MODERNIDADE E TEMPO HISTÓRICO EM REINHART KOSELLECK: GENEALOGIA COLONIAL DE UMA MUTAÇÃO IDEOLÓGICA

June 2, 2017 | Autor: Vinícius Pulgatti | Categoria: Teoria e metodologia da história, História Da América Latina
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MODERNIDADE E TEMPO HISTÓRICO EM REINHART GENEALOGIA COLONIAL DE UMA MUTAÇÃO IDEOLÓGICA

KOSELLECK:

VINÍCIUS PULGATTI DE MOURA Universidade Federal do Rio Grande do Sul1

RESUMO O objetivo do presente artigo é refletir acerca da teoria da modernidade de R. Koselleck, buscando traçar uma genealogia colonial do surgimento do tempo histórico. À luz dos recentes debates historiográficos na América Latina, entendemos que só é possível compreender as mutações no Sistema-mundo a partir de uma confluência de abordagens e possibilidades históricas variadas. Para tal, apresentamos um panorama da visão de Koselleck, e percorremos o caminho da historiografia da América desde os anos 1950, passando pelas mudanças dos anos 1970 e finalmente 1990. Procurou-se demonstrar o surgimento da concepção de uma nova Era, de um novo tempo, e como este fato foi sistematicamente maculado pela tradição intelectual, para encerrar acenando à indissociabilidade do contexto mundial do latino-americano. PALAVRAS-CHAVES Tempo histórico. Modernidade. América Latina.

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Artigo para fins avaliativos. Curso Teoria e Metodologia da Historia, I. Professora Mara Cristina de Matos Rodrigues, doutora UFRGS (2006), PhD Universidade Federal Fluminense (2011)

INTRODUÇÃO O autor alemão nascido em 1923 em Gorlitz atraiu para si os olhares da historiografia com o lançamento de sua tese de doutorado, em 1954: Kritik und Krise. A crítica e a crise a que faz referência remete à ligação que se dá entre a utópica filosofia da história e a Revolução desencadeada depois de 1789. Todas suas obras refletem a preocupação com a semântica fundamental dos conceitos, sendo conhecido como expoente de uma História dos conceitos. Ao apresentar a escola iniciada em fins dos anos 1960, Koselleck propõe uma análise profunda dos termos e significados e as transformações ocorridas ao longo do tempo, chamando atenção à importância do agregamento deste estudo ao da História Social, como aponta na obra, Futuro Passado: “Desde que a sociedade atingiu o desenvolvimento industrial, a semântica política dos conceitos envolvidos no processo fornece uma chave de compreensão sem a qual os fenômenos do passado não poderiam ser entendidos hoje.” (p.103).

Para esclarecer seu ponto de vista, Koselleck empreende um estudo profundo das pré-condições meta-históricas, antropológicas, linguísticas, pré-linguísticas, das estruturas formais de repetição, cuja atualização empírica dá origem à História concreta, como aponta DUARTE (2012). O autor percorre o caminho conceitual desde a antiguidade até o século XVIII. Observamos a vigência da Historia Magistra Vitae de Cícero: uma coleção de exemplos aos homens - nada essencialmente novo poderia acontecer. Nessa estrutura temporal estática, passado, presente e futuro se articulam num espaço contínuo: ações, eventos que se repetem e podem ser interpretados por analogias, servindo de guia para aprendizagem e aperfeiçoamento moral. Entretanto, essa “futuridade do passado” passa a dar lugar para uma “radicalidade do futuro” que separa as dimensões de tempo, anulando as utilidades de experiências passadas: de fato, no período conhecido como Modernidade, uma produção acelerada de mudanças sem precedentes torna as lições dos antigos cada vez menos pertinentes.

