 31 32

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de representada pelo casamento de sair da tutela paterna não significava, necessariamente, uma menor sujeição ao poder masculino, vista as inúmeras obrigações morais e sexuais que as mulheres assumiam, seja com os maridos, seja com os amásios. Careli (1997), contrapondo os discursos jornalísticos ao das autoridades policiais, percebe a grande “similaridade que o conjunto de falas apresentam”.36 Ao lado do modelo feminino ligado a valorização do matrimônio, da maternidade, da redução social da mulher ao espaço privado, coexistia um modelo masculino ligado ao trabalho, à honestidade, à capacidade de zelo e de tutela sobre membros da família.37 A análise de Careli (1997) se limita, todavia, a destacar os papéis atribuídos a cada sexo pelos discursos jornalísticos, policiais e judiciais. Neles, existe um “desprezo ao mundo das jovens populares”38, pois os valores eram preconizados em “preceitos baseadas nos parâmetros associados às classes abastadas”.39 Os ideais dominantes, entretanto, não ficavam restritos àquele grupo social, “sendo de diversas formas incorporados por indivíduos alheios a ele”40, apesar dos poucos recursos materiais existentes. A autora sugere também que os inúmeros artigos veiculados nos jornais, solicitando que as famílias “decentes” casem suas filhas com jovens que, apesar de serem pobres, eram honestos e trabalhadores, seria fruto de um fator demográfico - menor número de homens que mulheres.41 Mais do que um fator demográfico, acredita-se que a seletividade dos pretendentes, igualmente, era fruto de uma estratégia de ascensão social do grupo familiar como um todo, independentemente de serem populares ou de elite. Por fim, a justiça criminalizava os comportamentos sociais provenientes dos grupos populares, associando os amasiamentos a várias imoralidades próprias da cultura popular.42 Contrariamente, percebe-se que os valores provenientes da ordem patriarcal e androcêntrica como amplamente disseminados em toda a sociedade, ultrapassando as divisões raciais, sociais e culturais. A troca de mulheres entre famílias pode ser considerada um elemento importante nas estratégias de ascensão social do grupo familiar. Como o valor simbólico construído sobre as mulheres dependia da sua reputação, ou seja, da sua castidade e da sua submissão, os homens do grupo familiar (pai e irmãos) despendiam grande preocupação e controle sobre as mulheres do mesmo núcleo.43

36 CARELI, Sandra da Silva. Texto e contexto: Virtude e comportamento sexual adequado às mulheres na visão da imprensa porto-alegrense da segunda metade do século XIX. (Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1997, p.280. 37 Ibidem, p.76-78. 38 P.277. 39 Ibidem. 40 Ibidem, p.278. 41 Ibidem. 42 Ibidem, p.281-283. 43 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.58-59.

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Ao destacar a enorme assimetria instaurada entre homens e mulheres no terreno das trocas simbólicas existentes no mercado matrimonial, não se pretende diminuir o papel das mulheres como agente. O acesso ao mercado de trabalho, o envolvimento com homens fora do círculo familiar e mesmo uma denúncia de defloramento à Justiça poderia ser parte da estratégia feminina de se desvincular da tutela masculina do grupo familiar. Ao contrário do que defende Arend (2001), justiça não é a alternativa preferencial dos pobres para solução de seus conflitos, mas apenas uma das formas possíveis deles alcançarem seus objetivos. Talvez fosse uma alternativa dificilmente acionada pelos grupos pobres, pois o aparelho policial e judicial representa uma perigosa máquina, movimentada segundo regras que lhe são estranhas. É bastante inibidor falar diante dela; falar o menos possível parece a tática mais adequada para fugir às suas garras.44

Um aspecto dificilmente considerado, quando se analisa o comportamento popular nas relações entre os sexos, é a representação dominante da masculinidade. O privilégio masculino também é uma cilada, na medida em que “impõe a todo o homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade”.45 É possível que o controle da sexualidade feminina por parte dos homens populares também seja uma forma deles afirmarem sua virilidade. A violência, amplamente difundida nas classes populares, mais do que uma experiência comum capaz de definir os populares como grupo social distinto, é recurso exigido pela ordem simbólica ligada a valores patriarcais e androcêntricos. Mais do que um modelo cultural imposto pelas elites, essa lógica era amplamente disseminada em diferentes estratos sociais, variando apenas os recursos que os homens dispunham para sujeitar as mulheres ligadas ao seu grupo familiar. Os contatos com as tecnologias modernas e a proliferação de espaços de sociabilidades ampliaram as possibilidades da população em geral de acessar novos e diferentes tipos de entretenimento. Na visão das autoridades responsáveis pela organização do espaço urbano, tal contexto era visto como uma ameaça à moralidade pública, fato que gerou inúmeras ações policiais. Dentro desses espaços, a lógica androcêntrica, baseada no ideal de virilidade, era amplamente disseminado, fato que gerava conflitos violentos que fugiam da capacidade dos agentes municipais de controlá-los efetivamente.