O tempo histórico não é simplesmente redutível ao tempo mensurável, natural, astronômico ou biológico, e, de fato, a própria concepção e percepção do tempo se alterara. Assim, podemos afirmar que a História possui um tempo próprio, distinto, emancipado da cronologia natural, não mais um meio neutro ou um pano de fundo no qual se projetam, repetindo-se, ações/instituições humanas. Logo, notamos que a história possui seu tempo imanente, dependente das experiências concretas dos homens, e da maneira como estes articulam e se relacionam com as diferentes dimensões temporais do passado, presente e futuro. Para tal empreitada, Koselleck volta sua atenção para compreensão das transformações históricas mais amplas: a emergência da Modernidade, de 1750 a 1850. Apontando para o progressivo afastamento entre a forma como cada geração lidou com o passado (formando seu campo de experiência) e com o futuro (criando um horizonte de expectativa), o autor nos mostra que as relações estabelecidas podem mudar radicalmente, a exemplo do acontecido na Revolução Francesa em 1789. A partir de então, a presença de um futuro inédito, frente a uma passividade de aceleração do tempo (contrapondo-se as ideias da Cristandade de fim do mundo vigentes até o século XVI) causa essa emancipação entre futuro e passado, desaguando nas transformações conceituais dos conceitos como o de História e Revolução. Se a palavra Revolução estava originalmente associada a um movimento circular, cíclico, após 1789 este movimento não mais retornava ao ponto de partida, sendo empreendedor de uma ruptura radical com as estruturas vigentes, causando uma aceleração do tempo. Ao mesmo tempo, a superação das noções tradicionais de história pode ser observada na ponderação detalhada do autor na relação dos conceitos de narrativa histórica (Historie) e fato histórico (Geschitche), culminando no exaurimento da capacidade pedagógica, que Tocqueville se refere como a dissolução do velho Topos num “tempo novo”. Passando à dimensão sócio-política desse rompimento do paradigma tradicional e a emergência da experiência temporal moderna, de acordo com o autor, [que analisa] a evolução das noções de futuro, alimentadas por um idealismo moral (residente numa experiência de alienação, para DUARTE, 2012), traz como consequência a instalação e perpetuação de uma crise, que se estende desde a Revolução na França até o fim da Guerra Fria. Ou seja, a secularização das expectativas cristãs de futuro que se dão desde Copérnico serão seladas

no conceito de Progresso: determinação do tempo, transcendente à Natureza e imanente à História. Esse meta-conceito de futuro como um movimento único e universal, como aponta DUARTE (2012) alia a relatividade temporal à relatividade espacial, causando uma história historicizada, no sentido de que a linguagem política no horizonte do progresso incorporou o fator temporal. A partir de então, a Europa passa de uma periferia fora do interesse da alta cultura anterior (HOBSBAWM, 2010)2 a uma potência dominante mundial, num processo estruturado de desenvolvimento, numa ordenação diacrônica e hierárquica.

HISTORIOGRAFIA DA AMÉRICA LATINA: REFLEXÕES

Feito o panorama da visão de Reinhar Koselleck, encaminhamo-nos para o objetivo principal desse artigo, que é debater a genealogia colonial, e não somente metropolitana, da gestação de um novo tempo. Provocados por ARANTES (2014), mesmo apesar da concepção restritiva dos conceitos como World System Theory de Robert Cooper ou Imannuel Wallerstein, reconhecemos que a visão escatológica do tempo de um modo direcional, num processo ascendente, se constitui numa forma de dominação através da dinâmica temporal - e esta é a definição de Paulo Arantes para o próprio Capitalismo. A partir daí, uma luta mundial entre os acumuladores de capital pela acumulação de capital se desdobra no primeiro Colonialismo, e posteriormente na luta entre Burguesia e Antigo Regime 3. Aqui, o autor cita o que chama de Rebeliões Atlânticas, as primeiras revoltas antissistêmicas do mundo moderno, como a primeira e sem precedentes ameaça real às polarizações estruturais do Sistema-mundo (deixamos em aberto para estudo posterior a maneira como essa crise da modernidade afeta as teorias estruturalistas e qual o papel da América nisso).

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HOBSBAWM, Erick. A curiosa história da Europa.Tradução Cid Knipel Moreira. Em Sobre História: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras,1999. 3 Dando o pontapé inicial para o Estado de Exceção permanente descrito por AGAMBEM, Giorgio.

Então passamos, agora, a analisar como se gestou a modernidade nas colônias europeias - especificamente na chamada América Espanhola, o primeiro e mais duradouro Império ultra-marino europeu. Inspirados em François Hartog, buscaremos mostrar como o significado e valor da historicidade afeta as tradições do saber ao longo do tempo na América, ou seja, como os sucessivos regimes de historicidade delineam as relações temporais tanto na hispano-américa como na relação - para nós nada casuística, causal, nem de mão única - desta com o Sistemamundo. A segunda metade do século XVIII e início do século XIX são marcados por uma série de transformações mundiais protagonizadas pelo colonialismo europeu ao redor do mundo, ao mesmo tempo acompanhamos o surgimento de conceitos hoje reconhecidamente generalizados, mas que na época representavam uma mudança de perspectiva altamente significativa. Especificamente na Espanha monárquica absolutista, as chamadas ideias liberais, que em 1789 levará à Revolução Francesa no país vizinho, passam a entrar na pauta de discussões já a partir de 1759. Com Carlos III e Carlos IV o vasto império observa o surgimento paulatino de um pensamento político moderno ilustrado. A dinastia Bourbon implantara uma série de reformas administrativas, com a finalidade de maximizar a prosperidade da Coroa e fixar a hegemonia espanhola nos territórios dominados. Entretanto, este processo de arrocho fiscal descontentou as elites locais, que pouco a pouco foram sendo contaminadas pelos liberalismos. No ano de 1808, pois, uma reviravolta acontece, com a invasão de Napoleão Bonaparte à península ibérica: em Portugal, a fuga da família real para a colônia do Brasil e na Espanha a abdicação de Fernando VII e sua substituição por José Bonaparte, transformará ambos os reinos num caldeirão de experimentação política. Como nos aponta Fraçois-Xavier Guerra em sua obra marcante, Origens da Nação na América espanhola, o trato da historiografia sobre este período está marcado por uma série de ambiguidades e anacronismos. Este mosaico de termos vagos era formado por uma reunião de debates políticos, fragmentos de construções historiográficas passadas e empréstimos estrangeiros, colocando conceitos fora de contexto como emancipação nacional, nacionalismo, colônias e descolonização, surgimento de “países novos”. Para GUERRA, a Revolução Liberal espanhola e as Independências foram um mesmo processo, uma nova Modernidade que iniciou com

a queda de uma monarquia de Antigo Regime, que tornou-se a desintegração do conjunto político em Estados soberanos. Como demonstra, porém, SÁ MÄDER (2008), o caráter revolucionário das independências foi por vezes distorcido. Citando CHUST (2006), observa que até os anos 1950 vigorou um consenso historiográfico sobre a América, marcado por concepções maniqueístas (polarizadas entre realistas versus insurgentes) - um discurso hegemônico que buscava unificar a história de sociedades diversificadas étnica e sócio-economicamente, com o intuito de criar um substrato histórico capaz de empreender uma síntese cultural, social, territorial, explicando o porquê dessas interpretações considerarem povo como um ator homogêneo e sem fissuras. Como explicou CHUST (2008), a que ficou conhecida como História Pátria ou de Bronze, centrada no herói-libertador, um deus ex machina capaz de fundar a Nação, passou por uma superação na década de 1970. Ocorre, a partir daí, uma mudança de ciclo das correntes interpretativas historiográficas, que levam em conta justamente a História Social a que Koselleck se referia, prestando mais atenção ao processo de conquista da cidadania, marcado por eleições, constituições, liberalismos, de valor mais cívico e menos armado. Na esteira das novas abordagens, os anos 1960 e 1970 foram marcados fortemente pela tese das Revoluções Atlânticas, marcada pelo neo-imperialismo que vigorava, tendo como expoente John Lynch. Após a teoria da modernidade de GUERRA

nos

anos

1990,

uma

fusão

dessas interpretações

possibilitaria

enxergarmos o caráter revolucionário, liberal e burguês, prestando atenção à crise de 1808, as Juntas de governo a que se seguiram as Cortes de Cádiz, com sua respectiva Constituição de 1812. Entretanto, numa interpretação de revolução como uma mudança radical das estruturas econômicas e sociais ou um meio de chegada ao poder de uma nova classe social, a historiografia minimizou, tendendo a atenuar ou até negar tal caráter revolucionário, buscando interpretá-lo como um fenômeno puramente político, no sentido de ruptura dos vínculos coloniais e a substituição dos dominadores peninsulares pelos crioulos. A partir das visões clássicas da Revolução Francesa, buscam entender as rebeliões atlânticas como Revoluções Burguesas, feito na Espanha por uma burguesia revolucionária e na América por uma Burguesia crioula. A partir de GUERRA, esta linha não se sustenta mais, pois reduzir as Revoluções a uma série de mudanças institucionais, sociais e econômicas deixa de lado a