44 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasilense, 1984, p.22. 45 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.65.

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Urbanização, questão habitacional e casa própria A partir das observações feitas sobre a amplitude das relações patriarcais no ordenamento social, é possível perceber, além do desejo das elites de expulsar os populares do centro, outras dinâmicas e motivações que influenciavam no crescimento urbano da cidade. O problema da moradia que atingiu diversas cidades do país e ficou conhecido como “questão habitacional”46, possuiu significados diversos, dependendo da classe e da etnia. Essa questão foi uma das principais demandas enfrentadas pelos quadros administrativos da prefeitura. A centralidade do problema pode ser percebida tanto pelo fato de o assunto ter sido posto como uma das principais reivindicações do Partido Socialista, fundado em 1897, quanto pelas inúmeras críticas publicadas nos jornais, sobre a ineficiência e a incapacidade dos gestores públicos de resolverem esse problema.47 O modo como a elite política encaminhou a questão habitacional parece ser revelador da própria capacidade da mesma em encaminhar políticas públicas capazes de promover as mudanças modernizantes tão alardeadas como necessárias no período em questão. No Rio de Janeiro, durante o início do XX, por exemplo, os tecnocratas conseguiram impor projetos higienistas e expulsar os populares do centro - foi o famoso “bota abaixo” da administração Pereira Passos. Durante o Império, as investidas desses segmentos, mesmo quando contavam com claro apoio governamental, ainda tinham que enfrentar resistências no Judiciário, graças às atuações dos liberais na defesa da propriedade. Tal obstáculo foi superado com o advento da República.48 No Rio Grande do Sul, a saída autoritária para o problema habitacional certamente encontraria justificativa na influência positivista e na tradição militarizada e autoritária da sociedade. O grande obstáculo para a higienização do centro foi, sobretudo, financeiro. Apenas dois anos após a guerra civil, o governo já enfrentava crise econômica. Sinal emblemático dessa situação foi a aceitação, por parte do Banco da Província do Rio Grande do Sul, de imóveis para liquidar os débitos de seus clientes. Essa situação perdura até pelo menos 1907, quando as dificuldades começam a diminuir. O tempo de crescimento econômico durou pouco, pois, em 1914, iniciou-se outro período de recessão devido à Guerra Mundial. O governo municipal só conseguiu articular empréstimo externo depois de 1924.49 BAKOS, M. M. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos. (1897-1937). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1988, p.04. 47 Ibidem, p.07. 48 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.44-46. 49 BAKOS, M. M, op. cit, p.07-09. 46

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A política habitacional promovida pelos agentes políticos se direcionou, sobretudo, ao aumento progressivo da tributação das áreas do centro e na promulgação de leis que exigia o cumprimento de medidas higiênicas. Em 1897, o imposto se estendeu a todas as áreas que contavam com serviço de bonde. No começo dos anos 1900, inúmeras tentativas foram tentadas no intuito de conter a corrupção generalizada existente entre os funcionários que cobravam impostos, sem muito sucesso. Em 1914, ocorre a promulgação do “Regulamento Geral de Construções”, estabelecendo diretrizes básicas com a ampliação das obrigações higiênicas. A tributação incidiu, do mesmo modo, sobre os terrenos não construídos. Os jornais da época noticiam, fartamente, a elitização do solo.50 Ao aumentar as obrigações higiênicas para regulamentar a propriedade, o governo criava um enorme campo de marginalidade, visto que a maioria das pessoas não tinha condições financeiras de cumprir a lei. A consequência mais óbvia da falta de moradias é a superlotação de prédios habitacionais e a formação de cortiços. No centro, bem próximo aos locais de moradia dos setores tradicionais da elite, encontram-se inúmeras propriedades que pagavam impostos como cortiços. Foi essa convivência incômoda que levou alguns segmentos emergentes da elite a ocupar a região em torno da Av. Independência, um pouco mais afastado do centro da cidade.51 A vontade de se isolar dos populares também levou a elite a buscar alternativas habitacionais fora do centro. A região da Cidade Baixa, tradicional local de habitação das populações mais pobres, nas áreas de colonização portuguesa, passou a receber, nas primeiras décadas do XX, a população italiana que chegava à cidade. Os novos proprietários foram, gradativamente, melhorando a qualidade das moradias, operando qualificações higiênicas e arquitetônicas, fatores fundamentais na definição do status social de um local respeitável, mesmo se inserido em territorialidades marcadamente pobres. Entretanto, até 1920, ainda era possível detectar a presença de cortiços nessa área.52 A região do Bom Fim, provavelmente, devido à sua proximidade com a Colônia Africana, era uma área bastante desprestigiada até o final do século XIX. Em 1910, todavia, já é possível detectar tanto a presença de italianos quanto a proliferações dos cortiços. Somente em um segundo momento o bairro passou a receber os imigrantes judeus, que acabaram criando uma nova dinâmica de ocupação para esse espaço.53 Em termos de densidade populacional, as áreas em torno da Cidade Baixa e da Colônia Africana eram as mais importantes depois do centro. A ocupação desIbidem, p.07-09. CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Espaço urbano e imigrantes: Porto Alegre na virada do século. Estudos ibero-americanos. PUCRS, v.XXIV, n.1, 1998, p. 156-158. 52 Ibidem, p.160-161. 53 Ibidem, p.161-162. 50 51