consciência plena dos atores (refletido em todas as fontes) de que estavam testemunhando o início de uma nova Era, um novo Homem (um indivíduo, livre da sociedade estamental e corporativa), uma nova Sociedade (contratual, fruto do pacto social) e uma nova política (marcada pela soberania popular). Este quadro caracteriza a emergência de uma modernidade, observada não só entre os burgueses, mas de um modo geral, ou seja, não somente entre aqueles que tinham em comum a situação sócio-econômica, mas que partilhavam um mundo cultural. Também CHAUNU (1973) traz uma análise que privilegia as contradições e complexidades internas das sociedades coloniais e reforça o caráter de rompimento e novidade das independências. SÁ MÄDER recorda que uma série de novos fatos políticos, econômicos, sociais e acadêmicos da década de 1970 tiveram forte impacto no surgimento dessa nova geração de historiadores profissionais, acarretando na historiografia revisionista. A ausência de rigor com a qual haviam sido tratadas as fontes primárias até então passou a ser questionada, e confrontada com diversas abordagens: História, Antropologia, Sociologia, Ciência Política. Também o pós–II Guerra e a Revolução Cubana despertaram os interesses estrangeiros na historiografia americana. Esta nova agenda, a que se somaram as teorias da dependência e várias correntes marxistas, passaram a se debruçar sobre os conceitos de classes sociais, luta de classes, dependência e revolução, a partir da qual várias questões foram colocadas: houve mudanças estruturais? Revolução ou Reforma? Massas populares simples atores passivos? Conflito de classes ou grupos políticos? A própria Revolução Francesa, a tempos de seu bicentenário, foi alvo de uma reavalição conceitual. FURET (1978) realizou um exame crítico das correntes historiográficas que haviam pensado a Revolução. Opondo-se à tradição de história comemorativa, que remonta à Jules Michelet - a qual, segundo o autor, vai pouco além da repetição dos argumentos dos próprios participantes do processo -, recupera a História Conceitual, recorda Tocqueville e, por meio de uma conceitualização rigorosa realiza uma crítica da ideologia revolucionária. Ao propor novas vias de interpretação do passado rompe, também, com as vias marxistas, uma confusão entre bolchevismo e jacobinismo, de acordo com o autor, que alimentam a concepção linear do progresso humano. Com isso, desmonta o mito da origem de ruptura na própria revolução em si, passando a caracterizá-la ao mesmo tempo como

acontecimento (modalidade de mudança e dinâmica particular de ação social coletiva) e processo histórico (conjunto intrincado de causas e consequências). Apontamos aqui a confluência dessas interpretações com a de GUERRA, pela qual a modernidade se deu na América por um duplo caminho: a ruptura com o Antigo Regime e o espaço aberto a novas experiências, projetos, conceitos e palavras. No biênio transcendental (CHUST 2008) de 1808-1810 encontramos o ponto de mutação ideológico, num debate acerca da natureza da representação e da natureza íntima da Nação, viabilizado principalmente por dois fatores: a proliferação de publicações (que ampliara o acesso a ideias liberais à população) e novas formas de sociabilidade (clubes literários, pensamento ilustrado) que constituíram um novo vocabulário político capaz de gestar uma nova Modernidade. Encaminhando-nos

à

finalização

desse

artigo,

buscamos

reforçar

a

possibilidade de entrecruzar a história da historiografia americana à europeia propriamente dita. Acreditamos que uma brecha foi deixada por Manuel Chust ao colocar a história da América em três planos temporais, distintos mas simultâneos, nos levando a traçar um paralelo com a obra mais recente de Reinhart Koselleck em que ele elabora uma teoria do tempo em Estratos. Estabelece CHUST primeiro um plano temporal longo (1750-1850), marcado pela Guerra dos Sete Anos, Revolução Industrial inglesa, independência das Treze Colônias, a Revolução Francesa, as reformas Bourbônicas, as Guerras Napoleônicas, as revoluções liberais e o surgimento e consolidação da dívida externa das Repúblicas: um plano amplo e consubstancial entre Europa e América, parte de um contexto universal de luta por mercados, matérias-primas e prestígio. Em seguida, um plano temporal médio (17961830), em que figuram as guerras com a Inglaterra, as alianças franco-espanholas e os tratados de São Ildelfonso e Fontainebleau, a ocupação britânica de Buenos Aires (1806) e invasão de Lisboa, Madri, etc: um plano peculiar devido à imensidão americana, a diversidade e as distintas importâncias regionais, chamando atenção à intensa inter-relação entre os Hemisférios (a partir do trânsito de ideias, livros, burocratas, militares, eclesiásticos, imprensa...). Por fim, um plano temporal curto (1808-1826), fortemente marcado pelo Biênio Transcendental 1808-1810, em que a guerra na península repercute fortemente nas Américas, causando uma luta por legitimidade política que culmina na forte participação de deputados americanos na Constituição de 1812, seguida pela frustração dos planejamentos autonomistas frente à reação absolutista de Fernando VII.

Portanto, a partir dessas visões consideravelmente mais diversas de CHUST, GUERRA, e autores como José Carlos Chiaramonte, Túlio Alperín Donghi, Ivana Frasquet, entre outros, conseguimos desvincular a história da América de uma perspectiva anacrônica e teleológica que não se deu conta da ausência de um movimento nacionalista pré-independências, e não questionou o conteúdo da nacionalidade: geralmente entendida como compartilhamento, por uma mesma comunidade, de especificidade linguística, cultural, religiosa e étnica, mas que na América hispânica era um mosaico de grupos entrelaçados, miscigenados, tendo em comum a religião e lealdade política. A partir dessa visão, é mais apropriado concluir que a Independência procedeu a Nação e o nacionalismo, e enxergá-la mais como uma ruptura de um conjunto político multicomunitário, semelhante a exemplos no século XX como a queda da União Soviética. Assim, num primeiro momento um frágil e aleatório pacto dos povos se encaixa em condições econômicas e administrativas pré-existentes e num segundo momento uma tentativa de unidade é imposta pelos Libertadores. A necessidade de transformar vassalos em cidadãos, compartilhando uma memória e imaginário em comum, marcará a dissolução do primeiro e mais homogêneo império europeu.

CONCLUSÃO

Concluindo, buscamos demonstrar como relações estabelecidas entre memória e história puderam ser metamorfoseadas, de forma acelerada, na emergência do regime de historicidade moderno. O distanciamento progressivo do campo de experiência e o horizonte de expectativa se estabelece numa nova dinâmica de percepção temporal, fundamentos de um novo tempo histórico. Apresentamos especificamente, por meio da observação da historiografia da América Latina, uma fase crucial na transformação semântica das linguagens políticas e sociais no âmbito histórico cultural do continente (SÁ MÄDER, 2008).

À História de Bronze se seguiram as mais diversas interpretações: dependentistas, marxistas, movimento dos Annales, assim como no final dos anos 1980 e 1990 tais teorias estruturalistas também sofreriam criticas ferrenhas, num movimento de Desconstrução. O fato é que, mais que questionar a inevitabilidade das Independências ou dos processos da suposta emancipação da Nação, as análises historiográficas passaram a considerar outros fatores que até então estavam relegados à obscuridade: as mutações conceituais que transformaram e foram transformadas por uma sociedade plural, diversa étnica, cultural, social e também economicamente,

mas também uma sociedade sistematicamente violentada

por mecanismos de exclusão que garantem a ordem internacional de dominação econômica, num Estado de Exceção permanente nunca muito diferente da época da Conquista, apesar do qual uma confluência sem precedentes de novas experiências metamorfoseariam, tanto os homens do Antigo Regime Europeu, quanto aos sociedades indígenas nativas, de maneira irredutivelmente indissociável, num novo Homem moderno, vivendo num novo tempo histórico. Como lembra DUARTE em referência a Koselleck, o passado deixa de ser mantido na memória pela tradição escrita e oral tão somente, passando a ser reconstruído pelo procedimento crítico. Entretanto, ao optar pela via da crítica radical, ou seja, das nossas próprias raízes conceituais, é preciso estar disposto a abandonar todo tipo de preconceitos e certezas absolutas. ARANTES (2014), em sua análise profunda e refinada de Koselleck, parece nos dar indícios da dissolução eminente do paradigma moderno: com colonização do lugar-experiência pelo fluxo-horizonte, a própria noção moderna de progresso e a temporalização da história que a tornou possível vão para o espaço. A tensão constitutiva entre o mundo histórico (industrial, “terceiro-mundista”) e o póshistórico (pós-industrial), bem como os colapsos da ordem mundial dos séculos XX e início do XXI nos apontam um longo caminho de crítica intelectual historiográfica a percorrer, buscando compreender os efeitos dessas mutações na experiência temporal da história, não somente na América Latina, mas em todo e qualquer lugar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. (Col. Estado de Sítio). 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2014.

CHAUNU, Pierre. La Independencia de America Latina. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1973.

CHUST, Manuel. Reflexões sobre as independências Ibero-americanas. In Revista de História 159. (2º semestre de 2008) p. 243-262.

DUARTE, João de Azevedo e Dias. Tempo e crise na teoria da modernidade de Reinhart Koselleck. História da historiografia. Ouro preto, número 8. 2012. p. 70-90.

FURET, François. Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

GUERRA, François-Xavier. A nação na América espanhola: a questão das origens. Revista Maracanan, ano 1, n. 1, 1999-2000. p. 9-29.

GUERRA, François-Xavier. Modernidad y Independencias: ensayos sobre las revoluciones hispanicas. Mexico: Editorial Mapfre, Fondo de Cultura Económica, 1992. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês.Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. (Trad. Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira, Rio de Janeiro, Contraponto/PUC-Rio, 2006.)

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Trad. Markus Hediger - 1. ed. - Rio de Janeiro, Contraponto/PUC-Rio, 2014.

SÁ MÄDER, Maria Elisa Noronha de. Revoluções de Independência na América Hispânica: reflexões historiográficas. In Revista de História 159 (2º semestre de 2008). p. 225-241.

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