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tas áreas ocorreu ao longo do século XIX e estava ligada à dinâmica da sociedade escravista, na medida em que as primeiras populações dessas áreas eram de etnias africanas.54 A principal aposta para o escoamento da população trabalhadora do centro foi a urbanização do terceiro e quarto distritos, na zona norte da capital. As primeiras ruas foram traçadas em 1896, porém o serviço de bonde só chegou à região em 1907. As indústrias se instalavam naquela região tanto pela proximidade com o centro quanto pela facilidade no escoamento da produção. A relevância econômica, política e social desse espaço da capital cresceu bastante. Meios de sociabilidade próprios e diferentes daqueles da “cidade velha” também se desenvolveram nessa área.55 Em associação com esse processo de expansão, percebe-se o estabelecimento de comércio ao longo da Av. Voluntários da Pátria56 e de algumas famílias de italianos e alemães ao longo eixo da Av. Cristovão Colombo. Em 1900, registram-se inúmeras propriedades para alugar nessas áreas. Fortemente marcada pela presença estrangeira, a ocupação desses espaços trazia consigo o desejo das pessoas de alcançar a segurança econômica e o respeito, cujo signo maior era o acesso à casa própria. Gradativamente, graças às dinâmicas próprias dessa região, alguns espaços foram se destacando pela ocupação de uma classe média ascendente, como é o caso do bairro Higienópolis.57 Em suma, a ida para a periferia, mais do que um plano da elite desejosa por expulsar os populares do centro, podia fazer parte das estratégias de grupos sociais para a obtenção da casa própria. Esta, além da segurança econômica, podia representar o acesso à dignidade civil, que uma unidade familiar estruturada, segundo a lógica patriarcal, representava. Também podia representar maior qualidade de vida, pois tais residências eram, sobre o ponto de vista higiênico, mais adequadas que os cortiços. Portanto, qual o significado dessa política habitacional para as pessoas que não possuíam as condições materiais para se adequar à legislação? Assim como em outras regulamentações, entre elas a que combatia os jogos de azar, tal política criava um enorme campo de criminalidade, ampliando as prerrogativas de atuação do poder público e vulnerabilizando grande parcela da população. A busca pela casa própria com condições higiênicas, nestes termos, representava o acesso à dignidade civil e à segurança econômica.

54 FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: A classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Caxias do Sul: Editora da EDUSC, 2004, p.35. 55 Ibidem, p.35-38. 56 Tal avenida começa no centro e dirigi-se a Av. Farrapos, principal via de acesso do 4º e 3º Distrito. 57 CONSTANTINO, Núncia Santoro de, op. cit, 1998, p.158-163.

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Conclusão Durante todo o século XIX e em grande parte do século XX, vários grupos sociais (mulheres, negros, indígenas, pobres em geral) eram alijados de participação da vida política por serem considerados pelas elites incapazes de agirem de forma autônoma. As concepções de Estado e de cidadania, na sua forma universal, implicam uma condição moral, baseada na agência, não condizente com aquilo que a alta burocracia porto-alegrense, responsável pelas políticas públicas, pensava sobre a população de maneira geral, principalmente os pobres. As políticas públicas de combate à vadiagem e as legislações promulgadas resultantes da política habitacional implementada eram importantes para reproduzir as hierarquias sociais ligadas aos valores patriarcais e elitistas. Isso ocorria porque a criminalização de práticas sociais amplamente disseminadas, como o desemprego, no caso da vadiagem, ou as obrigações higiênicas, no caso das habitações, vulnerabiliza civilmente parte da população. Assim, a diminuta parcela da população que consegue se adequar às normas promulgadas é a única capaz de gozar, plenamente, de dignidade civil e de segurança econômica, condições fundamentais para o funcionamento de uma sociedade moderna. Políticas públicas centradas em uma concepção que a ordenação social deve ser alcançada, a partir da possibilidade ou ameaça de punição, são tipicamente autoritárias, pois não estão preocupadas com a promoção da capacidade de agência. Portanto, políticas públicas baseadas numa perspectiva meramente proibicionista impedem a burocratização dos conflitos sociais e o estabelecimento de direitos e princípios válidos universalmente ao conjunto da população.

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